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X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
A experiência de musicar: reflexões sobre a prática composicional em sala de aula
Resumo A composição coletiva como recurso pedagógico para a educação musical tem sido debatida por vários educadores. Compreende‐se que a partir da composição dos alunos, da execução dessa composição e da apreciação do resultado da performance, há envolvimento dos educandos em todos os processos, de forma ativa e crítica. Neste texto, considerando esse debate, apresenta‐se a análise sobre uma atividade de composição coletiva, associada ao ensino da flauta doce, com uma turma de 6º ano do ensino fundamental durante o ano de 2012. Conclui‐se que esse recurso pedagógico pode propiciar o acesso às diversas dimensões da música, contribuindo para a perspectiva de uma aula que considere o universo do educando, sua bagagem sociocultural e sua vivência musical, estimulando a postura crítica e consciente nos processos de aprendizagem. Palavras‐chave: Composição coletiva. Educação musical. Ensino fundamental.
Jeasir Silva do Rego
jeasir.udesc@gmail.com
A experiência de musicar: reflexões sobre a prática composicional em sala de aula Jeasir Silva do Rego
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A composição coletiva como recurso pedagógico para a educação musical
A composição musical, como a composição em todas as artes, está
profundamente ligada ao processo criativo. Na perspectiva pedagógica o ato de inventar
(compor) uma música, orientado por determinados regulamentos, tem se mostrado
eficiente para a construção desse conhecimento quando compreendida e valorizada
como um processo onde a capacidade projetiva, construtiva e sociabilizadora do
indivíduo se apresentem como expressão e comunicação discursiva (GAINZA, 1988).
França e Swanwick (2002) argumentam que quando se organizam ideias musicais
com a intenção de expressar um discurso, nasce a composição. Nesse sentido, conforme
a autora, a inserção da composição nos processos de ensino e aprendizagem é legítima e
relevante, desde que a composição seja compreendida como processo e produto na
educação musical. Também Frega (2009) coloca que “a abordagem do processo criativo
estimulado por intervenções didáticas adequadas e a contemplação do produto facilita
que o aluno tome consciência de sua ação e compreenda que pode crescer nela mesma,
em técnica e em habilidade” (p. 21).
Beineke (2008) discute as abordagens em relação ao foco de algumas concepções
educacionais sobre a importância da composição no ensino/aprendizagem musical: 1)
prover experiências criativas a todos os estudantes; 2) introduzi‐los à música
contemporânea com sua estética, técnicas e materiais; 3) desenvolver o pensamento e
compreensão musical; e 4) formar compositores. Para a autora, nem todas essas
abordagens são adaptáveis ao modelo de educação musical no ensino fundamental da
escola regular no Brasil. Formar compositores desde a escola primária traz um forte apelo
ao ensino das técnicas composicionais em detrimento da expressão individual, enquanto
que “a segunda e a terceira abordagens focalizam a compreensão e pensamento musical
que podem ser desenvolvidos quando os estudantes manipulam materiais musicais e se
engajam em processos de fazer música” (p. 20).
Gainza (On line), com uma concepção ampla do sentido de composição, com
objetivo e aplicação na educação musical, traz à tona a improvisação. Este conceito não
está vinculado aos comumente usados no jazz, música instrumental, ou qualquer outro
gênero, mas na busca em responder às necessidades colocadas pelos educandos no
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processo de aprendizagem. Conforme a autora: “[...] O manejo da improvisação como
recurso didático não é mais fácil nem mais difícil de resolver do que qualquer outro
aspecto da atividade educativo‐musical, embora requeira, naturalmente, sensibilidade e
tempo para desenvolver‐se” (Idem). Por meio desta atividade dirigida em sala de aula é
possível lograr o maior desenvolvimento e controle de aspectos motores, da conservação
da informação, concentração, criatividade, sensibilidade frente ao objeto som, pois
quando a criança experimenta manipular a realidade sonora que a rodeia desfruta
conseqüentemente da compreensão deste universo, e de forma cumulativa, quanto mais
improvisação fizer, uma crescente compreensão também se concretizará.
