( Psicologia) - Yolanda C Forghieri - Psicologia Fenomenologica

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Psicologia FenomenolgicaNDICE Apresentao, XI 1A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES - INTRODUO, 1 - Estilo adotado na redao do trabalho, 1 2 - Vivncias Iniciais, 4 II - INFLUNCIA DE PSICLOGOS, PSIQUIATRAS E FILSOFOS NO PENSAMENTO DA AUTORA, 6 III RAZES PARA A ELABORAO DE UM ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE, 10 2A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM A PSICOLOGIA 1 - INTRODUO, 13 II - TEMAS FUNDAMENTAIS, 14 1 - O retorno s "coisas mesmas" e a intencionalidade, 14 2 A reduo fenomenolgica e a intuio das essncias, 15 3 A reflexo fenomenolgica, o mundo da vida e a intersubjetividade, 17 III POSSIBILIDADES DE ARTICULAO ENTRE A FENOMENOLOGIA E A PSICOLOGIA, 19 3ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 1 - ESCLARECIMENTOS, 23 - A trajetria percorrida, 23 2 - Passos seguidos na elaborao do enfoque, 24 3 - Paradoxos e aparentes enganos, 25 II - FENOMENLOGOS CUJAS IDIAS FUNDAMENTARAM O ENFOQUE, 25 III APRESENTAO DO ENFOQUE: CARACTERSTICAS BSICAS DO EXISTIR, 26 1 Ser-no-mundo, 27 1 .1 - Aspectos do mundo: circundante, humano, prprio, 29 1 .2 - Maneiras de existir: preocupada, sintonizada, racional, 35 2 - Temporalizar, 41 3 Espacializar, 44 4 Escolher, 46 V - CONSIDERAES SOBRE O SER-DOENTE E O SER-SAUDVEL EXISTENCIALMENTE, 51 4CONTRIBUIES DA FENOMENOLOGIA PARA A PESQUISA NA PSICOLOGIA INTRODUO, 57 II - O MTODO FENOMENOLGICO NA INVESTIGAO DA VIVNCIA, 58 Envolvimento existencial, 60 2 - Distanciamento reflexivo, 60 III - EXEMPLO DE INVESTIGAO FENOMENOLGICA DA VIVNCIA, 62 A Tema: Contrariedade e bem-estar humanos, 62 B - Justificativa, 62 C - Objetivos, 63 D - Metodologia, 63 E Resultados, 6 IV - LEVANTAMENTO DE TRABALHOS SOBRE PESQUISA FENOMENOLGICA NO CAMPO DA PSICOLOGIA, 68 A - Incio e desenvolvimento da pesquisa fenomenolgica, 68 B - Reviso de pesquisas realizadas, 71 a - Material examinado, 71 b - Classificao das pesquisas, 73 c - Comentrios, 74 Referncias Bibliogrficas, 77 ApresentaoA insuficincia do dualismo cartesiano e do positivismo frente a questes cientficas mais complexas, sobretudo no campo da Psicologia e das Cincias Humanas, abriu espao para nova corrente de pensamento - a Fenomenologia. Inaugurada por Husseri, inspirado pela preocupao do rigor, no um sistema filosfico mas um conjunto de proposies para um mtodo de pensar, apreender e investigar o mundo, to rigorosamente quanto possvel. A exemplo de Galileu e Coprnico, Husserl descentralizou o sujeito, estabelecendo novas relaes entre sujeito e objeto, entre observador e acontecimento observado, antecipando-se a muitas formulaes da Fsica Moderna. A obra de Husserl extensa e difcil. Teve seguidores de todas as reas e tendncias ideolgicas, entre eles Heidegger, Jaspers, Merleau-Ponty e Sartre. Contudo, pode-se dizer que no produziu, ainda, todos os seus desdobramentos e conseqncias Nos pases americanos - possivelmente por razes scio-econmicas - a Fenomenologia tem sido pouco estudada, mormente nos Estados Unidos, onde predominam, ainda, o cartesianismo e o neopositivismo, merc da pequena ou nenhuma tradio filosfica daquele pas. No Brasil, porm, marcado ainda pela influncia do pensamento europeu, a Fenomenologia comparece de modo mais consistente, sobretudo nas Cincias Humanas, na Psicologia e na Psiquiatria. Apesar disso, as publicaes mais significativas so espordicas e bissextas, decerto por dificuldades materiais. Nesse contexto, a presente obra oportuna e fundamental. Professora de Psicologia, detentora de elevados ttulos nas melhores universidades do Pas, Yolanda Cintro Forghieri acumula uma longa expelincia no magistrio, tendo perpassado, com entusiasmo e dedicao, diferentes escolas de pensamento filosfico e psicolgico. XII YOLANDA CINTRO FORGHIERI Depurada pela experincia e amadurecida em suas reflexes, dedica-se, h muitos anos, ao estudo do mtodo fenomenolgico e sua aplicao no campo da Psicologia Clnica. Como autoridade no assunto foi convidada - e o fez com sucesso a ministrar cursos na Universidade "La Sapienza" de Roma (instituio italiana oficial), projetando, no Exterior, a inteligncia brasileira. Incansvel, tem orientado teses e pesquisas, formando discpulos e seguidores. No presente trabalho, a autora percorre um amplo universo de pensadores fenomenologistas e existencialistas, em contraponto com as principais teorias da psicologia moderna. Entretanto, graas sua experincia didtica, introduz o leitor suavemente no assunto, atravs de sua autobiografia intelectual, seus primeiros encontros e vivncias com os expoentes da Fenomenologia. A prof a Forghieri, relatando suas prprias dificuldades iniciais, encoraja os principiantes e os ampara em seus primeiros passos, com a simplicidade e autenticidade de uma verdadeira mestra. Esta obra, bastante substancial e abrangente, no somente passa em revista os autores mais significativos da Fenomenologia, como reproduz, em citaes, os aspectos mais relevantes de suas obras, ilustrando a exposio serena e vigorosa da prof.a Forghieri. Tais qualidades, sumariamente assinaladas, colocam esta obra no plano de leitura indispensvel e de consulta obrigatria para todos os estudiosos de Psicologia e Cincias Humanas, abrindo um amplo horizonte para uma das mais fascinantes correntes do pensamento moderno. Prof Dr. Zcaria Borge Ali Ramadam Depto. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina - VSP. A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 1 - Introduo 1. Estilo adotado na redao do trabalho Heidegger (1972), em uma de suas obras, relata como - em suas "tentativas desajeitadas para penetrar na Filosofia" (p. 99) - interessou-se pela Fenomenologia e a ela passou a se dedicar, a partir do contato que teve com o livro Investigaes Lgicas, dizendo sobre este: "A obra de Husseri marcara-me de tal modo que, nos anos subseqentes, sempre a li, sem compreender suficientemente o que me fascinava, O encanto que emanava da obra estendia-se at o aspecto exterior da paginao e da pgina ttulo (p. 100). Provocava uma inquietao que desconhecia sua razo de ser, ainda que deixasse pressentir que se originava da incapacidade de chegar, pela pura leitura da literatura filosfica, a realizar o processo de pensamento que se designava como Fenomenologia. A perplexidade desapareceu muito lenta- mente, trabalhosamente solveu-se a confuso, quando pude entrar pessoalmente em contato com Husserl" (p. 103). Fiquei surpresa com estas afirmaes de Heidegger, no apenas por saber de sua genialidade, como, tambm, por ter sido ele o filsofo que conseguiu chegar mais original e significativa interpretao desse "processo de pensamento", cuja repercusso tem sido to grande, talvez at maior que a do prprio Husserl, seu iniciador. Alm de surpresa, fiquei consideravelmente aliviada e disposta a aceitar a enorme dificuldade que tenho encontrado para compreender a Fenomenologia, no conseguindo deslind-la completamente at o dia de hoje. 2 YOLANDA CINTRO FORGHIERI O referido texto do ilustre filsofo inspirou-me, tambm, a rever o que teria me levado a me interessar e me "apaixonar" pela Fenomenologia, e a chegar, finalmente, a reconhecla como o fundamento para a compreenso do existir humano, bem como do meu modo de atuar, decorrente de tal entendimento, em minha vida profissional e pessoal. Minhas lembranas conduziram-me a refletir sobre as razes que levariam uma psicloga a ter preferncia por esta ou aquela abordagem, num campo de estudos onde h diversidade de enfoques, de idias e princpios bastante diferentes, sendo alguns deles at mesmo opostos. O ser humano tem-se preocupado, atravs dos tempos, com o conhecimento e a compreenso de sua existncia no mundo. Profundas reflexes e estudos foram feitos, inicialmente, pelos filsofos; os primeiros psiclogos surgiram apenas no final do sculo passado, procurando tornar a Psicologia uma cincia objetiva. Wundt foi o iniciador desse movimento, fundando, em 1879, o Primeiro Laboratrio de Psicologia Experimental. Desde ento, foram surgindo vrias abordagens na Psicologia e dentro destas muitas teorias da personalidade. Uma das razes para a multiplicidade de abordagens no campo da Psicologia da Personalidade o fato de o psiquismo humano revelar-se atravs do prprio existir e de ser este muito amplo e complexo. Os fenmenos psquicos so vividos, imediatamente, pelo psiclogo que os pretende estudar, mas, para manter determinada atitude cientfica, ele procura estud-los nas outras pessoas, que passam, ento, a ser os sujeitos de suas investigaes. Porm, o existir destes sujeitos no apresenta apenas aspectos passveis de observao, em suas manifestaes exteriores, mas contm outros que ficam ocultos aos mais competentes e atentos observadores, por ocorrerem no ntimo das pessoas. Acontece que estas no so transparentes e geralmente no querem revelar a sua intimidade; alm disso, passam por fenmenos que, s vezes, nem chegam a perceber, pois ocorrem num nvel muito profundo, que o seu inconsciente. Acresce, ainda, que o existir cotidiano est repleto de aspectos contrastantes. Assim, por exemplo, somos racionais e livres, mas no podemos negar que tambm somos determinados pelos condicionamentos; dedicamo-nos ao bem-estar de nossos semelhantes, mas, ao mesmo tempo, nos empenhamos na nossa prpria realizao pessoal; convivemos com as pessoas e nos relacionamos com os animais e as coisas deste mundo, mas, por outro lado, nos confrontamos com a nossa solido; experimentamos momentos felizes de grande tranqilidade, mas no conseguimosevitar as nossas angstias e aflies. Enfim, vivemos mas tambm morremos, numa paradoxal simultaneidade, pois, a cada dia que passa, estamos caminhando tanto no sentido de viver mais plenamente, como no de morrer mais proximamente... O existir cotidiano imediato vivenciado como uma totalidade que integra todos os seus aspectos complexos e contrastantes, porm, o processo racional de teorizao parcial, delimitador. Todos ns sabemos tantas coisas, de modo vivencialmente global, que no A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 3 conseguimos explicar de modo preciso e completo. Assim acontece, por exemplo, com a ternura que sentimos por algum, a alegria que nos envolve e nos engrandece nos momentos felizes, a tristeza que nos invade e nos oprime nos momentos de aflio. Quando me perguntam se eu sei no que consiste cada uma dessas experincias eu digo que sim, mas se me pedirem para defini-las eu posso tentar, porm, todas as minhas explicaes deixam-me sempre a sensao de no ter conseguido faz-lo de modo completo. E o que acontece nessas situaes e em tantas outras da vida cotidiana, e tambm na vivncia do psiclogo nos momentos de atuao profissional. Todas essas complexidades e contrastes tm dificultado a investigao no campo da Psicologia da Personalidade pois, como cincia, ela precisa ser elaborada por meio de princpios claros, logicamente organizados. Esta situao tem levado os seus estudiosos a investigarem o existir humano, focalizando ora uns, ora outros de seus miltiplos e, s vezes, paradoxais aspectos. Assim, foram surgindo as vrias teorias psicolgicas, tais como a comportamental, a psicanaltica e a humanista, sendo, cada uma delas, um conjunto de formulaes coerentemente articuladas, que procuram explicar o