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67 FRAGMENTO: ESBOÇOS PARA UMA CONFIGURAÇÃO DO CONCEITO LITERATURA E CINEMA Marta Mendes © A AUTORA Professora na Escola Superior de Teatro e Cinema, Marta Mendes lecciona, neste momento, disciplinas nas Áreas de Estética e de Argumento. Prepara a tese de doutoramento, na área de Estética, na Universidade de Lisboa, mais precisamente no campo da literatura e do cinema. PALAVRAS-CHAVE Gilles Deleuze, fragmento, acontecimento, haiku, patchwork. I SENTIDOS DO FRAGMENTÁRIO Embora encontremos características de uma escrita fragmentária já em Lautréamont, Nietzsche, Rimbaud, entre muitos outros, foi no século XX que o fragmento se tornou uma marca específica da modernidade, instalando-se como prática desde Artaud e os surrealistas a Paul Valéry e Maurice Blanchot, alastrando-se das belas-artes à poesia, da filosofia à literatura. O fragmento não é um género literário mas uma prática: o princípio da descontinuidade associado ao fragmento assume-se como uma forma de pensamento oposta à linearidade, baseada nos princípios da identidade, continuidade, ordem e simplificação. Procura-se aqui a configuração de um conceito de fragmento autónomo, que não restitui, que não trabalha tendo por referência o lacunar, mas que é sempre um gesto de produção a começar, rompendo com um rosto, um dominante, marcando uma nova ordem de coisas, uma nova constelação. Digamos que a este conceito de fragmento, o fragmento enquanto fracção de uma qualquer totalidade, não se ajusta. Este fragmento livre, dotado de autonomia, não parte de uma fragmentação, não é um vestígio de algo, mas o começo de algo. Falamos de qualquer coisa que se pretende fazer ressoar com aquilo a que Gilles Deleuze chamou acontecimento. A produção do sentido, em Gilles Deleuze, está associada a uma prática que não assenta necessariamente numa arte do descontínuo e sim do contínuo, puro e simples: linha de devir, como ele lhe chama, fluxo contínuo feito de intensidades e afectos. O sentido não se acha no fragmentário (que se refere sempre a um modelo perdido cuja ausência, muitas vezes se exibe permanentemente) mas rizomaticamente, num plano caracterizado pela

09 Marta Mendes

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    FRAGMENTO: ESBOOS PARA UMA CONFIGURAO DO CONCEITO LITERATURA E CINEMA Marta Mendes

    A AUTORA

    Professora na Escola Superior de Teatro e Cinema, Marta Mendes lecciona, neste momento, disciplinas

    nas reas de Esttica e de Argumento. Prepara a tese de doutoramento, na rea de Esttica, na

    Universidade de Lisboa, mais precisamente no campo da literatura e do cinema.

    PALAVRAS-CHAVE

    Gilles Deleuze, fragmento, acontecimento, haiku, patchwork.

    I

    SENTIDOS DO FRAGMENTRIO

    Embora encontremos caractersticas de uma escrita fragmentria j em Lautramont, Nietzsche,

    Rimbaud, entre muitos outros, foi no sculo XX que o fragmento se tornou uma marca especfica da

    modernidade, instalando-se como prtica desde Artaud e os surrealistas a Paul Valry e Maurice

    Blanchot, alastrando-se das belas-artes poesia, da filosofia literatura. O fragmento no um gnero

    literrio mas uma prtica: o princpio da descontinuidade associado ao fragmento assume-se como uma

    forma de pensamento oposta linearidade, baseada nos princpios da identidade, continuidade, ordem

    e simplificao.

    Procura-se aqui a configurao de um conceito de fragmento autnomo, que no restitui, que

    no trabalha tendo por referncia o lacunar, mas que sempre um gesto de produo a comear,

    rompendo com um rosto, um dominante, marcando uma nova ordem de coisas, uma nova constelao.

    Digamos que a este conceito de fragmento, o fragmento enquanto fraco de uma qualquer

    totalidade, no se ajusta. Este fragmento livre, dotado de autonomia, no parte de uma fragmentao,

    no um vestgio de algo, mas o comeo de algo. Falamos de qualquer coisa que se pretende fazer

    ressoar com aquilo a que Gilles Deleuze chamou acontecimento. A produo do sentido, em Gilles

    Deleuze, est associada a uma prtica que no assenta necessariamente numa arte do descontnuo e

    sim do contnuo, puro e simples: linha de devir, como ele lhe chama, fluxo contnuo feito de intensidades

    e afectos. O sentido no se acha no fragmentrio (que se refere sempre a um modelo perdido cuja

    ausncia, muitas vezes se exibe permanentemente) mas rizomaticamente, num plano caracterizado pela

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    multiplicao de centros cujas funes, transitrias, se caracterizam pela subservincia a um trajecto

    intensivo.

    No o fragmento em si que fragmenta algum tipo de unidade ou de estrutura unitria, mas -

    desfeita esta estrutura - restam-nos fragmentos soltos, aparentemente desligados uns dos outros, e sem

    estrutura de ligao entre si. Ora, o fragmento a que chammos fragmento livre, ser algo de solto,

    desligado, sem sentido? Precisamente, no e sim: o fragmento que aqui tentamos configurar caracteriza-

    se por um non-sense de base ou pela ausncia originria de significado ou de significao. Esta

    virgindade de sentido, se quisermos, aquilo que faz do fragmento, nesta acepo, um pedao de

    sentido no estado puro. Digamos que h uma virtualidade de sentido em todo o non-sense: esta

    acepo de fragmento que aqui nos pode interessar.

    Nesta acepo livre de fragmento a que nos importa aqui enquanto non-sense virtual, um

    fragmento no diz respeito parte de uma ausente totalidade orgnica, mas tambm no atomizvel

    em si: a sua modalidade a da abertura, est numa permanente comunicao com o exterior, com

    aquilo que lhe essencialmente heterogneo e mltiplo. Na lgica do sentido do fragmento-livre

    rompeu-se com o domnio de um rosto dominante, isto representa uma ruptura do pensamento com uma

    certa lgica: morreu a filiao. Instaurou-se uma nova ordem de coisas, a partir de uma

    heterogeneidade, mas de uma heterogeneidade consistente.

    II

    OS ANDAIMES FICCIONAIS DA NOSSA VIDA REAL

    1. Ilusionismo

    O modo como habitualmente vivemos e acedemos ao real, parte de uma iluso: a ideia que

    controlamos a nossa vida. Esta ideia parece produzir-se, de forma inexplcita, no seio da crena mais ou

    menos racional de que o nosso acesso ao real um acesso fundado em teses inquestionveis,

    determinado por um conjunto de regras ou funes essencialmente constantes. Blaise Pascal descreveu,

    nos Penses, a forma como acedemos s coisas ou ao real como uma forma essencialmente marcada

    por uma inconstncia: Inconstncia. As coisas tm diversas qualidades e a alma diversas inclinaes,

    pois nada do que se oferece alma simples e a alma nunca se oferece a nenhum sujeito. por esta

    razo que choramos e rimos de uma mesma coisa. Rir e chorar de uma mesma coisa, tem a ver com

    um descontrolo essencial da nossa vida com que habitualmente no contamos, pois a necessidade de

    controlar o real leva precisamente produo de uma camada de sentido que se constitui como uma

    realidade essencialmente conhecida, controlada e dominada. Habitualmente no pensamos a nossa vida

    de forma fraccionada, momento a momento por exemplo, ou como um amontoado de acontecimentos

    dispersos, mas supomos ter plena conscincia da nossa existncia.