Para Swanwick (2003) o aprendizado musical só é possível se há, na manipulação
dos materiais sonoros, intencionalidade, imprimindo caráter expressivo, atribuindo valor
e dando forma ao material, fator preponderante para a existência do discurso. Assim,
Swanwick (1983) apresenta um modelo para a compreensão da experiência musical,
aprendizagem das modalidades e desenvolvimento dos processos psicológicos, também
conhecido como parâmetros de Composição, Apreciação e Performance – C(L)A(S)P –
que permitem e facilitam o acesso dos alunos à experiência musical. A sigla faz referência
a três atividades principais da música, a letra “C”, de Composition, propõe ênfase à
capacidade criativa do educando, a letra “A”, de Audition se refere a ao cuidado com a
audição, prezando pelo caráter crítico desde sentido, letra “P” de Performance, propõe a
performance responsável e comprometida. No que se refere às iniciais “L” e “S”,
respectivamente, Literatura e Skill (esta compreendida como habilidades, ou seja, técnica
instrumental), o autor as considera material de suporte às outras categorias.
O autor compreende que esse modelo de ensino e aprendizagem de música, a
partir da composição dos alunos, da execução dessa composição e da apreciação do
resultado da performance, propicia o envolvimento dos educandos em todos os
processos, de forma ativa e crítica, quer seja coletiva ou individualmente. Isso resulta
numa visão mais aprofundada dos processos intrínsecos da música, de seus conceitos
fundamentais, não importando se o material sonoro é contemporâneo ou tradicional,
mas valorizando a apropriação dos conteúdos musicais.
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Compreende‐se, assim, que se cada elemento conceitual e fundante da música é
apropriado pelo aluno, e se este manipula seu material sonoro original artesanalmente,
com autonomia e responsabilidade, seja em nível avançado ou iniciante, segundo França
e Swanwick (2002), sua inerente inteligência intuitiva o fará detentor de um novo
conhecimento. A atividade criativa, antes intuitiva, passa a ser conhecimento de forma,
de expressão e valor, individual na sua percepção e apreciação, e coletiva em sua
composição, mediada pelo educador, cujo papel é não apenas transmitir seu repertório
intelectual, mas fornecer suporte para uma reflexão, uma análise direcionada ao objeto
composto: a música do aluno.
Neste sentido, o uso pedagógico da composição, entendendo‐a como valorização
e sistematização dos processos criativos do educando para a ampliação da compreensão
das diversas dimensões da arte musical e seus significados, se justifica e se apresenta
como alternativa no trabalho coletivo em sala de aula, considerando uma participação
crítica, reflexiva e ativa do educando, bem como do educador, em todas as fases desta
prática.
Associada à prática da composição para o ensino de música, destaca‐se neste
trabalho, o uso da flauta doce que, de fato, tem sido historicamente considerada um
instrumento eficiente para a iniciação e educação musical. Beineke (2003) afirma que este
instrumento propicia a integração discente e a prática de conjunto através da formação
de conjuntos instrumentais, além do “[...] acesso a diferentes culturas, períodos
históricos e gêneros musicais, pois é um dos instrumentos musicais mais antigos e
populares da humanidade” (p. 90).
Em uma pesquisa realizada por Beineke (1997), em que contempla duas áreas
distintas, mas integradas, a da educação musical escolar e a do ensino instrumental, é
levantada a discussão do ensino do instrumento, mais especificamente o da flauta doce
para o ensino básico relacionando‐o com alguns fundamentos básicos da teoria na
construção do conhecimento musical com o objetivo de ampliar e integrar seus
“conceitos e princípios metodológicos, apontando algumas perspectivas e alternativas
para as aulas” (p 25).
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Nessa pesquisa, Beineke (1997) analisou métodos de ensino nacionais e
estrangeiros disponíveis até aquela data. Alguns métodos enfatizavam o domínio técnico
antes do contato com o repertório1, assumindo que “primeiramente, o aluno deve
dominar toda a escala de dó maior, para então iniciar o estudo do repertório” (p. 26).
