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Revista de DIREITO, DO ISSN 1415-7705 CONSUMIDO:R Ano 19 • n. 74 • abr.-jun./2010 Publicação oficial do BRASILCON Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor DE ,JUSTiÇA D r- ... r " BIBLIOTECA EDITORA f1iil REVISTA DOS TRIBUNAIS

1 - A Conexidade No Contrato de Consumo Financiado - Teoria Sistêmica

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  • Revista de DIREITO, DO

    ISSN 1415-7705

    CONSUMIDO:R Ano 19 n. 74 abr.-jun./2010

    Publicao oficial do BRASILCON Instituto Brasileiro de Poltica e Direito do Consumidor

    TR~BUNA.l DE ,JUSTiA Dr- ~;'in D:)u~Lo l~- \..'b'~ ~ ... r " v--~.~ BIBLIOTECA

    EDITORA f1iil REVISTA DOS TRIBUNAIS

  • 3 A conexidade no contrato

    de consumo financiado: a maximizao da proteo do consumidor no horizonte

    da teoria sistmica

    FELIPE KIRCHNER

    Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Defensor Pblico no Estado do Rio Grande do Sul. Dirigente do Ncleo de Defesa do Consumidor e de Tutelas Coletivas da DPEIRS.

    REA oo DIREITO: Consumidor; Civil; Comercial/Empresarial

    REsuMo: O presente ensaio objetiva deli-near os pressupostos tericos para o re-conhecimento da conexidade existente entre os pactos que estruturam a opera-o econmica unificada da contratao de consumo financiada, procurando es-miuar os efeitos decorrentes do reco-nhecimento desta vinculao contratual no paradigma da teoria sistmica, o que permitir a repercusso das vicissitudes de um contrato no conexo, a oposio de excees entre os pactos e o manejo de ao direta em matria de responsa-bilidade. Embora objetive proteger os hipossuficientes da conexidade, o ensaio aceita como premissa o fato de que a contratao conexa e/ou em rede, muito embora possa representar ameaa li-berdade do sujeito mais fraco, atende aos interesses de todos os contratantes. As-sim, a pesquisa tem como preocupao direta definir precisamente as condies pelas quais possvel a identificao da conexidade contratual, evitando que a busca pela maximizao da proteo do consumidor se transforme em fator de de-sequilbrio das relaes comerciais. PALAVRAS-CHAVE: Contrato de consumo -Contrato de financiamento- Conexidade - Redes contratuais- Teoria sistmica.

    AosrRAcr: The present essay aims to outline the theoretical background for the recognition of the connectivity between the pacts that structure economical operation unified consumption financed hiring, seeking scrutinize the effects of recognition of this binding contract on the paradigm of systemic theory, which will rebound the vicissitudes of a contract related to the opposition of exceptions between the pacts and the handling of direct action on liability. Although objectified protect inapt connectedness, this essay accepts as a premise the fact that hiring in connection, but it may represent a threat to freedom of the subject weaker, serves the interests of ali contractors. Thus, the research has direct concern to precisely define the conditions under which it is possible to identify the connectivity contract, avoiding the search for the maximization of consumer protection becomes a factor of imbalance in trade relations.

    KEvwoRos: Consumer Contract- Contract Financing - Connectivity - Networks -Systemic Theory.

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    SuMARio: 1. Introduo - 2. Os pressupostos tericos da conexida-de contratual: 2.1 Definies dogmticas acerca da conexidade; 2.2 Ambientao doutrinria da teoria sistmica; 2.3 Efeitos da cone-xidade contratual no mbito da teoria sistmica- 3. O fenmeno da conexidade no contrato de consumo financiado: 3.1 Efeitos da conexidade no contrato de consumo financiado; 3.2 Acolhida juris-prudencial do marco terico sistemtico; 3.3 Fundamento normativo dos efeitos da conexidade no contrato de consumo financiado - 4. Concluso- 5. Referncias bibliogrficas.

    1. INTRODUO

    O presente ensaio objetiva delinear os pressupostos tericos para o reconhecimento da conexidade existente entre o contrato de consumo e o contrato de mtuo feneratcio que lhe financia, bem como esmiuar os efeitos decorrentes do reconhecimento desta vinculao contratual. O paradigma dogmtico escolhido a chamada teoria sistmica1 - tendo como pressuposto o conceito de obrigao como processo2 -, por meio da qual pretendo demonstrar que, no caso do contrato de consumo financiado, coexistem uma pluralidade de relaes jurdicas conexas por engendrarem uma operao econmica unificada.

    O problema prtico aqui enfrentado bastante especfico. Enten-dendo que a contagiao de invalidades entre contratos ocorre apenas quando verificada uma situao de acessoriedade (relao interna unila-

    1. A escolha no aleatria. Alm da teoria argentina se aproximar mais da realidade brasileira (de nosso mundo latino-americano), tem abrangncia terica mais ampla do que o paradigma italiano dos contratos coligados e francs dos grupos de contratos (KoNDER, 2006, p. 127-128).

    2. A concepo da obrigao como processo, que foi suscitada por Karl Larenz e desenvolvida nacionalmente por Clvis do Couto e Silva, entende a relao obrigacional como um sistema de processos (cuja unidade no se esgota na soma dos elementos que a compem); uma totalidade orgnica de cooperao (onde credor e devedor no ocupam mais posies antagnicas) que se encadeia e se desdobra, temporariamente, em direo ao adimplemento ( satisfao dos interesses do credor), que atrai e polariza a obrigao, abrangendo "todos os direitos, inclusive os formativos, pretenses e aes, deveres (principais e secundrios dependentes e independentes), obrigaes, excees, e ainda posies jurdicas" (Couro E SILVA, Clvis do. A obrigao como processo. So Paulo: Bushatsky, 1976, p. 5).

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    teral prevista na segunda parte do art. 184 do CC/2002),3 o pensamento clssico indica que quando o consumidor "A" contrata a compra de determinado produto ou prestao de servio do fornecedor "B", atravs de financiamento concedido (ou a ser concedido) por "C", existem dois contratos independentes, onde a inexecuo de um no afeta a validade ou eficcia do outro. Esta viso superficial do fenmeno contratual impe que: (a) no havendo a entrega da mercadoria ou a prestao do servio, o consumidor "A" ainda estaria obrigado a arcar com o pagamento do crdito concedido; (b) no havendo a concesso do crdito, o contrato de consumo se mantm hgido, podendo ser exigido por "B".

    Atravs dos pressupostos tericos que sero delineados, ser possvel desvelar a relao interna bilateral existente na contratao de consumo financiada, muito embora o consumidor possa ter contratado com sujeitos econmicos diversos, como costuma ocorrer. O reconheci-mento da existncia de uma nica operao econmica engendrada pela complexa estrutura contratual4 abre novas possibilidades ao operador jurdico, permitindo a repercusso das vicissitudes de um contrato no conexo, a oposio de excees entre os pactos e o manejo de ao direta em matria de responsabilidade.

    O estudo incorpora os novos matizes da teoria do contrato, alte-rando a perspectiva de anlise do negcio jurdico, que passa de uma leitura isolada e individualizada das pactuaes privadas, para a consi-derao do conjunto de pactos vinculados, enquadrando a contratao consumerista financiada no conjunto de uma nova realidade de mercado, que impe novos desafios teoria contratual clssica.5 Nesses termos,

    3. "Art. 184. (. .. )a invalidade da obrigao principal implica a das obrigaes acessrias, mas a destas no induz a da obrigao principal."

    4. Como a conexidade de vnculos nem sempre est visvel e aparente, podendo se ocultar sob o manto de um agir autnomo e independente, neste ensaio defenderei a necessidade do operador focar o negcio, e no mais o contrato, quando da anlise das relaes comerciais. Deve o operador verificar que a contratao por conexidade visa a construo de um pacote de produtos e servios que sugere a noo de operao econmica que ser aqui trabalhada (LoRENZETTI, Ricardo Luis. Esquema de uma teoria sistemica del contrato. RDC 33/52-53. So Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2000).

    5. Salienta Ronaldo Porto Macedo Junior que as mudanas econmicas ocorridas no sculo XX, especialmente com o advento da produo de massa, introduziram novas dimenses e exigncias que passaram

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    este ensaio alcana a verificao do papel dos agentes econmicos no contexto social e comercial contemporneo, indissocivel da economia de mercado, da cultura do consumo e dos novos parmetros de produo e distribuio de produtos e servios.

    Embora possua o ntido objetivo de proteger os hipossuficientes da conexidade,6 o ensaio contempla duas preocupaes que merecem destaque. A primeira delas, de ordem terica, a busca pela definio precisa das condies pelas quais possvel a identificao da conexi-dade contratual, demarcando as possibilidades de utilizao da teoria sistmica e evitando, assim, que a busca pela maximizao da proteo do consumidor se transforme em fator de desequilbrio das relaes comerciais. A segunda, que deriva da anlise do contexto econmico, a aceitao de que a contratao por meio de contratos conexos7 e/ou mediante a formao de redes,8 muito embora possa representar ameaa

    a desafiar os princpios contratuais clssicos e a racionalidade neles pressuposta (MACEDO JuNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e direito do consumidor. So Paulo: Max Limonad, 1999, p. 50). Jorge Mosset Iturraspe explicita os seguintes processos dialticos que interessam a temtica ora em exame: empresa e consumidor; mercado e direito; lucro e tica; regulao e desregulao (MossET lTuRRASPE,jorge. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999, p. 131).

    6. MossET lruRRASPE, 1999, p. 9. 7. A matria contemplada sob diversos termos no direito comparado:

    contratos coligados (contratto collegato) no direito italiano e portugus; contratos conexos no direito espanhol, grupos de contratos (groupes de contrats) no direito francs; contratos ligados (linked contracts) na common law; ou contratos em cadeia ou redes contratuais no direito argentino (embora este ltimo termo, em meu sentir, designe fenmeno com peculia-ridades prprias) (MOSSET ITURRASPE, 1999, p. 14-16; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. So Paulo: Ed. RT, 2003, p. 127-129; ENEI, Jos Virglio Lopes. Contratos coligados. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro 132/112-113. So Paulo: Malheiros, out.-dez. 2003). As peculiaridades de cada sistema jurdico no se resume nomeclatura do fenmeno, alcanando os objetivos e concluses de cada construo terica. Exemplificativamente, pode-se citar a nfase da doutrina italiana na repercusso de invalidades e ineficcias, enquanto os estudos franceses enfocam mais a eventual mitigao do princpio da relatividade dos efeitos dos contratos (KoNDER, 2006, p. 113-114).