    A forma como damos sentido nossa vida passa, quer pela ideia de uma conscincia

    unificadora (a minha conscincia / a minha vida), quer por uma localizao desta mesma conscincia ou

    desta minha vida num determinado ponto da linha temporal, cujo ponto de referncia o agora, a

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    partir do qual se organizam um antes e um depois. Isto todos sabemos, que Eu sou Eu, que Tu

    s tu, que ontem passado e que a minha vida como a tua , teve um princpio, tem um meio e ter

    um fim. Obviamente que h teses inexplcitas de sentido com que contamos sempre para levarmos

    quotidianamente a cabo este projecto de vida: por exemplo, no contamos com buracos negros do tipo

    rir e chorar de uma mesma coisa , nem com acontecimentos fora do nosso domnio temporal como

    aqueles que nos acontecem nos sonhos (no sermos capazes de localizar temporalmente um

    acontecimento, por exemplo) ou mesmo acordados (o dja vu, para dar um exemplo comum); ou ento,

    pelo contrrio, contamos com teses inexplcitas de sentido, como por exemplo, a ideia de que somos

    eternos: foi o que aconteceu ao velho rei da pea de Ionesco Le Roi se meurt. Era um rei poderoso e

    muito ocupado, to ocupado que acaba por acreditar num presente eterno. A produo de um tempo

    fantasma deste tipo, de uma iluso de eternidade, liga-se a uma necessidade subjectiva, para usar uma

    expresso de Kant, que torne o empreendimento da nossa vida exequvel ou seja uma iluso que

    nos ajuda a viver no seio de uma determinada ordem. A nossa vida est constituda como um projecto

    relativamente controlado, sabemos mais ou menos o que estaremos a fazer daqui a cinco anos, h

    mesmo quem o saiba perfeitamente, mas mesmo aqueles que se consideram mais livres acabam por

    entrar neste jogo, por razes que os ultrapassam: como no entrar no jogo ficcional da nossa vida?

    Comeamos a contar a histria da nossa vida mesmo antes de a viver. Pergunta-se a uma criana de

    cinco anos o que vai ser quando for grande. Ora, o que a criana percebe naquele momento que

    um dinossauro poderosssimo e, logo depois, um astronauta. Ela diz: quero ser um astronauta. E

    respostas destas podem, mesmo aos cinco anos de idade, sair-lhe muito caras. Obviamente que h

    coisas que no controlamos, que h acontecimentos que nos ultrapassam, que h desastres: qualquer

    coisa como um nvel cujo acesso nos interdito, mas com o qual nos relacionamos apenas

    esporadicamente. De facto, o nvel de coisas que nos aparece como acasos fortuitos um caminho que

    geralmente no consideramos, a no ser nos momentos de lapso ou em que somos apanhados num

    imprevisto: um choque, uma ruptura, um acidente. Mas o que acontece que, mesmo estes pequenos

    imprevistos, esto na sua grande maioria j previstos e so qualquer coisa de controlvel, dentro do

    macio edifcio de certezas em que habitamos. O que importa que esta construo se nos apresente

    como aparentemente slida, porto seguro, que nos ajuda a dar um sentido s coisas e a t-las como

    uma realidade constante e determinada.

    2. Contos de fadas: simplificar, polarizar, identificar?

    Para Bruno Bettelheim, psicanalista, os contos de fadas tm como funo ajudar as crianas a

    construir esta espcie de bom porto ou de porto seguro (1) no qual possam alicerar os andaimes da

    sua vida. Para este autor, s na idade adulta que uma compreenso inteligente do sentido da

    existncia de cada um neste mundo se pode obter e no se pode querer impor a uma criana que ela

    funcione como um adulto, pois ela ainda no tem constitudas bases racionais para tal. Os Contos de

    Fadas so, ento, segundo Bettelheim, a melhor forma de preparar a criana para o complexo mundo

    dos adultos, ou seja, para se compreender a si prpria e ao complexo mundo que vai enfrentar, a

    criana tem de ser ajudada a construir um sentido, tem que ser orientada. Ela precisa de uma educao

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    moral em que com subtileza apenas se lhe transmitam as vantagens de um comportamento moral (...) e

    encontra esse gnero de sentido nos contos de fadas. Porqu os contos de fadas? Em primeiro lugar,

    porque trazem com eles uma espcie de certificado de validade: so mais velhos que o mundo, contados

    e recontados h milnios, por isso transmitem significaes manifestas e latentes adequadas a todos os

    tipos de personalidade humana tm portanto uma validade universal, e comunicam de uma forma que

    chega ao esprito inculto da criana, assim como ao do adulto sofisticado. A estrutura dos contos de fadas

    , segundo este psicanalista, a mais apropriada para, como diz, dominar os problemas psicolgicos do

    crescimento (ultrapassagem das feridas narcsicas dos conflitos edipianos, das rivalidades fraternas, das

    dependncias infantis; obteno de um sentimento de personalidade e valor prprio e um senso de

    obrigao moral), trabalhando este material atravs da imaginao, mas a partir de uma estrutura

    definida por alguns princpios.

    Os contos de fadas ensinam criana que qualquer histria (incluindo a da criana) tem um

    heri (ou um cobarde, mas de preferncia um heri, ou samos do gnero dramtico e entramos na

    stira, segundo Bettelheim). Os contos de fadas apresentam quase sempre dilemas existenciais, por

    exemplo: Era uma vez um rei que tinha trs filhos... Quando o rei j estava velho e fraco, pensando no

    seu fim, no sabia qual dos filhos deveria herdar o seu trono e, para se decidir, o rei d aos filhos uma

    tarefa difcil: o filho que melhor a desempenhar, ser rei depois da minha morte (incio de As trs

    penas, dos irmos Grimm). Diz Bettelheim: Isto permite que a criana enfrente logo o problema na sua

    forma essencial, ao passo que um enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de fadas

    simplifica todas as situaes. As suas personagens so definidas com clareza e os pormenores, a no ser

    que sejam muito importantes, so eliminados.

