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 147 A JUSTIÇA NO PENSAMENTO MEDIEVAL Rodrigo Ramos Lourega de Menezes 1 R ESUMO: Este artigo apresenta, sucintamente, noções da filosofia do direito no pensamento medieval, concentrando-se nas idéias de Santo Ag ostinho, de Santo Isidor o de Sevilha e de São T omás de Aquino. Em seguida, o presente estudo indica algumas concepções do direito moderno (tais como proteção às liberdades individuais e função social da propriedade) que se desenvolveram a partir da semente lançada pela doutrina tomista. P  ALAVRAS -CHAVE: Filosofia do Direito – Pensamento Medieval – Contribuições para o Direito Moderno.  A BSTRACT: Shortly , this article presents notions of the legal philosophy in the medieval thought, focusing on the ideas of Saint Augustine, Saint Isidore of Seville and Saint  Tho mas of Aquin. After that, this study shows some conceptions of de modern law (like the protection of de  A RTIGO R ECEBIDO EM: 12/08/2008 – A CEITO EM: 28/11/2008 1  Mestrando em Direito na Universidade Gama Filho (UGF); professor do programa de pós-graduação lato sensu em direito tributário e do curso de extensão em direito processual tributário da Universidade Cândido Mendes (UCAM); professor da pós-graduação em direito tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); professor do curso de especialização em direito previdenciário do Instituto de Pesquisa e Estudos Tributários (IPEJ) e Procurador do Município do Rio de Janeiro .

13 - A Jusitça No Pensamento Medieval

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13 - A Jusitça No Pensamento Medieval

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    A JUSTIA NOPENSAMENTOMEDIEVAL

    Rodrigo Ramos Lourega de Menezes1

    RESUMO: Este artigo apresenta, sucintamente, noes dafilosofia do direito no pensamento medieval,concentrando-se nas idias de Santo Agostinho, de SantoIsidoro de Sevilha e de So Toms de Aquino. Em seguida,o presente estudo indica algumas concepes do direitomoderno (tais como proteo s liberdades individuais efuno social da propriedade) que se desenvolveram apartir da semente lanada pela doutrina tomista.PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do Direito PensamentoMedieval Contribuies para o Direito Moderno.

    ABSTRACT: Shortly, this article presents notions of the legalphilosophy in the medieval thought, focusing on the ideasof Saint Augustine, Saint Isidore of Seville and SaintThomas of Aquin. After that, this study shows someconceptions of de modern law (like the protection of de

    ARTIGO RECEBIDO EM: 12/08/2008 ACEITO EM: 28/11/20081 Mestrando em Direito na Universidade Gama Filho (UGF); professor

    do programa de ps-graduao lato sensu em direito tributrio e do cursode extenso em direito processual tributrio da Universidade CndidoMendes (UCAM); professor da ps-graduao em direito tributrio doInstituto Brasileiro de Estudos Tributrios (IBET); professor do cursode especializao em direito previdencirio do Instituto de Pesquisa eEstudos Tributrios (IPEJ) e Procurador do Municpio do Rio de Janeiro.

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    individuals freedom and the social function of the property)that were developed by ideas brought from the Thomism.KEY WORDS: Legal Philosophy Medieval Thought Contribution to the modern law.

    1. INTRODUO

    Este artigo tem como objetivo investigar algumas concepes de justiaelaboradas na Idade Mdia. Para tentar cumprir esse propsito, analisar algunsaspectos dos pensamentos de Santo Agostinho, de Santo Isidoro de Sevilha e,principalmente, de So Toms de Aquino.

    Sempre antes de enfrentar as opinies dos referidos padres da Igreja, serapresentada uma breve biografia de cada um deles, com o intuito de situar seusestudos nos distintos perodos da Idade Mdia.

    Quanto a Santo Agostinho, o presente trabalho se concentrar na anlise desua obra A Cidade de Deus para, em seguida, mencionar os pontos relevantessobre a justia no pensamento agostiniano.

    Embora no tenham a mesma repercusso que os estudos de Santo Agostinhoe que os de So Toms de Aquino, as concluses sobre lei e direito de SantoIsidoro de Sevilha so interessantes, merecendo referncia neste trabalho.

    Por ltimo, ser analisado, o pensamento de So Toms de Aquino sobre a justia,que foi muito influenciado pela filosofia aristotlica. Conciliando f e razo, So Tomsse props a demonstrar o que comum a todas as leis; distinguiu as espcies de leis eos tipos de justia; identificou as propriedades essenciais da justia e contribuiu para odesenvolvimento de alguns institutos jurdicos que so utilizados at hoje.

    2. ASPECTOS HISTRICOS RELEVANTES PARA AFORMAO DO PENSAMENTO MEDIEVAL

    O pensamento cristo exerceu notvel influncia na filosofia do direito durantea Idade Mdia2. Tal fato curioso, pois os primeiros cristos no tinham o foco

    2 SERRANO, Jonathas. Philosophia do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro:Catholica, 1933. p. 208-210.

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    de suas atenes voltado ao Estado e ao direito dos homens. Pelo contrrio, suaspreocupaes estavam fundamentalmente voltadas ao reino de Deus e justiadivina3.