Outros apresentavam propostas de práticas conjuntas com instrumentação variada, seja
de percussão ou de alturas definidas2. Alguns incluíam atividades de improvisação e
composição musical3. O método de Küntzel‐Hansen (1985, apud BEINEKE, 1997)
apresentava uma proposta incluindo experimentações com a flauta, em busca de novos
materiais sonoros. Já o trabalho de Akoschky e Videla (1967, apud BEINEKE, 1997)
revelava uma vinculação entre o aprendizado instrumental com conhecimentos musicais
mais amplos, abordando as áreas das técnicas de execução da flauta doce, do som, do
canto, ritmo, melodia, harmonia, forma, gênero, estilo e caráter. Ainda segundo a autora,
apenas esse último método fez referência à apreciação utilizando‐se de jogos auditivos
para reconhecimento de melodias e transposição de melodias.
Após sua análise, Beineke (1997) observou duas tendências de abordagem do
repertório para flauta doce: “centrado na execução de uma coletânea de músicas
organizadas seqüencialmente de acordo com as dificuldades técnicas propostas” (p. 25),
enfatizando o domínio progressivo das técnicas de execução instrumental e leitura
musical, e outra cujo foco estava em “exercícios técnicos isolados, sendo o domínio
destes considerado um pré‐requisito para a execução do repertório instrumental
proposto” (p. 25), focando a aprendizagem de conteúdos musicais amplos. Sua conclusão
é de que ambas as tendências são insuficientes para uma abordagem do ensino coletivo
no contexto da escola básica: “No ensino instrumental e, mais especificamente, no
ensino de flauta doce, ainda são freqüentes as abordagens que focalizam mais aspectos
técnicos do que a compreensão, o que pode acarretar o desinteresse do aluno, além de
aprendizagens pouco significativas” (BEINEKE, 2003, p. 90).
Cuervo (2009) parte do pressuposto de que a descentralização da execução
musical com enfoque tecnicista é outro caminho para a construção do conhecimento
1Mönkemeyer (1976) e Mascarenhas (1978). 2Santa Rosa (1993), Tirler (1970), Frank (1980), Heilbut (19??), Rocha (1986) e Akoschky e Videla (1967). 3Akoschky E Videla (1967), Heilbut (19??), Küntzel‐Hansen (1985) e Rocha (1986).
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musical, através de atividades exploratórias, focadas na produção de crianças e adultos,
considerando tópicos como notação, criação e improvisação. Para a autora as atividades
com flauta doce, focando não só a performance do aluno, mas também o processo de
desenvolvimento da capacidade de criação, seja improvisada ou sistematizada
(composição), servem também como subsídio para análise do desempenho do educando
e revelam como eles (os alunos) se apropriam dos conhecimentos construídos na
experiência musical. Refutando a idéia equivocada que se construiu sobre flauta doce,
como um instrumento rudimentar que se destina aos aprendizes na fase de iniciação à
alfabetização musical, a autora afirma que “a Educação Musical no Brasil poderia abordar,
de forma mais ampla e engajada, a potencialidade da flauta doce como instrumento
musical, conectando seus valores didático, artístico e estético” (p. 23). A autora também
cita a coexistência da dupla função do instrumento afirmando que sua utilização na
educação musical deve ser um “veículo de ampliação da presença da música na vida do
estudante brasileiro” (p. 26).
A experiência da composição coletiva em sala de aula
A concepção teórica que mais se aproximou da experiência que agora se
apresenta foi a de Swanwick (2003) com sua ênfase sobre a prática da composição para o
desenvolvimento da autonomia, compreendendo que a atividade de composição pode
oferecer amplas possibilidades para a tomada de decisões musicais dos alunos,
considerando seus discursos em todas as dimensões.
Beineke (1997), considerando a perspectiva de Swanwick, afirma que a
experiência musical em sala de aula deve contemplar várias dimensões, sob diversos
ângulos, para que seja uma vivência enriquecedora e edificante. A autora propõe a
exploração de pequenos motivos musicais de forma lúdica, abordando os vários
conceitos como textura, ritmo, imitação, variação, repetição, discutindo e analisando
junto com os alunos. Nessas atividades esses motivos podem se transformar em padrões
estruturais de pequenas composições ou para a improvisação. Este foi o ponto de partida
utilizado neste estudo.