    O argumento de Bettelheim, com o qual no podemos concordar, que a forma simplificada

    dos contos de fadas se adequa percepo da criana, pois, segundo o autor, ela no capaz de

    compreender uma realidade ambivalente, mas capaz de compreender as formas simplificadas dos

    contos de fadas, cujos personagens no so ambivalentes (no choram e riem de uma mesma coisa,

    no so bons e maus ao mesmo tempo... etc.) mas so bons ou maus, estpidos ou inteligentes,

    trabalhadores ou preguiosos, belos ou feios enfim, heris ou cobardes sem qualquer meio-termo. A

    polarizao dos carcteres nos contos permite, segundo o psicanalista, que a criana saiba distingui-los

    claramente (coisa que no seria possvel se eles fossem desenhados imagem e semelhana da

    realidade), facilitando a identificao (com o bom, o inteligente, o trabalhador, o belo enfim com o

    heri). que as ambiguidades, diz Bettelheim, tm de esperar at que se tenha estabelecido uma

    personalidade relativamente firme, com base em identificaes positivas. Esperemos que cresam,

    portanto.

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    III

    O INDIZVEL DA LITERATURA

    Roland Barthes: figura ou a ambivalncia do fragmento

    A batalha da literatura precisamente um esforo para sair das fronteiras da linguagem; da

    margem extrema do dizvel que ela se estende; o apelo do que est fora do vocabulrio que move a

    literatura(2).

    Aquilo que move a literatura qualquer coisa que est fora do vocabulrio, fora das fronteiras

    da linguagem, e toda a sua batalha reside num esforo para sair destas fronteiras. A este indizvel, a isto

    que est nas margens da lngua, entre os signos e os acontecimentos, Barthes deu vrios nomes: a

    figura, o incidente, o no lisvel do texto. O Haku a forma de poesia que lhe d corpo. Trata-se de um

    quebra ou ruptura com o discurso. Em Fragmentos de Um Discurso Amoroso, Barthes diz que o Dis-

    cursos , originariamente, a aco de correr para aqui e para ali, so as idas e vindas, as tarefas , as

    intrigas . Todo o discurso uma fico. Aquilo que rompe o discurso, descontinuando-o, a figura:

    uma nuance no texto ou no discurso, determinada por uma certa finalidade afectiva; a figura

    fragmentria no sentido em que se d como um elo, uma zona de passagem, um intervalo entre estados

    de coisa.

    A lei moral, a lei de valor do lisvel, segundo Barthes, preencher as cadeias causais do

    discurso. O lisvel tende sempre para a sua forma completa e acabada, envolve sempre uma partida e

    uma chegada, um percurso determinado por signos:

    A completude: partir / viajar / chegar / ficar: a viagem est saturada. Acabar, preencher, unir,

    unificar, diramos que a exigncia fundamental do lisvel, como se um medo obsessivo o tomasse: o de

    omitir um ligamento. o medo do esquecimento que engendra a aparncia de uma lgica de aces: os

    termos e as suas aces so postos (inventados) de modo a se unirem, a se duplicarem, a criarem uma

    iluso de continuidade (...) Diramos que o lisvel tem horror do vazio. O que seria a narrativa de uma

    viagem em que se dissesse que se continua sem ter chegado, que se viagem sem ter partido onde

    nunca se dissesse que, tendo partido, se tinha ou no chegado? Essa narrativa seria um escndalo, a

    extenuao, por hemorragia, da lisibilidade (3).

    O lisvel o trabalho narrativo da memria, a inveno da continuidade: a nossa memria

    como fico.

    Barthes refere-se a qualquer coisa como uma impresso que se v, para a qual no h

    palavras, Les Heures (du jour): on le voit, pas de mots pour ces effets d'heures; c'est un pathos qui est

    entre hmra (jour comme limit) et bios (sentiment vital) e que, precisamente, justificam a existncia e a

    necessidade do poema. No haver palavras remete para um pathos que se situa a um nvel anterior (no

    sentido fenomenolgico de originrio) ou pelo menos diferente do nvel do signo. Estamos a esse nvel

    de que Proust tanto fala quando se refere nossa percepo como um receptculo de sensaes, ou

    que refere Bernard, nas Ondas de Virginia Woolf, quando diz: O meu encanto e o fluir espontneo e

    imprevisto das minhas palavras tambm a mim me deliciam. Fico espantado quando desvendo as coisas

    atravs das palavras, e verifico que observei infinitamente mais do que aquilo que consigo dizer .

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    Este tipo de acontecimento descrito, por Barthes, a partir do Haku, essa forma de poesia

    japonesa intensiva, que alcana o tempo numa modalidade intervalar essencial, precisamente por dar a

    ver a gnese do tempo, numa suspenso, numa passagem entre a realidade e a escrita um estado

    intervalar em que o que est ali j no a coisa vista, na natureza ou no mundo, mas tambm ainda

    no signo, palavra um espao-tempo (em japons, Ma), um intervalo. E nele que se produz

    sentido, esse sentido a que Bernard acede, no pela palavra enquanto puro signo, mas como que entre

    as palavras, numa torrente fluida e imprevista de pura expressividade material.

    No Haiku produz-se qualquer coisa como um tilt (5). aquilo a que Barthes chamou um

    cest a . Qualquer coisa que este autor descreve, na sua obra sobre a fotografia, como : Ce

    quelque chose a fait tilt, il a provoqu en moi un petit branlement, un Satori, le passage dun vide (6)

    () . Este tilt que provoca um Satori. O que Satori? aquilo a que, no Zen budista, pode ser

    aproximado daquilo a que os ocidentais traduziram por palavras vagamente crists: iluminao,

    revelao, intuio. Trata-se de uma suspenso da linguagem da instaurao de um vazio de

    sentido na linguagem. O Cest a de Barthes ento uma sbita manifestao espiritual: um modo de

    apario de um acontecimento imediatamente significante, fragmentrio e descontnuo.

    Duas caractersticas do Haku. Por um lado o carcter de apario, de quebra com a

    linguagem que acabmos de referir. Por outro, a ausncia nesta forma potica de sujeito. No que se

    refere primeira, interessante referir aqui a noo de epifania de James Joyce. Barthes sublinha uma

    conexo entre a epifania do escritor do Ulisses e a teologia da Idade Mdia, fundamentalmente, a de

    S.Toms. A epifania de Joyce, diz ele, uma sbita revelao da quididade (7) de uma coisa (whatness)

    (8). Daqui o seu parentesco com o Satori do Zen budista e do Haku.

    No que se refere ausncia do sujeito, voltemos ao Haku. O tempo do Haku um tempo sem

    sujeito: La lecture na pas dautre moi que la totalit des haku donc ce moi, par rfraction infinie, nest

    jamais que le lieu de lecture (9).

    A Estao, o Tempo que faz ou a Hora como individuaes e no como percepes de um sujeito.

    Barthes refere-se a Proust como o terico em acto da intensidade individual: Pour moi, la ralit est

    individuelle, ce nest pas la jouissance avec une femme que je cherche, cest telles femmes, ce nest pas

    une belle cathdrale, cest la cathdral dAmiens (10) . No do indivduo que estamos aqui a falar,

    de individuao. Ou seja, h como que uma passagem, precisamente, do individual para o particular:

    Cest la cime du particulier quclot le general , expresso de Proust que Barthes no se cansa de citar,

    o cume do particular que Barthes, precisamente utiliza como emblema do Haku.