    8. Necessrio apresentar algumas definies das espcies de contrataes afeitas conexidade, posto que a matria no encontra tratamento

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    a liberdade do sujeito mais fraco da relao contratual (seja ele o consu-midor ou o parceiro empresrio),9 atende aos interesses dos dois polos

    unssono na doutrina. Primeiro, nos contratos mistos se renem, em um mesmo pacto, elementos de dois ou mais contratos, com uma causa econmica una e diversa dos contratos singularmente considerados, que perdem a sua individualidade. Segundo, nos contratos coligados ou conexos h a unio de pactos estruturalmente diferenciados e que mantm suas individualidades estruturais, a qual se d em razo da existncia de um nexo (econmico, funcional, institucional e/ou sistemtico) entre os mesmos, o que, em uma perspectiva socioeconmica, diz com o reconhe-cimento de que todos os contratos engendram uma mesma operao econmica ou processo de produo. Terceiro, nas redes de contratos se configura a coordenao sistemtica de contratos coligados ou conexos, visando organizar cadeias de produo ou de fornecimento de produtos e servios ao consumidor, fulcrada na cooperao que visa baixar custos, diminuir riscos e aumentar a eficincia (produtiva e de vendas) das partes contratantes, o que se constitui na causa sistemtica ou supracontratual da pactuao. Quarto, os contratos relacionais ou de longa durao so aqueles que respondem as caractersticas do modelo relacional proposto por Ian Macneil (longa durao, transaes contnuas, abertura, procedi-mentalidade, alta exigncia de relaes primrias e de cooperao e solida-riedade no curso do cumprimento), e embora no se confundam, necessa-riamente, com os contratos coligados (pois no pressupem a existncia de pactos vinculados, o que ocorre, por exemplo, com o contrato de educao privada), possuem uma propenso a formao de redes. Por fim, destaco que as redes contratuais podem ser entendidas como espcie do gnero contratos conexos ou, ento, como sendo uma aspecto diferente do mesmo fenmeno, que pela sua complexidade justifica a criao de uma nova teoria para sua anlise, o que me parece ser a opo mais adequada (LORENZETTI, 2000, p. 68-69; LoRENZETTI, Ricardo. Fundamentos do direito privado. So Paulo: Ed. RT, 1998a, p. 198; MossET lruRRASPE, 1999, p. 45; MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor. So Paulo: Ed RT, 2002b, p. 93-94; LEONARDO, 2003, p. 97, 104, 127 e 136; ENEI, 2003, p. 122; AzEVEDO, lvaro Villaa. Contratos coligados de sublocao de imvel e franquia comercial: aplicabilidade do art. 21 da Lei 8.245/91. Revista Trimestral de Direito Civil 8/225-228, out.-dez. 2001, p. 225 e 228).

    9. Embora na contratao conexa seja de grande relevo o carter cooperativo, sempre haver posies antagnicas entre os contraentes, mesmo que pontuais. Nesse contexto, deve-se necessariamente discernir as relaes que se do entre os fornecedores coligados, onde os contratos so um assunto de colaborao; e aquelas relaes que se do entres estes fornecedores e consumidores, onde a conexo contratual enseja um

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    da relao jurdica, pois a unio de contratos o meio para a satisfao de interesses que no poderiam ser realizados, na conformidade desejada pelas partes, por intermdio das figuras tpicas existentes. 10

    Em termos estruturais, na primeira parte do estudo me preocuparei com os pressupostos tericos da conexidade contratual, apresentando os elementos dogmticos da conexidade, da teoria sistmica e dos efeitos da conexidade contratual. Na segunda parte dirijo estes parmetros tericos ao exame do contrato de consumo financiado, exibindo os efeitos da conexidade neste contexto particular, a acolhida jurisprudencial do marco terico sistemtico e os fundamentos normativos da vertente terica no mbito interno, internacional e comunitrio.

    problema de relacionamento (LORENZETTI, 1999, p. 49-50). De qualquer forma, deve-se mencionar que os riscos de imprevisibilidade, dominao e vulnerabilidade devem ser entendidos no contexto atual, de induo ao consumo atravs de publicidade massiva e agressiva e de insegurana quanto ao futuro (MARQUES, Claudia Lima. Boa-f nos servios bancrios, financeiros, de crdito e securitrios e o Cdigo de Defesa do Consumidor: informao, cooperao e renegociao? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS 22/79, 2002a).

    10. A contratao por conexidade e a formao de redes contratuais nascem da especializao das tarefas produtivas e da diviso de trabalho, fatores que impem a necessidade de uma nova racionalizao da empresa e da lgica econmica. No que tange aos interesses dos fornecedores, tanto em suas relaes internas quanto nas relaes com os consumidores, a contratao com conexidade est embasada na cooperao que visa baixar custos, diminuir riscos e aumentar a eficincia (produtiva e de vendas), em um mercado marcado pela competitividade e especializao dos agentes econmicos. Sob o prisma dos consumidores, inegvel que esta espcie de contratao lhes concede vantagens, eis que obtm melhores financia-mentos, compram o bem mais barato, com menos custo de informao e com menor risco. Conforme acentua Ricardo Lorenzetti, os consumidores "compran el bien ms barato porque hay castos que se prorratean entre el grupo, obtienen mejores financiaciones porque representan un volumen econmico ms interesante para el financista, y muchas otras ventajas" (LoRENZETTI, l998a, p. 197; LORENZETTI, Ricardo Luis, Redes contractuales: conceptualizacin jurdica, relaciones internas de colaboracin, efectos frente a terceros. RDC. 28/22-58, out.-dez. l998b, p. 23; LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999, t. I, p. 44; LORENZETTI, 2000, p. 70). Ademais, em diversas situaes apenas a diluio de custos e riscos entre o grupo permite a comercia-lizao de determinado produto (ex. planos de sade).

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    Dito isso, passo ao exame dos pressupostos tericos acerca da cone-xidade contratual.

    2. S PRESSUPOSTOS TERICOS DA CONEXIDADE CONTRATUAL

    2.1 Definies dogmticas acerca da conexidade Conforme as concluses da Comisso III daXVII]omadaNacional de

    Derecho Civil (Argentina), presidida pelos juristas Jorge Mosset Iturraspe e Ricardo Lorenzetti, a conexidade um fenmeno que compreende o estudo de todas as relaes em que os contratos so instrumentos para a realizao de uma operao econmica global, o que inclui as relaes de consumo entre grupos de fornecedores e de consumidores e as relaes interempresariais, hiptese na qual se encontram subsumidas as redes associativas, as cadeias contratuais e a terceirizao.11

    Claudia Lima Marques define a conexidade como sendo "o fen-meno operacional econmico de multiplicidade de vnculos, contratos, pessoas e operaes, para atingir um fim econmico unitrio" .12 Essa conceituao conjuga dois elementos comumente suscitados pela doutrina: a pluralidade de negcios jurdicos e a unidade de operao econmica. Porm, a noo ainda pode ser alcanada por intermdio da ideia de funo contratual, no sentido de que so conexos os contratos que, para alm de sua funo individual especfica, apresentam juntos uma funo ulterior de ordem supracontratual (causa sistemtica que ultrapassa a soma das finalidades contratuais individuais).U So estes os pressupostos que perpassam as diferentes abordagens feitas nos diversos sistemas jurdicos.

    Dito isso, cabe mencionar que o fenmeno "nasce da especializao das tarefas produtivas, da formao de rede de fornecedores no mercado e, eventualmente, da vontade das partes", 14 razo pela qual pode-se afirmar que os contratos coligados so frutos da hipercomplexidade das relaes socioeconmicas da atualidade, bem como da crescente especia-lizao das atividades produtivas e da diviso de trabalho. 15

    11. LORENZETTI, 1999, p. 43. 12. MARQUES, 2002b, p. 93. 13. KONDER, 2006, p. 95, 189 e 275-277. 14. MARQUES, 2002b, p. 93. 15. ENEI, 2003, p. 113.

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    Em uma rede de contratos, a conexidade o fator que fundamenta a existncia de elementos prprios da organizao contratuaP6 - tais como a causa sistemtica, a finalidade supracontratual e a reciprocidade sistemtica das obrigaes -, dando origem a novas obrigaes (siste-mticas) que se juntam aos deveres principais e acessrios das partes contratantes.17

    Aprofundando a discusso, cabe enfatizar que, em um vis subje-tivista, o interesse do grupo no funcionamento do sistema e na conse-cuo do negcio o fator que mantm unidos os distintos contratos. Em se tratando de um interesse sistemtico, que transcende a motivao de um titular individual, a noo perde a sua carga subjetiva, passando a funcionar objetivamente.18

    inegvel que a unio de pactos estruturalmente diferenciados se d com a existncia de um determinado nexo entre os mesmos, o qual deve ser alcanado no plano do negcio jurdico.19 Sob a perspectiva da realidade socioeconmica, se verifica que todos os tipos de contratos engendram, em ltima anlise, operaes econmicas, sendo este um parmetro relevante para a superao do dogma estruturalista (jurdico-

    16. As potencialidades do enquadramento da conexidade contratual so enormes. Exemplificando a amplitude da aplicao prtica e doutrinria da teoria, menciono o interessante estudo de Amoldo Wald sobre a extenso de efeitos da clusula compromissria em face do reconhe-cimento da vinculao de contratos (A arbitragem, os grupos societrios e os conjuntos de contratos conexos. RArb 2. So Paulo: Ed. RT, maio-ago 2004), e o parecer de ] os Carlos Barbosa Moreira enfocando aspectos do processo civil no campo da conexo contratual (BARBOSA MoREIRA, Jos Carlos. Unidade ou pluralidade de contratos - contratos conexos, vinculados ou coligados. Litisconsrcio necessrio e litisconsrcio facultativo - comunho de interesses, conexo de causas e afinidade de questes por um ponto comum de fato ou de direito. RT 817, nov. 2003).

    17. LoRENZETTI, 1999, p. 55. Estas obrigaes sistemticas tem como fontes a lei ou a vontade das partes (MossET lTuRRASPE, 1999, p. 63-64; MARQUES, 2002b, p. 93).

    18. MossET lTuRRASPE, 1999, p. 22. O interesse sistemtico est intrinsecamente vinculado ao chamado princpio da coordenao, que impe uma atuao coordenada dos participantes da rede, conforme as suas competncias, na consecuo da finalidade supracontratual, o que faz surgir um dever secundrio de conduta de colaborao ao funcionamento e manuteno do sistema (LORENZETTI, 1999, p. 65-66).