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O começo
Esta experiência se deu com uma turma do 6º ano composta por 13 alunos com
idade entre 11 e 13 anos, durante o primeiro semestre de 2012. Havia três semanas que as
aulas tinham iniciado tendo a flauta doce como foco de aprendizagem. Os alunos
conheciam três notas na flauta doce: Sol, La e Si. Aproveitando esta atividade já iniciada
pelo professor de música efetivo da escola, uma pequena peça feita com as três notas
aprendidas, foi possível abordar as questões básicas da forma em música, de maneira
geral, introdução, desenvolvimento e finalização. No decorrer do semestre, a partir da
audição de peças para a flauta doce do repertório popular, da música da renascença e de
domínio público, assim como de suas próprias experimentações composicionais, outros
exemplos de música foram apresentados, a fim de se perceber o conceito de forma.
As atividades de audição, sob a perspectiva de uma escuta atenciosa e detalhada,
percebendo aas diversas nuances de cada som da música, serviram como introdução ao
tema da composição a ser desenvolvido. Assim, na primeira audição foi apresentada a
música “Planets” de Gustav Holst, obra orquestral de grande complexidade e “O rabo do
tatu” de Beineke. Considerando a música “Planets”, foi perguntado aos alunos se
conheciam ou lembravam‐se da música ou ainda o que lembravam quando ouviram a
música. Alguns disseram que lembrava “Star Wars (o filme), guerra, Planeta Marte”,
outros disseram que era uma música “nervosa”, agitada. As mesmas indagações foram
feitas em relação à música “O rabo do tatu”, acrescentando as perguntas “Quem fez?
Como fez? O que será que se pensava ao fazer esta música?” Algumas respostas foram:
“Foi feita para iniciantes”, “Foi feita bem simples”, percebendo claramente a alusão ao
propósito didático. Ainda perguntou‐se: “O compositor usou o quê para fazer a música?”
Para o que responderam “Usou notas”, “Usou pausa”, “Pensou no tatu”, “Ele repetiu as
mesmas notas”. Esta última resposta, por exemplo, evidenciou que o aluno percebeu a
importância do conceito de repetição que propicia a fixação da ideia musical. A partir
desta atividade de audição foi possível conversar sobre o que se estava ouvindo, e
descobrir a forma musical, ou seja, que a música apresentava um começo, um meio e um
fim.
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A atividade de apreciação musical realizada neste primeiro momento, como
preparação para atividade de composição, teve a intenção de aprofundar a escuta
atenciosa, cuidando para identificar os detalhes sonoros. A busca pela audição atenta,
procurando detalhes que normalmente não se ouve de forma passiva e despretensiosa,
fez com que os alunos percebessem eventos que até então não haviam percebido. Os
timbres se mesclando, as repetições de frases, os contrastes entre partes distintas
passaram a ser observadas tornando claro que não era por acaso, mas que o compositor
teve a intenção de fazer exatamente assim para transmitir uma ideia musical.
Em seguida foi proposto que um aluno tocasse aleatoriamente uma seqüência de
notas na flauta com ritmo também aleatório, mas que fosse algo curto, para que os
outros alunos pudessem imitar, utilizando, além da flauta, outros instrumentos, como o
pandeiro e o chocalho. O objetivo era apresentar as ideias de melodia e ritmo, e que esses
elementos seriam utilizados o tempo todo a fim de expressar as propostas musicais do
grupo. Na realização desta atividade os alunos indicaram quando estava igual ou quando
estava diferente, mostrando terem compreendido os conceitos.
A atividade “Ecos melódicos” proposta por Weiland, Sasse e Weichselbaun (2010,
p. 22) no método “Sonoridades Brasileiras”, aponta para a importância do uso deste
recurso mental, a memória. Se por um lado a repetição é ferramenta para o domínio
técnico instrumental, para a educação dos movimentos sutis dos dedos sobre o
instrumento, no caso a flauta doce, ou do gesto sobre o instrumento percussivo, por
outro, a repetição motívica musical, na perspectiva composicional, encerra uma ideia,
simbolizando uma intenção discursiva.