    Jesus Cristo ensinou que os seus discpulos deveriam buscar primeiro o reinode Deus e a sua justia e todas as demais coisas seriam dadas em acrscimo4.Considerando que, segundo o fundador do cristianismo, o seu reino no destemundo5, entende-se a despreocupao dos primeiros cristos com os assuntosestatais e jurdicos.

    Houve, porm, um importante lder do cristianismo primitivo que escreveuuma carta comunidade crist de Roma6 em que abordava o tema da justia. Essaepstola, por ser considerada verdade revelada por Deus, influenciou o pensamentode Santo Agostinho, de Santo Isidoro de Sevilha e de So Toms de Aquino.

    Na aludida carta, So Paulo, que tinha formao jurdica, referiu-se ao direitonatural inscrito no corao humano, que tornaria os no-judeus capazes decumprirem a vontade de Deus, mesmo sem o conhecimento da lei mosaica.Segundo o chamado apstolo dos gentios, embora os pagos ignorassem a leiescrita poderiam observ-la seguindo os impulsos da natureza.

    Quando ento os gentios, no tendo Lei, fazemnaturalmente o que prescrito pela Lei, eles, no tendoLei, para si mesmos so Lei; eles mostram a obra da leigravada em seus coraes, dando disto testemunho suaconscincia e seus pensamentos que alternadamente seacusam ou defendem.7

    So Paulo teve uma importncia muito grande na divulgao do pensamentocristo. Foi o autor de diversas cartas que so consideradas pelos cristos inspiradaspelo Esprito Santo e muitas delas esto inseridas no Novo Testamento. Nessasepstolas, So Paulo visava, entre outros objetivos, a manuteno da unidade dadoutrina crist8.

    3 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p.110 -111.

    4 MATEUS 6, 33.5 JOO 18, 36.6 A Epstola de So Paulo aos Romanos faz parte do Novo Testamento

    da Bblia.7 ROMANOS 2, 14-15.8 BBLIA, Portugus. 1981. A Bblia de Jerusalm. So Paulo: Paulinas,

    1981. p. 1469.

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    Os cristos, por outro lado, no tinham como impedir o necessrio encontrocom o direito, eis que, em algum momento, teriam de construir uma sociedadecrist e estruturar sua Igreja, tarefa que imporia a criao de regras de conduta.9Com efeito, o cristianismo, aps um perodo de perseguies, fortaleceu-se, sendoj tolerado pelo Imprio Romano no sculo do nascimento de Santo Agostinho10.

    No decurso do sculo IV, o Cristianismo comeou a sertolerado pelo Imprio, para alcanar depois um estatutode liberdade e converter-se finalmente, no tempo deTeodsio, em religio oficial do Estado. O imperadorromano, por esta poca, convocou as grandes assembliasdos bispos, os conclios, e a Igreja pde ento dar incio organizao de suas estruturas territoriais11.

    No tempo de So Toms de Aquino, sculo XIII, o cristianismo no eraapenas tolerado, mas j tinha se transformado em uma das principais forasmotrizes do pensamento medieval, como ser demonstrado posteriormente.

    No sculo XVII, o direito passou a perder a sua concepo predominantementereligiosa, quando Hugo Grcio sustentou a possibilidade de existir um direitonatural, independente da existncia ou atuao de Deus12.

    3. A JUSTIA NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO

    3.1. Biografia resumida de Santo Agostinho (354 a 430)Agostinho nasceu no norte da frica em uma cidade chamada Tagaste (atual

    Suq Ahras, na Arglia) no ano de 35413. Nessa poca, Tagaste, que pertencia ao

    9 NADER, Paulo. Op. cit. p. 111.10 Segundo Michel Villey, na poca de Santo Agostinho, as bases do

    mundo romano, da cultura greco-romana, estavam sendo minadas pordentro pelas msticas orientais, que j haviam transformado o Estado.Conferir VILLEY, Michel. A formao do pensamento jurdico moderno.Traduo de Claudia Berliner. So Paulo: Martins Fontes, 2005. p . 75.

    11 HISTRIA da Igreja Catlica. In: WIKIPDIA. Disponvel em: .Acesso em: 19 dez. 2007.

    12 NADER, Paulo. Op. cit. p. 111.13 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Histria da Filosofia. Antiguidade

    e Idade Mdia. Volume I. 2. ed. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 428

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    Imprio Romano, vivia um perodo de estagnao, aps ter passado por doissculos de grande desenvolvimento econmico14.

    Seus pais eram pobres, mas vislumbravam a ascenso social de Agostinhoatravs do estudo. Com efeito, aps muito sacrifcio, conseguiram oferecer aojovem africano uma educao clssica visando a torn-lo advogado. Essa, todavia,no era a vocao profissional de Agostinho, que passou a dedicar-se busca dasabedoria, atravs do aprofundamento dos seus estudos filosficos, especialmenteaps conhecer a obra de Ccero15.

    [...]. Seguindo o programa normal do curso, chegou-mes mos o livro de tal Ccero, cuja linguagem mas no ocorao quase unanimemente admirada. O livro umaexortao filosofia e chama-se Hortnsio. Devo dizer queele mudou os meus sentimentos (...) passei a aspirar comtodas as foras imortalidade que vem da sabedoria.16

    Tentando encontrar respostas para algumas questes filosfico-religiosas,aderiu ao maniquesmo17. Tornou-se professor de Cincia Literria na Tunsia,depois em Roma e, por fim, em Milo, onde se converteu ao cristianismo18. Emsua trajetria religiosa, Agostinho demitiu-se do cargo de professor em Milo,fundou uma comunidade religiosa e tornou-se bispo de Hipona, cargo que exerceuat a sua morte em 43019.