    19. LEONARDO, 2003, p. 121.

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    -formal). 20 Ao vislumbrar que o direito passou a assumir papel regulador da dinmica econmica, Enzo Roppo bem argumenta que "falar de contrato significa sempre remeter - explcita ou implicitamente, direta ou mediatamente- para a ideia de operao econmica."21 Atravs da concepo de que o vnculo econmico entre os contratos se duplica em um vnculo jurdico, possvel o abandono do enfoque voluntarista que busca o nexo contratual na vontade das partes, assumindo uma interes-sante posio objetivista baseada na noo de causa, onde a conexidade dada pelo negcio ao qual servem os contratos.22

    Desenvolvendo esta linha de raciocnio, Jorge Mosset Iturraspe entende que a troca do paradigma individualista para as contrataes em grupo no casual, pois os contratantes passam a perseguir um resultado negociai vinculado a uma operao econmica global, com contratos entrelaados num nico conjunto econmico, sendo que o enfoque deve ser dado ao negcio, e no mais ao contrato (enquanto objeto nico de anlise).23 lnteressante assinalar, desde j, as concluses da Comisso lll da VI] ornada N acionai de Derecho Civil (Argentina):

    "Habr contratos conexos cuando para la realizacin de un negocio nico se celebran, entre las mismas partes o partes diferentes, una plura-lidad de contratos, vinculados entre si, a travs de una finalidad econ-mica supracontractual. Dicha finalidad puede verificarse juridicamente, en la causa subjetiva u objetiva, en el consentimiento, en el objeto, o en las bases del negocio. "24

    20. Idem, p. 19. No entanto, deve-se ressalvar que o reconhecimento da importncia do sentido econmico da operao contratual no desvirtua sua dimenso situada e ontolgica, pois alm da autonomia privada estar vinculada dignidade da pessoa humana (LEONARDO, 2003, p. 73 e 82) e ao livre desenvolvimento da personalidade (como instrumento de autodeter-minao), o contrato , por natureza, um meio de exprimir preferncias subjetivas em relao aos bens e as pessoas (simpatias, averses, afectos e repulsas), contemplando uma liberdade emocional e de sentimentos juridicamente insindicvel por critrios de racionalidade (RIBEIRO, Joaquim de Sousa. A constitucionalizao do direito civil. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, 1998, vol. 74, p. 743).

    21. RoPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 8 e 23. 22. LORENZETTI, 1999, p. 53. 23. MosSET lruRRASPE, 1999, p. 9. 24. LORENZETTI, 1999, p. 54-55.

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    Ricardo Lorenzetti bem refere que existem inmeras situaes em que somente com a pactuao de vrios contratos conexos as partes conseguiro alcanar a finalidade econmica perseguida, sendo que o costume demonstra que a ideia de negcio mais ampla que a de contrato, pois quando se quer entabular um negcio, as partes se utilizam dos contratos como instrumentos, agrupando-os de tal modo que produzam o efeito desejado. 25

    A jurisprudncia dos Tribunais Superiores tem reconhecido a primazia da operao econmica e a consequente conexo entre contratos, como bem demonstram os seguintes casos paradigmticos enfrentados pelo STF:

    "Contrato de promessa de compra e venda mercantil ligado a contrato inominado (dito de comodato). Coligao de contratos, em que o primeiro e o principal, e o segundo acessrio. Coligao todavia, que, em face da finalidade econmica dos contratos, se configura como coligao com dependncia bilateral, segundo a classificao de contratos coligados de Enneccerus. Em tais casos, quando o inadimple-mento diz respeito a finalidade econmica dessa coligao, aplica-se, apenas, a clusula penal do contrato principal, ou seja, do de promessa de compra e venda mercantil. A clusula penal do contrato acessrio s poderia ser aplicada se, tambm, tivesse sido descumprida uma de suas obrigaes especificas e, portanto, desvinculadas do inadimplemento da funo econmica da coligao, como, a ttulo exemplificativo, a recusa de restituio dos equipamentos dados em emprstimo. Recurso extraordinrio conhecido em virtude do dissdio de jurisprudncia, mas no provido."26

    "Contratos coligados de promessa de compra e venda mercantil e de comodato, celebrados por empresas distribuidoras de derivados de petrleo e seus revendedores. Ocorrendo inadimplemento de ambos, cabe a imposio, to somente, da multa convencionada no contrato principal, o de promessa de compra e venda, e no daquela prevista no de comodato. Embargos conhecidos e recebidos."27

    "Contratos coligados de promessa de compra e venda mercantil e do comodato, celebrados por empresas distribuidoras de derivados de

    25. LORENZETTI, 1999, p. 38-39. 26. STF, RE 86.246, 2.a T., rel. Min. Moreira Alves, D] 01.04.1977. 27. STF, EDiv no RE 78.162, Pleno, rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ

    02.06.1978.

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    petrleo e seus revendedores. Ocorrendo inadimplemento de ambos, cabe a imposio, to somente, da multa convencionada no contrato principal, o de promessa de compra e venda, e no daquela prevista no de comodato. Embargos conhecidos mas rejeitados."28

    "Comodato modal- Multa. 1. No repugna ao direito brasileiro o comodato modal em que o instrumento respectivo pactuou contrapres-taes a favor do comodante. 2. ]ungido a uma promessa de compra de mercadorias do comodante, celebrado por outro instrumento no mesmo dia, o comodato no pode ser cindido, porque ambos os contratos integram um negcio jurdico complexo, legtimo, em face da autodeterminao individual de ambos os contratantes. 3. Na pior hiptese, em tais circunstancias, o comodato ter-se-a transubstanciado em contrato inominado ou atpico, mas lcito e eficaz. "29

    Conforme a classificao de contratos coligados de Enneccerus,30 existem trs espcies de conexo. Primeiro, h conexo externa quando dois ou mais contratos individualizados se encontram unidos em um mesmo instrumento, sem que haja influncia direta entre os mesmos (ex. contrato que tem como objeto a compra e o conserto de relgios)Y Segundo, h conexo interna ou conexo com dependncia quando dois ou mais contratos individualizados se encontram unidos por um vnculo substancial, verificado a partir da supramencionada noo de operao econmica. Esta espcie se subdivide em conexo interna unilateral, quando apenas um contrato depende do outro (ex. contrato de sublo-cao ou de garantia); e conexo interna blateral,32 quando existe uma relao de mtua dependncia funcional que atinge a existncia e a validade interdependente dos pactos (ex. contratos de consumo finan-ciado, plano de sade, leasing e carto de crdito).33 Por fim, h conexo

    28. STF, ERE 84727, Pleno, rel. Min. Bilac Pinto, DJ 11.09.1978. 29. STF, AI 62684, P T., rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ 25.04.1975. 30. ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WoLFF, Martin. Tratado de derecho

    civil: parte general. Barcelona: Bosch, 1954, vol. 2, t. I, p. 6-7. 31. LEONARDO, 2003, p. 123. 32. A conexo interna bilateral tambm denominada de conexo com interde-

    pendncia e conexo com vinculo hierrquico ou com vnculo de coordenao. ENEI, 2003, p. 116.

    33. MossET ITURRASPE, 1999, p. 53; WEINGARTEN, Clia. Leasing: Ley 25.248 -contratos conexados y reparacin de dans. RDC 44/10. So Paulo: Ed. RI, out.-dez. 2002. O caso do carto de crdito bem exemplifica a interde-

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    alternativa quando uma condio prevista em um contrato inicial faz surgir o contrato secundrio, funcionalmente vinculado ao primeiro (ex. promessa de compra e venda).34

    Vistas as espcies, deve-se frisar que dentro de cada qual se configuram diferentes graus de conexidade, podendo existir clusulas contratuais que a acentuem ou a mitiguem. Contudo, h uma zona lim-trofe, onde a conexidade pode transformar-se em dominao, fazendo desaparecer a autonomia negociai da parte hipossuficiente, permitindo a transferncia abusiva dos riscos da contratao.35

    Se em todo contrato h uma finalidade perseguida pelos contra-entes, no caso dos pactos coligados (ou naqueles formadores de uma rede) h uma finalidade supracontratual, que mais ampla do que a soma dos objetivos perseguidos pelas convenes que mantm a sua individualidade. exatamente este aspecto que embasa a tese jurdica da teoria sistmica que agora passa a ser analisada.

    2.2 Ambientao doutrinria da teoria sistmica

    Embora seja nova e hipercomplexa a forma de apreenso do fen-meno dos pactos conexos e das redes de contratos, existem inmeras concepes tericas destinadas a captar suas caractersticas e peculiari-dades. Este ensaio adota como norte a formulao proposta por Ricardo Lorenzetti, denominada teoria sistmica do contrato, que alm de acolher

    pendncia existente na rede de contratos, onde o sistema compreende, no mnimo, trs contraentes, com pelo menos trs pactos firmados: contrato de financiamento na modalidade carto de crdito entre a administradora e o consumidor; contrato de credenciamento entre a administradora do carto e o lojista; e contrato de fornecimento entre o lojista e o consumidor (ENEI, 2003, p. 119).

    34. Francesco Messineo e Claudio Scognamiglio apresentam a distino entre conexo gentica, que ocorre quando um contrato exerce influncia apenas na fase de formao de outro (ex. contrato preliminar e contrato definitivo), e conexo funcional, quando a influncia abarca a formao e execuo dos pactos, ligando seus destinos de forma incondicional (MESSINEO, Francesco. Contratto collegato. Enciclopedia dei Diritto. Milano: Giuffre, 1962, t. X, p. 51 e ScoGNAMIGLIO, Renato. Collegamento negoziale. Enciclopedia dei Diritto. Milano: Giuffre, 1960, t. VII, p. 378-380). Nesses termos, a plena unio contratual se d na conexo funcional.

    35. LORENZETTI, 1999, p. 65.

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    os pressupostos descritivos do modelo relaciona! de Ian Macneil,36 aponta elementos para resolver os problemas que lhe so prprios.37

    Prefacialmente, mister se faz salientar que a teoria supramencio-nada no enfoca o contrato, mas sim a interao da multiplicidade de

    36. Interessante paradigma terico se encontra na estrutura de modelos contratuais proposta por Ian Macneil. Se no modelo clssico o contrato possui como caractersticas a descontinuidade (atos contratuais independentes e autnomos), a impessoalidade (transao definida sem quantificar a qualidade das partes), a presentificao (contrato planeja no presente todos comportamentos futuros) e o individualismo (conduta egosta e antagnica dos contratantes, visando a obteno da maior vantagem econmica possvel); no modelo relaciona! (que transcende o modelo neocl.ssico enquanto estrutura intermediria) o contrato (de longa durao) detm como peculiaridades as transaes contnuas, a abertura (grande mutabilidade de parmetros contratuais), a procedimentalidade ou desmaterializao do objeto (pacto se limita a estabelecer processos institucionais pelos quais os termos de trocas e ajustes sero especi-ficados no curso do cumprimento contratual), a alta exigncia de relaes primrias e a cooperao e solidariedade (contrato estabelece processos de cooperao interorganizacional na atividade comercial) (MACNEIL, Ian. The relational theory os contract: selected worhs of Ian Macneil. Londres: Sweet & Maxwell, 2001; MAcEDO JuNIOR, 1999, p. 105-107; 116-117 e 125-131; LORENZETTI, 2000, p. 68-69; LORENZETTI, 1998b, p. 24-28 e LORENZETTI, 1999, p. 45-46). Esta categorizao interessa diretamente ao presente ensaio, pois estando o fenmeno da conexidade inserido no modelo relaciona!, deve-se verificar que nos contratos conexos os benefcios e nus so compartilhados entre os contraentes, no podendo se pretender que se mantenha a transferncia total dos nus e riscos dos fornecedores para o consumidor, como costuma ocorrer no modelo clssico (MACEDO JuNIOR, 1999, p. 156-163, 167-169, 189 e 208).