ser humano a partir de uma perspectiva que abrange apenas alguns de seus aspectos. Como estudiosa da Psicologia, tenho refletido muito a respeito dessas dificuldades e, como professora, tenho partilhado da inquietao de meus alunos, quando sentem que precisam adotar uma posio diante da diversidade que percebem nas diferentes teorias. A inquietao aumenta no momento de ultrapassarmos a situao de meros estudiosos e entrarmos na prtica; ou, em outras palavras, quando, por exemplo, nos defrontamos com algum que precisa de nossa atuao e competncia profissional, para ajud-lo a superar as suas dificu'dades pessoais. Freud, Jung, Skinner, Rogers, Binswanger e tantos outros... Qual deles seguir ou adotar como suporte para a nossa prtica de psiclogos? Que autores nos fornecem subsdio para compreendermos o modo como vivem as pessoas que solicitam a nossa ajuda, e quais os meios para ajud-las a viverem melhor? Acontece que o psiclogo tambm objeto de suas investigaes e reflexes; e ento as perguntas tanto se voltam para os seus clientes como para ele prprio. O modo como tenta compreender e ajudar outras pessoas , basicamente, o modo como tenta compreender-se e viver do melhor modo possvel. As teorias psicolgicas surgem a partir da vivncia dos tericos, no s como estudiosos e profissionais, mas tambm como seres humanos vivendo cotidianamente nas mais variadas situaes. A cincia psicolgica est entrelaada vivncia do psiclogo; e na alternncia interligada das teorias com sua vivncia que ele vai chegando s suas preferncias tericas e convices, como profissional e como ser humano, que experimenta alegrias e tristezas semelhantes s dos sujeitos que ele pretende conhecer: so convices imbudas de conceitos tericos racionais e de crenas que ele no consegue explicar satisfatoriamente, pois surgem 4 YOLANDA CINTRO FORGHIERI no apenas da coerncia de seu raciocnio como, tambm, de seus sentimentos e de sua vivncia imediata global. E estes no esto estagnados, mas continuamente abertos reviso, mudana e ampliao, conseqentes aos estudos contnuos e constante abertura s suas prprias experincias. Refletindo sobre todos esses fatos, senti necessidade de identificar no apenas as teorias e os autores que me influenciaram, mas tambm as vivncias que teriam contribudo para que eu sofresse essa influncia e me encaminhasse para a Fenomenologia. Enfim, para ser autntica em minhas enunciaes e para facilitar a compreenso - e a crtica - do enfoque de personalidade que apresento neste trabalho, considerei ser indispensvel nele incluir os vrios elementos que fizeram parte da trajetria que percorri at chegar sua elaborao. E entre eles encontram-se tantos os componentes racionais e objetivos, como os vivenciais e subjetivos, que esto presentes em todas as elaboraes cientficas, embora raramente sejam mencionados. Por todas essas razes, ao redigir este trabalho, precisei adotar um estilo, de certo modo, autobiogrfico pois s assim conseguiria dar conta do que pretendia. E me encorajei a fazlo por me sentir apoiada por escritores fenomenlogos, entre os quais destaco Merleau-Ponty (1973) quando afirma: " no contato com nossa prpria vivncia que elaboramos as noes fundamentais das quais a Psicologia se serve a cada momento" (p. 33). Assim sendo, o estilo que aqui adoto pode ser considerado como um modo de fazer Fenomenologia, como diria Spiegelberg (1975), ou uma forma de viv-la, como afirmaria Merleau-Ponty (1973). 2. Vivncias Iniciais A lembrana e reflexo a respeito das primeiras vivncias que poderiam ter propiciado o meu encaminhamento para a Fenomenologia reportaram-me, espontaneamente, a uma poca em que ainda no tinha o menor interesse pelo estudo de textos cientficos: a minha infncia. Recordo-me de que, desde criana, tive a preocupao de estar atenta e procurar compreender as minhas prprias experincias e as das pessoas importantes para mim, formando, gradativamente, atravs das mesmas, de modo intuitivo e global, um conjunto de crenas e princpios sobre o que hoje poderia denominar de personalidade humana. A partir da juventude, quando comecei a entrar em contato com as obras de Psicologia, lembro-me do quanto algumas delas me intrigaram e impressionaram, por me revelarem algo completamente novo e fascinante, que me inquietava e me levava a refletir sobre aquilo em que at ento acreditara, levando-me a modificar ou ampliar as idias que havia formado sobre o existir humano. Assim foi o meu contato e envolvimento com a Psicanlise. Por outro lado, e com maior freqncia, no meu percurso como intelectual, vrias obras despertaram-me grande interesse, por perceber, ou apenas pressentir, que continham algo para confirmar e esclarecer as minhas convices. Foi o que aconteceu com a maioria dos A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 5 textos de Fenomenologia que, embora me parecessem muito difceis e desafiassem meu raciocnio, paradoxalmente, tambm me proporcionavam um sentimento de certa familiaridade; era como se os autores me revelassem, em suas formulaes, certo saber elementar, que euj havia vislumbrado vivencialmente. Isto aconteceu inmeras vezes, mais sob a forma de sentimento do que de um reconhecimento racional. Por esse motivo, encontro dificuldades em identificar e enunciar pormenores a esse respeito. Consigo, apenas, vislumbrar duas circunstncias significativamente importantes, ambas deconntes do convvio com minha me. Uma delas surgiu quando comecei a perceber a enorme oscilao de sentimentos que experimentava em relao a ela. Como me extremosa, carinhosa e dedicada proporcionava- me momentos imensamente agradveis, de amor e compreenso; porm, no de forma comum, mas bastante estranha e, com alguma freqncia, ela se transformava, de modo inexplicvel e repentino, numa pessoa profundamente ansiosa e confusa, que no conseguia sequer cuidar de si mesma. Por esse motivo, as minhas experincias de amor, tranqilidade e segurana alternavam-se, peridica e intensamente, com as de solido, aflio e insegurana. A angstia e a perplexidade diante dessas intensas oscilaes suscitaram-me a necessidade imperiosa de agir no sentido de alivi-las. E no meu egocentrismo infantil, o recurso do qual comecei a me utilizar foi estar atenta minha vivncia e dela, para tentar agir de forma a no lhe despertar aquele modo de ser que me afligia intensamente. Tudo isto leva-me, hoje, a supor que, desde criana estive, de certo modo, voltada para refletir sobre a experincia vivida, ou, em outras palavras, para "ir s prprias coisas", que um princpio fundamental da Fenomenologia de Husserl. A segunda circunstncia, bastante relacionada primeira, foi a necessidade que, desde muito cedo, tive de amar a outras pessoas, alm de minha me, e delas me sentir prxima. Minhas reflexes de criana levaram-me a perceber, com muita ansiedade, no ser possvel com ela satisfazer, permanentemente, a minha necessidade de amor e carinho, pois, apesar de meus esforos para mant-la tranqila e prxima, minha me, periodicamente, em decorrncia de suas perturbaes psicolgicas, distanciava-se de mim e se tornava uma pessoa completamente estranha. Isto levou-me, desde a infncia, a tentar querer bem a outras pessoas e a me sentir perto delas. Por ser ainda criana, consegui faz-lo sem defesas ou restries, iniciando-me e, de certo modo, "exercitando-me", satisfatoriamente, na relao Eu-Tu, apresentada pelo fenomenlogo Buber como a mais humana forma de existir e adquirir conhecimentos. Tais circunstncias, que influenciaram profundamente a minha existncia, tomaram-se atitudes que at os dias de hoje marcam o meu modo de viver, parecendo-me terem sido as principais propulsoras de meu encaminhamento para a Fenomenologia e meu profundo envolvimento com esta. Foram essas circunstncias, tambm, que, quando jovem, levaram-me a sentir um enorme interesse pela Psicologia e a transform-la no foco de meus estudos e reflexes. 6 YOLANDA CINTRO FORGHIERI II - Influncia de Psiclogos, Psiquiatras e Filsofos no Pensamento da Autora Voltando-me para os autores e os textos cientficos que tiveram influncia no desenvolvimento de minhas idias, reportei-me, espontnea e agradavelmente, ao incio de minha trajetria como leitora de Psicologia, o que aconteceu h cerca de meio sculo, em 1942, quando ingressei na Faculdade de Filosofia Cincias e Letras "Sedes Sapientiae" (Sedes). Estava eu tranqilamente entregue s lembranas de minha vida como estudante, quando, de repente, surgiu-me memria uma inumervel quantidade de livros que "desabaram" sobre mim, envolvendo-me na angustiante sensao de precisar identificar todos eles a fim de poder selecionar os que teriam contribudo para a formao do meu pensamento atual. Desanimada, interrompi a redao deste texto, ficando distraidamente a olhar para a minha enorme estante de livros, quase todos lidos, alguns com muito interesse e bastante proveito, a maioria deles, porm, lidos com pouco envolvimento e quase completamente esquecidos. Eis que meus olhos fixaram-se, casualmente, em uma antiga revista da PUC-SP, que passei a folhear, lenta e saudosamente, deparando-me, ento, com um artigo de Montoro (1976), sobre os objetivos do ensino do Direito; baseado em Pascal, o autor inicia seu artigo afirmando: "Cultura, sob certo aspecto, o que resta quando a pessoa esquece tudo aquilo que aprendeu... por isso o ensino no pode se limitar a simples informes." (p.3) Esta leitura, casual e oportuna, revitalizou o meu nimo, mostrando-me uma alternativa para rever e selecionar os textos que me influenciaram. Decidi considerar, apenas, os autores e textos que "restaram", por me terem envolvido de forma significativa e profunda, e o que ficou da interpretao que tenho dado s suas idias, relacionando-as s minhas experincias de vida, tanto profissional como pessoal. Foi com esta inteno que, sem recorrer s inmeras anotaes de bibliografia de cursos j ministrados ou de textos preparados para conferncias ou publicaes, procurei lembrar-me dos autores que foram importantes na minha trajetria em direo ao enfoque fenomenolgico da personalidade. Lembrei-me, com muita clareza, do primeiro autor que me havia impressionado profundamente: foi Freud, em 1943, no 2. ano da Faculdade; a traduo de seus textos, escritos em alemo, ainda no faziam parte do acervo da biblioteca do "Sedes". Por isso havia tomado contato com a psicanlise somente atravs das aulas expositivas de alguns professores; mas, estas haviam sido suficientes para me deixarem encantada com suas revelaes sobre o inconsciente, o dinamismo deste e suas influncias no modo de pensar e de agir das pessoas, sem que elas disso se apercebessem. Embora fosse grande o meu interesse, no A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 7 consegui, nessa ocasio, por falta de material bibliogrfico, continuar meus estudos sobre a Psicanlise, o que s aconteceu vrios anos depois, quando, retomando ao "Sedes" para cursar a Ps-Graduao, entrei em contato com as Obras Completas de Freud. Foi quando, alm da oportunidade de aprofundar vrios conceitos, conheci a Psicanlise como mtodo psicoteraputico e iniciei-me na sua prtica, com a superviso de professores. No cheguei a me tomar uma psicanalista, mas, os conhecimentos que adquiri nesse campo foram to marcantes que, desde ento, os tenho mantido e considerado, procurando estar atenta s possveis interferncias do inconsciente na maneira de pensar e agir de