    Durante toda a sua vida, Agostinho se dedicou filosofia, sendo consideradopor muitos estudiosos como a grande matriz de todo o pensamento medieval20.Foi o principal representante da patrstica que se consubstancia em um movimentofilosfico, impulsionado pelos Padres da Igreja, voltado para a valorizao do

    14 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record,2005. p.23-24.

    15 Ibidem. p. 25 e 49-50.16 AGOSTINHO, Santo. Confisses. Traduo de Maria Luiza Jardim

    Amarante. 3. ed. So Paulo: Paulus, 2004. p. 70.17 Ibidem. p. 72-7518 Interessante assinalar que, entre as razes para a converso de

    Agostinho, encontra-se a leitura de trecho da Epstola aos Romanosmencionada no captulo anterior. Para se obter um interessante resumodas razes para a converso do aludido santo, vide RATZINGER,Joseph. Homilias sobre os santos. Traduo de Roberto Vidal da SilvaMartins. So Paulo: Quadrante, 2007. p 55-57.

    19 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. p. 429.20 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 16 ed. So Paulo: Saraiva, 1994. p. 637.

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    indivduo (imagem e semelhana de Deus) frente s instituies, bem como porconsolidar os dogmas cristos no mbito filosfico21.

    Os livros mais conhecidos de sua vasta produo literria so Confisses, ondefaz um peculiar relato autobiogrfico22, e Cidade de Deus onde enfrenta, entre outrasquestes, o tema da justia23.

    3.2. A Cidade de Deus e a Cidade dos HomensSanto Agostinho, em sua obra De civitate Dei, Cidade de Deus, sustenta que,

    antes de cometerem o pecado original (orgulho e desobedincia), os homens viviamfelizes em comunidade, como irmos, seguindo o direito natural. Essa era a Cidadede Deus24.

    Com o cometimento do pecado original, inaugurou-se a Cidade Terrena(ou Cidade dos Homens) que traz consigo a morte, a misria e a paixodesordenada. A humanidade, para se adaptar a essa nova condio e tentarpromover a paz, cria o Estado, o direito e suas instituies25.

    Assim, desde a queda de Ado, a humanidade ficou dividida entre essas duascidades. A Cidade de Deus que serviria a Deus e a Cidade dos Homens que serviriaao mal. Essas duas cidades que aparentemente se encontram misturadas tanto naIgreja quanto no mundo, seriam perfeitamente separadas no juzo final26.

    Escrita em uma poca em que o cristianismo era acusado de responsvel pelaqueda de Roma, a obra tem primordialmente objetivos pastorais como o dedefender a f crist contra as referidas acusaes e confortar os fiis que passavampor provaes temporais27.

    Embora a doutrina de Santo Agostinho sobre a justia esteja disseminada porseus diversos escritos, a Cidade de Deus considerada obra essencial para a

    21 Pensamento Cristo - Patrstica. Disponvel em: . Acesso em: 02 jan.2008 e CUNHA, Jos Ricardo. Lei Moral e Justia em Santo Tomsde Aquino. Anais de Filosofia. Revista da Ps-Graduao, So Joo Del-Rei: Funrei, n.8, jul. 2001, p. 10.

    22 AGOSTINHO, Santo. Op. cit. e BROWN, Peter. Op. cit. p. 33.23 NADER, Paulo. Op. cit. p. 113.24 GILSON, tienne. La Filosofia em La Edad Media. Desde los orgenes

    patrsticos hasta el fin del siglo XIV. Traduo para o espanhol de ArsenioPacios e Salvador Caballero. 2. ed. Madri: Gredos, 1999. p. 134.

    25 Ibidem. p. 113.26 BROWN, Peter. Op. cit. p. 391.27 VILLEY, Michel. Op. cit.. p. 81-82.

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    compreenso da viso de Santo Agostinho sobre o tema objeto do presentetrabalho28.

    3.3. Pontos importantes sobre a justia no pensamento agostiniano.Como anteriormente ressaltado, o livro Cidade de Deus revela a coexistncia

    em paralelo de duas cidades: a Cidade de Deus onde vigoraria a justia divina e aCidade Terrena onde estaria vigendo a falsa justia.

    Como a filosofia de Santo Agostinho no escolstica, mas patrstica (quetentava responder a determinadas situaes concretas, sem buscar respostasdefinitivas), o contedo da sua doutrina sobre a justia foi objeto de diversasinterpretaes pelos filsofos do direito.

    Alguns intrpretes bem pensantes fazem de santoAgostinho um adepto do direito natural concebido maneira tomista: esta , por exemplo, a tendncia deGiorgianni. Outros vem nele o inspirador da teocracia,o profeta de um direito sacro que se abebera no na naturezamas nas fontes da Revelao: tese do agostianismopoltico, de todas a mais antiga e, por muito tempo, amais influente. Mas um terceiro grupo de autores acabade tentar demonstrar (algo que talvez no seja to novo)que o verdadeiro significado de sua doutrina sobre odireito seria o positivismo jurdico (Cotta).29

    A compreenso da religiosidade de Santo Agostinho parece ser a nica formade se chegar a um entendimento razoavelmente seguro sobre sua teoria da justiaque foi revolucionria.