    37. Ricardo Lorenzetti entende a tese dos contratos relacionais de Ian Macneil como sendo uma proposta que visa a descrio do fenmeno, no aportando elementos para resolver os problemas que se apresentam, o que em uma anlise superficial poderia indicar um certo antagonismo entre o pensamento do jurista norte-americano e sua teoria sistmica (LoRENZETTI, 1999, p. 50-51). Contudo, entendo que a teoria relaciona! absolutamente complementar teoria sistmica, pois a singularidade de seus pontos de vista no desnaturaram as convergncias em diversos tpicos fundamentais, no havendo contradies ou excluses mtuas entre estas orientaes, que de forma conjunta formam um interessante marco na construo de uma teoria da conexidade contratual. Enquanto Ian Macneil bem descreve os pressupostos do fenmeno, Ricardo Lorenzetti aporta elementos de enfrentamento da problemtica da conexidade no plano da prxis jurdica.

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    vnculos que atuam de forma relacionada para a formao de um negcio, permitindo estabelecer a existncia de uma finalidade supracontratual que se refere aos objetivos almejados (e somente alcanados) atravs da mencionada pluralidade de pactos e, consequentemente, justifica o nascimento e funcionamento da rede.38 Se o manejo da teoria requer uma compreenso de sistema e de uma teoria sistmica,39 o essencial a

    38. O sistema contratual, enquanto conjunto unitrio e coordenado de elementos/pactos dirigidos a um fim (adimplemento e realizao da operao econmica), no surge pela mera existncia de uma pluralidade de contratos sobre um mesmo bem, pois nem sempre a uma realidade econmica responde uma juridica, sendo tnue o limite entre o contrato complexo e o complexo de contratos. Cabe ao operador, atento as peculia-ridades do caso (raciocnio por concreo), verificar a interdependncia que no seja to forte a ponto de caracterizar um nico contrato, nem to fraca a ponto de eliminar a conexo entre eles (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O sistema contratual do carto de crdito. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 27 e 32-33).

    39. LORENZETTI, 1999, p. 50-51 e 70. Como afirma Gerson Branco, a noo de sistema importante para a teoria contratual na compreenso da ligao normativa existente entre as regras da autonomia privada, da ordem jurdica e do conjunto de contratos necessrios para a realizao de uma determinada operao econmica (BRANCO, 1998, p. 19). Embora histori-camente a noo de sistema remeta s ideias de conjunto, ordem, coerncia e unidade (MARTINs-CosTA, Judith. A boa-f no direito privado. So Paulo: Ed. RT, 2000, p. 40), estas so as principais caractersticas do pensamento sistemtico: (a) compreenso do objeto (ordenamento, contrato ou rede) na sua real condio de totalidade axiolgica, vislumbrando o que se pode denominar de inseparabilidade das normas (soluo interpretativa buscada na complexa inter-relao que os textos guardam uns com os outros); (b) existncia de uma unidade interna (relao de todos os elementos consti-tutivos do sistema com o seu ncleo fundamental, permitindo reconhecer o objeto como algo coeso do ponto de vista do sentido); (c) verificao de uma ordem hierrquica interna, com o reconhecimento da supremacia de certos textos normativos (ex. Constituio); (d) reconhecimento de uma ordenao axiolgica ou teleolgica interna, pois o direito no norma, mas um conjunto coordenado de normas; (e) apreenso da (relativa) abertura do sistema (LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. 2. ed. Lisboa: Calouste, 1989, p. 20,531,579 e 592; CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. Lisboa: Calouste, 1989, p. 12, 156; BoBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. 10. ed. Braslia: UnB, 1997, p. 19-21, 49; KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 24 7; REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 63; MARTINs-CosTA, 2000, p. 41,43 e 220).

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    ser observado pelo operador jurdico que o efeito do conjunto supe-rior a soma das individualidades de pactos.40 Ricardo Lorenzetti assim se posiciona:

    "Un sistema es un conjunto de partes interdependientes de modo tal que una de ellas no puede existir plenamente sin el concurso de las otras. Cuando hay un "sistema de contratos" ocurre exactamente lo mismo, de modo que hay un problema de convivencia; son contratos distintos, pero no pueden convivir uno sin el otro; no funciona ninguno si el sistema fracasa. ( ... ) El enfoque no puede basarse en el contrato, sino en la interaccin de un grupo de contratos que actan en forma rela-cionada, de modo que el contrato es un instrumento para la realizacin de negocios. ( ... ) El inters, en la conexidad no es intracontractual, sino supracontractual. Se situa ms ali del contrato, en el plano del negocio. Los contratos son un instrumento para la realizacin del negocio global o del sistema ideado. (. .. ) hay una finalidad econmico-social que trans-ciende la individualidad de cada contrato y que constituye la razn de ser de su unin; si se desequilibra la misma se afecta todo el sistema y no un slo contrato."41

    Novamente recorro as concluses da Comisso lil da VI Jornada Nacional de Derecho Civil (Argentina):

    "El sistema es un grupo de contratos individuales conectados por una operacin econmica diferente de cada uno de los vnculos indivi-duales. Son elementos del sistema: (a) la causa sistemtica, que justifica un equilbrio del sistema que permite el funcionamiento de las uniones de contratos; (b) las obligaciones y deberes colaterales sistemticos, en virtud de los cuales los integrantes tienen deberes y obligaciones

    Demonstrando a aplicao da teoria no mbito das redes contratuais, Rodrigo Xavier Leonardo menciona a unidade (tendo como vetores a conexo, a causa sistemtica e o propsito comum) e a ordem (deveres laterais) como sendo as principais caractersticas do fenmeno (LEONARDO, 2003, p. 145-153; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a funo social do contrato: reflexes a partir de uma recente deciso do Superior Tribunal de justia. RT 832/103, fev. 2005).

    40. LORENZETTI, 1999, p. 60. 41. LORENZETTI, 1998b, p. 30, 32, 34 e 38-39. O autor ainda aporta a autorre-

    ferncia, a auto-organizao e a homeostasis como sendo caractersticas intrnsecas dos sistemas normativos (LORENZETTI, Ricardo Luis; MARQUES, Claudia Lima. Contratos de servidos a los consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2005, p. 16).

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    respecto de los dems miembros o de terceros, que tienen su origen en el sistema. "42

    O carter sistemtico supramencionado resta evidenciado na ligao econmica dos contratos,43 de forma que eventos ocorridos em um elemento do sistema (pacto isolado) se refletem (em maior ou menor proporo) em todo o sistema,44 o que impe as partes deveres anexos de preservao do conjunto e de colaborao para a consecuo da finalidade comum da contratao em rede,45 a qual sempre supracontratual.46

    Conforme acentua Ricardo Lorenzetti, a conexidade das redes deve ser analisada partindo da estratgia geral do negcio que d origem ao sistema e se translada nos elementos constitutivos dos contratos indivi-duais que a compe (v.g. circunstncias, objeto e consentimento),47 com a posterior verificao de seus aspectos internos e externos.

    42. LORENZETTI, 1999, p. 54-55. 43. Como o nexo de conexidade alcanado a partir da operao econmica

    tutelada pelos contratos, seu reconhecimento independe da existncia de manifestao expressa dos contratantes visando interligar os pactos estrutu-ralmente diferenciados (coligamento subjetivo). LEONARDO, 2005, p. 103.

    44. LEONARDO, 2003, p. 133. 45. BRANCO, 1998, p. 123. Em termos de doutrina nacional, saliento que em

    1962 Pontes de Miranda j reconhecia a existncia da conexo contratual fulcrada em um fim comum do negcio (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, t. XXXVIII, p. 368), porm um dos primeiros doutrinadores brasileiros a se debruar sobre o tema da conexidade foi Waldirio Bulgarelli, em seu clssico Contratos mercantis.

    46. O mencionado dever de preservao do conjunto diz diretamente com a conduta das partes, pois passam a ser consideradas ilcitas certas aes que, embora autorizadas pelo contrato isolado, em um vis sistemtico atentam contra a integridade do conjunto ou qualquer de suas unidades. J o dever de colaborao para a consecuo do fim comum se refere ao cumprimento das obrigaes visando sempre o elemento teleolgico da rede. LORENZETTI, 1998b, p. 39; ENEI, 2003, p. 123; AzEVEDO, Antonio Junqueira de. Natureza jurdica do contrato de consrcio. Classificao dos atos jurdicos quanto ao nmero de partes e quanto aos efeitos. Os contratos relacionais. A boa-f nos contratos relacionais. Contratos de durao. Alterao das circunstncias e onerosidade excessiva. Sinalgma e resoluo contratual. Resoluo parcial do contrato. Funo social do contrato. RT 832/113-137, fev. 2005, p. 123.

    47. O operador no deve tentar percorrer o caminho inverso, como tem feito a doutrina majoritria, que parte de cada contrato para buscar o elemento

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    As relaes internas dizem com a dinmica estrutural e funcional existente entre os fornecedores que integram a rede de contratos.48 Como concludo pela j mencionada Comisso IIl da VI jornada Nacional de Derecho Civil (Argentina), "en las relaciones internas las redes presentan un nexo que est vinculado a la colaboracin asociativa o gestoria entre las partes que la integran, las que son susceptibles de control judicial en los casos en que se produce un desequilbrio del sistema por abuso del derecho o de la posicin dominante del organizador" .49

    Contudo, o que verdadeiramente interessa para o deslinde do presente estudo a verificao das peculiaridades prprias das relaes externas da rede de contratos, com o que passo a me ocupar.

    2.3 Efeitos da conexidade contratual no mbito da teoria sistmica O aspecto externo das redes contratuais diz com as relaes

    formadas entre fornecedores e consumidores, as quais, devido ao reco-nhecimento da conexidade, acabam por mitigar os efeitos do princpio da relatividade dos efeitos dos contratos (res inter alias acta) e suscitar questes acerca da existncia de aes diretas contra integrantes do grupo,50 ampliando as possibilidades de propagao das invalidades e

    que o une com os demais. A apreenso do fenmeno da conexidade depende de uma anlise que parta do negcio global para o contrato, e no do contrato para o negcio. LORENZETTI, 1999, p. 56.

    48. Internamente as redes apresentam um nexo que impe a colaborao das partes que a integram, aspecto este que acaba definindo a estrutura e a natureza da prpria rede de contratos. Em termos exemplificativos, tem-se a colaborao de gesto quando um fornecedor se vale de outro para a realizao de tarefas que no poderia executar por si mesmo, no havendo um compartimento do interesse do negcio, mas uma mera delegao da execuo (v.g. redes de distribuio, franquia e de conces-sionrios). J na colaborao associativa se evidenciam finalidades comuns entre os fornecedores, com o consequente compartilhamento do interesse do negcio, o que pode ocorrer com ou sem a formao de uma figura organizativa prpria (sociedade ou unio transitria de empresas) (ex. hipercentros de consumo, pacotes de negcios e subcontratao massiva). LORENZETTI, 1999, p. 58-60 e 82.

    49. LORENZETTI, 1999, p. 54-55. so. Salienta Ricardo Lorenzetti que quem integra um grupo de contratos no

    pode ser considerado como sendo um terceiro, e por isso pode ser parte em uma determinada ao contratual. LORENZETTI, 1999, p. 53-54.