No caso específico do uso da memória nesta atividade, a habilidade instrumental
ainda não adquirida, o que chamamos de técnica instrumental, dificultou a reprodução de
alguns trechos do jogo do “eco”. Segundo França (2001) “só podemos avaliar mais
efetivamente a extensão da compreensão musical do indivíduo quando ele toca aquilo
que pode realizar confortavelmente”, assim, há distância entre a intenção e o gesto, o
tempo de resposta entre o comando cerebral e o gesto, de forma que a compreensão do
modelo a ser repetido neste jogo se concretizou, mas a ausência do domínio gestual,
entendida aqui como técnica, a obstaculizou.
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A atividade criativa do grupo
Um dos propósitos da atividade de composição coletiva é perceber e refletir sobre
a bagagem musical que cada indivíduo traz para o grupo, como contribui e como constrói
as ideias, e a partir de quais vivências essas ideias são elaboradas.
Seria maravilhoso se cada indivíduo, durante o seu processo de crescimento, tivesse alguma oportunidade para criar numa das formas de arte. Não existe substituto para pintar um retrato ou natureza morta, compor uma canção ou um soneto, coreografar e interpretar uma dança. A educação, no início da vida, devia fornecer tais oportunidades para pensar e executar usando um meio de expressão artística (GARDNER, 1999, p. 178).
Para Gardner (1999), a criatividade não é um processo acidental ou ato de
motivações inconscientes. Os indivíduos criativos são animados e incentivados pela
resolução de problemas, filtrando todas as variáveis do ambiente e focalizando nas
informações favoráveis para uma solução ou conclusão bem sucedida do problema. Ao
discorrermos sobre criatividade artística como uma perspectiva da inteligência humana,
ou ainda com o conceito de inventividade construtiva, podemos e devemos estabelecer
relações com uma intrincada rede de informações que compõe a formação do indivíduo,
permeadas pelo caráter cultural, social, emocional e toda uma miríade de fatos que
constituem sua história. Considerá‐las em toda sua complexidade tendo o educando e as
características próprias de sua faixa etária como foco não é tarefa fácil, já que, a priori, em
sala de aula não há qualquer seleção. Estão todos juntos, como que iguais, mas cada um
com seu universo distinto.
No contexto da sala de aula, ao se pensar em multiculturalismo, foi perceptível
que a pequena diversificação decorria de uma padronização do que o senso comum
apresenta, tanto através de meios de propagação já bem estabelecidos, quanto de
experiências socialmente vividas. Nesse sentido, era previsto que o Rap, o Pagode, o
Samba, o Rock e Pop fossem as expressões reproduzidas naquela atividade. O que
importava, contudo, era perceber como os alunos as traziam para o grupo, bem como o
comportamento e as prováveis lideranças que iriam despontar. Embora os alunos
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confirmassem tais gêneros musicais como sendo os de sua preferência, a proposta inicial
dos grupos não se relacionou com nenhum desses gêneros.
Os alunos se dividiram em grupos com a tarefa de comporem uma música, usando
os conceitos que tinham trabalhado até então, tanto nas atividades de composição como
nas específicas de flauta doce, quais sejam, pulsação, altura, timbre, expressão, forma,
podendo usar todos os instrumentos que desejassem. Essa atividade durou cinco aulas.
Apresenta‐se, a seguir, o trabalho desenvolvido por um desses grupos, composto
por dois meninos e três meninas. O foco neste grupo se justificou porque conseguiram
trabalhar sem grandes dispersões, com maior nível de comprometimento, apresentando
resultados mais rapidamente e com maior número de conflitos, tornando a atividade rica
em detalhes.