    3.3.1. Idia de lei eterna, de lei natural e de justia.Santo Agostinho sustenta que a lei eterna o comando de Deus, universal e

    imutvel, para que seja conservada a ordem natural e impedida a sua violao30.Apesar de a lei eterna ser inacessvel diretamente ao conhecimento humano, Deusa revela de duas formas distintas aos homens: atravs do direito natural31 e atravs

    28 Ibidem. p. 81.29 Ibidem. p. 84.30 NADER, Paulo. Op. cit. 114.31 Vide Epstola de So Paulo aos Romanos aludida no captulo 2.

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    da Sagrada Escritura (antigo e novo testamentos da Bblia), que passar a serconsiderada fonte do direito durante praticamente toda a Idade Mdia32.

    Paulo Nader parece fazer parte do grupo de intrpretes bem pensantesreferidos por Michel Villey. O professor da Universidade Federal de Juiz de Fora,em seu livro Filosofia do Direito, ensina que Santo Agostinho defendia que a leieterna poderia ser conhecida por intermdio de seu reflexo que a lei naturalinscrita no corao dos homens.33 Villey, contudo, afirma que o bispo de Hiponaapenas mencionava a lei natural para enfatizar a sua insuficincia, j que, aps opecado original, o homem passou a ter muita dificuldade de conhec-la. Destarte,a melhor forma de se conhecer a lei eterna seria pela Bblia, sendo, portanto,prefervel a lei divina positiva ao direito natural34.

    Agostinho considera que a justia a virtude de dar a cada um o que seu,seguindo a mesma linha de pensamento de Ccero35, mas tambm lembra que nasSagradas Escrituras o adjetivo justo est associado quele que cumpre a leieterna, fazendo a vontade divina. Como a vontade de Deus que amemos unsaos outros e considerando que o amor ao prximo pode se dar no caso concretode formas distintas, a justia divina no pode ser resumida em comportamentosobjetivos, pairando sobre ela alguma incerteza36.

    Alm da impreciso, so caractersticas da justia divina: (1) a exigncia daperfeio, que implica a renncia total a qualquer interesse temporal e (2) a inaptidopara a sano terrena (o que faria os positivistas a classificarem como moral e nodireito)37.

    3.3.2. Idia de lei humana (lei terrena) e a obedincia lei injusta.O bispo de Hipona tenta conciliar dois princpios aparentemente

    contraditrios: (1) a lei humana contrria lei eterna injusta; (2) mesmo assimtem autoridade, devendo ser obedecida38.

    No livro Cidade de Deus, Agostinho afirma que a Cidade Terrena busca apenasfelicidades enganosas e provisrias e as suas instituies so injustas, pois se ajustia corresponde a dar a cada um o que seu e a Cidade Terrena no d a Deustodo o respeito que lhe devido, conseqentemente essa cidade injusta. Enquanto

    32 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 97.33 NADER, Paulo. Op. cit. p. 114.34 VILLEY. Michel. Op. cit. p. 98-100.35 NADER, Paulo. Op. cit. 113.36 VILLEY. Michel. Op. cit. p. 101-103.37 Ibidem. p. 104-106.38 Ibidem. p. 86.

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    no for remodelada pela f crist, a lei terrena ser injusta, no podendo, sequer,ser chamada de direito, pois onde no h justia, no h direito.39

    Ocorre que as leis humanas, mesmo sendo injustas, devem ser obedecidaspor pelo menos dois motivos: (1) so teis para a manuteno da ordem temporalque gera uma tranqilidade provisria e (2) se a providncia divina permitiu queuma autoridade promulgasse leis terrenas injustas porque esses instrumentoslegais exercem algum papel na histria da salvao. Assim, Santo Agostinho negaa justia da lei humana (de modo particular da legislao romana) contrria leieterna, mas incita o seu cumprimento, pois o fato histrico sempre refletiria algoda ordem de Deus.40

    3.3.3. Superioridade da lei eterna sobre a lei humana.Santo Agostinho sustenta que a lei eterna hierarquicamente superior lei

    humana, devendo prevalecer em caso de conflito.41 Esta prevalncia, no entanto,no pode servir de justificativa para o descumprimento da lei humana incompatvelcom a lei eterna, como defenderia So Toms de Aquino sculos mais tarde.

    Agostinho defende que o direito positivo terreno deve procurar fundamentona lei eterna para que seja justo. Essa seria uma forma eficaz de fomentar a justiado Evangelho. Mas, como explicado anteriormente, no a justia que atribuiautoridade s leis humanas, que devem ser obedecidas, mesmo quando instituamcondutas contrrias justia eterna.

    3.3.4. Imutabilidade da lei eterna e mutabilidade dos costumes.Como j afirmado, Agostinho defende que a lei eterna imutvel e universal.

    Ao mesmo tempo, sustenta que a lei eterna a fonte legtima dos costumes quepodem variar de acordo com o local e a poca42. Coloca-se, ento, a seguintepergunta: como se admitir a mutabilidade do costume em razo do tempo e dolugar, se a lei eterna, que a sua fonte, imutvel?