    A individuao remete para qualquer coisa como uma heceidade. Em Mille Plateaux, Deleuze

    chama heceidades a esses acontecimentos singulares que existem em si, independentemente de qualquer

    objecto e de qualquer sujeito. Situam-se num plano que no o plano das formas, das substncias e dos

    sujeitos (o plano da representao), mas num plano de velocidades e de afectos (plano de composio

    ou de consistncia) em que o tempo o tempo do Aon: tempo no pulsado, que no fixa nada, tempo

    indefinido do instante - em que se d a simultaneidade entre aquilo que acabou de acontecer (que j

    no ) e aquilo que est para acontecer (que ainda no ). O tempo do Aon o tempo das heceidades.

    Uma heceidade um modo de ser diferente daquele de um sujeito, de uma coisa ou de uma substncia:

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    trata-se de uma existncia particular, com uma individualidade perfeita mas uma individualidade, como

    diz Deleuze, que no se confunde com a individualidade de um sujeito ou de um objecto. uma

    individualidade indefinida mas determinada: O indefinido como tal no marca uma indeterminao

    emprica, mas uma determinao de imanncia ou uma determinabilidade transcendental. O artigo

    indefinido no a indeterminao da pessoa sem ser a determinao do singular (11).

    Trata-se aqui de uma determinao de potncia de devir, de uma determinao de intensidade, de

    um grau de potncia de ser. So heceidades, por exemplo, uma estao, um vero ou uma hora do dia,

    que tm uma verdadeira individualidade, que no carece de nada, mas que no se confunde com um

    sujeito, por exemplo, com o sujeito que sente uma hora do dia. Virginia Woolf transmite melhor que

    ningum este tipo de acontecimentos: em The Waves somos constantemente trespassados por

    heceidades que no se distinguem de um sujeito que os percepcione, que se fundem num momento

    nico e insubstituvel de ser.

    Precisamente, o sujeito de uma tal percepo no um sujeito fixo, um cogito cartesiano, mas,

    como diz Nietzsche, o eu uma pluralidade de foras quase personificadas em que, tanto uma, como a

    outra ganham o aspecto do eu; deste lugar, ele contempla as outras foras, como um sujeito contempla

    um objecto que lhe exterior; um mundo exterior que o influencia e o determina. O ponto de

    subjectividade mvel (12).

    Este ponto fundamental: a subjectividade no deve ser negada, mas assumida como mvel,

    como um tecido ou um reservatrio de pontos mveis, como uma mutao descontnua de lugares. A

    individuao, como diz Barthes, ao mesmo tempo aquilo que fortifica o sujeito na sua individualidade,

    o seu quant moi e ao mesmo tempo e no extremo contrrio aquilo que desfaz o sujeito, que o

    multiplica e pulveriza .

    IV

    VIRGINIA WOOLF: UNIDADE OU FRAGMENTO?

    1. A ambivalncia da cena em Virginia Woolf: real e ficcional

    Num dos seus textos autobiogrficos, Virginia Woolf procura, ao mesmo tempo que a sua

    histria de vida, as formas literrias de captao do real, concluindo, aos poucos e poucos, que a

    captao de si mesma, no s da sua histria enquanto algo que se possa contar, mas de si mesma

    enquanto identidade que vive e que sente, talvez passe por qualquer coisa como uma construo

    ficcional.

    Em Virginia Woolf, os elementos constitutivos de uma cena so, na maior parte dos casos,

    movimentos interiores e no exteriores, ou seja, movimentos interiores conscincia de indivduos. Por

    outro lado, os indivduos em causa no esto sempre presentes na cena, ou seja, fazem parte da cena

    apresentada, quer pessoas que esto presentes naquele espao e tempo, quer pessoas que esto

    ausentes da mesma, sendo que, desta forma, se integram na prpria cena, acontecimentos de alguma

    forma secundrios, que a ligam constantemente a outros tempos e a outros lugares.

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    As cenas so construdas recorrendo a uma continuidade descontnua, se quisermos: os

    contnuos descritivos do personagem principal so geralmente perpassados por uma espcie de rasges

    subtis impresses fulminantes que invadem a cena, vindas de fora, funcionando como movimentos de

    disrupo ou interrupo : vejo pela janela algum passar l fora e este movimento ou este dado que se

    insere na cena, ao mesmo tempo que corta e interrompe a cena, insere-se na construo fragmentria

    da sua continuidade. por blocos fragmentrios que as cenas so construdas a partir da descrio

    das impresses de conscincia, ou seja, o carcter essencial da tcnica de Virginia Woolf que no so

    apenas descritas as impresses de um sujeito, de um indivduo ou personagem quer se trate de um

    personagem principal, como por exemplo, em To the Lighthouse (Mr. Ramsay) ou em Mrs. Dalloway (Mrs

    Dalloway), quer haja vrios ( The Waves) - mas reproduzem-se, na cena, as impresses de sujeitos

    mltiplos e que mudam frequentemente. A forma como geralmente nos apresentada uma cena dada

    num desdobramento de focos, numa multiplicidade de pontos de vista construda em rede e no

    aleatoriamente. Isto significa que o acesso que o leitor tem a uma personagem ( Mrs Ramsay, em To The

    Lighthouse; Mrs. Dalloway, em Mrs Dalloway, qualquer uma das personagens de The Waves) passa por

    um percurso que parece, de alguma forma, estranho ou estrangeiro conscincia que se pretende

    descrever mas, simultaneamente, constitudo precisamente por esses acessos que so esses vrios

    contedos que confluem para o nosso centro. Aproximamo-nos da realidade deste personagem a partir

    de uma multiplicidade de impresses experimentadas fora dele mesmo fora do espao e fora do tempo

    em que a cena se situa construindo-se um mecanismo radical de fuga em perspectiva e em rede que

    o que nos d o acesso fragmentado cena.

    Temos, ento, em Virginia Woolf, um dos exemplos mais pregnantes de um procedimento

    literrio fragmentrio, onde o cruzamento de dois mtodos de representao da conscincia - um

    unipessoal e outro pluripessoal tendem a construir uma rede de pontos de vista que trabalha, a partir

    de um centro ou de uma referncia, o desdobramento de pontos de vista e a sua sntese.

    2. Histrias feitas de pequenos nadas

    Virginia Woolf pe em cena acontecimentos mnimos, que no tm nada de espectacular e que

    parecem focados ao acaso: o acto de tirar as medidas de um brao, um fragmento de uma conversa

    com uma criada, uma chamada telefnica. As grandes mudanas, as reviravoltas da vida, - para j no

    falar das catstrofes so omitidas; por outro lado ainda, em To the Lighthouse, eles so apenas

    rapidamente mencionados, sem preparao nem desenvolvimento, de passagem, e por assim dizer

    meramente a ttulo de informao. Ou seja, se em escritores clssicos, como Flaubert, ou mesmo ainda

    Thomas Mann, ainda a estrutura cronolgica dos acontecimentos mais marcantes que determina a

    estrutura dos prprios romances, em Virginia Woolf, como tendencialmente no romance moderno,

    focam-se e relatam-se acontecimentos mnimos, pequenos nadas sem importncia ou, pelo menos,

    cuja relevncia no passa pela influncia que possam ter sobre a aco ou o destino dos personagens.

