TEMPOS DIFÍCEIS C - Blog da Feira · 2019. 7. 18. · TEMPOS DIFÍCEIS C ínica é a pessoa que...

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TEMPOS DIFÍCEISCínica é a pessoa que revela

desprezo pelas convençõessociais, pela ética, pela

moral e só defende o que lhe éconveniente. O cínico é mutante nosseus princípios. Pode ter desprezadoum valor social ontem e defendê-loardorosamente hoje. Sempre deacordo com suas conveniências. Porisso o corolário – todo cínico édesonesto.

Getúlio Vargas foi umgrande cínico. Quem descortinouesse traço mórbido do seu caráter foio jornalista/escritor Lira Neto natrilogia biográfica que escreveusobre o ditador/presidente. Ocoroamento de sua vida deembusteiro aconteceu quandoautodenominou-se “pai dospobres”. Para a oposição, era a mãedos ricos. Ambivalente emprincípios e ações, abraçou amuitos, apunhalou a todos: à direitae à esquerda. A ele importava a suasobrevivência política e, por óbvio,a física.

Getúlio tinha guarda-costa truculento quepenteava seus cabelos quando assanhados pelo vento;amantes e concubinas custeadas por propinas demagnatas que em troca recebiam favores do Estado(Banco do Brasil de ontem era o BNDES de hoje);cooptava ou repudiava intelectuais, artistas, jornalistas;usava máquinas de propaganda e tortura para anestesiaro povo e estropiar desafetos; inventava planosconspiratórios contra o país para justificar o autoritarismopermanente. Quando inquirido sobre os descalabros,tinha resposta pronta – não sabia de nada! Getúlio foitudo isso e muito mais. Lira Neto desvenda o cinismodos períodos Vargas nos seus livros que valem ser lidos.O cínico preferiu a porta do suicídio para não atravessara da cadeia. Nessa decisão não foi seguido, infelizmente,por seu prosélito mais recente.

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Zé Luis dizia-se professor de Geografia. Nós, osalunos, não o considerávamos como tal. Na verdade, elemesmo desmerecia suas aulas. Nelas, a física do globo esuas regiões importavam menos que as pregaçõesestapafúrdias, chistes e piadas impudentes. Começandoexplicação sobre fusos horários, fez esquema no quadrode giz quando a colega Marinalva perguntou: –‘Cupia’professor? Ele sarcástico, respondeu: – Não! Ronca! Agalera do fundão foi ao delírio. A turma da frente sóentendeu a piada após o recreio.

Zé Luis não gostava e falava mal dos heróisbaianos da Guerra da Independência. Segundo ele, foramfabricados por necessidade. A heroína vestiu-se dehomem para poder acompanhar um cabo sedutordespachado para as bandas de Cachoeira e São Félix, e oCorneteiro de Pirajá tocou a ordem errada porque estavaborracho. Nas suas palavras, um português vira-casaca,safado, apreciador das mulheres negras e da“branquinha”. Passou de bêbado a herói porque aportuguesada correu de uma cavalaria que não existia. Epior – dizia ele – o sacripanta começou a acreditar queera herói mesmo. Concluía: – Só porrada!

Zé Luis compartilhava com o Corneteiro dePirajá, Luis Lopes, o nome e o gosto pela pinga. Emalgumas aulas a Terra lhe parecia girar mais do quedeveria.

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A viatura parou bruscamente ao meu lado, a portafoi aberta de supetão e uma voz de dentro gritou: – Entra!Gelei! Atravessava a Praça da Bandeira ainda vazia noinício de uma manhã de agosto 67, tempo frio nas ruas,mas quente na política dominada pelos militares.Caminhava preocupado, astuciando como pagar a gráficapara liberar o jornal semanário Situação que circulava emFeira, mas era impresso em Salvador. Em segundosimaginei todas as desgraças possíveis. O alívio veio coma pergunta – Quer carona?

Era a voz inconfundível de Everildo. O repórterpolicial do jornal que levava a atividade tão a sério quepraticamente morava na delegacia. Era habitué do presídioe deslocava-se nos carros da polícia acompanhandodiligências e rondas. Um personagem impagável,inesquecível. Conversava longamente com policiais,ladrões, assassinos, vítimas e, vez por outra, aconselhavao delegado Gilberto. Era uma espécie de Dr. Freud para amarginalidade. Para ele ladrões pormenorizavam roubos,assaltos; indicavam os receptadores e, como que pedindoabsolvição, confidenciavam suas origens e dramas.Alguns pediam e conseguiam de Everildo a publicaçãode uma foto no jornal. Deixei o jornal no início de 68 paravoltar a estudar, fazer vestibular em Salvador. Nunca maistive contato com Everildo. Soube que tinha dadocontinuidade às suas atividades de repórter/jornalista naChapada Diamantina, mas, fim do ano passado, seu coraçãorompeu a parceria com o cérebro inquieto e brilhante.Foi-se e deixou boas lembranças.