meus clientes e esforando-me por desvend-las em minha prpria vivncia. O segundo autor que me impressionou profundamente foi Rogers. Iniciei meu contato com suas idias, casualmente, em 1965, quando coordenei um curso de reciclagem para professores secundrios da rede oficial de ensino, organizado pelo "Sedes", em convnio com a CAPES e a USP. Maria Jos Werebe, ento professora da USP, utilizou, nesse curso, uma apostila com o resumo do livro Client Centered Terapy desse autor (195 1), que despertou meu interessse pela sua perspectiva a respeito da personalidade humana. Passei, ento, a localizar e ler esta e outras obras desse psiclogo americano (1942, 1951, 1954, 1961), que encontrei na biblioteca da USP. Meu envolvimento com Rogers tomou-se to grande, que elaborei a minha Tese de Doutorado (Forghieri, 1972), adotando como referencial terico, as suas formulaes sobre a personalidade e a psicoterapia. Nas atitudes facilitadoras propostas por Rogers (1961, 1967, 1971) havia encontrado os fundamentos para a atuao que j vinha desenvolvendo, desde o incio de minha carreira, como docente e como psicoterapeuta. Devido a referncias feitas por esse autor, fiquei conhecendo algumas idias do filsofo Buber, pelo qual interessei-me profundamente, passando a ler, de suas obras, todas aquelas que consegui encontrar na ocasio (1947, 1955, 1971). Acabei concluindo, em minha Tese, que as trs atitudes facilitadoras apresentadas por Rogers (considerao incondicional, compreenso emptica e congruncia) fundamentavam-se na relao Eu-Tu, formulada por Buber, sendo esta a propiciadora do crescimento e amadurecimento psicolgico das pessoas e, tambm, o ponto de partida para a recuperao das que se encontram psicologicamente enfermas. Buber meu filsofo preferido at o dia de hoje; estou sempre em busca de suas obras, procurando encontrar e ler aquelas que esto relacionadas ao psiquismo humano (1974, 1977, 1982). Entretanto, fui, gradativamente, afastando-me de Rogers, por vrias circunstncias, algumas das quais lembro nitidamente. Uma delas ocorreu na defesa pblica de minha Tese de Doutoramento, em 1973, a partir de observaes feitas por um dos examinadores, o competente, querido e saudoso Dante Moreira leite. Ele alertou-me para o fato de que eu estava interpretando Rogers, alm do prprio Rogers; em outras palavras, indo mais a fundo do que o autor pretendia. Concluiu que eu era muito mais fenomenloga do que rogeriana e aconselhou-me a estudar Fenomenologia. Na semana seguinte, presenteou-me com dois livros dos psiquiatras e psiclogos fenomenlogos Boss (1963) e Binswanger (1963), naquela ocasio ainda no existentes nas bibliotecas e livrarias de So Paulo. 8 YOLANDA CINTRO FORGHIERI Foi assim que me iniciei-me, conscientemente, no enfoque fenomenolgico em Psicologia, ao qual dedico-me at hoje. O professor Dante Moreira Leite teve influncia decisiva nesta escolha, no s devido s suas palavras e aos importantes livros que me deu, como, tambm, porque a sua orientao veio esclarecer vrias insatisfaes que eu j comeara a sentir a respeito da teoria de Rogers. Estas foram-se acentuando nos anos seguintes, em decorrncia de algumas situaes que vivenciei em minha vida profissional e pessoal. Na atuao profissional comecei a notar que alguns de meus clientes encontravam muita dificuldade em vivenciar comigo as atitudes facilitadoras de considerao positiva e compreenso emptica, aliando-as congruncia. Conforme pude verificar com eles, posteriormente, isto acontecia por se sentirem tolhidos em sua agressividade, que era sua atitude habitual no relacionamento com as pessoas. Dialogando com os alunos e observando- os na sala de aula, onde tambm adotava as trs atitudes facilitadoras, verifiquei que o mesmo acontecia com alguns deles. Por outro lado, ao analisar a histria de vida de minha me, observei que todo empenho da famlia e dos amigos no sentido de aceit-la e compreendla, empaticamente, em nada havia contribudo para aliviar as suas crises de angstia e impedir o agravamento progressivo da sua enfermidade psicolgica. Tudo isto levou-me a questionar a teoria geral das relaes humanas proposta por Rogers (1971), e a concluir que nem sempre a manifestao das atitudes facilitadoras de pessoas significativas, desperta atitudes semelhantes nos sujeitos e os direciona para o amadurecimento. Sem deixar de reconhecer a importncia da aceitao e do amor, mas apenas colocando-os, na expresso de Husserl, "entre parnteses", comecei a refletir a respeito da raiva e da agressividade, imaginando que tambm poderiam contribuir, de algum modo, para o crescimento psicolgico das pessoas. J aprendera que ser amado e amar eram necessrios ao processo de crescimento, mas ser ofendido e reagir tambm deviam fazer parte desse processo. O prprio Rogers deixara transparecer, em uma entrevista filmada, como se sentira revoltado com a educao excessivamente restritiva que recebera de seus pais e o quanto isto o estimulara para elaborar sua teoria do relacionamento interpessoal tomando-se, assim, renomado psiclogo. Uma situao de injustia, ocorrida comigo numa Instituio onde eu lecionava, tambm contribuiu para fortalecer a minha idia dos aspectos positivos da agressividade: a coordenadora do curso, com bastante m f, de forma velada e utilizando-se de mentiras, pretendeu - e quase conseguiu - afastar-me da docncia do mesmo. Tomei conhecimento disto, casualmente, atravs de uma funcionria e alguns alunos, a tempo de me defender, tratando do problema abertamente com a coordenadora e esclarecendo os fatos junto s autoridades superiores; desse modo consegui permanecer no curso, mas fortalecida e segura. Lembro-me, nitidamente, do quanto a raiva e o sentimento de revolta pela injustia sofrida despertaram toda a minha competncia no sentido de me defender de forma leal e eficiente. Percebi, com muita clareza, os aspectos agressivos de minha personalidade, at ento muito pouco explorados e o quanto estes podiam favorecer o desabrochar de meus recursos pessoais. A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 9 A recordao desse fato trouxe-me lembrana um curso sobre Rogers, durante o qual assisti a um filme sobre "Trs abordagens em psicoterapia: Rogers, Peris e Ellis". A princpio fiquei muito chocada com a atuao de Peris, quando desafiou frontalmente a cliente que fora tratada pelos trs, chamando-a de criana, como se duvidasse ser ela capaz de agir como adulta. Esta, inicialmente, ficou muito magoada, chorando, como sempre fazia quando se sentia agredida, mas, medida que ele continuou a desafi-la, ela foi comeando a se sentir revoltada, reagiu e chegou a brigar abertamente com ele, passando, ento, a defender-se como uma pessoa adulta. Aps este desfecho conclu que as atitudes facilitadoras de Rogers - que a atendera anteriormente - no haviam sido "suficientes" para livr-la de suas constantes lamentaes e prolongadas crises de choro. Contudo, no era essa a inteno dos organizadores do filme, que haviam pretendido, atravs da atuao contrastante dos dois psicoterapeutas, dar destaque e valorizar o "calor humano" das atitudes de Rogers. Nesse panorama, um acontecimento trgico contribuiu para abalar ainda mais a minha viso otimista da personalidade: meu pai, um homem caridoso, que sempre ajudara material e espiritualmente as pessoas que dele necessitavam, foi violentamente assassinado, queima roupa, por um ladro, dentro do seu prprio lar. Minha me, meus irmos e eu vivemos momentos de enorme sofrimento; a perda irreparvel de uma pessoa to querida, a revolta com o acontecimento, a ao precria da polcia... Entretanto, a prpria tragdia trouxe uma grande aproximao entre ns, um partilhar conjunto do enorme sofrimento, que acabou convertendo-se em muito amor... amor entre ns e amor de outros familiares e de uma poro de amigos que nos confortaram nesse momento to difcil de nossa vida! Quantos sentimentos opostos e coexistentes vivemos nessa ocasio: raiva e amor, revolta e solidariedade. Os acontecimentos anteriores e principalmente este ltimo, to profundamente dramtico, deixaram-me confusa durante algum tempo, at o momento em que comecei a aceitar os paradoxos da existncia, seus aspectos contrastantes, os quais, de certo modo, incompreensivelmente, articulam-se e complementam-se, passando a constituir uma unidade. Recordei-me da vivncia com minha me, na infncia, que me proporcionara experimentar, com muita angstia, os primeiros contrastes da minha existncia. Todos esses fatos despertaram o meu interesse pela verso existencialista da Fenomenologia, que mostra as ambigidades do existir humano, enfatizando a angstia e o sofrimento. Foi assim que, depois de um perodo inicial de estudos de textos de Freud, seguido de estudos aprofundados de Rogers e, posteriormente, de Buber, Binswanger e Boss, passei leitura de filsofos existencialistas como Kierkegaard (1964, 1972), Nietzsche (1973), Sartre (1972) e Heidegger (1971 a). Eu sentia uma necessidade enorme de estudar e refletir a respeito do sofrimento, da angstia, do nada, da solido humana, pois at ento j estivera voltada, exageradamente, apenas para a satisfao, o amor, a bondade e a solidariedade humana. Gradativamente, fui compreendendo o enfoque fenomenolgico como aquele que realmente abarca o existir humano em sua totalidade, abrangendo a tristeza e a alegria, a angstia e a 10 YOLANDA CINTRO FORGHIERI tranqilidade, a raiva e o amor, a vida e a morte, como plos que se articulam numa nica estrutura e cuja vivncia d a cada um dos extremos, aparentemente opostos, o seu real significado. Sabemos, verdadeiramente, o que a tranqilidade, ao vivenciar uma situao de angstia; sentimo-nos profundamente sozinhos quando j partilhamos nosso existir com algum; sabemos, de fato, no que consiste o infortnio, sej tivemos ocasio de nos sentirmos felizes. Completando a lembrana de autores que me influenciaram, recordei-me de um encontro ocasional e oportuno, em 1978, com Dr. Van Acker, um antigo mestre do "Sedes", que me proporcionou, por sua sugesto, tomar conhecimento e envolver-me com a obra do psiquiatra e psiclogo fenomenlogo Berg, van den (1973). Depois deste, por indicao bibliogrfica de Binswanger, fui ao psiquiatra Minkowski (1970), pelo qual me interessei, sentindo um grande envolvimento com suas idias. O estudo de psiquiatras fenomenlogos, tais como Binswanger, Boss, Berg, van den e Minkowski levaram-me a sentir necessidade de entrar em contato com os filsofos nos quais fundamentavam suas formulaes; passei, ento, a examinar textos de Husserl (1965, 1967, 1970) e de Heidegger (1971, 1972), com o objetivo de esclarecer e aprofundar as referidas formulaes. A leitura de obras destes filsofos foi, para mim, inicialmente, bastante difcil, pois, alm de serem muito complexas, levaram-me a ter que me debruar e refletir sobre temas bastantes abstratos, quando at ento estava habituada a estudar assuntos relacionados vivncia ou ao psiquismo humano, procurando deles extrair ensinamentos que propiciassem melhorar a minha atuao profissional. De Husseri e Heidegger, fui ao filsofo Merleau-Ponty (1971, 1973), cujos textos facilitaram-me o estabelecimento de relaes entre a reflexo filosfica e a reflexo sobre a vivncia, propiciaram-me reduzir as dificuldades inicialmente encontradas e me encorajaram a chegar ao meu prprio modo de compreender a Fenomenologia. III - Razes para a Elaborao