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    ineficcias dos contratos nos pactos que lhe so conexos.51 Novamente fao remisso s concluses da Comisso III da VI Jornada Nacional de Derecho Civil (Argentina):

    "Efectos frente a los terceros: ( ... ) Tambin resulta aplicable en las relaciones frente a terceros no consumidores la responsabilidad por el hecho de dependientes, a travs de una interpretacin laxa; respon-sabilidad por control sobre la prestacin, y responsabilidad por la apariencia. En el mbito contractual puede basarse en la existencia de un vnculo asociativo entre las partes, en el contrato a favor de terceros, y la estructura del vnculo obligatorio. La conexidad relevante tiene por efectos que la ineficacia o vicisitudes padecidas por uno de los contratos, puede propagarse a los restantes contratos determinantes del negocio nico. La conexidad relevante debe ser demostrada por quien la alega. La conexidad dentro de un negocio nico constituye una excepcin al principio de los efectos relativos del contrato y posibilita la oponibilidad a los terceros, otorgando acciones directas, aun en ausencia de previsin expresa. "52

    A existncia de um vcio que permita ao consumidor obter a decretao de invalidade de um determinado contrato pode conduzir invalidade ou ineficcia dos outros pactos que lhe so conexos53 -

    51. GOMES, Rogrio Zuel. A nova ordem contratual: ps-modernidade, contratos de adeso, condies gerais de contratao, contratos relacionais e redes contratuais. RDC 58/213-214. So Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2006; WEINGARTEN, 2002, p. 10. Cabe salientar que inexiste um conjunto fechado de efeitos caractersticos e automticos em todos os contratos conexos. Embora os mesmos possam ser agrupados em determinadas categorias - repercusso das vicissitudes de um contrato no conexo, oposio de excees entre os pactos e manejo de ao direta em matria de respon-sabilidade -, deve-se reconhecer que as diferentes espcies de conexo acarretam diferentes efeitos (KoNDER, 2006, p. 192).

    52. LORENZETTI, 1999, p. 54-55. 53. Destacando a abrangncia do acolhimento da teses, Carlos Nelson Konder

    refere que "no sofre resistncia em doutrina a considerao de que a invalidade de um negcio possa contaminar os demais a ele coligados ( ... ) mesmo na ausncia de um dispositivo legal sobre o assunto ( ... )Ainda que o outro negcio no padea da mesma vicissitude do negcio invlido, seja ela a incapacidade do sujeito, a ilicitude do objeto, a falta de forma ou solenidade exigida em lei ou outra causa especfica de nulidade, razoavelmente pacfica a considerao de que a coligao pode importar a sua ineficcia (lato sensu) ( ... ). Mesmo nos casos em que se trata de

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    dependendo do contexto negociai e do vnculo de coligao estabelecido -,sem que o consumidor esteja obrigado a ressarcir qualquer fornecedor por perdas e danos. 54 Mesmo pugnando por uma interpretao restritiva, Ricardo Lorenzetti aponta os seguintes efeitos da conexo contratual: (a) repercusso das vicissitudes (invalidade, ineficcia e resoluo) de um contrato no conexo; (b) oposio das excees (pacto comissrio ou exceptio non adimplendi contractus) se um dos contratos no for cumprido; (c) ao direta em matria de responsabilidade.55

    O mesmo Ricardo LorenzettP6 esmia os pressupostos para a veri-ficao da conexidade e extenso dos efeitos,57 sustentando que haveria responsabilidade jurdica de terceiro integrante da rede quando houver responsabilidade negociai por: (a) dependncia ou ato de dependente: 58 caso em que h uma delegao ou "autorizao" de um integrante da rede prtica de atos negociais por outro, sendo que aquele agente econmico comumente mantm o poder de eleio e de controle sobre a atividade comercial (ex. fabricante que mantm terceiros autorizados para efetuar

    hiptese de anulao, como um vcio de vontade que atinja apenas um dos contratos, considera-se vivel a destruio tambm do outro negcio, vlido e perfeito, a ele vinculado" (KoNDER, 2006, p. 220-222).

    54. ENEI, 2003, p. 118. 55. LORENZETTI, 1998b, p. 54 e LORENZETTI, 1999, p. 94. 56. LORENZETTI, 1999, p. 56-57; LORENZETTI, 2000, p. 71. 57. de todo evidente que a transferncia das vicissitudes, a permisso

    da oposio das excees e o permissivo para o manejo da ao direta em matria de responsabilidade no so efeitos automticos do reconhecimento da conexidade, pois deve ser considerada a validade da principiologia clssica (ex. princpio da conservao vs. a transfe-rncia das vicissitudes), razo pela qual o operador deve sempre avaliar a configurao de dano ou prejuzo funo supracontratual do regulamento de interesses estabelecido plurinegocialmente (KoNDER, 2006, p. 219-220).

    ss. Mosset Iturraspe entende que esta tese seria uma derivao da teoria do cmplice ou coautor do direito penal (MossET lruRRASPE, 1999, p. 141). Nesse sentido a Smula 331 do TST: "(. .. ) IV- O inadimplemento das obrigaes trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabi-lidade subsidiria do tomador dos servios, quanto quelas obrigaes, inclusive quanto aos rgos da administrao direta, das autarquias, das fundaes pblicas, das empresas pblicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relao processual e constem tambm do ttulo executivo judicial".

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    a manuteno de seus produtos);59 (b) controle: se verifica quando um integrante da rede exerce controle especfico sobre a atividade de outro (ex. planos de sade em relao a atividade dos mdicos e estabeleci-mentos de sade conveniados); (c) aparncia: a aparncia jurdica criada pela atividade desempenhada pode ensejar ao contra o titular da marca de um produto comercializado; (d) risco: ocorre quando um dos integrantes da rede utiliza, na sua atividade comercial, coisas perigosas de propriedade de outro; (e) imputao solidria: responsabilidade nas relaes de consumo baseada na imputao solidria de todos os inte-grantes da rede (art. 7. 0 , pargrafo nico, CDC);60 CD vinculo associativo: caso em que exista um vnculo associativo entre os integrantes da rede (art. 28, 2.0 , CDC)61 (ex. shopping center que constitui uma empresa comum com os locatrios); (g) contrato em favor de terceiros: em face do art. 436 do CC/2002,62 se outorga ao direta ao beneficirio de uma estipulao alheia (ex. paciente em contrato mdico-sanatrio); (h)

    59. A vinculao tambm pode ser buscada em razo da dependncia tcnica. Em julgado paradigma oriundo da jurisprudncia Argentina (caso Baskir de 06.06.1996), um consumidor adquiriu uma lava-loua que veio a apresentar defeitos. Ao ser atendido pelo servio de assistncia tcnica indicado pelo fornecedor, houve uma conduta culposa deste que acarretou na inundao do apartamento do adquirente. Mesmo havendo contratos independentes e com obrigaes distinta (de dar e de fazer), foi reconhecida a vinculao devido dependncia tcnica, pois embora no houvesse dependncia laboral ou a constituio de uma sociedade de vnculo associativo na indicao da assistncia tcnica pelo vendedor, havia um interesse econmico de ambos os fornecedores em contratar agrupadamente, obtendo assim inmeros benefcios econmicos. LORENZETTI, 1999, p. 88-89.

    60. "Art. 7. 0 ( ... ) Pargrafo nico. Tendo mais de um autor a ofensa, todos respondero solidariamente pela reparao dos danos previstos nas normas de consumo."

    61. Nesse sentido a regra do art. 28, 2. 0 , do CDC: "Art. 28. ( ... ) 2. 0 As sociedades integrantes dos grupos societrios e as sociedades controladas so subsidiariamente responsveis pelas obrigaes decorrentes deste Cdigo".

    62. "Art. 436. O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigao. Pargrafo nico. Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigao, tambm permitido exigi-la, ficando, todavia, sujeito s condies e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante no o inovar nos termos do art. 438."

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    estrutura de vinculo obrigatrio: quando h uma diminuio da liberdade de escolha de um dos contratantes em face da estipulao do fornecedor integrante da rede (ex. plano de sade que limita escolha do paciente a determinados mdicos conveniados).63

    Apresentada a doutrina, passo ao exame da sua insero no caso da contratao de consumo financiada, procurando esmiuar os efeitos e os elementos jurisprudenciais e normativos que do suporte a este novo paradigma terico.

    3. FENMENO DA CONEXIDADE NO CONTRATO DE CONSUMO FINANCIADO 3.1 Efeitos da conexidade no contrato de consumo financiado

    Como mencionado na parte introdutria deste ensaio, o pensa-mento contratual clssico indica que quando o consumidor "A" contrata a compra de determinado produto ou prestao de servio do forne-cedor "B", atravs de financiamento concedido (ou a ser concedido) por "C", existem dois contratos independentes, onde a inexecuo de um no afeta a validade ou eficcia do outro. Sob estes pressupostos, duas hipteses se apresentam: (a) no havendo a entrega da mercadoria ou a prestao do servio, o consumidor "A" ainda estaria obrigado a arcar com o pagamento do crdito concedido (mesmo que este tenha sido tomado por intermdio ou diretamente do fornecedor "B" ou que "C" saiba da finalidade do mtuo); (b) no havendo a concesso do crdito, o contrato de compra ou de prestao de servio mantm-se hgido, podendo ser exigido por "B".

    Contudo, quando uma instituio financeira e uma sociedade empresria que mercancia determinados produtos ou servios decidem

    63. A absoro (total ou parcial) da capacidade de eleio de um dos contra-tantes melhora a posio econmica e estratgica no contrato daquele que detm o poder de controle, com a obteno de inmeros benefcios, os quais devem ser complementados com os custos associados, de onde deriva a responsabilidade. Em termos jurdicos, normalmente o risco derivado de uma liberdade de escolha - de um mdico ou de um servio de assistncia tcnica de m qualidade - suportado por quem a exerce. Contudo, quando um fornecedor se interpe nessa relao e absorve a liberdade de eleio do consumidor, limitando o nmero de ofertantes (pois a manuteno da plena liberdade de escolha acarretaria um custo muito elevado), acaba transferindo os seus riscos, pois no possvel absorver a liberdade de escolha sem assumir os riscos que ela acarreta.