    Agostinho no v contradio nesse ponto. A lei eterna oferece alternativasque se diversificam de acordo com as diferentes sociedades43, entretanto, quantoao seu ncleo essencial, absolutamente rgida.

    39 Ibidem. p. 88.40 Ibidem p. 91-93.41 NADER. Paulo. Op. cit. p. 113.42 Ibidem. p. 112-113.43 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 103-104.

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    4. CONSIDERAES JURDICAS DE SANTO ISIDORO DE SEVILHA

    Santo Isidoro de Sevilha (570-636) considerado o ltimo nome de relevo dapatrstica, tendo vivido no perodo de transio para a escolstica.44 Nasceu emuma famlia crist45 de origem visigoda, na Espanha, e sucedeu seu irmo, SoLeandro, na arquidiocese de Sevilha, exercendo o cargo por 37 anos. Tambm foiprofessor, tendo apresentado a filosofia de Aristteles aos seus alunos antes dachegada dos rabes46. Por essa razo, considerado um dos elos que ligam omundo clssico cultura medieval47.

    Apesar de ter nascido em uma poca pouco propcia para o desenvolvimentocientfico (queda do imprio romano do ocidente com diviso de seu territrioque dificultava o intercmbio cultural)48, ainda assim escreveu uma verdadeiraenciclopdia chamada Etimologias que foi uma das obras mais estudadas na IdadeMdia49.

    A obra Etimologias composta de vinte volumes, sendo que os dois primeirosso dedicados gramtica, retrica e dialtica e os dezoito restantes a diversostemas como aritmtica, astronomia, agricultura, medicina e direito50. Entre asconsideraes jurdicas feitas por Isidoro na referida enciclopdia, dois pontosmerecem especial destaque: sua definio de lei e sua classificao de direito.

    Quanto definio de lei, Santo Isidoro destaca aspectos ticos, sociolgicos,filosficos e tcnicos muito interessantes. Diz que a lei deve ser honesta, justa eestatuda para a utilidade comum dos cidados e no para benefcio particular(aspecto tico), adequada natureza e aos costumes, conveniente no tempo(aspectos sociolgicos), necessria e proveitosa (aspecto filosfico) e clara, semobscuridade que provoque dvida (aspecto tcnico)51.

    Ao afirmar que a lei deve ser adequada, necessria e proveitosa, Santo Isidorode Sevilha antecipa, de forma surpreendente, os subprincpios da teoria da

    44 NADER. Paulo. Op. cit. p. 114.45 Trs irmos de Santo Isidoro de Sevilha foram canonizados: Leandro,

    Fulgncio e Florentina. Conferir Santa Florentina. Disponvel em< h t t p : / / w w w. m e r c a b a . o r g / S A N T O R A L / V i d a / 0 6 / 0 6 -20_santa_florentina.htm>. Acesso em: 18 jan. de 2008.

    46 ISIDORO de Sevilha. Disponvel em http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/SaoIsidoS.html. Acesso em: 04 jan. de 2008.

    47 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. 477.48 NADER, Paulo. Op. cit. p. 114.49 ISIDORO de Sevilha. Disponvel em http://www.dec.ufcg.edu.br/

    biografias/SaoIsidoS.html. Acesso em: 04 jan. de 2008.50 GILSON, tienne. Op. cit. p. 149.51 NADER, Paulo. Op. cit. p. 114-115.

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    proporcionalidade extremamente em voga na doutrina e na jurisprudnciahodiernas.

    Santo Isidoro elabora no sculo VI uma classificao de direito to sofisticadaque em muito se assemelha com as utilizadas nos dias de hoje. Segundo osensinamentos contidos em sua Etimologias, o direito tem como espcies: o direitopblico pertinente aos magistrados e sacerdotes; o direito quiritrio que se refereaos cidados romanos; o direito natural que inerente razo dos homens e fundadono instinto humano, sendo aplicvel a todas as naes; direito civil ou positivo que o particular de cada povo, regendo internamente determinada sociedade; e o direitodas gentes, que equivale ao direito internacional pblico atual52.

    5. A JUSTIA NO PENSAMENTO DE SO TOMS DE AQUINO

    5.1. Biografia resumida de So Toms de Aquino53 (122554-1274)Toms nasceu no sculo XIII, que considerado um dos perodos mais

    prsperos da Europa medieval55. As Cruzadas e as Guerras de Reconquista napennsula ibrica libertaram a Europa dos perigos de uma nova invaso rabe. A

    52 Ibidem. p. 115.53 So Toms ou Santo Toms? H uma regra de adaptao morfofonmica

    na lngua portuguesa que determina o uso de So para os nomescomeados por consoantes e Santo para os nomes iniciados por vogaise pela letra H, entretanto, Toms de Aquino considerado umaexceo, pois seu nome admite as duas formas. Segundo Jos Luiz Villaco uso de Santo Toms, em substituio a So Toms, se d por razoeufnica, pois para quem ouve, So Toms pode soar como Santo Ms.Os autores clssicos, como Padre Antnio Vieira, preferem Santo, masa partir do sculo XVIII se usa mais a forma So que a adotadaneste estudo. Conferir So ou Santo? Disponvel em . Acesso em: 4 jan. 2008.Conferir tambm Revista Catolicismo. Disponvel em Acesso em: 4 jan. 2008.