de um Enfoque Fenomenolgico da Personalidade O enfoque fenomenolgico em Psicologia surgiu no campo da Filosofia, no incio deste sculo, mas s tomou impulso e se desenvolveu a partir da dcada de 50; at os dias atuais, entretanto, no chegou a constituir um conjunto de princpios articulados, unanimemente aceito pelos psiclogos que o adotam. Isto acontece devido a uma srie de dificuldades que surgem quando estes cientistas procuram explicit-lo. Uma delas decorre do fato desse enfoque ter como suporte fundamentos filosficos que so estritamente abstratos, e a Psicologia ser uma cincia de fatos, que est voltada para a concretude da vivncia. Tal dificuldade significativamente ampliada, em virtude da Fenomenologia apresentar-se apenas como um mtodo de investigao do A CAMINHADA PELAS CONCEITUAES 11 fenmeno; embora, este seja inseparvel da atitude originada do modo como ela considera o fenmeno, no chega a constituir um conjunto de princpios igualmente interpretados pelos filsofos a ela pertencentes. Nesse panorama, tm surgido algumas propostas de enfoque fenomenolgico na Psicologia elaboradas principalmente por psiquiatras e psiclogos europeus, que contm importantes contribuies para a compreenso do existir humano, priorizando uma ou algumas de suas caractersticas bsicas, no chegando, entretanto, a constituir um enfoque psicolgico pormenorizado da personalidade. Alguns psiclogos americanos, tais como Giorgi (1978), Keen (1979) e Kruger (1981) tambm se tm dedicado elaborao de uma Psicologia Fenomenolgica. Entre estes, Giorgi (1985), que o mais renomado, considera que "uma genuna Psicologia Fenomenolgica ainda no existe, e a razo o fato da Fenomenologia ser compreendida basicamente como uma filosofia, com implicaes para a Psicologia, ao invs de contribuir concretamente para o desenvolvimento de uma Psicologia Fenomenolgica" (p. 5). A falta de uma abordagem fenomenolgica pormenorizada da personalidade, elaborada em linguagem psicolgica e no apenas filosfica que rena os aspectos mais importantes da vivncia humana, tem dificultado sobremaneira a compreenso e explicitao dos fundamentos fenomenolgicos que norteiam a prtica profissional no campo da psicoterapia, do ensino e da pesquisa. Neste ltimo, especialmente, verifica-se uma quase impossibilidade de interpretao e comparao dos resultados das investigaes, fato que prejudica o progresso e aprimoramento do prprio enfoque fenomenolgico da personalidade, pois faltam, a este, alguns parmetros a serem verificados de forma sistematizada, a fim de serem confirmados e ampliados ou refutados e enriquecidos com novas formulaes. Considero que o princpio bsico do mtodo fenomenolgico (introduzido por Husserl), de "ir s prprias coisas", ou, em outras palavras, de ir ao prprio fenmeno para desvendlo, tal como "se mostra em si mesmo", independentemente de teorias a seu respeito, refere- se a estas, tal como tm sido elaboradas por meio da utilizao do mtodo experimental, que no leva em conta a intencionalidade. Entretanto, no diz respeito s vrias formulaes que tm surgido atravs do emprego do prprio mtodo fenomenolgico. Julgo importante que tais formulaes sejam levadas em conta na realizao de pesquisas fenomenolgicas, no como mtodos rgidos de interpretao, mas, como parmetros flexveis que permitam confirm-las, descrevendo-as melhor, ou refut-las, modificando-as; nesse processo, a vivncia humana deve sempre servir de contraponto, pois, na Psicologia, ela a origem de todas as elaboraes conceituais. Penso que a crtica feita pela Fenomenologia elaborao e utilizao de teorias, neste caso, psicolgicas, diz respeito ao modo pretensamente objetivo como estas tm sido elaboradas e utilizadas. Por todas as razes acima descritas, considerei que a elaborao de um enfoque fenomenolgico da personalidade seria uma significativa contribuio para esta rea da Psicologia ainda pouco explorada sob tal perspectiva. II A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES cOM A PSICOLOGIA 1 - Introduo Este captulo foi elaborado com suporte nas principais idias de Husserl, por ter sido ele o iniciador da Fenomenologia moderna, na qual est fundamentado o mtodo que adoto neste trabalho. Alm desse renomado filsofo, recorri, tambm, a ensinamentos de Merleau-Ponty, por ter sido importante continuador de Husserl e por ter desenvolvido as idias deste, no sentido de esclarecer as possibilidades de articulao entre a Fenomenologia e a Psicologia. No tive a preocupao de comparar as idias de tais filsofos e nem de apresentar a evoluo do pensamento de Husserl. Meu objetivo foi, apenas, ode apresentar, resumidamente, as principais idias deste filsofo e ampli-las com formulaes de Merleau-Ponty para tentar mostrar a viabilidade de sua utilizao no campo da Psicologia. Preliminarmente, apresento, de modo sucinto, o panorama da poca na qual surgiu a Fenomenologia de Husserl, para facilitar a compreenso de suas idias; e a seguir, os temas que considerei importantes para o esclarecimento do seu mtodo. Os dez ltimos anos do sculo XIX, que antecederam as publicaes de Husseri sobre a Fenomenologia, "se caracterizam, na Alemanha pela derrocada dos grandes sistemas filosficos tradicionais... a cincia que doravante preenche o espao deixado vazio pela filosofia especulativa e, sobre o seu fundamento, o positivismo, para o qual o conhecimento objetivo parece estar definitivamente ao abrigo das construes subjetivas da metafsica." (Dartigues, 1973, p. 16.) Entretanto, nesse mesmo perodo, a segurana do pensamento positivista tambm comea a ser abalada, com questionamentos relativos aos fundamentos e ao alcance de seus 14 YOLANDA CINTRO FORGHIERI postulados, em virtude de serem elaborados por um sujeito concreto, ficando, portanto, dependentes do psiquismo humano. 'A essas questes, os ltimos ramos do pensamento kantiano ou neokantiano tentam responder, concebendo um "sujeito puro" que asseguraria a objetividade e a coerncia dos diferentes domnios do conhecimento objetivo." (Idem, p. 17.) Mas as dvidas quanto existncia desse "sujeito puro" e as preocupaes com o sujeito concreto em sua vida psquica imediata passam a ter predominncia nessa poca, preparando o terreno para o aparecimento da Fenomenologia moderna. Entre as obras importantes, que para ela contriburam, encontram-se as dos filsofos Brentano (Psicologia do Ponto de Vista Emprico, 1884) e Dilthey (Idias Concernentes a uma Psicologia Descritiva e Analtica, 1894), que censuram as cincias humanas - especialmente a Psicologia por terem adotado o mtodo das cincias da natureza, cujo objeto de estudo diferente. Dilthey afirma que a natureza s acessvel indiretamente, a partir de explicaes sobre fatos e elementos, mas que a vida psquica uma totalidade da qual temos compreenso intuitiva e imediata; considera que o sentimento de viver o solo verdadeiro das cincias humanas e o mtodo compreensivo, o nico adequado sua investigao. Brentano, cujas idias exerceram grande influncia no pensamento de Husserl, estabelece profundas diferenas entre os eventos fsicos e os fenmenos psquicos, afirmando que nestes existe intencionalidade e um modo de percepo original, imediato. Prope o retorno s experincias vividas e a descrio autntica destas, livre de todo o pressuposto gentico ou metafsico; suas investigaes, porm, permaneceram limitadas ao mbito da Psicologia (Kelkel e Scherer, 1982). Nesse panorama surgem, no incio do sculo XX, as primeiras obras sobre Fenomenologia, de Husserl (1901, 1907, 1911), que, embora partindo das idias de Brentano sobre a intencionalidade, vai alm deste, investigando-a na "vivncia de conscincia" como tal, e chegando a uma anlise profunda do conhecimento, que ultrapassa os limites da Psicologia. Sua obra consiste, sobretudo, em problematizar o prprio conhecimento e na apresentao da Fenomenologia como o nico mtodo para chegar a verdades apodcticas, evidentes. Pretende, atravs deste, estabelecer o fundamento radical da Filosofia, bem como a base primordial de todo o saber humano. II - Temas Fundamentais 1. O retorno s "coisas mesmas" e a jntencionalidade Questionando os sistemas especulativos da Filosofia e as teorias explicativas das cincias positivas, Husserl prope retornar a um ponto de partida que seja, verdadeiramente, o primeiro. A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM A PSICOLOGIA 15 "No das Filosofias que deve partir o impulso da investigao, mas sim das coisas e dos problemas... Aquele que deveras independente de preconceitos no se importa com uma averiguao ter origem em Kant ou Toms de Aquino, em Darwin ou Aristteles... Mas precisamente prprio da Filosofia, o seu trabalho cient (fico situar-se em esferas de intuio direta." (Husseri, 1965, pp. 72 e 73.) Afirma querer "voltar s coisas mesmas", considerando-as como o ponto de partida do conhecimento. Entretanto, a "coisa mesma" entendida por ele no como realidade existindo em si, mas como fenmeno, e o considera como a nica coisa qual temos acesso imediato e intuio originria; o fenmeno integra a conscincia e o objeto, unidos no prprio ato de significao. A conscincia sempre intencional, est constantemente voltada para um objeto, enquanto este sempre objeto para uma conscincia; h entre ambos uma correlao essencial, que s se d na intuio originria da vivncia. A intencionalidade , essencialmente, o ato de atribuir um sentido; ela que unifica a conscincia e o objeto, o sujeito e o mundo. Com a intencionalidade h o reconhecimento de que o mundo no pura exterioridade e o sujeito no pura interioridade, mas a sada de si para um mundo que tem uma significao para ele. 2. A reduo fenomenolgica e a intuio das essncias A reduo o recurso da Fenomenologia para chegar ao fenmeno como tal, ou sua essncia; pode ser sintetizada em dois princpios: um negativo, que rejeita tudo aquilo que no apodicticamente verificado; outro positivo, que apela para a intuio originria do fenmeno, na imediatez da vivncia. Na vida cotidiana temos uma atitude natural diante de tudo o que nos rodeia, acreditando que o mundo existe por si mesmo, independentemente de nossa presena. A atitude natural, no refletida, ignora a existncia da conscincia, como a "doadora" de sentido de tudo o que a ns se apresenta no mundo. Por isso necessrio refletir sobre nossa vida cotidiana, para que se revele a existncia de nossa conscincia. Desse modo, suspendemos, ou colocamos fora de ao, a nossa f na existncia do mundo em si e todos os preconceitos e teorias das cincias da natureza dela decorrentes. Deixamos fora de ao, tambm, a conscincia, considerada independentemente do mundo, e as teorias das cincias do homem, como a Psicologia, elaboradas a partir desse preconceito. A reduo no uma abstrao relativamente ao mundo e ao sujeito, mas uma mudana de atitude - da natural para a fenomenolgica - que nos permite visualiz-los como fenmeno, ou como constituintes de uma totalidade, no seio da qual o mundo e o sujeito revelam-se, reciprocamente, como significaes. No que diz respeito teoria do conhecimento propriamente dita, s atingimos a plena evidncia do fenmeno na concordncia entre a intuio e a significao, pois os conceitos 16 YOLANDA CINTRO FORGHIERI sem intuio esto vazios. A significao no preenchida apenas na intuio sensvel, mas na intuio eidtica, ou "categorial", na qual a evidncia da essncia, ou "a coisa mesma", tem acabamento. "A essncia (Eidos) um objeto de um novo