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    juntar esforos para melhorar seus respectivos pos1c10namentos no mercado, vendendo produtos ou servios diretamente financiados (criando um pacote de produtos e servios pela contratao conexa), foroso reconhecer - no plano prtico, terico e normativo -, que coexistem uma pluralidade de relaes jurdicas64 conexas por engen-drarem uma mesma operao econmica, ainda que inexista formalizado um convnio entre os fornecedores ou uma oferta unificada.65

    A prtica do comrcio massificado demonstra que os consumidores, ao efetivarem a contratao de produtos e servios atravs de emprs-timos, sequer entram em contato com os agentes financeiros, pois o prprio vendedor que coloca o crdito a disposio do consumidor, recebendo diretamente os valores. Embora assuma dois contratos, a aparncia para o leigo de efetivao de apenas uma relao comercial, no sendo perceptvel a cadeia de organizao interna da relao.66

    O problema prtico surge quando os fornecedores, trabalhando com uma verdadeira rede de contratos, entabulam os pactos conexos com o consumidor e posteriormente (especialmente nos casos em que se verificam vcios em algum dos contratos) procuram se valer do para-digma clssico acerca da relao jurdica obrigacional, desconsiderando que os contratos esto vinculados por formarem uma operao econ-mica unificada, sistematizada e funcionalizada pela prpria rede criada pelos fornecedores. 67 Alegando que as convenes vinculariam apenas as respectivas partes contratantes, os fornecedores - aps terem efetiva-mente se beneficiado da contratao conexa - pretendem uma artificiosa decomposio do negcio que visa transferir o nus ao consumidor. 68 Nesse sentido a lio de Jorge Mosset lturraspe:

    64. As relaes jurdicas se do entre empresa-empresa, consumidor-financeira e consumidor-vendedor, redundando em dois ou trs contratos (se a oferta no for unificada).

    65. LORENZETTI, 1999, p. 43. 66. MARQUES, 2002b, p. 90. 67. LEONARDO, 2003, p. 138. Este enfoque se aproxima da teoria do venire

    contra factum proprium e de uma relao de equivalncia sinalagmtica (princpio do equilbrio contratual), pois se os fornecedores se utilizam dos benefcios da rede de contratos para maximizar suas atividades, no podem pretender desqualific-la quando da anlise do contrato direito com o consumidor que inequivocamente faz parte do prprio sistema.

    68. WEINGARTEN, 2002, p. 19.

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    "Por influencia de la doctrina la jurisprudencia de los tribunales alemanes entendi que la separacin entre ambos contratos "no era ms que una estratagema o ardil para privar al consumidor de las defensas que hubiera tenido en una operacin simple de compraventa en cuotas, debiendo tal estratagema o ardid ser tratada- y descalificada- de la misma manera que una clusula expresa de extensin de responsabilidad. "69

    Em face dos argumentos expostos nos tpicos precedentes, impem--se o reconhecimento da existncia de uma nica operao econmica no contrato de consumo financiado (relao interna bilateral), muito embora o consumidor contrate com sujeitos diversos. 70

    No que respeita aos pressupostos para a verificao da conexidade apresentados no tpico precedente, no caso da contratao de consumo financiada se sobressaem os seguintes elementos: dependncia, quando h autorizaes para que o fornecedor pratique atos em nome de seu parceiro comercial (v.g. fornecedor do produto que apresenta direta-mente o contrato de financiamento ao consumidor); controle, quando h fiscalizaes internas nas atividades dos fornecedores (ex. verificao peridica de metas a serem alcanadas); aparncia, nos casos em que o consumidor sequer entra em contato com o agente financeiro; imputao solidria, fator a ser verificado nos termos do art. 7.0 , pargrafo nico, do CDC; vinculo associativo, quando for formalizada associao ou acordo entre os fornecedores (o que no essencial para o reconhecimento da conexidade); e a estrntura de vinculo obrigatrio, quando se verifica uma diminuio da liberdade de escolha do consumidor devido a atividade dos fornecedores (ex. comerciante que determina a escolha do agente financeiro).

    O reconhecimento da relao interna bilateral permite ao consu-midor manejar ao diretamente contra todos os fornecedores (forne-cedor do bem ou servio e fornecedor do mtuo), opondo os vcios apre-sentados em determinado contrato naqueles outros que lhe so conexos. Esta oposio abarca tanto o fornecimento do produto ou servio em relao ao contrato de financiamento (ex. descumprimento na entrega

    69. MossET ITURRASPE, 1999, p. 29. 70. Em uma viso tpica, Enneccerus entende que "la solucin compete

    siempre en ltima instancia al arbitro judicial, atendiendo a las circuns-tancias del caso concreto, especialmente inspirndose en el fin econmico y en los legtimos intereses de las partes". ENNECCERus; KIPP e WoLFF, 1954, p. 6.

  • DOUTRINA NACIONAL 93

    da mercadoria), quanto o financiamento em relao ao contrato de fornecimento do produto ou servio (ex. resoluo do contrato de fornecimento de produto ou servio em face da frustrao da tomada de emprstimo ou por leso ou excessiva onerosidade do mtuo)/1 desde que, nesta ltima hiptese, esteja previsto no contrato de fornecimento de produto ou servio, explcita ou implicitamente,72 que o pagamento pelo consumidor ser realizado mediante emprstimo.

    Feitas estas consideraes, destaco a acolhida do marco terico sistemtico pelos Tribunais ptrios.

    3.2 Acolhida jurisprudencial do marco terico sistemtico J faz algum tempo que a jurisprudncia nacional tem acolhido

    a tese da conexo e contagiao dos efeitos contratuais,73 do que so exemplos os julgados abaixo colacionados, aqui mencionados de forma eminentemente exemplificativa:

    "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, ante-rior ou posterior celebrao da promessa de compra e venda, no tem eficcia perante os adquirentes do imvel. "74

    "Direito imobilirio. Recurso especial. Ao de conhecimento sob o rito ordinrio. Construo e incorporao. Contrato de financia-mento para a construo de imvel (prdio com unidades autnomas). Recursos oriundos do SFH. Outorga, pela construtora, de hipoteca sobre o imvel ao agente financiador. Posterior celebrao de compromisso de compra e venda com terceiros adquirentes. Invalidade da hipoteca. nula a hipoteca sobre a unidade autnoma outorgada pela construtora

    71. O que importaria na devoluo do bem pelo consumidor ao fornecedor e a devoluo do valor financiado diretamente deste para a agente financeiro. ENEI, 2003, p. 118.

    72. A inexistncia de um convnio prvio ou de uma oferta unificada no invalida a configurao da conexo (LORENZETTI, 1998b, p. 23). Evidente que a existncia de um vnculo preexistente e formalmente estabelecido entre fornecedor direto e instituio financeira aumentam as razes para a propagao das ineficcias dos contratos, porm o que importa a verificao ftica da operao, que possibilite avaliar a cincia das partes acerca dos motivos da tomada do emprstimo e da vinculao deste com a compra do produto ou a prestao do servio contratada pelo consumidor.

    73. RosAs, Roberto. Contratos coligados. Repositrio Autorizado da jurispru-dncia do Supremo Tribunal Federal95. Braslia: Legis Summa, nov. 1980.

    74. Smula 308 do ST].

  • 94 REVISTA DE DIREITO DO CONSUMIDOR 201 O- RDC 74

    ao agente financiador em data posterior celebrao da promessa de compra e venda com o promissrio-comprador. Ainda que constituda e levada a registro em data anterior ao pacto de compromisso de compra e venda, nula a hipoteca firmada se os recursos ofertados pelo agente financeiro construtora foram captados junto ao Sistema Financeiro da Habitao. Recurso especial conhecido pela divergncia e provido. "75

    "Promessa de venda e compra. Aquisio de unidade habitacional mediante financiamento (SFH). vcios da construo. Legitimidade de parte do agente financeiro. Contratos de construo e de financiamento. Interdependncia. O agente financeiro parte legtima na ao de reso-luo contratual proposta por muturios em virtude de vcios consta-tados no edifcio, dada a inequvoca interdependncia entre os contratos de construo e de financiamento. 'A obra iniciada mediante financia-mento do Sistema Financeiro da Habitao acarreta a solidariedade do

    75. STJ, REsp 316.640, 3.a T., rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 07.06.2004. No voto da Min. Nancy Andrighi l-se: "(. .. ) fere a boa-f objetiva da relao contratual a atitude da construtora que primeiro celebra o compromisso de compra e venda de imvel com o promissrio-comprador, e depois onera-o com hipoteca em favor de terceiro (agente financeiro). (. .. ) Se a linha de crdito outorgada sociedade construtora adveio de recursos prprios do agente financeiro, valida e eficaz a hipoteca registrada anteriormente celebrao do compromisso de compra e venda, desde que, no ato de contratao, o promissrio-comprador tenha sido cientificado a respeito. (. .. ) Todavia, se os recursos ofertados pelo agente financeiro sociedade construtora foram captados junto ao SFH, a hipoteca no produz eficcia perante o adquirente da unidade habitacional. (. .. ) se o adquirente ainda no quitou o seu imvel, poder o agente financeiro, por meio de cesso fiduciria, sub-rogar-se no direito de receber os crditos devidos construtora-muturia. (. .. ) Afasta-se, em consequncia, a possibilidade de o agente financeiro demandar o promissrio-comprador pelo crdito remanescente, ainda que sob a forma de hipoteca." E no voto-vista do Min. Castro Filho, consta: "Em verdade, a venda direta das unidades aos adquirentes e o contrato de financiamento entre a construtora e o banco, mostram-se como sendo duas relaes jurdicas aparentemente distintas. Contudo, a mesma construtora que vendeu e recebeu o preo (ou est recebendo as prestaes) d o empreendimento ou suas unidades autnomas em hipoteca ao banco. Este, por sua vez, sabe que os imveis so destinados venda, mas aquela operao ocorre como se os adquirentes no existissem. As instituies financeiras concedem os emprstimos, no raro, sem verificar a viabilidade econmica do empreendimento ou a solvncia das empresas incorporadoras".

  • DOUTRINA NACIONAL 95

    agente financeiro pela respectiva solidez e segurana' (REsps 51.169/RS e 647.372/SC). Recurso especial conhecido e provido."76

    "Resciso de contrato de compra e venda. Financiamento. No reali-zada a entrega da mercadoria adquirida, cabvel a resciso do contrato de compra e venda, bem assim o cancelamento do financiamento, dada a vinculao entre os negcios jurdicos. Contratos coligados. Hiptese em que um negcio jurdico no sobrevive diante da resciso do outro, por estarem vinculados. Preliminar de ilegitimidade passiva rejeitada. Apelao a que se nega provimento."77

    "Dano moral. Contratos coligados. Havendo atuao econmica conjunta de fornecedores por meio de contratos de compra e venda e mtuo coligados respondem elas solidariamente na forma do art. 7.0 , pargrafo nico, do CDC. Ocorrendo resoluo do contrato de compra e venda pela no entrega da coisa, encerra fato ilcito (dano moral) a remessa indevida do nome da vtima a cadastro de inadimplentes pela mutuante por no cumprido o avenado que deve ser considerado em sua integralidade. ( ... )Recurso parcialmente provido."78

    76. STJ, REsp 331.340, 4." T., rel. Min. Barros Monteiro, DJ 14.03.2005. 77. TJRS, AC 70001462845, 6." Cm. Civ., j. 07.02.2001, rel. Des. Carlos

    Alberto Alvaro de Oliveira. No corpo do v. acrdo, l-se: "( ... )a contratao do financiamento no se deu de forma independente compra efetuada. Em verdade, ao contrrio do que alega a Losango, a concesso dos valores estava, desde o incio, vinculada compra do bem junto r S. ]. Os documentos mencionados demonstram a existncia de relao comercial entre as demandadas, sendo possvel concluir que o financiamento j era posto disposio do consumidor na prpria S.]., mediante convnio com a Losango, fato, alis, bastante comum no comrcio atual. Assim, no realizada a entrega da mercadoria, cabvel a resciso do contrato de compra e venda firmado com a r S.]., bem assim o cancelamento do financiamento contrado junto Losango, visto que, vinculado aquisio da mercadoria, no pode subsistir diante da no concretizao da mesma. Na realidade, a compra e venda e o financiamento, no caso dos autos, apresentam-se como contratos coligados." Ressalvo que, embora a conexo seja efetivamente de natureza bilateral, o julgador entendeu ser de ordem unilateral, reconhecendo a acessoriedade do contrato de financiamento perante o contrato de compra e venda. Nesse mesmo sentido: RTJ 94/407 e 104/305-307.