O material sonoro disponível era o fragmento da escala de Dó maior (de FÁ1 até o
Dó2) que alguns alunos conseguiram tocar com desenvoltura na flauta doce. Este foi o
material sonoro principal usado na atividade proposta, a escala tonal diatônica, extraída
principalmente da flauta doce, mas também de outros instrumentos disponíveis na sala
de música – o xilofone, o metalofone e o teclado – o que possibilitou uma variedade
timbrística importante para o desenvolvimento das atividades de composição. O
processo de criação coletiva começou com o grupo experimentando alguns instrumentos
disponíveis em sala a fim de separá‐los. Esta experimentação era, portanto, limitada à
realidade da sala de aula e da escola. Os instrumentos foram escolhidos pelos próprios
alunos, um xilofone tenor, um xilofone soprano, uma flauta doce soprano, um tambor de
som grave (tam‐tam), um caxixi e um teclado. A única exigência era que cada grupo
trabalhasse com pelo menos uma flauta doce, já conhecida de todos. Esta exigência fez
com que a flauta doce se tornasse naturalmente o instrumento que regeu a atividade,
pois através dela é que se chegou a uma melodia.
A fim de que os alunos vivenciassem este ato, ocupando‐se inteiramente dele e de
seu processo, em todas as suas etapas, com todos os instrumentos envolvidos, optou‐se
por deixar as questões de técnica instrumental em plano secundário, relativamente livre,
desde que a sonoridade fosse aprovada por todos. Os problemas de técnica instrumental
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foram abordados, ainda que de forma superficial, uma vez que este conhecimento não foi
imprescindível para a realização da atividade, tampouco o foco se dirigiu para a destreza
e habilidades mecânicas.
O xilofone, por exemplo, não precisava ser tocado corretamente, com as técnicas
de manuseio das baquetas de um especialista, assim como o teclado não foi tocado com
o posicionamento correto das mãos, inclusive sendo tocado apenas com a mão direita. O
que se objetivou com a atividade de composição era oportunizar a exploração musical
criativa e expressiva em grupo, chegar a uma sonoridade que eles mesmos, os alunos,
desenvolvessem em sala. A expressividade que o grupo conquistou depois de algumas
semanas, compensou a ausência da técnica instrumental.
É preciso deixar claro que embora a técnica instrumental não fosse o objetivo desta
atividade, não significa que ela não tenha tido importância neste processo de
performance musical. Contudo, considerando o conhecimento musical geral do grupo ‐
nem todos tinham o domínio dos gestos ‘finos’, movimentos sutis dos dedos ‐ não era
fundamental no início das atividades, devendo ser, todavia, no decorrer do trabalho,
considerando que é “essencial encontrar um equilíbrio entre o desenvolvimento da
técnica e da musicalidade dentro do repertório dos alunos” (FRANÇA, 2001) para que se
transmita exatamente a intenção musical concebida.
A princípio, os alunos começaram propondo ideias musicais curtas e soltas,
sentiam‐se perdidos. Aproveitou‐se este momento para falar sobre o conceito de
repetição da ideia, recordando aulas anteriores. A interação, o diálogo musical, a ‘chuva
de ideias’ são processos sociais da vivência musical. A aprendizagem se dá quando os
estudantes se apropriam de suas ideias, tomando decisões e caminhando juntos na
construção do conhecimento, através da prática. Logo, uma pequena frase criada na
flauta doce foi tocada com outra frase no xilofone, e o metalofone de forma alternada.
Os alunos ficaram brincando com essa construção, que foi se alterando, até que surgiu a
ideia na flauta doce. Uma das alunas, que tinha maior habilidade com a flauta, propôs
uma melodia, o primeiro motivo da peça que daria origem à música, uma subida escalar
no modo Lídio (figura 1) com uma rítmica bem regular, mas de certa complexidade, que
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foi repetida como um ostinato. Este momento foi registrado em vídeo para que o grupo
não esquecesse o que faria na próxima aula.
Figura 1. O 1º motivo proposto.