    54 Michel Villey (Op. cit. p. 132) e Paulo Nader (Op. cit. p. 115) afirmamque So Toms nasceu em 1225, tienne Gilson, defende que onascimento ocorreu entre o fim de 1224 e o incio de 1225 (Op. cit. p.514). Giovanni Reale e Dario Antiseri ensinam que o nascimento dofilsofo ocorreu em 1221 (Op. cit. p. 553) e Celso Antnio PinheiroCastro in Sociologia do Direito. 6. ed. So Paulo: Atlas, 1999. p. 30 apontao ano de 1227. Indicamos o ano de 1225 por ser o adotado pela maiorparte dos autores estudados.

    55 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. 530-532.

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    instituio da Cavalaria conseguiu mitigar a rudeza dos costumes que vigoravamdesde as invases brbaras. As calamidades produzidas pelo cisma do ocidente,pela guerra dos cem anos e pela invaso dos turcos s aconteceriam nos sculosXIV e XV56.

    Foi um sculo de paz e prosperidade, em que a cultura,at a fechada nos mosteiros, se pde desenvolver empleno dia, e em que a civilizao crist atingiu alturasdifceis de ultrapassar na teologia e na filosofia, naarquitetura e na escultura, na poesia, e em muitos outrosramos da cincia e da arte.57

    A Itlia, todavia, no se enquadrava perfeitamente nesse contexto. A sociedadeitaliana estava dividida entre aqueles que apoiavam o Imprio (gibelinos) e aquelesque defendiam o Papado (guelfos) e, assim, as disputas locais e as rivalidades dospartido formavam uma rede inextricvel que dominava toda a vida italiana.58

    So Toms nasce no castelo de Roccasecca59, prximo de Aquino, na Itlia,exatamente nessa poca de prosperidade cultural na Europa, com exceo daItlia que permanecia dividida. Os pais de So Toms eram nobres e do partidoimperialista60 e no aceitavam a possibilidade de seu filho vir a se tornar um religiosocatlico apoiador do papado61. Diante disso, tentaram de vrias formas dissuadi-lo de sua inteno de tornar-se religioso dominicano, mas a persistncia de Tomsem sua vocao religiosa prevaleceu.62

    Saindo da tumultuada Itlia do sculo XIII, So Toms foi aprofundar seusestudos na Universidade de Paris63. Seu mestre, Santo Alberto Magno, eraconsiderado um dos mais notveis professores de seu tempo, tendo grande

    56 BARROS, Manoel Correia de. Vida de Santo Toms. Disponvel em. Acesso em: 4 jan. 2008.

    57 Idem.58 Idem.59 GILSON, tienne. Op. cit. p. 514.60 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 13261 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. 55362 SOLIMEU, Plnio Maria. Santo Toms de Aquino, Prncipe da Filosofia e da

    Teologia Catlicas. Disponvel em . Acesso em: 4jan. de 2008.

    63 GILSON, tienne. Op. cit. p. 514.

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    conhecimento da obra de Aristteles. Com efeito, o filsofo grego influencioumuito o pensamento de So Toms como ser demonstrado adiante64.

    So Toms de Aquino tornou-se mestre na Universidade de Paris e morreucom 49 anos, quando se dirigia, a pedido do papa Gregrio X, para Lio, a fim departicipar de um conclio naquela cidade65.

    5.2. A conciliao entre f e razoA filosofia tomista esta inserida no movimento filosfico denominado

    escolstica, que promove uma importante revoluo, pois as cincias em geralpassam a se desenvolverem de forma autnoma, saindo do campo de influnciaabsoluta da teologia revelada66.

    [...] podemos indicar o programa de pesquisa fundamentalda escolstica, que vai do uso acrtico da razo e daconseqente aceitao da doutrina crist com base naautoridade s primeiras tentativas de penetrao racionalna Revelao e as construes sistemticas, que lem einterpretam as verdades crists de forma argumentada. [...]67

    So Toms de Aquino se esfora para demonstrar que possvel conciliar fcom razo, tendo desenvolvido seu pensamento em um momento em que a filosofiade Santo Agostinho perdia influncia para a de Aristteles. Com efeito, sua obramais conhecida, a Summa Theologica, tenta, no apenas atravs da f, mas tambmpela razo, comprovar suas teorias teolgicas, filosficas, polticas, jurdicas etc.68

    Tendo sido provavelmente o mais importante autor da escolstica, a filosofiatomista revolucionou de tal forma o pensamento jurdico medieval que MichelVilley chega a afirmar que so Toms o precursor dos sistemas de direito modernos,tendo, entre outras contribuies, aprimorado a doutrina do direito natural deAristteles, incentivado o desenvolvimento da doutrina jurdica como fonte dedireito e restabelecido a importncia da lei humana positivada (inclusive do direitoromano) 69.

    64 NADER. Paulo. Op. cit. p. 115.65 GILSON. tienne. Op. cit. p. 515.66 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. 482.67 Idem.68 NADER. Paulo. Op. cit. p. 115-116.69 VILLEY, Michel. Op. cit. 181-198.

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    5.3. Definio tomista de lei e seus elementos essenciaisDe acordo com a filosofia tomista, lei uma ordenao da razo no sentido

    do bem comum, promulgada por quem dirige a comunidade (quaedam rationisordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet promulgata)70. Extrai-sedessa definio os seguintes elementos essenciais: (a) ordena a razo, (b) visa aobem comum, (c) promulgao e (d) autoridade competente71.