    78. TJSP, AC 205.137.4/4-00, 6." Cm. Civ.,j. 20.06.2005, rel. Des. Marcelo Benacchio. No corpo do v. acrdo, l-se: (nos) "contratos coligados ou em rede, onde se tem por possvel a ao direta entre os contratantes

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    As decises supramencionadas superam o pensamento clssico de que a contagiao de invalidades entre contratos somente se d quando verificada uma relao de acessoriedade entre os pactos (relao interna unilateral), o que se encontra embasado na segunda parte da regra do art. 184 do CC/2002. 79 Contudo, diversos julgados continuam a se utilizar da teoria da acessoriedade para alcanar a propagao das invalidades dos contratos, entendendo que o financiamento seria acessrio do contrato principal (conexo interna unilateral), seguindo, portanto, o mesmo destino deste,80 conforme se infere dos julgados abaixo mencionados:

    "Apelao cvel. Ao ordinria. Compra e venda. Contrato aces-srio de financiamento garantido por alienao fiduciria. Preliminar de ilegitimidade passiva, suscitada pela instituio financeira, desacolhida. Demonstrado vcio no produto adquirido pela autora, impe-se o desfa-zimento de ambos os contratos: o principal - de compra e venda - e o acessrio - de financiamento. "81

    "Compra e venda de aparelhos de ar-condicionado. contrato de financiamento com alienao fiduciria em garantia. resciso contratual. (. .. )contrato de financiamento acessrio. Resoluo. Tendo sido firmado o contrato de financiamento para compra do bem objeto da lide, o qual

    a luz da unidade das prestaes, ou seja, h a superao do paradigma por fora de mandamentos cogentes ligados a noes de utilidade social e equilbrio da relao contratual (. .. ) Note-se que no possvel conceber-se o contrato de compra e venda sem o de mtuo e vice-versa por encerrarem uma nica operao econmica de colocao de produtos no mercado onde h verdadeira simbiose entre as fornecedoras que respondem solidariamente na forma do art. 7. 0 , pargrafo nico, e 25, 1.0 , ambos do Cdigo de Defesa do Consumidor. (. .. ) O fato que no era permitido a financeira exigir sua prestao sem que o cumprimento do contrato de compra e venda pelo outro fornecedor com o qual atuou conjuntamente."

    79. "Art. 184. (. .. )a invalidade da obrigao principal implica a das obrigaes acessrias, mas a destas no induz a da obrigao principal."

    80. Em interessante observao, Giorgio Oppo refere que no somente o acessrio segue o principal, mas eventualmente o principal tambm segue o acessrio. PPO, Giorgio. Contratti parasociali. Milo: Dottor Francesco Vallardi, 1942, p. 79-80.

    81. TJRS, AC 70010706869, 13." Cm. Civ., j. 02.06.2005, rei. Des. Carlos Alberto Etcheverry.

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    restou alienado fiduciariamente ao Banco, rescindido o contrato de compra e venda, procede a resoluo do contrato de financiamento. "82

    "Ao de resciso de contrato de compra e venda cumulada com indenizao por danos morais, conexa com ao de busca e apreenso. O descumprimento de clusula contratual por parte da promitente vende-dora autoriza a resciso de contrato de compra e venda, bem como a resoluo de contrato de financiamento a ela acessrio, impondo-se a devoluo das parcelas pagas, devidamente corrigidas. Ao de busca e apreenso improcedente em razo da resciso do contrato de financia-mento. (. .. ) Primeira apelao parcialmente provida e segunda apelao desprovida. "83

    Desvelado o amparo jurisprudencial da teoria sistmica, cabe destacar as normas legais que do suporte a conexidade no mbito dos ordenamentos nacionais e comunitrios.

    3.3 Fundamento normativo dos efeitos da conexidade no contrato de consumo financiado Embora no Brasil no haja regramento especfico sobre a conexi-

    dade contratual, possvel alcanar o permissivo legal para a aplicao desta teoria atravs da redao do art. 51 do CDC, o qual estabelece que "so nulas de pleno direito, entre outras, as clusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e servios". Interessante a lio de Rodrigo Xavier Leonardo:

    "O legislador, ao prescrever a nulidade das clusulas relativas ao fornecimento de produtos e servios, enunciou algo a mais do que a simples invalidade de clusulas insertas em um singular contrato de fornecimento de produtos e servios enclausurado na relao travada entre consumidor e fornecedor.

    Por clusulas relativas ao fornecimento devem ser entendidas todas as clusulas referenciadas atividade econmica de fornecimento."84

    Essa realmente parece ser a melhor interpretao do dispositivo em seu vis sistemtico, principalmente em face da norma narrativa prevista

    82. TJRS, AC 70007119480, 14." Cm. Civ., j. 23.12.2004, rel. Des. Antonio Correa Palmeiro da Fontoura.

    83. TJRS, AC 70007694409, 14." Cm. Civ. , j. 14.10.2004, rel. Des. Sejalmo Sebastio de Paula Nery:

    84. LEONARDO, 2003, p. 187.

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    no art. 4. 0 , caput e I e III, do CDC85 bem como das disposies dos arts. 6.0 , VI, e 7.0 , pargrafo nico, do CDC.86-87

    No obstante a construo supra, Claudia Lima Marques, Antonio Herman Benjamin e Bruno Miragem, em obra coletiva, entendem que a conexidade da concesso do crdito com o contrato de consumo prin-cipal tambm pode ser alcanada, normativamente, atravs da redao do art. 52 do CDC, ampliando o mbito de aplicao do Codex consu-merista.88

    Contudo, entendo que a aplicao da teoria tambm suportada por algumas disposies do Cdigo Civil, em uma verdadeira coorde-nao das fontes normativas de nosso sistema jurdico.89

    85. "Art. 4. 0 A Poltica Nacional de Relaes de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito sua dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparncia e harmonia das relaes de consumo, atendidos os seguintes princpios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (. .. ) III - harmonizao dos interesses dos participantes das relaes de consumo e compatibilizao da proteo do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econmico e tecnolgico, de modo a viabilizar os princpios nos quais se funda a ordem econmica (art. 170 da Constituio Federal), sempre com base na boa-f e equilbrio nas relaes entre consumidores e fornecedores."

    86. "Art. 6. 0 So direitos bsicos do consumidor: (. .. )VI- a efetiva preveno e reparao de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos."

    87. "Art. 7.0 (. ) Pargrafo nico. Tendo mais de um autor a ofensa, todos respondero solidariamente pela reparao dos danos previstos nas normas de consumo."

    88. MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentrios ao C6digo de Defesa do Consumidor. 2. ed. So Paulo: Ed. RT, 2006, p. 773-775.

    89. A necessidade de conjugao das fontes normativas inequvoca, tanto que Juarez Freitas chega a afirmar que "a interpretao jurdica sistemtica ou no interpretao" (FREITAS, Juarez. A interpretao sistemtica do direito. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 174). Sobre o tema, sustenta Claudia Lima Marques que no contexto da ps-modernidade se busca uma harmonia, coordenao e coerncia das normas no sistema jurdico, na busca de uma eficincia no somente hierrquica, mas tambm funcional (substituio da superao pela convivncia de paradigmas), afastando--se do pensamento moderno que concebia o processo hermenutica

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    A primeira norma a ser destacada o princpio da funo social do contrato (art. 421, C02002),90 pois este preceito que regula a ideia de que embora o pacto sempre atenda aos interesses dos contratantes,

    com as figuras da "tese" (lei antiga), "anttese" (lei nova) e "sntese" (revogao). Assim, o didlogo das fontes (dialog der quellen ou dialogue de sources) concebe que as normas possuem influncias recprocas, sendo possvel a aplicao conjunta das mesmas ao mesmo caso concreto, seja de forma complementar ou subsidiria. Concebendo o Cdigo de Defesa do Consumidor como lei especial e hierarquicamente superior em relao ao Cdigo Civil de 2002, em face do mandamento constitucional do art. 5.0 , XXXII, a doutrinadora concebe trs tipos de dilogos possveis entre os diplomas: (a) didlogo sistemdtico de coerncia: compreende que, na aplicao simultnea de duas leis, uma serve de base conceitual para a outra (o Cdigo Civil de 2002, como lei geral, define inmeros conceitos e institutos utilizados pelo Cdigo de Defesa do Consumidor, tais como "pessoa jurdica", "decadncia", "prescrio" etc.); (b) didlogo sistemtico de complementariedade e subsidiariedade: entende que na aplicao coordenada de duas leis, uma pode complementar a aplicao da outra, sem que isso acarrete a revogao de qualquer dos dispositivos, em face de seu campo de aplicao no caso concreto (o sistema geral de decadncia do Cdigo Civil 2002 pode ser usado para regular casos de consumo, por ser mais favorvel ao consumidor); (c) didlogo de coordenao e adaptao sistemdtica: vislumbra as influncias recprocas entre as normas, que pode influir no mbito de aplicao das mesmas (Cdigo Civil de 2002, ao regular uma relao de iguais [consumidor--consumidor ou fornecedor-fornecedor] pode, eventualmente, alterar os conceitos fi.nalsticos do Cdigo de Defesa do Consumidor). Tambm por haver convergncia de princpios entre o Cdigo Civil de 2002 e o Cdigo de Defesa do Consumidor, sempre que se esteja frente a uma relao consumidor-fornecedor, se aplicam prioritariamente as normas do Cdigo de Defesa do Consumidor e, subsidiariamente, as diretrizes do Cdigo Civil de 2002 (salvo raras excees, como ocorre com o contrato de transporte, nos termos do art. 732 do CC/2002). Nesses termos, h de se reconhecer tambm a influncia e a oxigenao axiolgica das clusulas gerais do Cdigo de Defesa do Consumidor no mbito do sistema geral do direito privado (embora dava-se defender a prevalncia da teoria finalista em detrimento da concepo maximalista de aplicao do diploma consumerista). MARQUES, Claudia Lima. Dilogo entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Novo Cdigo Civil: do "dilogo das fontes" no combate s clusulas abusivas. RDC 45. So Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2003, p. 72-79 e 84-85.

    90. "Art. 421. A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do contrato."