Os alunos vivenciaram alguns momentos conflituosos que envolviam a troca de
instrumentos. O aluno que tocava o bongô desistiu e passou a tocar metalofone, outro
que tocava timba mudou para o teclado e a aluna que tocava flauta, na outra parte da
música, passou também a tocar o bongô. Esta experimentação alterou o produto sonoro
inicial proposto, refletindo em mudanças na composição como um todo. O grupo estava
numa fase em que elegiam o material com o qual trabalhariam, sendo possível observar
que nessas mudanças, conflitos e decisões, estavam pensando musicalmente:
Nos estágios iniciais, o objetivo deve ser brincar, explorar, descobrir possibilidades expressivas dos sons e sua organização, e não dominar técnicas complexas de composição, o que poderia resultar em um esvaziamento do seu potencial educativo. Nas aulas, muitas oportunidades para compor podem surgir a partir da experimentação que demanda ouvir, selecionar, rejeitar e controlar o material sonoro (FRANÇA; SWANWICK, 2002, p. 10).
Compreende‐se que as mudanças foram qualitativas, pois a experiência de
manipular os materiais sonoros que iam elegendo despertava a sensibilidade dos
educandos, levando‐os a decidir as maneiras organizativas destes elementos sonoros.
Relaciona‐se esta etapa ao nível Sensorial e Manipulativo do Modelo Espiral de Swanwick
(FRANÇA, 2001). Ainda segundo este autor, “o manuseio dos sons é uma condição a
priori; as dimensões seguintes, caráter expressivo e forma, elevam a música ao nível de
discurso” (SWANWICK apud FRANÇA, 2001, p. 2) e acontecem posteriormente já com
certo acúmulo de experiências musicais.
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Após esta fase de experimentação, a melodia foi alterada e transposta a uma
quarta abaixo para o xilofone. Ainda não tinha sido abordado o conceito de altura com
ênfase na relação de intervalos, portanto eles não sabiam totalmente o que era uma
quarta abaixo ou acima, apenas intuíam. A nova ideia melódica foi primeiramente
apresentada pelo xilofone contralto e logo em seguida pela flauta doce, um compasso
depois de começar a música. Os instrumentos foram entrando um a um. A rítmica já era
diferente da primeira apresentada, mas as notas combinavam, segundo a aluna que
assumiu a liderança. Assim, outra característica melódica se apresentou, naturalmente,
porque a primeira rítmica estava complexa para o xilofone. O sincopado proposto na
primeira melodia parecia ser tocado corretamente apenas pela flautista. Assim, criaram
outra muito parecida, mas simplificada. O resultado foi o que se segue:
Figura 2. A nova rítmica do motivo para flauta e xilofone.
A percussão com o bongô iniciou ao mesmo tempo fazendo uma rítmica bem
definida, com boa noção de regularidade, enquanto o tambor respondia com força na
última colcheia de cada compasso. Intuitivamente o aluno com o tambor tocava uma
divisão rítmica de certa complexidade.
Figura 3. A parte do bongô e a parte da timba.
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Os alunos passaram duas aulas trabalhando o material e por conta de ausências de
alguns o arranjo foi mudando, e também por não conseguirem fazer exatamente o que
tinham criado na aula anterior, ainda que tivesse sido filmada.
Tecnicamente bastante acessível, mas ainda com imprecisões que perduraram
algum tempo, e considerando que eles tinham apenas uma aula por semana, o grupo
concluiu que o que tinham feito estava coerente com o que propuseram fazer. O tempo
dedicado a esta atividade era dividido com outras atividades propostas pelo professor
efetivo, incluindo provas escritas, de cunho teórico. Mesmo assim, em duas semanas,
uma hora por semana, estava criada a primeira parte da música, depois chamada de parte
A, como mostra a figura 4, ressalvando‐se que a escrita é a mais aproximada possível,
uma vez que a performance dos alunos ainda não estava regular:
Figura 4. Parte A da música.
A continuidade – a parte B – e depois a finalização, passaram a ser a preocupação
do grupo. Alguns problemas que ocorreram nas semanas anteriores iam se repetindo, e
foi necessário reuniões para resolvê‐los. Tratava‐se, novamente, da troca de
instrumentos. Um queria tocar o teclado e o outro queria o xilofone que uma colega já
estava tocando. Na reunião resolveu‐se que poderia haver troca, mas não poderia
abandonar o que já tinha sido feito na primeira parte.