tipo. Tal como na intuio do indivduo ou intuio emprica, o dado um objeto individual, assim o dado da intuio eidtica uma essncia pura." (Husserl, 1986, p. 21.) Mas a intuio eidtica no implica numa atitude mstica, no devendo ser entendida como uma extrapolao da intuio sensvel para um domnio supra-sensvel, pois sempre "fundada" no sensvel, sem se confundir com ele. "No h intuio da essncia se o olhar no tem a livre possibilidade de se voltar para um indivduo correspondente e de adquirir a conscincia de um exemplo; em contrapartida, no h intuio do indivduo sem que se possa operar livremente a ideao e, ao faz-lo, dirigir o olhar sobre a essncia correspondente, que a viso do indivduo ilustra como um exemplo." (Idem, p. 22.) Entretanto, embora estejam inteiramente relacionadas, essas duas "classes" de intuio so, em princpio, distintas. As distines entre elas correspondem s relaes essenciais entre existncia (no sentido do que existe como indivduo) e essncia. Introduzindo a noo de "viso das essncias" (Wesenschau), Husserl procura fundamentar um processo de conhecimento ao mesmo tempo concreto e filosfico, ligado vivncia e capaz de universalidade, atravs do particular. Assim sendo, o estudo da vivncia, efetuado pela Psicologia, pode levar descoberta de essncias, pois o conhecimento dos fatos implica uma viso da essncia, mesmo que quem o pratique esteja preocupado apenas com os fatos. Isto no significa que exi st uma Psicologia "apriori", ou uma Psicologia dedutiva, pois a "viso das essncias" consiste ma "constatao eidtica", devendo a Psicologia Fenomenolgica ser uma cincia basicamente descritiva. Em outras palavras, no h um sistema de axiomas, como na Matemtica, atravs do qual o psiclogo poderia construir as diferentes entidades ou realidades psquicas; isto porque, quando refletimos sobre nossa vivncia ou ade nossos semelhantes, no descobrimos"essncias exatas", isto , suscetveis de uma determinao unvoca, mas "essncias morfolgicas", inexatas por essncia e cujos conceitos so descritivos (Husserl, 1986, p. 163). "O psquico vivncia averiguada na reflexo auto-evidente, num fluxo absoluto, como atual ej esmorecendo, perdendo-se constantemente e evidentemente num passado. O psquico est integrado numa continuidade geral 'mondica' da conscincia, numa unidade prpria que nada tem a ver com o Tempo, o Espao e a causalidade." (Husseri, 1965, p. 33.) A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM A PSICOLOGIA 17 A ideao que chega s essncias morfolgicas, cuja extenso flexvel e fluida, radicalmente distinta daquela que apreende as essncias por simples abstrao, chegando a conceitos ideais fixos e exatos. "As essncias da vivncia no so abstratas, mas concretas." (Husseri, 1986, p. 163.) A Fenomenologia pertence s disciplinas eidtico-concretas, propondo-se a ser uma "cincia descritiva das essncias da vivncia". (Idem, p. 166.) Por isso encontra-se intima- mente relacionada Psicologia, fornecendo-lhe os seus fundamentos. "Assim, a Fenomenologia a instncia para julgar as questes metodolgicas bsicas da Psicologia, O que ela afirma, em geral, o psiclogo precisa reconhecer, como condio da possiblidade de toda sua metodologia ulterior." (Idem, p. 188.) 3. A reflexo Jnomenolgica, o mundo da vida e a intersubjetividade "O mtodo fenomenolgico move-se, integralmente, em atos de reflexo ", mas a reflexo tem, aqui, um sentido prprio que precisa ser esclarecido" (Husseri, 1986,p. 172). O eu vive no mundo, mas no se encontra delimitado quilo que vivencia no momento atual, pois pode, tambm, dirigir seu pensamento para o que j vivenciou anteriormente, assim como para as prospeces que faz em relao a coisas que tem a expectativa de vir a vivenciar. O psiclogo, na atitude natural, considera todos esses acontecimentos como fatos, procurando estabelecer relaes entre eles e deles com outros fatos, para explicar o psiquismo humano. Porm, ele pode refletir sobre tudo isto, em atitude fenomenolgica tanto em nvel superior de universalidade, ou de acordo com aquilo que se pe de manifesto como essencial, para formas especiais de vivncia. Neste caso, todos aqueles fatos e explicaes so colocados entre parnteses ou fora de ao, permitindo a reflexo sobre a experincia variada da vivncia, chegando ao que lhe essencial, ou invarivel nas suas transformaes. Se eu considerar o exemplo de uma vivncia de alegria, na qual eu "desapareo", ao completar um trabalho com eficincia; fizer uma "suspenso" dos fatos nela envolvidos e refletir sobre o seu agradvel decorrer, "a alegria se converte na vivncia visualizada e imediatamente percebida, que flutua e declina deste ou daquele modo, ante a mirada da reflexo... A primeira reflexo sobre a alegria encontra-se presente com esta, atualmente, mas no como iniciante nesse mesmo momento. A alegria est a como algo que segue durando, j anteriormente vivido, no que apenas no se haviam fixado os olhos." (Husseri, 1986, p. 174.) 18 YOLANDA CINTRO FORGHIERI Posso, ento, refletir sobre a reflexo da alegria e fazer uma distino entre a alegria vivida mas no visualizada e a alegria visualizada, e, igualmente, as modificaes que trazem consigo os atos de apreender, explicitar etc., que entram em jogo na visualizao da mesma. "As reflexes, por sua vez, tambm so vivncia e podem, enquanto tal, tornar- se substratos de novas reflexes, e assim 'ad infinitum'." (Idem, p. 173.) Entretanto, embora possa refletir sobre a vivncia reflexiva, esta, em ltima anlise, remonta ao "mundo da vida", ou minha vivncia imediata, pr-reflexiva. "A vivncia originria, em sentido fenomenolgico... tem em sua concreo apenas uma fase absolutamente originria, embora em fluxo contnuo, que o momento do 'agora vivo'." (Idem, p. 177.) Esse "agora vivo" perene o ponto de partida de todas as nossas reflexes. Porm, apenas refletindo sobre minha vivncia reflexiva que chego a compreender a minha vivncia originria como uma totalidade, ou um fluxo contnuo de retenes e protenses, unificado nesse "agora vivo", que o "mundo da vida". A reflexo fenomenolgica vai em direo ao "mundo da vida", ao mundo da vivncia cotidiana imediata, no qual todos ns vivemos, temos aspiraes e agimos, sentindo-nos ora satisfeitos e ora contrariados. Os pensamentos, as representaes tm origem nessa vivncia pr-reflexiva, ou "antepredicativa", que anterior a toda a elaborao de conceitos e de juzos; at as mais abstratas e sofisticadas formulaes cientficas partem dessa vivncia. A cincia no comea quando articula uma teoria, resultante de suas investigaes; ela tem incio com a inteno do cientista ao desejar esclarecer um problema que surgiu em sua vivncia cotidiana. Por isso a Fenomenologia "incita o cientista a reencontrar, numa cincia, sua prpria histria, que nela se sedimentou,... buscarem que, para alm de todas as mediaes, ela repousa sobre o mundo da vida e no no ar." (Husseri, referido por Dartigues, 1973, p. 80.) A "suspenso" fenomenolgica no feita apenas em relao ao mundo, mas abrange, tambm, o prprio sujeito, que , ento, tomado como tema de reflexo, deixando aparecer o eu puro ou o "ego transcendental", como expectador imparcial, apto a apreender tudo o que a ele se apresente como fenmeno. "Todo o sentido e todo o ser imaginveis fazem parte do domnio da subjetividade transcendental, enquanto constituinte de todo o sentido e todo o ser... O ser e a A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM A PSICOLOGIA 19 conscincia pertencem essencialmente um ao outro." (Extrato de Meditaes Cartesianas de Husseri, em KelkeI e Scherer, 1982, p. 101.) Sob outro aspecto, em sua vivncia cotidiana, os seres humanos, embora tenham suas prprias peculiaridades, existem todos no mundo, constituindo-o e constituindo-se, simultaneamente. Possumos, de certo modo, uma "comunalidade", pois todos ns vivemos no mundo e existimos uns com os outros, com a capacidade de nos aproximarmos e de compreendermos mutuamente as nossas vivncias. "A partir da intersubjetividade constituda em mim, constitui-se um mundo objetivo comum a todos." (Idem, p. 102). Assim sendo, o mundo recebe o seu sentido, no apenas a partir das constituies de um sujeito solitrio, mas do intercmbio entre a pluralidade de constituies dos vrios sujeitos existentes no mundo, realizado atravs do encontro que se estabelece entre eles. ifi - Possibilidades de Articulao entre a Fenomenologia e a Psicologia Este tema encontra-se enraizado na problemtica das relaes entre Filosofia e Cincia. A Filosofia apresenta-se como conhecimento da profundidade ou do fundamento; prope-se a captar a totalidade como tal e a individualidade como tal, interligando-as. Ela pretende eliminar, progressivamente, "todas as instncias fundadoras que ainda s se apresentam afetadas por um certo carter de regionalidade... para chegar a um saber verdadeiramente universal, isto , saber da totalidade, no no sentido de um sistema que englobasse todos os conhecimentos, mas no sentido de uma apreenso de fundamentos universais ". (Ladrire, 1977, pp. 180 e 181.) A tarefa caracterstica da Filosofia elucidar a natureza prpria da vida universal, ou a gnese do mundo, mas ela tem que pagar por este empreendimento, com sua incapacidade de conhecer o mundo em seu contedo concreto. A Cincia apresenta-se como conhecimento da realidade concreta; visa a ser objetiva e a abranger um domnio particular, delimitado e sem profundidade. Sua prtica assumiu surpreendente xito na poca atual; suas implicaes no nvel de habilitao tcnica e sua universalidade revelam-se, cada vez mais, como forma privilegiada de conhecimento... trazendo a idia de que somente o mtodo cient (fico capaz de nos obter uma viso do mundo que seja aceitvel." (Ladrire, 1977, p. 6.) 