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    os extrapola na medida em que atinge toda a cadeia econmica em que se encontra inserido (reflexos externos da relao contratual na rede). O rol das eficcias transindividuais da funo social alcana os reflexos externos das relaes contratuais enquanto fatos imersos no mundo de relaes econmicas e sociais, dizendo com a tutela externa do crdito, com a interdependncia funcional dos vrios contratos e com a projeo de seus efeitos sobre partes e terceiros, questes que dizem diretamente com o tema da conexidade. Especificamente do preceito em exame aqui interessa a sua atuao enquanto: cnone de interpretao; elemento condi-cionante, limitador e de ressignificao da liberdade contratual (impedindo a decomposio da natureza conexa do negcio); elemento mitigador do principio da relatividade dos contratos (instituindo novo status aos contra-entes e terceiros); fonte de novos efeitos contratuais (eficcia do contrato perante terceiros); elemento de superao do sentido unilateral de proteo dos interesses do credor e de proteo dos terceiros de boa-f (ampliao da proteo dos contratantes de boa-f); elemento de efetivao do equilbrio do contrato (equilbrio dos contratantes tambm em nvel sistemtico); e fator de anlise da conduta dos contraentes (flexibilizando os institutos do direito contratual clssico). 91

    91. MARTINs-CosTA, Judith. Novas reflexes sobre o princpio da funo social dos contratos. Estudos de Direito do Consumidor. Separata n. 7. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, 2005, p. 62, 68 e 98; SILVA, Lus Renato Ferreira da. A funo social do contrato no novo Cdigo Civil e sua conexo com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Cdigo Civil e a Constituio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 127-150, p. 133 e 136-138; ___ .Reviso dos contratos: do Cdigo Civil ao Cdigo do Consumidor. Rio de janeiro: Forense, 2001, p. 38; FACCHINI NETO, Eugnio. A funo social do direito privado. Revista jurdica 349/73. Porto Alegre: Notadez, nov. 2006, p. 73; MIRAGEM, Bruno. Diretrizes interpretativas da funo social do contrato. RDC 56/22-45, out.-dez. 2005, p. 25,30-31, 33, 36, 38 e 43; NALIN, Paulo. Do contrato- Conceito ps-moderno: em busca de sua formulao na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juru, 2006, p. 223-224; SALOMO FILHO, Calixto. Funo social do contrato: primeiras anotaes. Revista de Direito Mercantil 132/24; BRITO, Rodrigo Toscano de. Funo social dos contratos como princpio orientador na interpretao das arras. Questes controvertidas no novo Cdigo Civil. So Paulo: Mtodo, 2004, p. 373-374; DELGADO, Jos Augusto. O contrato no Cdigo Civil e a sua funo social. Disponvel em: [http://bdjur.stj.gov.br/ dspace/bitstream/20 11/3203/1/0 _ Contrato_no_c%C3%B3digo_civil. pdf]. Acesso em: 14.04.2007 e STJ, REsp 691738, 3. T., Min. Nancy Andrighi, D] 26.09.2005.

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    J o preceito da boa-f objetiva (art. 422, CC/2002)92 torna-se rele-vante para o tema em exame por proteger o consumidor da tentativa dos fornecedores de decomporem artificialmente um negcio que conexo pela sua prpria natureza. Especificamente, o preceito atua como: critrio de interpretao e integrao do contrato (posicionando a conexidade como clusula implcita nas situaes em que no prevista); norma criadora de deveres anexos (sistemticos); norma limitadora de direitos subjetivos; elemento mitigador da intensidade de posies jurdicas (combatendo a pretenso dos fornecedores de desvincularem a relao contratual); e elemento de validade do negcio jurdico (mediando a validade da contra-tao no contexto de sua conexidade com outros pactos).93

    A terceira regra a ser salientada a do abuso de direito do art. 187 do CC/2002,94 que alm de mediar a concesso responsvel do crdito, pe em jogo o prprio conceito dos direitos subjetivos inerentes ao ato de contratar, desvelando a funcionalidade e relatividade de seu exerc-cio.95 O fim socioeconmico de um certo direito subjetivo (contratar com conexidade) no estranho sua estrutura, mas elemento condi-

    92. "Art. 422. Os contratantes so obrigados a guardar, assim na concluso do contrato, como em sua execuo, os princpios de probidade e boa-f."

    93. SILVA, 1976, p. 32; MARTINs-CosTA, ]udith. O novo Cdigo Civil Brasileiro: em busca da "tica da situao". Revista da Faculdade de Direito da UFRGS 20/211-260. Porto Alegre, 2001, p. 240; ___ .O direito privado como um "sistema em construo": as clusulas gerais no Projeto do Cdigo Civil Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS 15/129-154. Porto Alegre, 1998, p. 148-149; __ , 2005, p. 51; SILVA, 2003, p. 127-150, p. 149; DANZ, Erich. La interpretaci6n de los negociosjurdicos. 3. ed. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, p. 197; STJ, REsp 554622, 3." T., Min. Ari Pargendler, DJ 01.02.2006.

    94. "Art. 187. Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes."

    95. Esta noo albergada pelo entendimento da autonomia privada como sendo um poder-funo, ou seja, como uma prerrogativa que no est voltada to somente para os interesses individuais do titular, mas tambm para os interesses coletivos, cujos fins se impe vontade (SILVA, 2001, p. 32). Refere Francisco dos Santos Amaral Neto que "o exerccio da autonomia privada uma questo de exerccio de poder, dentro dos limites e na esfera de competncia que o ordenamento jurdico estabelece. Ora, o problema da autonomia privada, na sua existncia e eficcia, apenas um problema de limites" (AMARAL NETo, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princpio fundamental da ordem jurdica: perspectivas

  • 102 REVISTA DE DIREITO DO CONSUMIDOR 2010- RDC 74

    cionante de sua natureza, sendo que o abuso surge no interior do prprio direito em questo. Exercer legitimamente o direito de contratar no apenas ater-se sua estrutura formal, mas cumprir o fundamento axiolgico-normativo que constitui esse mesmo direito (diretrizes siste-mticas da contratao com conexidade), segundo o qual o operador deve aferir a validade do ato de exerccio. O fundamento axiolgico de um determinado direito subjetivo constitui seu limite, que to preciso quanto aquele determinado por sua estrutura formal,96 A pretenso de decompor artificiosamente a natureza da contratao conexa excede manifestamente as finalidades econmicas e sociais da pactuao e da prpria atividade dos fornecedores, embora a conduta destes esteja galgada nas singularidades de cada um dos contratos (de consumo principal e de financiamento) - esquecendo-se dos pressupostos sist-micos -, e assim aparentemente se insiram no mbito da legalidade, por cumprirem com as diretrizes formais. A perspectiva aqui exposta resta por responsabilizar os fornecedores pelas repercusses que as suas ativi-dades provocam no mercado ao construrem um pacote de produtos e servios pela contratao conexa.

    Como visto no decorrer da apresentao da teoria sistmica, a noo de conexidade alcanada a partir da prpria natureza socio-econmica da contratao, qual seja, a da multiplicidade de vnculos que constri uma mesma operao econmica global. Assim, como a conexo est ao menos implcita em cada um dos contratos que formam a rede (de consumo e de financiamento), a pretenso dos fornecedores de decompor esta natureza vinculativa ofende o elemento teleolgico do disposto no art. 424 do CC/2002.97

    Ainda no plano do direito interno, destaco que h Projeto de Lei visando alterar o art. 425 do CU2002, criando uma clusula geral de conexidade negociai nos contratos atpicos, nos seguintes termos: " lcito s partes estipular contratos atpicos, resguardados a ordem pblica, os bons costumes e os princpios gerais de direito, especial-

    estrutural e funcional. Revista de Informao Legislativa 102/215.Braslia: Senado Federal, abr.-jun. 1989).

    96. MELLO, Helosa Carpena Vieira de. A boa-f como parmetro de abusividade no direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Problemas de direito civil-constitucional. So Paulo: Renovar, 2000, p. 314-315.

    97. "Art. 424. Nos contratos de adeso, so nulas as clusulas que estipulem a renncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negcio."

  • DOUTRINA NACIONAL 103

    mente o princpio de que as obrigaes so indivisveis, formando um s todo" .98

    Ampliando o foco de anlise, em termos de direito comparado diversos so os ordenamentos que contm previso legal (imperativa e cogente) que garante a oponibilidade dos vcios. Enfrentamento robusto apresentando na Exposio de Motivos e no art. 14, da Ley de Crdito ai Consumo espanhola (Ley 7/1995):

    "Exposicin de Motivos (. .. ) Por lo que se refiere a los contratos celebrados por los consumidores

    en los que se establezca expresamente su vinculacin a la obtencin de un crdito de financiacn, se dispone que la falta de obtencin del crdito producir la ineficacia del contrato, dejando a salvo los derechos ejercitables por el consumidor, tanto frente al proveedor de los bienes o servidos como frente al empresario que hubiera concedido el crdito.

    La proteccin a los consumidores se refiere tambin a la ejecucn de los contratos, permitiendo que el consumidor pueda oponer excepciones derivadas del contrato que ha celebrado no slo frente al otro empresario contratante, sino frente a otros empresarios a quienes aqul hubiera cedido sus derechos o que hubieran estado vinculados con l para financiar el contrato mediante la concesin de un crdito al consumidor. (. .. )

    98. MARQUES, 2002a, p. 52-53. No que se refere a interpretao dos pactos, saliento a regra do art. 1.030, do anteprojeto do Novo Cdigo Civil argentino, elaborado pela comisso criada pelo Dec. 685/1995: "Artculo 1.030. Grupos de Contratos. Los contratos que estn vinculados entre si por haber sido celebrados en cumplimiento del programa de una operacin econmica global son interpretados los unos por medio de los otros, y atribuyndoles el sentido apropiado al conjunto de la operacin" (LoRENZETTI, 1999, p. 63 e ENEI, 2003, p. 126). Ademais, cabe mencionar as concluses da Comisso III da VI jornada Nacional de Derecho Civil (Argentina): "lnterpretacin: Los contratos conexos deben ser interpretados en funcin de la operacin econmica que persiguen" (LORENZETTI, 1999, p. 54-55). O art. 1.496-ter do Cdigo Civil italiano, transposto para o art. 34.1 do Cdigo de Consumo daquele pas, afirma que "a abusividade de uma clusula avaliada tendo em conta a natureza do produto ou servio objeto do contrato e fazendo referncia s circunstancias existentes no momento de sua concluso e s outras clusulas do mesmo contrato ou de um outro coligado ou do qual dependa" (trad. livre). Embora sejam profundas as consequncias da conexidade nos campos da interpretao e qualificao dos contratos, o tema efetivamente extrapola os limites deste estudo.

  • 104 REVISTA DE DIREITO DO CONSUMIDOR 201 O- RDC 74

    Artculo 14. Eficacia de los contratos vinculados a la obtencin de un crdito

    1. La eficacia de los contratos de consumo, en los que se establezca expresamente que la operacin incluye la obtencin de un crdito de financiacin, quedar condicionada a la efectiva obtencin de ese crdito.

    Ser nulo el pacto includo en ei contrato por el que se obligue al consumidor a un pago al contado o a otras f