    Ora, para que servem estes relatos de acontecimentos sem importncia?

    Um acontecimento como o de tirar as medidas de um brao, em To The Lighthouse aparece

    como referncia puramente cartogrfica de um mapa cujo desenvolvimento no o discorrer causal de

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    um conjunto de aces de um nico personagem ou de um conjunto de personagens, de forma contnua

    e numa estrutura cronolgica, mas cuja funo o desdobramento de perspectiva. Trata-se de um

    acontecimento que no tem relevncia em si mesmo, se quisermos, mas que funciona como meio -

    passagem ou canal de acesso a um outro acontecimento, esse sim, geralmente, determinante. So

    meios e no fins em si mesmos: pontos de partida utilizados para o desdobramento de uma histria.

    3. Momentos de ser

    Descrever fragmentariamente pode ligar-se a uma convico realista: que o acesso a uma

    determinada realidade no passa necessariamente por uma descrio global, ordenada

    cronologicamente, que segue o seu objecto do incio ao fim, esforando-se por no omitir nada de

    exteriormente importante e, finalmente, dando especial relevo aos momentos de viragem da histria,

    para articular a intriga numa estrutura causal; mas que, em vez dessa suposta viso de conjunto,

    qualquer fragmento, qualquer circunstncia do quotidiano, tomada ao acaso, quer no espao quer no

    tempo, poder dar-nos a ver algo de mais essencial acerca dessa mesma realidade. a ideia de que um

    fragmento de uma determinada realidade, tomado ao acaso, contm o essencial dessa realidade,

    podendo por isso mesmo represent-la. Toma-se o todo pela parte (13).

    Um momento de ser descrito, por Virginia Woolf, no como um acontecimento do aqui e

    agora presente, mas como um acontecimento com uma fora de presena que ultrapassa os moldes de

    um tempo cronolgico. qualquer coisa, uma vida, que passa pela memria, mas que no a memria

    no sentido racional e consciente do termo, enquanto integrada num tempo cronolgico. Acontece ao

    indivduo ser separado, no seu dia-a-dia, da realidade, mas ele recebe, como nos diz Virginia Woolf,

    em raros momentos, um choque. Estes choques no so tidos sob a sua forma negativa, como em

    Freud, de no inscrio na conscincia (ainda que fosse necessrio ver a que nvel de conscincia se

    do, segundo Gilles Deleuze, seria um nvel embrionrio de conscincia), mas so antes tidos - numa

    forma prxima daquilo a que James Joyce chamou epifania - como expresses de algo real, por trs das

    aparncias. O choque pode ser descrito como epifnico, no sentido em que uma verdade transcendente

    percebida num relmpago, num flash de sensaes.

    Os momentos de ser, por vezes carregados com revelaes de uma intensidade

    surpreendente, so filtrados no seio das cenas, de dias e ocasies tpicos, descrevendo o ambiente fsico,

    as foras sociais, as relaes e paixes familiares e pessoais, que formam o eu exterior. Um momento de

    ser pode surgir, como um dia surgiu na experincia da prpria Virginia Woolf, de qualquer coisa

    aparentemente trivial, como ver uma flor e perceb-la como uma parte do grande todo. Interessa, por

    agora, referir, que um momento de ser tem, para Virginia Woolf uma funo de recognio, cujo valor

    independente do objecto que foi como que o desencadeador ou o catalisador.

    4. A narrativa como produo de identidade

    A concepo do eu ou da identidade aparece em Virginia Woolf como qualquer coisa em cuja

    forma, instvel e insubstancial, subsiste uma permanncia, uma permanncia de ser. O indivduo ou a

  • 76

    identidade individual aparece sob uma forma fluida e sempre mutvel, como um fluxo, e a mudana de

    forma, a cada momento, acontece num singular complexo de foras. O percurso da identidade parece

    ser orientado por um complexo de foras - interiores e exteriores.

    Se a autobiografia, em Virginia Woolf, tem explicitamente a ver com a procura de uma

    identidade narrativa, no seu conceito de momentos de ser que encontramos o esforo de conciliao

    de um passado e de um presente - num tecido ou num entrelaamento de planos e no numa lgica de

    sucessividade linear.

    Ser esta rede de conexes, este entrelaamento de mapas passado e presente, este tecido

    sempre em vias de se fazer que faz uma pessoa, uma personalidade individual? Neste caso, a identidade

    aparecer como um fluxo, um fluxo contnuo, que tem a ver com aquilo que insiste ou que persiste, mas

    que insiste e persiste no seio de uma contnua transformao, de um contnuo fazer-se e refazer-se : I

    am made and remade continually. Different people draw different words from me .

    A esfera da identidade, ainda que nos fuja continuamente e se d ao autobigrafo como uma

    esfera essencialmente no fixvel e no agarrvel, parece no entanto pairar sobre ele: no possvel

    tocar-lhe, mas por vezes tem-se dela uma imagem fugaz, ainda que para isso se tenha de entrar na

    turbulncia quotidiana, no continuum de momentos de no-ser dos dias e na ordem cronolgica dos

    factos mundanos da superfcie.

    O momento de ser tido como um choque, mas o seu significado s se mostra quando posto

    em obra. mesmo preciso, como diz, escrever sobre uma experincia, para que ela ganhe uma

    espessura de realidade. Entra em jogo o papel do elemento reflexivo, pela escrita.

    A autobiografia - querer juntar ou conciliar as duas identidades - Virgnia do passado e Virgnia do

    presente um esforo de configurao em que no entra apenas em jogo a memria, mas qualquer

    coisa como uma capacidade de composio e de descrio. Entra em jogo a capacidade de descrever

    uma cena, como ela diz, ou de a construir, em fico. Interessa perceber que a produo de uma cena,

    tal como Virginia Woolf a descreve, tem sempre a ver com um acto produtor de sentido que o mesmo

    tipo de acto quer se trate de uma cena ficcional, quer se trate de uma cena rememorativa. Trata-se

    sempre, num caso e no outro, de dar sentido a um conjunto de peas soltas, conferindo-lhes um nexo,

    numa composio.