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Resolvido este problema, nas duas aulas posteriores a parte B (figura 5) da música
já estava praticamente pronta. Tinha caráter contrastante em relação à primeira, pois a
mudança de caráter e compasso ficou clara, chegando a ser abrupta, um ‘break’. A parte
B da composição apresentou diferenças na fórmula de compasso, que antes era 5/4 e
passou a ser 4/4, na mudança de andamento, a aceleração do andamento e depois o
movimento em desaceleração (ralentando), o que mostrou uma preocupação com a
expressividade deste trecho. O teclado, que na primeira parte não fora usado, agora tinha
um papel importante, ainda que tocasse apenas uma nota de cada vez. Foram várias
tentativas até achar a nota que mais combinava: o uníssono e o salto de oitava. A relação
que foi feita com a primeira parte estava clara, porque alguns elementos se repetiam (as
mesmas notas musicais), a pausa entre as partes causou um efeito suspensivo, de
apreensibilidade.
Figura 5. Parte B da música.
A aceleração do andamento foi algo que chamou a atenção porque aconteceu
naturalmente. Quando começaram a apresentar a parte B, talvez por entusiasmo, todos
aceleraram conjuntamente, o mesmo ocorrendo com a desaceleração (figura 6).
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Figura 6. Acelerando até ‘a tempo’.
A partir de determinado momento da peça foram ralentando até o final da música,
sendo esta a intenção. Não houve mais novas notas, novos eventos ou variações, apenas
diminuíram a velocidade, andamento, e aos poucos foram parando (figuras 7 e 8).
Figura 7. Início do ralentando.
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Figura 8. Ralentando até o Fim.
Considerações finais
A música composta coletivamente pelos alunos apresentada neste artigo, ainda
que não tivesse qualquer ligação com um significado por eles proposto, ou seja, um nome
ou referência a qualquer temática, parecendo, assim, um exercício de música pela música,
resultou na concretização do que se objetivava, propiciar educação musical. A vivência e
o processo, assim como o produto, demonstraram a possibilidade de criar e compreender
uma ideia musical coletiva e colaborativamente, desenvolver aspectos motores e ao
mesmo perceber a necessidade da técnica instrumental, além da memória, concentração,
criatividade, sensibilidade, e fundamentos da música: timbre, altura, melodia, rítmica,
expressão e performance.
Os momentos ‘climáticos’ da peça estavam bem representados com as diferenças
de expressão, onde determinados trechos eram mais intensos em contraste com outros
que eram mais suaves, deixando claro que o entendimento deste conceito não só fora
entendido, mas também manipulado conscientemente.
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Entender e considerar a música criada pelos alunos como discurso e priorizar sua
fluência musical processualmente, envolvendo‐os em um jogo imaginativo, contribui para
o domínio organizacional de seus próprios esquemas musicais, procurando uma
compreensão cada vez mais refinada.
O educador ao atentar para o processo de aprendizagem do educando, mais até
que no resultado dela, está direcionando o aluno a explorar, descobrir e a partir daí
conhecer e reconhecer os problemas do caminho trilhado, das dificuldades vivenciadas,
das soluções possíveis e da tomada de decisões que o fizeram chegar ao resultado
analisado.
Neste sentido, o uso pedagógico da composição, entendendo‐a como valorização
e sistematização dos processos criativos do educando para a ampliação da compreensão
das diversas dimensões da arte musical e seus significados, além de se justificar e se
apresentar como alternativa no trabalho coletivo em sala de aula, considerando uma
participação crítica, reflexiva e ativa do educando, bem como do educador, em todas as
fases desta prática, permite estimular as necessidades psicológicas básicas do aprendiz
de música, permitindo ao professor identificar a competência consciente na performance,
a certeza de pertencimento ao grupo que, embora tivesse vivenciado alguns conflitos, se
mostrou coeso e comprometido com a atividade, e por fim, a liberdade de decisão e ação,
a autonomia de cada um em propor, recusar, criticar discutir e consensuar para alcançar o
objetivo comum, fazer música.
Referências bibliográficas
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