20 YOLANDA CTNTRO FORGHIERI Desse modo, assume uma posio reducionista e autoritria, pois "... pretende aplicar a todos os domnios e todas as situaes aquilo que s legtimo e fecundo no domnio do ensinamento verificvel." (Idem, p. 157.) Examinadas sob a perspectiva acima descrita, de acordo com a qual vm sendo consideradas, tradicionalmente, a Filosofia e a Cincia, a Fenomenologia e a Psicologia seriam dois campos distintos do saber que se apresentariam como inconciliveis. Entretanto, possvel, tambm, sob outra perspectiva, chegar a algumas aproximaes entre ambas. Assim, verifica-se que tanto a Cincia como a Filosofia aparecem como especificaes da idia de conhecimento racional, e na medida em que se apresentam como "portadoras de uma metodologia da verdade, existe uma questo concernindo as relaes entre elas" (Ladrire, 1977, p. 157). Poder-se-ia considerar que, sob um ponto de vista existencial, "ambas constituem procedimentos globais em que o homem se compromete inteiramente e atravs dos quais tenta instaurar, de maneira satisfatria, suas relaes com o mundo e consigo mesmo." (Idem, p. 158.) A Fenomenologia de Husserl, contribuiu, consideravelmente, para a possibilidade de estabelecimento de relaes entre a Filosofia e a Psicologia, pois, embora ele tivesse a inteno de chegar ao fundamento do prprio conhecimento e de todo saber, tomou o mundo vivido como ponto de partida para realizar este seu ideal. Alm disso, Husserl no chegou a elaborar um sistema filosfico completo, pois revelou estar sempre revendo e recomeando este empreendimento, at o final de sua vida, sem chegar a reconhecer que o havia completado. Este fato pode ser observado em referncias que faz em algumas de suas obras, como no Eplogo de Idias Relativas a uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenolgica, onde afirma: "Se por um lado o autor precisou praticamente rebaixar o ideal de suas aspiraes filosficas, ao de um simples principiante, por outro lado chegou, com a idade, plena certeza de poder chamar-se um efetivo principiante... V estendida diante de si a terra infinitamente aberta da verdadeira Filosofia, a 'terra prometida' que ele mesmo j no ver plenamente cultivada." (Husseri, 1913, traduo publicada em 1986, p. 304.) Ele chegou a sentir-se desanimado e desiludido, como quando afirmou na ltima de suas publicaes, editada originalmente em 1938, ano de sua morte: A FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM A PSICOLOGIA 21 "Filosofia como cincia sria, rigorosa, apoditicamente rigorosa - sonho que se desfez." (1954, p. 508.) Aquiles von Zuben, durante a argio do meu trabalho de Livre-Docncia, informou- nos que Husseri, nos instantes que antecederam sua morte, referindo-se sua obra, disse enfermeira que o assistia: "Eu precisaria comear tudo de novo". Todos esses fatos levaram-me a refletir sobre o inacabamento da Fenomenologia, reconhecido pelo seu prprio iniciador. Heidegger, que foi eminente discpulo de Husserl, tambm considera que a compreenso da Fenomenologia depende unicamente de apreend-la como possibilidade. "O que ela possui de essencial no ser real como corrente filosfica" (Heidegger, 1971, p. 49). "Ela no nenhum movimento, naquilo que lhe mais prprio. possibilidade de pensamento... de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. "(Heidegger, 1972, p. 107.) Segundo Merleau-Ponty (1971), outro importante discpulo de Husserl, a Fenomenologia "existe como movimento, antes de alcanar uma completa conscincia filosfica. Ela est a caminho h muito tempo; seus discpulos se encontram em todos os lugares... (p.f Se fssemos esprito absoluto a reduo no seria problemtica. Mas j que, pelo contrrio, estamos no mundo, j que mesmo nossas reflexes tm lugar no fluxo temporal que procuram captar, no h pensamento que envolva todo pensamento." (p. II.) por isso que a Fenomenologia no deve ser considerada como acabada naquilo que j pde dizer de verdadeiro. O seu inacabamento e o contnuo prosseguimento de sua marcha so inevitveis, pois ela pretende desvendar a razo e o mundo e estes no so um problema, mas constituem um mistrio. Portanto, "no se trataria de dissip-lo por meio de alguma soluo, pois ele est aqum das solues". Ela, ento, desdobrar-se- indefinidamente e "ser, como diz Husseri, uma meditao infinita" (Merleau-Ponty, 1971, p. 18). A Fenomenologia, portanto, apresenta-se como um mtodo filosfico peculiar, que no chega elaborao de um sistema filosfico completado. Alm disso, ela "busca as essncias na existncia... para ela o mundo est sempre 'a', antes da reflexo, como uma presena inalienvel e cujo esforo est em encontrar esse contato ingnuo com o mundo para lhe dar um 'status' filosfico" (MerleauPonty, 1971, p. 5)... 22 YOLANDA CINTRO FORGHIERI " a ambio de igualar a reflexo vida irrefletida da conscincia." (Idem, p. 13.) Embora Husserl tenha considerado a Fenomenologia e a Psicologia como cincias distintas, refere-se possibilidade de relao entre ambas, dando, no incio, prioridade Fenomenologia, ao considerar que a Psicologia, como cincia terica, encaminha-se, necessariamente, para a Fenomenologia. Mas, na medida em que amadurece seu pensamento, deixa transparecer a existncia de uma relao de reciprocidade ou de entrelaamento entre ambas, como quando, em sua ltima obra, publicada originariamente em 1938 (Krisis), afirma que a "subjetividade transcendental intersubjetividade", fortalecendo a idia de que os limites entre o transcendental e o emprico j no so mais completamente distintos, pois h uma interseco entre ambos. A inicial oposio entre o transcendental e o emprico, o ontolgico e o ntico, foi tomada por Husser!, apenas como "um ponto de partida encobrindo um problema e um secreto relacionamento entre as duas espcies de pesquisa" (Merleau-Ponty, 1973, p. 76). As formulaes fornecidas por Husserl e esclarecidas por Merleau-Ponty a respeito do inter-relacionamento entre a Fenomenologia e Psicologia, levam, tambm, a uma considerao mais ampla da Psicologia, de acordo com a qual ela uma cincia cujo conhecimento peculiar e paradoxal; no indutivo, no sentido que esta palavra tem para os empiristas e nem reflexivo no sentido que tem para a Filosofia tradicional. O conhecimento psicolgico reflexo e ao mesmo tempo vivncia; conhecimento que pretende descobrir a significao, no contato efetivo do psiclogo com sua prpria vivncia e com a de seus semelhantes. 3ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 1 - Esclarecimentos 1. A trajet ria percorrida Como j mencionei anteriormente, penso que, de certo modo, o incio de minha abertura para a Fenomenologia surgiu de forma informal e espontnea h muito tempo atrs, quando eu era ainda criana e comecei a me preocupar, me envolver e refletir sobre minha vivncia e das pessoas com quem convivia, na tentativa de descobrir meios para amenizar a angstia que sentia por no conseguir manter, permanentemente, o amor delas por mim. Esse tipo de envolvimento, preocupao e reflexo, tem-se mantido durante toda minha existncia; porm, o alvo de minhas tentativas, com o decorrer do tempo, passou a se tomar cada vez mais amplo. Assim, no incio, eu pretendia apenas amenizar minhas aflies procurando recursos para me sentir querida; depois, gradativamente, meu objetivo passou a ser o de tentar chegar a uma compreenso do meu existir e do de meus semelhantes, que pudesse nos propiciar viver e conviver de modo a nos tomarmos, o mximo possvel, realizados.., e felizes. Naquela ocasio e at o incio da juventude, eu no tinha encontrado, ainda, o respaldo de conhecimentos cientficos que me possibilitassem enunciar, de forma organizada, as minhas reflexes. Eles s comearam a surgir a partir do meu ingresso na Universidade; desde ento, prosseguem surgindo, cada vez mais numerosos e complexos, envolvendo-me na estimulante certeza de que jamais conseguirei esgot-los. Entretanto, nesse longo percurso, houve um momento no qual senti necessidade de fazer uma pausa para organizar e enunciar as experincias e reflexes at ento acumuladas, num conjunto de formulaes que denominei, restritamente, de enfoque fenomenolgico da personalidade, mas que num sentido amplo diz respeito ao modo como, atualmente, compreendo o meu existir e o de meus semelhantes. A efetivao dessa tarefa foi bastante 24 YOLANDA CINTRO FORGHIERI difcil, pois foi acontecendo num fluxo contnuo que, muitas vezes, deu-me a impresso de que jamais conseguiria conclu-la. Quando estava enunciando minhas idias, freqentemente parecia-me que elas iam adiante de meu raciocnio, dando-me um vigoroso mpeto de "persegui-las" e "agarr-las" num caminho que jamais teria fim. E a cada releitura de partes que eu j havia considerado como prontas, sentia, e ainda sinto, que poderia ampli-las ou modific-las. Por todos esses motivos, eu no pretendo que as enunciaes aqui reunidas e articuladas sejam tomadas como algo pronto ou finalizado e sim, apenas, como a "estao" qual cheguei, depois de uma longa "viagem", na qual estou, ainda, prosseguindo. Meu intuito de que as enunciaes que aqui apresento no sejam consideradas como definitivas, mas como ponto de partida para novos envolvimentos e reflexes a respeito desse tema to amplo e profundo que a existncia do ser humano, aqui abordada sob a perspectiva psicolgica da sua personalidade. 2. Passos seguidos na elaborao do enfo que Considero importante, ainda, fornecer esclarecimentos sobre o modo como procedi, a partir do momento em que tomei a deciso de elaborar um enfoque fenomenolgico da personalidade, aps numerosos anos de experincias, estudos e reflexes. Essa rdua tarefa ocorreu por meio dos seguintes passos: 1.0 Passo - Retomei as obras de filsofos, psiquiatras e psiclogos fenomenlogos cujas enunciaes haviam me impressionado e delas fiz cuidadosa reviso a fim de selecionar aquelas que julguei serem pertinentes para um levantamento de caractersticas bsicas da personalidade humana. 2 Passo - Procurei articular, entre si, os enunciados acima referidos e explicit-los de acordo como texto de seus autores e o modo como os fui compreendendo, revendo-os e, paralelamente, relacionando-os minha vivncia e de outras pessoas, tentando verificar os aspectos invariveis desta e as suas variaes na concretude de nosso existir. 3 Passo - Com subsdios obtidos na etapa anterior, fui chegando, por meio dos aspectos invariveis, ao levantamento de caractersticas bsicas da personalidade, as quais fui enunciando e retornando s etapas anteriores, sempre que percebi ser isto necessrio, at chegar a uma enunciao final das referidas caractersticas. Logo aps a enunciao de cada caracterstica, procurei enunciar, tambm, as variaes desta na concretude da vivncia das pessoas. No primeiro passo, houve a preponderncia de estudos e reflexes; nos dois seguintes ocorreu um processo inter-relacionado de envolvimento, vivncia e intuio ou de distanciamento, reflexo e enunciao de idias, com predomnio ora de uma, ora de outra dessas duas maneiras de atuar. ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 25 Embora tenha apresentado, separadamente, cada um dos passos seguintes,para facilitar a sua descrio, julgo importante ressaltar que eles foram ocorrendo de forma inter- relacionada, com avanos e retrocessos, que tiveram por objetivo chegar ao melhor esclarecimento que me fosse possvel alcanar, tanto das enunciaes dos autores nos quais fundamentei o enfoque, como de minhas prprias. Resumidamente, em outras palavras, atravs dos passos inter-relacionados acima referidos, cheguei descrio de caractersticas bsicas do existir humano. Para cada uma delas apresentei os seus fundamentos fenomenolgicos sob prisma filosfico, procurando mostrar o aparecimento das mesmas na vivncia cotidiana. Este foi o recurso do qual me utilizei para passar do plano filosfico para o psicolgico; no filosfico dei destaque aos aspectos invariveis da existncia, no psicolgico enfatizei algumas variaes que tais aspectos podem apresentar ao se manifestarem na concretude do existir. 