    V

    PATCHWORK INFINITO

    1. A escrita americana e o fragmentrio inato

    Num texto sobre Walt Whitman (14), Deleuze cita o poeta americano, que refere como prprio

    da literatura americana, no o fragmentrio, mas a espontaneidade do fragmentrio. interessante

    pensar que talvez o cinema clssico americano (cinema de Hollywood, a partir dos anos 20) tenha

    originariamente desenvolvido uma escola de narrativa orgnica numa espcie de contraponto s suas

    prprias razes culturais. Sabemos que a Escola de Syd Field, Mckee, Bordwell, etc., foram buscar as

  • 77

    bases do scripwriting Potica de Aristteles, portanto Grcia, bero do Belo orgnico. Ou seja, o

    cinema clssico americano foi buscar precisamente aquilo que no tinha o sentido da totalidade

    orgnica ou da composio abdicando do seu prprio gesto (em Griffith, no Intolerance, encontramos

    ainda o sentido espontneo do fragmentrio, que se perde medida que a mquina de fazer filmes se

    torna menos americana, mais culta...). Os Europeus tm um sentido inato da totalidade orgnica ou da

    composio, mas devem adquirir o sentido do fragmento e no podem faz-lo seno a partir de uma

    reflexo trgica ou de uma experincia do desastre. Os Americanos, pelo contrrio: tm um sentido

    natural do fragmento e aquilo que devem conquistar o sentimento da totalidade, da bela composio.

    Esta relao inata ao fragmento tem a ver com aquilo que foi a prpria constituio da Amrica ,

    conjunto de partes heterogneas, feita de Estados federados, de vrios povos imigrantes uma coleco

    de fragmentos, um mundo feito de partes heterogneas: patchwork infinito feito de amostras de casos

    singulares, no totalizveis. A lei, a relao entre os diversos casos uma lei de fragmentao e no de

    conjunto. No que se refere escrita, ela erige-se como a fora de uma minoria: era preciso construir

    uma nova lngua, romper com a lngua inglesa e fazer irromper uma lngua dentro da lngua, uma lngua

    estrangeira, como diz Deleuze. Se a natureza, a histria e a cultura americana decorrem de uma

    aglomerao de partes, a relao entre estas partes o sentido no decorre de um qualquer todo,

    interior ou essncia, mas do exterior. Encontramos um movimento para o exterior na literatura anglo-

    americana:

    (...) A literatura anglo-americana no pra de apresentar essas rupturas, essas personagens que

    criam a sua linha de fuga, que criam por linhas de fuga. Thomas hardy, Melville, Stevenson, Virginia

    Woolf, Thomas Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Krouac. Neles, tudo partida, devir, passagem,

    salto, relao com o fora. (...) (15) Esta linha de fuga a linha nmada, mas ateno, o nmada no

    um viajante: as fugas podem fazer-se na imobilidade, como diz Deleuze, e as grandes viagens sem se

    sair do lugar.

    A Amrica do incio do sculo XX est cheia de escritores americanos que fazem parte de um

    movimento que define um territrio em construo movimento de desterritorializao e territorializao.

    Krouac (como a maior parte dos escritores, descendente de imigrantes) um deles: On the Road um

    reflexo do sentimento niilista e do nomadismo inato prpria cultura americana (16).

    Voltando ideia de Deleuze e diferena entre europeus e americanos, podemos dizer que o heri

    com um itinerrio definido, o heri da viagem inicitica, no um americano, mas um Europeu. O que

    aconteceu na histria do cinema americano, foi importar-se uma estrutura narrativa definida h sculos

    pela tradio europeia para a fazer funcionar em termos industriais, e funcionou. O Hollywood movie

    como uma espcie de falso self da Amrica , construdo devido a uma falha identitria, que de tanto

    viver o papel se confundiu com ele. Diramos, antes, que o autntico heri americano uma espcie de

    o anti-heri (melhor seria dizer a-heri mas para distino, que importava aqui clarificar, o tempo no

    chega): Dean, pela estrada fora, que procura um elo que o agarre vida, renunciando a qualquer

    passado ou futuro e a qualquer poder vigente: beat generation; easy ryders conquista da liberdade na

    estrada, longe das cidades e da civilizao. O hroi sem percurso nem identidade definida, o hroi

    falhado, perdido e cansado, que procura uma histria qualquer, um passado qualquer e um futuro

    qualquer, mas que s encontra o presente: o heri dos filmes de Jim Jarmusch.

  • 78

    2. Caminhos que no levam a lado nenhum

    Em Jarmusch, o movimento de deriva - ser arrastado pela corrente, sonhar acordado, ao sabor

    do vento, numa espcie de gesto intencional de abandono, de flutuao , na verdade, algo de

    essencialmente aparente, que faz talvez parte de um certo imaginrio, prprio ao jazz, improvisao,

    produzindo trajectos ldicos, mas muitas vezes bloqueadores, compressores.

    Permanent Vacation (1980) o primeiro filme de Jarmusch, um exerccio escolar, em que nos

    apresenta - num imaginrio algures entre a fico e o documentrio - a deriva: (...) People I know just

    call me Allie and this is my story or part of it. I don't expect it to explain all that much, but whats a story any

    way except one of those connected dots drawings that in the end forms a picture of something. Thats

    really all this is. Thats how thinks work for me. I go from this place, this person to that place or person.

    And you know, it doesnt really makes that much difference () and to me those people Ive known are

    like this series of rooms, just like all the places where Ive spent time. You walk in for the first time curious

    about this new room: lamp, T.V, whatever, and then after a long, the newness is gone, completely, and

    then theres this kind of dread, kind of creeping dread. You probably dont even know what Im talking

    about. But any way, I guess the point of all this is that after a wile, something tells you, some voice speaks

    to you, and thats it time to split, go some place else. People are gonna be basically the same, or maybe

    use some different kind of refrigerator or toilet or something. But this thing tells you that you have to start

    the drift .

    O que define os personagens dos filmes de Jarmusch um percurso errante e indefinido, sem

    coordenadas predeterminadas. H no entanto uma forte presena do incidente, do pequeno

    acontecimento, do detalhe, que se faz sentir e persistir em certas zonas, ao longo do trajecto e que

    obriga a um tipo de movimento (ou ento, de imobilidade extrema) muito particular: no tanto o

    movimento que conta, mas as rupturas, as viragens, as idas e vindas. preciso manter uma linha

    virtualmente mvel.

    A viagem inictica do heri (tal como foi definida por Campbell, em "The Heroe with a Thousand

    faces") caracteriza-se antes de mais por uma necessidade de conquistar qualquer coisa: o clice

    sagrado, a honra, a liberdade de um povo ou de uma nao, e esta necessidade passa por um

    confronto com foras antagonistas definidas e o itinerrio universal do heri, passa por um trajecto

    definido: separao-iniciao-retorno, a viagem do heri errante americano no tem destino marcado.

    O heri errante no exclusivo do cinema de Jarmusch, nem tampouco do road-movie

    americano. A nouvelle-vague, como sabemos, explorou este tipo de itinerrio, nomeadamente,

    rompendo com a homogeneidade do espao narrativo clssico, necessria determinao de um

    percurso. Godard rompe com este espao, (so inmeros os exemplos). Em bout de souffle Poiccard

    um anti-heri em fuga, um lutador, que acredita no amor e na liberdade mas que no livre. Os anti-

    heris dos filmes de Jarmuch so diferentes: Parker, de Permanent Vacation no acredita em nada de

    especial, no vai para lado nenhum em particular, nada o surpreende - a necessidade de deriva domina-

    o. Uma deriva diferente da que encontramos em On The Road, de krouac, aparentemente mais

    passiva, que vai permitir o aparecimento de breves encontros singulares, acontecimentos fortuitos, que

    no participam minimamente no desenvolvimento de nenhuma histria.