    Verifica-se que So Toms no introduz a coero como elemento essencialda lei como defenderiam os positivistas sculos mais tarde. Para o aludido filsofo,a lei regra e medida, sendo estabelecida pela razo72. Jos Ricardo Cunha explicaque o ponto de partida ordenao da razo a explicitao do racionalismo tomista,influenciado por Aristteles, que acredita na razo como manifestao maior, melhor e primeirada natureza humana.73

    O segundo elemento essencial da lei a sua finalidade dirigida ao bem comum.Tal aspecto retoma a idia aristotlica de que a lei serve para a promoo dafelicidade. A finalidade de se ordenar a sociedade pela lei, justamente a depromover o bem comum. Quanto a esse aspecto, So Toms faz uma interessanteanlise da opinio de Santo Isidoro de Sevilha, registrando o seguinte:

    [...] diz Isidoro no Livro das Etimologias (II, cap. 10. Pl.82, 130): Se a lei se estabelece pela razo, ser lei tudo oque for estabelecido pela razo. Ora, a razo estabeleceno s o que se ordena ao bem comum, mas tambm oque se ordena ao bem privado. Portanto, a lei no seordena s ao bem comum, mas tambm ao bem privadode um s. Em sentido contrrio, h o que diz Isidoro noLivro V das Etimologias, cap. 21, P.L. 82, 203: a lei escritaem vista da utilidade comum dos cidados e no dointeresse privado [...]74

    Aps apontar esta contradio de Santo Isidoro de Sevilha, So Toms defendeque a lei tem como finalidade a promoo do bem comum, com o seguinteargumento: se a razo se dirige a um fim e a finalidade ltima da vida humana a

    70 REALE. Miguel. Op. cit. p. 638.71 CUNHA, Jos Ricardo. Op. cit. p. 14.72 AQUINO, Santo Toms. Escritos Polticos de Santo Toms de Aquino.

    Traduo de Francisco Benjamim de Souza Neto. Petrpolis: Vozes,1997, p. 35-37.

    73 CUNHA, Jos Ricardo. Op. cit. p. 15.74 AQUINO, Santo Toms. Op. cit. p. 37-38.

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    felicidade (ou beatitude), necessrio que a lei (ordenao da razo) vise sobretudo ordenao para a felicidade. Considerando que a parte se ordena para o todo eque o imperfeito se ordena ao perfeito e, considerando, que cada homem partede uma comunidade perfeita, necessrio que a lei vise ordenao para a felicidadecomum75.

    O terceiro elemento essencial da lei a promulgao que o ato que dvigncia lei, conferindo-lhe carter obrigatrio e vinculante, desde que direcionadaao bem comum. Por fim, o ltimo elemento essencial que a lei seja promulgadapor uma autoridade competente, ou seja, por quem exerce a funo de garantir oconvvio harmonioso na cidade76.

    5.4. Espcies de lei para So Toms de Aquino:Depois de apresentar o que da essncia das leis, So Toms passa a descrever

    os tipos de leis: lei eterna, lei natural, lei divina e lei humana.

    5.4.1. A idia de lei eterna A lei eterna a prpria razo de Deus que ordena todo o universo. Esta

    ordenao (ou ordenamento) dirige todas as coisas para seus fins (divinaprovidncia)77. Tudo o que est sujeito divina providncia regulado e mensuradopela lei eterna. At os animais irracionais esto sujeitos lei eterna, participandodela de forma distinta dos racionais e obedecendo-a por suas aes.78

    Como tudo o que se sujeita ao governo divino se sujeita lei eterna, os bonssujeitam-se lei eterna pela razo e os maus sujeitam-se (de forma imperfeita) porsofrerem as conseqncias de seu descumprimento.

    chamada de lei eterna porque a razo de Deus dotada de conceito eterno,nada sendo concebido por Ele temporariamente79.

    5.4.2. A idia de lei natural.So Toms de Aquino explica que, como tudo est submetido lei eterna,

    obviamente as criaturas racionais tambm esto. A lei natural seria, justamente, aparticipao da lei eterna na criatura racional80. Em outras palavras, a lei natural

    75 Idem.76 CUNHA, Jos Ricardo. Op. cit. p. 15.77 ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Op. cit. 567.78 AQUINO, Santo Toms. Op. cit. 45.79 NADER. Paulo. Op. cit. p. 116.80 AQUINO, Santo Toms. Op. cit. 45.

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    a forma em que a lei eterna atua sobre as criaturas racionais. o que faz com queo homem, pela razo natural, seja capaz de discernir entre o bem e o mal, evitandoeste e praticando aquele81.

    O direito natural se manifestaria por princpios fundamentais imutveisimpressos na mente humana (fazer o bem e evitar o mal) e preceitos secundrios,mais particulares, que so passveis de alteraes pontuais no tempo e no espaopara melhor atingir, no caso concreto, o objetivo da lei natural que fazer o beme evitar o mal. A atuao no se d de forma mecnica, mas avaliando asespecificidades de cada caso para realizar o bem objetivado.