3. Paradoxos e aparentes enganos Ao tratar das variaes referidas no pargrafo anterior, deixo transparecer o quanto as caractersticas bsicas do existir costumam manifestar-se de modo paradoxal na vivncia cotidiana. Posso, assim, dar a impresso de que estou sendo contraditria em meu empreendimento. Afinal, estou recorrendo a um mtodo inspirado na Fenomenologia e, portanto, estou pretendendo ter um rigor que me permita chegar a enunciaes coerentemente articuladas e acabo chegando, tambm, a vrias ambigidades. Acontece que estas fazem parte da concretude do prprio existir humano; por isso, para me manter fiel a ele, procurei ater-me a um rigor e uma coerncia que, de certo modo, so paradoxais. Outro ponto que merece esclarecimento refere-se ao estilo que adoto ao escrever este trabalho, pois, embora o tenha redigido, predominantemente, na i a pessoa do singular, em alguns momentos incluo o leitor no meu discurso, utilizando-me do "ns", para tentar chegar perto do leitor e lev-lo a participar da vivncia de situaes que so prprias no apenas de minha vida, mas da existncia que ambos partilhamos como seres humanos semelhantes. II - Fenomenlogos Cujas Idias Fundamentaram o Enfoque Alm de Husserl, contriburam para o entendimento que tive da Fenomenologia os filsofos Merleau-Ponty, Heidegger e Buber, de modo marcante, e Sartre de modo menos evidente. Em Merleau-Ponty (1971, 1973), encontrei,de modo mais explcito do que em Husserl, as aproximaes entre a Fenomenologia e a Psicologia, tais como as que ele procura efetivar 26 YOLANDA CINTRO FORGHIERI analisando fenomenologicamente o psiquismo humano, em sua manifestao fundamental: a percepo (1971). Na Fenomenologia do "ser-a" (Dasein), apresentada por Heidegger (1971), encontrei a fundamentao para o estabelecimento das dimenses primordiais do existir: a preocupao e a angstia, o "compreender", o "temporalizar" e o "espacializar". As consideraes que ele tece sobre a relatividade do conhecimento (1979) tambm exerceram influncia marcante em minhas reflexes. Alm destes filsofos, fiquei muito impressionada com Buber, que, embora no faa referncias a Husserl, seu contemporneo, faz uma excelente Fenomenologia das relaes humanas, em sua renomada obra Eu e Tu (1977), publicada pela primeira vez em 1922. Nele visualizei a possibilidade do encontro, ou da sintonia completa entre os seres humanos, de certo modo, no admitida ou, pelo menos, no claramente explicitada por Heidegger (1971 a). Sartre (1970, 1972) fortaleceu minha preocupao com a questo da liberdade do ser humano, levando-me a incluir o "escolher", entre as suas caractersticas bsicas. Entretanto, minha motivao para estudar Fenomenologia no surgiu a partir dos filsofos, mas de psiquiatras fenomenlogos. Entre estes, destacam-se Binswanger (1963) e Boss (1963), bem no incio, Berg, van den (1973) e Minkowski (1970), posteriormente. Foram eles que me levaram leitura da Fenomenologia em seu campo de origem - a Filosofia - na tentativa de compreender e aprofundar as suas idias sobre o existir humano e o modo como empregam o mtodo fenomenolgico. Reconheo que o pensamento dos fenomenlogos que tenho estudado e com os quais tenho me envolvido, fornecendo-me os fundamentos para a elaborao de um enfoque da personalidade, embora apresente algumas idias conciliveis ou coincidentes, contm, tambm, vrias divergncias das quais, propositadamente, no tratei. Meu intuito no foi o de fazer uma comparao entre esses autores e sim, apenas, o de reunir as suas idias naquilo que tm de concilivel, de acordo com o modo como consegui compreend-las, vivific-las e interpret-las. III - Apresentao do Enfoque: Caractersticas Bsicas do Existir O termo personalidade aqui tomado como o conjunto de caractersticas do existir humano, consideradas e descritas de acordo com o modo como so percebidas e compreendidas, pela pessoa, no decorrer da vivncia cotidiana imediata e tendo como fundamento os seus aspectos fenomenolgicos primordiais. Tais caractersticas constituem uma totalidade; a sua organizao em itens separados tem, apenas, o intuito de descrev-las de modo minucioso, para facilitar a sua compreenso. ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 27 1. Ser-no-mundo O homem, atravs dos tempos, tem-se esforado sobremaneira, com o intuito de elaborar a cincia, que pode ser definida como "um conjunto de proposies verdadeiras conectadas por relaes fundamentais". Entretanto, a "investigao cientfica no o seu nico modo possvel de ser e nem o mais imediato, pois, ao ser humano essencialmente inerente ser-no-mundo" (Heidegger, 197la, pp. 21 e 23). "Quando de manh cedo um fisico sai de casa para ir pesquisar no laboratrio o efeito de Compton e sente brilhar nos olhos os raios de sol, a luz no lhe fala em primeiro lugar, como fenmeno, de uma mecnica quntica ondulatria... A luz fala, sobretudo, de um mundo em que ele nasce e cresce, ama e odeia, vive e morre, a todo instante. Sem esse mundo originrio, o fsico no poderia empreender suas pesquisas, pois no lhe seria possvel nem mesmo existir... Nem o sol est somente fora de ns, nem luz est exclusivamente dentro de ns, porque sempre e necessariamente realizamos nossa existncia na estrutura ser-no-mundo" (Leo, em Heidegger, l988,p. 19). Encontramo-nos, em cada momento da vida, em nossa experincia cotidiana, tendo com ela uma familiaridade imediata e pr-reflexiva que no provm daquilo que a cincia nos ensina. a partir e dentro dessa vivncia diria que desenvolvemos todas as nossas atividades, inclusive as cientficas, e que determinamos nossos objetivos e ideais. A experincia cotidiana imediata o cenrio dentro do qual decorre a nossa vida; ser-no-mundo a sua estrutura fundamental. "Mas ser-no-mundo no quer dizer que o homem se acha no meio da natureza, ao lado de rvores, animais e outros homens... E uma estrutura de realizao... O homem est sempre superando os limites entre o dentro e o fora." (Idem, p. 20.) Nos acontecimentos da vida diria podemos evidenciar o quanto estamos implicados no mundo, pela aflio que sentimos quando, por exemplo, simplesmente escorregamos e camos; ficamos desapontados e confusos, pois, ao "perder" o cho no qual nos apoiamos, sentimo-nos, por instantes, como se perdssemos o prprio mundo e, simultaneamente, a ns mesmos. Isto pode acontecer, tambm, quando seguimos por uma estrada pouco conhecida e, de repente, ficamos sem saber onde nos encontramos. Para sabermos quem somos precisamos, de certo modo, saber onde estamos, pois, a identidade de cada um de ns est implicada nos acontecimentos que vivenciamos no mundo. Nosso elo de ligao pode no ser um lugar, mas uma pessoa a quem muito amamos; a sua perda, devida ao drama de sua morte, ou, simplesmente, falta de sua compreenso e 28 YOLANDA CINTRO FORGHIERI da correspondncia ao afeto que lhe dedicamos, pode nos deixar perpiexos e aflitos, sem sabermos, por instantes, se somos a pessoa que imaginvamos ser. Precisamos do "mundo" para sabermos onde estamos... e quem somos. Nas aflies decorrentes de nossas momentneas dvidas a esse respeito, respiramos fundo para alivi-las, procurando, intuitivamente, encontrar no ar que penetra em nossas narinas um alento para nos reanimar e nos esclarecer; podemos, tambm, acender um cigarro, coloc-lo entre os lbios e absorver a sua fumaa; ou tomar alguns goles de uma bebida qualquer. Estas aes to simples e espontneas so tentativas para recuperar o nosso inerente ser-no-mundo, pois, "a essncia do homem est em se ser relativamente a algo ou algum" (Heidegger, 1971 a, p. 54). "O primordial ser-no-mundo do homem no uma abstrao, mas uma ocorrncia concreta; acontece e se realiza, apenas, nas mltiplas formas peculiares do comportamento humano e nas diferentes maneiras dele relacionar-se s coisas e s pessoas. 'Ser' no uma estrutura ontolgica existindo em algum 'supermundo' que se manifesta uma vez ou outra na existncia humana. Ser-no-mundo consiste na maneira nica e exclusiva do homem existir, se comportar e se relacionar s coisas e s pessoas que encontra..." (Boss, 1963, p. 34). Sempre que penso ou sinto, isto acontece em relao a algo ou a algum, concretamente presente, ou apenas lembrado ou imaginado. Por outro lado, o mundo no apenas um conjunto de objetos ou pessoas, existindo por si mesmos, pois cada um deles se toma um determinado objeto ou pessoa em virtude de ter um significado para quem o percebe. "As coisas no podem ser sem o homem e o homem no pode ser sem as coisas que encontra." (Idem, p. 41). "A idia fundamental de meu pensamento precisamente que a evidncia do ser precisa do homem e que, vice-versa, o homem s homem na medida em que est dentro da evidncia do ser" (Heidegger, 1974, p. 25, em entrevista com Weiss.) Ser e mundo, sujeito e objeto, no so dois absolutos essencialmente independentes, mas "comparveis a dois plos, necessariamente ligados em relao recproca de cognoscibilidade." (Acker, van, em Berg, van den, 1973, p. 5.) Ser-no-mundo uma estrutura originria e sempre total, no podendo ser decomposta em elementos isolados. Entretanto, tal estrutura primordial pode ser visualizada e descrita em seus vrios momentos constitutivos, mantendo a sua unidade. desse modo que podemos considerar os vrios aspectos do mundo e as diferentes maneiras do homem existir no mundo. ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 29 1.1. Aspectos do "mundo": circundante, humano, prprio "Mundo" o conjunto de relaes significativas dentro do qual a pessoa existe; embora seja vivenciado como um totalidade, apresenta-se ao homem sob trs aspectos simultneos, porm, diferentes: o circundante, o humano e o prprio. (Binswanger, 1967.) O "mundo" circundante consiste no relacionamento da pessoa com o que costumamos denominar de ambiente. Abarca tudo aquilo que se encontra concretamente presente nas situaes vividas pela pessoa, em seu contato com o mundo. Abrange as coisas, as plantas e os animais, as leis da natureza e seus ciclos, como o dia e a noite, as estaes do ano, o calor e o frio, o bom tempo e as intempries. Dele faz parte, tambm, o nosso corpo, suas necessidades e atividades, tais como o alimentar-se e o defecar, a viglia e o sono, a atuao e o repouso, o viver e o morrer. O "mundo" circundante caracteriza-se pelo determinismo e por isso a adaptao o modo mais apropriado do homem relacionar-se a ele. Assim, por exemplo, eu preciso adaptar- me ao clima frio ou quente, necessito ajustar-me s minhas necessidades de comer e de dormir, pois nada posso fazer para modificar o prprio clima e as minhas necessidades biolgicas. Portanto, do "mundo" circundante fazem parte as condies externas e o meu prprio corpo e este que me proporciona os primeiros contatos com aquelas. So minhas sensaes que me propiciam ver, ouvir, cheirar tocar e degustar as coisas que me cercam percebendo- as com alguma significao. Mas isto acontece numa vivncia global onde no distingo, de imediato, cada um de meus sentidos, bem como estes e as coisas com as quais me relaciono; eu simplesmente percebo coisas que tm um sentido para mim. "Na vivncia imediata irreflexiva nada subsiste do fato de que necessito de olhos para ver.., simplesmente aparecem-me coisas que esto a..." (Berg, van den, 1972, p. 126.) e tm significao para mim, no apenas por aquilo que so em si mesmas, mas pela relao que estabeleo com elas. O corpo tem um poder de sntese; ele unifica as sensaes e percepes de si, bem como as que se referem ao mundo; o corpo simultaneamente unificado e unificador na sua constante e simultnea relao consigo e com o mundo. Na vivncia pr-reflexiva imediata o ser humano desconhece seu corpo como tal; ou, em outras palavras, este encontra-se englobado na totalidade do existir. E no h manifestao do existir que no seja, de certo modo, corporal, pois no so apenas as sensaes, nas quais temos uma percepo direta de objetos, que so vividas corporalmente. Mesmo quando imaginamos ou lembramos de algo, ou de algum, estes aparecem com um colorido, uma forma, ou um perfume, um gosto, uma contextura. E at quando estamos engajados num pensamento racional e abstrato, o que visualizamos ainda mantm alguma relao com o que vimos e sentimos. 