  • 79

    O heri dos filmes de Jarmusch no tem histria e um ser completamente alheio histria. No tem

    nenhuma histria a contar quando o filme comea, nem quando o filme acaba. Sentimos uma

    inquietante estranheza ao simpatizar com Parker, porque no sabemos com quem que simpatizamos e

    estamos habituados a saber. O facto de Parker no ter histria faz dele uma espcie de annimo ou de

    homem sem nome com quem o processo narrativo clssico de identificao com o heri falha

    totalmente.

    3. Histrias sem fim

    As histrias de Virginia Woolf so construdas como histrias sem fim: histrias em que parece

    no se passar nada de especial em termos de intriga ou em que, de facto, no nos dada a ver uma

    intriga, mas sempre uma srie de acontecimentos, aparentemente desprovidos de significado. A narrativa

    no avana de plot em plot (17), numa lgica de causa-efeito, ela no avana propriamente, se por

    avano entendermos um percurso baseado numa linha cumulativa de pontos ligados por partes que se

    percorrem como etapas, em vista de uma meta. A narrativa, na escrita de Virginia Woolf caracteriza-se,

    por um lado, por um movimento contnuo de vai-e-vem, ondulao que modula a linguagem, num

    processo que d a ver a formao tanto da linguagem, como da rede complexa de acontecimentos e

    suas conexes. A situao e /ou situaes acontecem ali, no so dadas anteriormente como ponto de

    partida. Por outro lado, esta narrativa, carateriza-se tambm por uma plurilinearidade ou polifonia que

    rompe com qualquer unidade de sujeito. Por polifonia devemos, antes de mais, entender um ritmo que

    se constri com 'muitos' e no apenas com 'um' personagem. Trata-se de uma narrativa cujo devir ou

    fluxo que a mantem algo que passa de personagem a personagem, numa srie de relaes de contra-

    ponto, sendo que no h uma tomada de posse desse movimento por nenhum deles em particular,

    mesmo porque se trata de um fluxo que no se pode agarrar ou possuir. Desta impossibilidade nasce a

    constatao, em The Waves, da dificuldade de definir um sujeito.

    No a situao que cria um movimento, uma aco e uma reaco, mas a partir de uma

    sensao excepcional, de uma impresso momentnea, ou de um acontecimento qualquer que se cria a

    situao. Gilles Deleuze fala precisamente deste tipo de imagem, quando se refere ao burlesco de

    Chaplin, por exemplo, que j um tipo de imagem que se afasta da imagem-aco. Entre a imagem-

    percepo e a imagem-aco, teramos um outro tipo de imagem: imagem-afeco, em que a situao

    vem depois e no antes. A situao criada ali, nossa frente, como que por um fluxo varivel, algo

    nmada, de acontecimentos, mas efectivamente criada.

    Tambm em Faces (1968), de John Cassavetes, podemos ver, de forma evidente e ao longo de

    todo o filme, a expectativa face s situaes, estampada nos rostos. O trajecto do filme construdo

    tendo sempre como pano de fundo a ausncia de uma situao definida e o suspense gerado a partir

    da sensao de que, de uma dada aco, inmeras possibilidades de situaes podem surgir. Est-se

    num processo de devir, num fluxo contnuo que no est sob a gide de um horizonte de finalidade, mas

    cujas viragens, feitas aqui com golpes violentos (de risos, lgrimas, gritos, olhares, cortes brutos da

    montagem) criam um jogo de intensidades, de onde nasce o seu movimento particular. De facto, a linha

    que o filme traa no desenha propriamente um fim, mas caracteriza um meio particular, o de Faces, e

  • 80

    suas leis de formao. Sem incio ou fim, o filme de Cassavetes vive no inacabamento, no s a prpria

    composio (todo), mas cada pedao (todo). Esta abertura ou 'estar sempre em vias de' permite

    configuraes de sentido totalmente alheias s da narrativa clssica. H, nos filmes de Jarmusch, para

    voltarmos a ele, uma espcie de monotonia instalada face qualquer situao, uma inexpressividade

    radical (que toca a estupefaco) estampada nos rostos (os rostos do casal de japoneses, em Mystery

    Train, 1989) que revela - por mais que se tente o movimento oposto - uma natureza inata para a viagem

    sem partida ou chegada marcadas. A ausncia de coordenadas espacio-temporais que balizem um

    trajecto facilmente perceptvel , no caso deste filme, representada por um cenrio de espaos

    completamente vazios (tornando-se mesmo inverosmil). Jarmusch cria aquilo a que Deleuze chamou um

    espao qualquer (18).

    4. Percursos

    William James, filsofo cujo pensamento ressoou no de Gilles Deleuze, concebe o pensamento

    como tendo aquilo a que ele chama um percurso ambulatrio. H uma diferena entre relaes

    saltatrias e relaes ambulatrias por exemplo, a diferena saltatria, pois salta de um termo a

    outro imediatamente; mas a distncia no tempo ou no espao, por sua vez, feita de partes

    intervenientes de experincia, atravs da qual deambulamos em sucesso. O pensamento ambulatrio

    de William James descreve o saber, como ele diz, tal como ele existe na sua forma concreta, ao

    contrrio de um pensamento saltatrio que apenas descreve os resultados abstractos de um pensamento.

    Ambulatrio significa mover-se de prximo em prximo, de maneira a abarcar de forma total

    ou aproximada a ideia, atravs de sucessivas ligaes (links). Isto significa que o modo como se

    desenvolve o pensamento passa por um processo contnuo de ligao de fragmentos. Temos, por um

    lado, um elemento produtor fundamental: a linha ou o fluxo de conscincia, que se revela ou exprime ao

    mesmo tempo que se desenha ou produz e, por outro lado, o fragmento pois a linha constituda por

    ligaes ou conexes entre fragmentos. A conscincia como fluxo contnuo de fragmentos interligados

    fluxo sempre em movimento, varivel e vibratrio. O que o fragmento? Qual a sua matria? As

    percepes, as emoes e os pensamentos. O fluxo de conscincia ser, ento, uma espcie de desfile

    de percepes, emoes e pensamentos fragmentados essencialmente heterogneos nos seus motivos,

    ainda que sejam homogneos no que respeita s suas condies de produo: o mesmo fluxo que o

    produz ou o mesmo fluxo que eles produzem. Esta linha contnua e homognea, feita de uma

    heterogeneidade de conexes entre fragmentos, faz lembrar a linha nmada que define, para Deleuze, o

    devir do pensamento.