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Feira de Santana tem um filho muito ilustre doqual sou grande admirador. Divaldo Franco (1927 –),professor, orador, filantropo e figura singular na vidareligiosa brasileira. Abraçou a doutrina espírita que temmilhões de seguidores entre nós e, assim como outromédium, Chico Xavier, tem enorme influência nestacomunidade. A Mansão do Caminho, obra de assistência/promoção social, atende milhares de carentes. Os direitosautorais de seus mais de 250 livros psicografados, commais de oito milhões de exemplares vendidos, foramdoados em cartório para esta e outras instituiçõesfilantrópicas. Divaldo tem 92 anos e credita sualongevidade à Graça Divina que ainda lhe reserva muitasresponsabilidades no mundo terreno. Caçoa de si mesmoe dos outros quando fala da morte que, para ele, comopara todo espírita, é simplestransição. No entanto, apretexto de prestar-lhe umahomenagem, claramenteextemporânea, a mediocridadecavou um buraco no meio deavenida e assentou placa comseu nome. Um túmulo pré-morte. Muito agouro parapessoa tão especial enecessária.

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Certa vez, em programa de entrevista na televisão,o cientista social e grande observador da vida brasileira,Bolívar Lamounier (1943 –) definiu a atividade políticano Brasil como uma peça de teatro com um roteirodeplorável, personagens canastrões, atores sofríveis eplateia ignara. Os fatos do pretérito recente, do presente e,sem pretender ser fatalista, do futuro, cobrem o sociólogode razões. O elenco abriga ex-Presidentes presos porladroagem, corrupção; uma outra, presidenta por estupideze incompetência; governadores, senadores, deputados,prefeitos, naipe completo de bandidos, delinquentes,roedores dos recursos do erário e seus asseclas, parceiros– ministros, empresários, advogados – enfim, a alta roda,a fina flor da marginalidade. É verdade que peças assim jáforam apresentadas no palco do Teatro Brasil. A maioria

dos brasileiros não conhece sua história verdadeira.Quando muito, é informada com fatos distorcidos,fantasiosos, de acordo com a ideologia dominante. Operíodo getulista foi nefasto e trágico. A década petistarepetiu a novela dantesca em dose cavalar. Sobre oslivros mencionados Lula declarou: “Poucas vezes vialguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargase do povo gaúcho como Lira Neto. A primeira parte dasua trilogia, foi tão impactante para mim que me viandando como Getúlio, fumando um charuto pela Ruada Praia em Porto Alegre”. Almas Gêmeas! Talvez aindase encontrem em outra dimensão. Nesta em que vivemoscareceria de ajuda mediúnica. O encontro seria benéficoao país? Deus sabe!! Diria minha avó Emília.

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Na última eleição o país fez um avanço. Saiu dacerteza do desastre para a incerteza do sucesso. Incertezaporque, tal qual o corneteiro descompreendido, oprotagonista da mudança acredita que o país deve a ele,e somente a ele, o benfeito. Não consegue enxergar quea maioria da população não o escolheu por seus méritos,pela sua capacidade. Não votou a seu favor, mas contraseu oponente. O fato é que se o novo Presidente tivessea compreensão das suas limitações intelectuais edelegasse o gerenciamento do governo a pessoas maishabilitadas, preparadas, comprometidas com seu ideáriode candidato, o país teria avançado muito mais naredução dos problemas graves que vivencia.

Corneteiro e Presidente, dois heróis de araque.

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Fim do ano passado a cidade tomouconhecimento de que uma quadrilha saqueava osrecursos públicos destinados à saúde dos munícipes. Afalcatrua era realizada através da contratação decooperativas que superfaturavam contratos e aindaassim venciam concorrências ou eram graciosamentedispensadas das mesmas pelos prepostos municipais.Foram centenas de milhões de reais roubados em maisde uma década. O povo humilde, carente de recursospara pagar consultas, exames e tratamentos foi espoliadopelos vampiros que lhes sugaram o sangue e a vidadurante esse tempo. Crianças, jovens, velhos foramdepauperados pela falta dos recursos desviados paraenriquecimento ilícito e ostentação despudorada doscorruptos, dos larápios. Gente que ontem posava dehonesta, proba, e hoje merece a ojeriza da sociedade. OMPE, polícias federal e estadual, órgãos de combate àcorrupção formaram a força tarefa que prendeu osbandidos. Surpreendentemente prenderam inicialmenteos corruptos. A informação prestada à sociedade garantiaque em seguida seriam presos os corrompidos. Passadosmais de seis meses não há notícias de que os facilitadorese naturalmente receptadores de parte do butim tenhamsido encontrados. Da mesma forma, parecem terevaporado as centenas de milhões provenientes dossaques. Criou-se, assim, uma situação juridicamenteinsustentável porque esdrúxula. Os corruptores estãopresos, porém não há corrompidos. Aparentemente asautoridades estão encontrando dificuldades paralocalizar os idealizadores/apoiadores do esquemacriminoso. Dificuldades estranhas porque o rol desuspeitos, em todos os escalões, é muito reduzido. Osmais graduados alardeavam e defendiam em rádios ejornais a utilidade do cooperativismo nos serviços desaúde municipal. No passado, problemas de roubo comsoluções tão óbvias eram resolvidos rapidamente pelodelegado Gilberto após consulta ao jornalistainvestigativo Everildo. Poderiam eles – na outradimensão – resolver esse imbróglio?

O ilustre Divaldo nos daria essa resposta? Averdade é que o Brasil, particularmente, Feira deSantana, vivem tempos difíceis, até para ele – julgo eu –pessoa com vasto entendimento e compreensão danatureza humana. Assim, abomino desde logo o pedidode ajuda. Creio que é melhor afastá-lo de terreno tãosoturno. Deixemos em paz essa criatura misericordiosa ,generosa, benfazeja. Um verdadeiro contraponto aosbiltres que circulam pela cidade com empáfia e cinismo,que só o sentimento de impunidade assegura.

Prof. Teomar Soledade Júnior.

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