30 YOLANDA CINTRO FORGHIERI "Nosso prprio corpo est no mundo como o corao no organismo: ele mantm continuamente em vida o espetculo visvel, ele o anima e o nutre interiormente, forma com ele um sistema." (Merleau-Ponty, 1971, p. 210.) Embora possam existir semelhanas entre meu corpo e os objetos naturais inanimados, h entre eles diferenas essenciais; entre estas encontram-se os seus limites. Nos objetos os limites encontram-se bem delineados e determinados, enquanto meu prprio corpo no se restringe aos limites de minha pele, mas se expande muito alm desta. Isso acontece no apenas pelas relaes que estabeleo concretamente com o ambiente que me cerca, mas, tambm, por aquelas das quais me recordo ou imagino que eu possa vir a estabelecer. Nosso corpo no uma estrutura existindo por si mesma; e estende-se muito alm de nossas sensaes do momento, pois no encontramo-nos, apenas, fisicamente localizados num determinado lugar, mas, expandimo-nos em nosso existir no mundo; um mundo que constitudo no apenas de sensaes, mas de significaes. Os limites da minha capacidade coincidem com os limites de minha abertura ao mundo; eles so idnticos em cada momento, mas, esto sempre mudando de acordo com minhas novas experincias e a amplitude ou restrio com as quais eu as vivencio. O "mundo" circundante abrange os condicionamentos aos quais estamos sujeitos, sendo, de certo modo, por eles determinados, por vivermos concretamente num ambiente, e pela limitao decorrente de nossa corporeidade, e nossa animalidade. Porm, no nos encontramos completamente determinados, como acontece com os animais. Na vida destes o mundo circundante consiste num crculo funcional, ou numa interao circular que se estabelece entre as sensaes e as aes. O ser humano, ao contrrio, embora em sua vida sofra limitaes de seu ambiente e de sua corporeidade, e necessite adaptar-se a eles, possui a capacidade de transcend-los por meio da conscincia que tem das situaes que vivencia (Binswanger, 1967, p. 241.) O homem no est em seu mundo circundante como um objeto dentro de uma caixa ou um animal preso numa jaula, pois no est, simplesmente, num ambiente; ele mora ou "habita" no mundo, que para ele se abre com muitas possibilidades, no apenas por poder se locomover de um lado para outro, mas, tambm, em virtude da conscincia que possui das situaes que j vivenciou, est vivenciando e ainda poder vivenciar. Portanto, h um movimento dialtico entre o ser humano e o mundo circundante; o homem precisa, essencialmente, adaptar-se ao mundo circundante, mas est sempre tentando e, de certo modo, chega a conseguir exercer alguma ao sobre a natureza e o seu prprio corpo. Assim, ele exerce algum controle sobre seus instintos, e domestica animais, cultiva plantas, nivela planaltos, represa guas, elabora objetos que lhe servem de utenslios; usa, e s vezes at abusa da natureza, com o intuito de viver melhor. Porm, a ao e controle sobre o mundo circundante que o homem consegue obter acontece de uma forma temporria e relativa, pois, tanto a natureza como o seu prprio corpo ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 31 mantm um certo poder de se impor ao homem. Isto pode ser verificado na manuteno que eles manifestam de suas qualidades materiais e biolgicas bsicas, e, tambm, nos dramticos acontecimentos da natureza como os terremotos, os tufes, e na prpria morte, contra a qual o homem nada pode fazer. O "mundo" humano aquele que diz respeito ao encontro e convivncia da pessoa com os seus semelhantes. A relao do homem com outros seres humanos fundamental em sua existncia; desde o nascimento ele encontra-se em situaes que incluem a presena de algum. O existir originariamente ser-com o outro, embora o compartilhar humano nem sempre seja vivenciado de fato. "Mesmo o estars ser-com, no mundo. Somente 'num 'ser-come 'para'um ser-com que o outro pode faltar. O estar s um modo deficiente de ser-com. "(Heidegger, 1988, p. 172.) Os seres humanos fazem parte da existncia do homem, mas no so como os animais, coisas e instrumentos que a ele se apresentam, pois "So e esto no mundo em que vm ao encontro, segundo o modo de ser-no-mundo... O mundo sempre um mundo compartilhado com os outros. "(Idem, pp. 169 e 170.) Temos a capacidade de nos compreendermos mtua e imediatamente, por sermos fundamentalmente semelhantes, embora na concretude de nosso existir cada um apresente algumas peculiaridades em seu perceber e compreender as situaes. Diferentemente do relacionamento com o "mundo" circundante, no qual o ser humano costuma utilizar-se dos objetos ou adaptar-se materialidade do ambiente sem deles receber uma resposta, no encontro com seu semelhante ocorre uma relao de reciprocidade, na qual ambos influenciam-se mutuamente. Os seres humanos possuem potencialidades que lhe so prprias e os distinguem das coisas e dos animais, em virtude de compreenderem as situaes que vivenciam, tendo conscincia de si e do mundo. E como nossa existncia consiste em ser- no-mundo, s atualizamos tais potencialidades, peculiarmente humanas - como o amor, a liberdade e a responsabilidade-, quando nos encontramos e entramos em relao com outras pessoas. E assim que atualizamos e, a partir da, compreendemos e desenvolvemos tais potencialidades. S posso saber quem sou como ser humano, convivendo com meus semelhantes. Podem acontecer, e acontecem entre os seres humanos, situaes nas quais um deles procure dominar o outro, utilizando-se dele para atender s suas necessidades. Uma pessoa pode, tambm, deixar-se submeter outra, ou s normas e regras de seu grupo social, simplesmente, para no assumir a responsabilidade de suas prprias decises. Nestes casos, 32 YOLANDA CINTRO FORGHIERI estaria ocorrendo, entre elas, relacionamentos semelhantes aos do "mundo" circundante, que no lhes propiciaria a atualizao de suas potencialidades peculiarmente humanas. A relao e a comunicao entre as pessoas propiciada, inicialmente, atravs de seu prprio corpo; a princpio percebemo-nos e comunicamo-nos mutuamente por meio de contatos e expresses corporais, gestos e atitudes. Alm dessas formas de comunicao temos a capacidade de nos comunicar, tambm, pela linguagem; esta peculiar aos seres humanos. Mas, o fundamento da linguagem e de todas as formas de comunicao entre os seres humanos , originariamente, o seu ser-com, ou, em outras palavras, a sua caracterstica essencial de sempre existir em relao a algo e a algum. O "mundo" prprio consiste na relao que o indivduo estabelece consigo, ou, em outras palavras, no seu ser-si-mesmo, na conscincia de si e no autoconhecimento. Mas o si- mesmo no consiste num ensimesmamento, pois o homem um ser-no-mundo, ou seja, sempre uma pessoa com caractersticas prprias, em relao a algo ou a algum. So as situaes que a pessoa vai vivendo, relacionando-se com o mundo circundante e com as pessoas, que lhe vo possibilitando atualizar as suas potencialidades, oferecendo-lhe as condies necessrias para ir descobrindo e reconhecendo quem . Por outro lado, medida que vou descobrindo quem sou, este autoconhecimento ou conscincia-de-mim, tambm me vai propiciando uma perspectiva, ou um modo peculiar de visualizar as situaes que vivencio no mundo. As minhas aes propiciam tanto o meu autoconhecimento como o do mundo que me cerca; todavia, a pessoa que eu sou no se reduz ao conjunto das aes que j realizei, ou das coisas que j fiz, pois no sou algo esttico, mas, estou constantemente existindo, num fluxo contnuo, em direo ao que pretendo ser. Meus atributos, minhas qualidades no se limitam aquilo que j fiz; embora meu passado fomea-me elementos importantes para me conhecer, no fixa o meu modo de ser, pois posso me modificar, compensando muitos dos meus erros, como posso aperfeioar as minhas virtudes; assim sendo, tanto posso manter antigos projetos, como posso modificar o decorrer de minha vida. A pessoa que eu sou abrange tanto quem eu j fui, como quem eu estou sendo e quem pretendo ser em minha existncia no mundo. No "mundo" prprio a pessoa percebe-se, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto; ela d-se conta de si mesma como um ser existente no mundo, colocando-se tanto na situao concreta do momento como, tambm, vislumbrando a variedade de suas possibilidades. Assim sendo, a conscincia de si e o autoconhecimento implicam a autotranscendncia; esta a capacidade do ser humano transcender a situao imediata, ou, em outras palavras, a capacidade de ultrapassar o momento concretamente presente, o aqui e agora, o espao e o tempo objetivos. Pela autotranscendncia a pessoa traz o passado e o futuro para o instante atual de sua existncia e se reconhece como sujeito responsvel por suas decises e seus atos. E essa capacidade que constitui a base da liberdade humana, pois, permite ao ser humano tanto voltar-se para o passado como, ao mesmo tempo, lanar-se no futuro para refletir e avaliar seus prprios recursos e as possibilidades que possui para enfrentar, no apenas a situao ENFOQUE FENOMENOLGICO DA PERSONALIDADE 33 imediata, mas, para ir, imaginativamente, muito alm dela. O homem dispe em sua existncia de uma ampla gama de possibilidades para escolher suas relaes com o mundo; o ser-si-mesmo esta possibilidade de se perceber, abrindo caminho entre essas inmeras e variadas possibilidades. O "mundo" prprio caracteriza-se pela significao que as experincias tm para a pessoa, e pelo conhecimento de si e do mundo; sua funo peculiar o pensamento. O pensamento considerado de um modo amplo que abrange todas as funes mentais como o entendimento, o raciocnio, a memria, a imaginao, a reflexo, a intuio e a linguagem. Linguagem e pensamento encontram-se essencialmente ligados. "Desde a simples palavra falada ou escrita com algum sentido, at o discurso propriamente dito, a questo da linguagem e do pensamento encontra-se fundamentada num fenmeno global, que, segundo Husserl, queremos denominar de 'expresso viva' ou significativa." (Binswanger, 1973, p. 462.) Na "expresso viva" podemos distinguir: os signos fnicos ou escritos, as experincias psquicas e a significao. Ela contm: nos signos, a representao objetiva de coisas, objetos, animais e pessoas do mundo, estabelecida igualmente pelos indivduos, no idioma do qual se utilizam; nas experincias psquicas e na significao, est contido algo que peculiar pessoa que vivenda uma situao, de acordo com sua prpria existncia. "A denominao lingstica e a doao de sentido que constituem a maravilha da linguagem... Por trs de cada palavra, falada ou escrita, encontra-se como autora a pessoa vivente." (Idem, pp. 464 e 492.) na linguagem que os entes tomam-se representados nos signos, adquirem significao e se tomam comunicveis. A linguagem ocorre sempre como dilogo; dilogo da pessoa com outras ou consigo mesma, como acontece na reflexo. Linguagem e pensamento encontram-se implicados no dilogo; nele expressam e obtm resposta, num fenmeno unitrio. "Platoj dizia que pensar conversar com um tema, penetrando-o; o dilogo da alma consigo mesma... Pensar uma fala que a alma realiza sobre o que quer investigar.., O pensamento se dispe, por sua prpria essncia, a poder dialogar com os outros... O monlogo j uma frrma de dilogo." (idem, p. 503.) Falar s um falar no pleno sentido da palavra, quando eu mesma entendo aquilo de que estou falando e sobre o que quero ser ouvida, compreendida e confirmada, ou contestada verbalmente, por outra pessoa, ou mental e silenciosamente por mim mesma. 34 YOLANDA CINTRO FORGHIERI "O fenmeno pleno de pensar a mesma coisa que falar." (Idem, p. 504), Ao refletir sobre algo, dialogo comigo mesma acerca de conceitos, idias e significaes, procurando relacion-los e compreend-los. Entretanto