    O pragmatismo americano, definido por Deleuze como um patchwork infinito, aproxima-se

    ento do tipo de noo de fragmento que aqui procuramos: o mundo como conjunto de partes

    heterogneas: patchwork infinito ou parede ilimitada de pedras secas (...) O mundo como amostragem :

    as amostras (spcimen) so precisamente singularidades, partes notveis e no totalizveis que se

    destacam de uma srie de ordinrios. Amostras de dias, specimen days, diz Whitman. Amostras de casos,

    amostras de cenas ou de vistas (scenes, shows ou sights) (19).

  • 81

    Como refere Deleuze, ainda no texto acima citado, os fragmentos so granulaes, ou seja,

    formaes que tm uma singularidade notvel e que ganham corpo. E ainda que seleccionar esses

    fragmentos, os casos e as cenas menores seja mais importante que toda a concepo de conjunto, no

    se abandona a ideia de um todo enquanto consistncia imanente, mas apenas a ideia de um Todo

    enquanto organismo, cujas partes funcionam precisamente como partes totalizveis (parcialidades cujo

    sentido est ausente). Deleuze exprime-se assim, relativamente a esta convergncia:

    A Natureza no forma, mas processo de pr em relao: ela inventa uma polifonia, ela no

    totalidade mas reunio, 'conclave', 'assembleia plenria'. A Natureza inseparvel de todos os processos

    de comensalidade, convivialidade, que no so dados preexistentes, mas que se elaboram entre vivos

    heterogneos de maneira a criar um tecido de relaes mveis, que fazem com que a melodia de uma

    parte intervenha como motivo na melodia de uma outra (a abelha e a flor). As relaes no so interiores

    a um Todo (indivduo enquanto Eu: identificao, Mimesis), o todo (a unidade) que decorre das

    relaes exteriores (multiplicidade) num determinado momento, e que varia com elas(20).

    NOTAS

    1. Bruno Bettelheim, Psicanlise dos Contos de Fadas, Traduo de Carlos Humberto da Silva,

    Bertrand Edirora, Lisboa, 2003

    2. Italo Calvino, Ponto Final, Traduo de Jos Colao Barreiros, 1995, Teorema, Lisboa

    3. Roland Barthes, Oeuvres Compltes, Tome 2, Seuil, 1994, S /Z

    4. Virginia Woolf, As Ondas, Traduo de Francisco Vale, Relgio Dgua , Lisboa

    5. Roland Barthes, Op. Cit

    6. Idem, La Chambre Claire , Ed. Seuil-Cahiers du Cinma

    7. Do latim quiditas, aquilo que uma coisa ; este conceito foi desenvolvido por So Toms de Aquino.

    8. Roland Barthes, La Prparation du Roman I et II Op. Cit.

    9. Roland Barthes, lempire des signes, Flammarion, Genve, 1970

    10. Roland Barthes, Op. Cit., citao p. 26: Proust, Lttre Daniel Halvy, 1919, Kolb, Paris, Plon,

    1965

    11. Gilles Deleuze, Limanence, une vie, PHILOSOPHIE 47, Minuit, Paris, 1995

    12. Citao de Roland Barthes: Nietzsche, Vie et Verit, anthologie de textes choisis par Jean Granier,

    Paris, Puf, coll. Sup , 1971

    13. Segundo Euerbach, os autores modernos que preferem tirar partido da representao de alguns

    acontecimentos triviais, que aconteceram num pequeno nmero de horas ou de dias, em vez de

    mostrar na sua totalidade e na ordem cronolgica uma sucesso contnua de acontecimentos

    exteriores, (...) so guiados (mais ou menos conscientemente) pelo sentimento de que impossvel

    representar de uma maneira verdadeiramente completa uma srie de acontecimentos exteriores,

    fazendo surgir dos mesmos os seus elementos essenciais; estes autores hesitam em impor vida,

    abordagem que dela se faa, uma ordem que a prpria vida no possui .

    14. Deleuze, Gilles, Critique et Clinique , Puf, Paris, 1993, cap. VIII

    15. Deleuze (em colaborao com Claire Parnet), Dialogues , Flammarion, 1977, p. 46. E um pouco

  • 82

    mais frente: Os franceses so demasiado histricos, gostam demasiadamente das razes (...).

    16. Lembras-te Sal, da primeira vez que fui para Nova Iorque e queria que me explicasses Nietzsche?

    Ests a ver h quanto tempo foi isso? Est tudo bem, Deus existe, temos a intuio do tempo. Desde

    os gregos antigos que todas as pevises esto erradas. No se chega l com a geometria e

    sistemas geomtricos de raciocnio. tudo isto!

    17. Qual a tua estrada p? A estrada dos tipos santos, a estrada dos tipos doidos, a estrada do

    arco-ris, a estrada do aqurio, qualquer estrada. a estrada para toda a parte, para toda a gente.

    Onde quem como? (...) Pois eu te digo Sal, sem papas na lngua, onde quer que viva, a minha

    mala h-de sempre estar debaixo da cama, estou sempre pronto para me ir embora ou para ser

    expulso. Decidi no ter controlo nenhum sobre nenhuma coisa. (...) Por isso prosseguiu Dean eu

    sigo a minha vida para onde ela me levar .

    18. A utilizao da palavra inglesa plot aqui, em vez de intriga, remete para o conceito de plot

    desenvolvido no contexto do "modelo americano" de escrita para cinema, tal como foi definido, por

    exemplo, por Syd Field ( "ScreenPlay: The Foundations of Scriptwriting", 1982 e " The Screenwriter's

    Workbook", 1984) e por Robert Mckee ( "Story: Substance, Structure, Style and the Priciples of

    Screenwriting", 1997).

    19. Gilles Deleuze define o espao qualquer como um espao cuja lei a fragmentao. Trata-se

    da construo de um espao pedao a pedao em que a percepo tctil predomina e conduz

    o movimento, como as mos no Pickpocket (1959) de Bresson. Ou a forma fragmentada como nos

    dada a cela de Un Condamn Mort C'Est Echapp (1956), no por planos de conjunto, mas

    sempre apreendida sucessivamente por raccords que destroem qualquer ligao entre a cela e o

    resto do espao, o resto do mundo. Desenquadramento do espao. Os amplos espaos

    fragmentados da gare de Lyon, no Pickpocket, transformados ou perspassados pelos afectos e pelos

    gestos de Michel. um espao sem coordenadas definidas, que sai de qualquer conexo mtrica

    um espao desmedido, enorme, mesmo se for completamente isolado. Trata-se de um espao

    qualquer , indeterminado, no-referencial, descentrado, inacabado. Mas no um espao

    universal, ele completamente localizado e o que o define a sua singularidade. O espao-

    qualquer-de-Bresson. Com Jarmusch uma nova variante do espao qualquer produzida. A

    relevncia deste no-lugar, se quisermos, o facto de permitir o surgimento daquilo a que

    chammos, noutro contexto, fragmentos livres.

    20. Gilles Deleuze, "Critique et Clinique", Minuit, Paris, 1993, p. 76, traduo minha

    21. Idem, p. 79, traduo minha

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