    Michel Villey explica que a doutrina tomista distingue a idia de lei natural, dedireito natural e moral:

    [...] a noo de lei natural bem mais ampla que a dedireito. No se trata de uma regra jurdica qualquer. De queregra trata-se precisamente? Desta frmula: deve-se fazero bem, evitar o mal; ela , justamente, um dessesprincpios que foram depositados em ns pela intelignciadivina; esse princpio imutvel, mas ele puramenteformal; a partir do momento que se passa para asconcluses, para as solues concretas de direito, penetra-se no contingente. [...] Toms toma o cuidado de distinguirminuciosamente o direito do resto da moral [...]82

    5.4.3. A idia de lei divina.A lei divina o conjunto de preceitos divinos contidos nas Sagradas Escrituras

    (especialmente o declogo). Miguel Reale explica que a lei divina, de certa forma, lei positiva, porque lei posta, tornada explcita por Deus, para conhecimento dos homens,incapazes de determinar por si mesmos todos os princpios da vida prtica83.

    So Toms explica que a lei divina permite, por exemplo, que o homem conheapreceitos da lei eterna que no seriam possveis de serem alcanados pela razohumana. Ademais, confere certeza jurdica a preceitos de lei natural que poderiamno ter sido perfeitamente assimilados pela razo humana que limitada84.

    81 MILLN-PUELLES, Antonio. Lxico Filosfico. 2. ed. Madri: Rialp,2002. p. 389.

    82 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 148-149.83 REALE, Miguel. Op. cit. p. 638.84 AQUINO, Santo Toms. Op. cit. p. 50-51.

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    Apesar de ter importncia extraordinria na doutrina tomista, a lei divinaperdeu parte significativa da influncia que exerceu a partir da filosofia agostiniana.Com efeito, a partir de So Toms, a lei humana recupera o prestgio que possuaantes da patrstica, como ser demonstrado a seguir.

    5.4.4. A idia de lei humana.Como antes demonstrado, Santo Agostinho sustenta que nem toda a lei deriva

    da eterna, sendo comum que a lei humana, freqentemente, autorize condutacontrria providncia divina. Kelsen, por sua vez, admite que o direito positivo(lei humana) prescreva coercitivamente conduta contrria justia85. Diversamente,para So Toms a lei humana deve estar em consonncia com a lei natural86 econseqentemente com a lei eterna.

    Segundo a doutrina tomista, a lei humana somente teria natureza de lei quandose conformasse razo reta (eis que, como j afirmado, a razo da essncia dalei). O preceito justo estaria de acordo com a razo, que se apia na natureza.Portanto, se o comando normativo humano injusto (contrrio razo) ouincompatvel com a lei natural, conseqentemente no se estaria diante de umaverdadeira lei humana, mas, sim, de uma violncia ou corrupo.

    [...] o quanto dotada de justia, tanto o seu vigor delei. Nas coisas humanas, diz-se ser algo justo por ser retosegundo a regra da razo. Ora, por sua vez, a primeiraregra da razo a lei da natureza [...] Donde, toda leihumanamente imposta tanto tem razo de lei, quantoderiva da lei natural. Se, pois, em algo discorda da leinatural, j no ser lei, mas corrupo de lei.87

    Para So Toms, a lei humana o ordenamento da razo, visando ao bemcomum, promulgada pelo chefe da comunidade. Como visto acima, a lei temcomo finalidade o bem comum que inclui a paz dos homens. Para que sejarespeitada na sociedade, deve estabelecer o mecanismo de coero para coibir omal pela fora do medo. A rigor, a coao seria prescindvel para os indivduos

    85 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de Joo BaptistaMachado. 6. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1984. p. 100.

    86 NADER, Paulo. Op. cit. p. 117.87 AQUINO, Santo Toms. Op. cit. p. 90.

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    virtuosos, pois bastaria, nesses casos, a disciplina paterna, entretanto necessriapara aqueles que possuem tendncia para os vcios88.

    5.5. A justia para So Toms, sua classificao e propriedades essenciaisApesar de Paulo Nader sustentar que foi pequena a contribuio de So Toms

    de Aquino teoria da justia89, parece que essa no a opinio de outros renomadosjuristas, como Miguel Reale, que sustentam que a doutrina tomista sobre o tema inovadora e profunda, tendo aperfeioado o pensamento de Aristteles90.

    O filsofo grego reduzia o problema da justia ao da igualdade entre iguais eentre os desiguais. Nos casos em que as partes estivessem em situaesabsolutamente igualitrias, como em alguns negcios jurdicos, a justia comutativadeveria presidir. Nas relaes humanas em que ocorressem desigualdades entre aspartes, a justia distributiva deveria estar presente com sua regra maior que terminatratar desigualmente os desiguais, dando a cada um o que seu.

    So Toms acrescenta outro tipo de justia s duas mencionadas por Aristteles.Com efeito, se deve haver uma justia que conduza a relao entre iguais(comutativa) e uma justia que oriente a conduta da coletividade, representadapelo Estado, para com o indivduo (distributiva), tambm deveria haver uma justiaque orientasse a conduta do indivduo para com a coletividade. Surge, nessemomento, o embrio da idia de justia social que So Toms ir denominar dejustia legal ou geral91.

    A justia no uma virtude como as demais, pois depende da presena deoutrem para sua concretizao. O indivduo pode crescer em virtudes como f,esperana, coragem, temperana sem que precise se relacionar com outra pessoa,mas para crescer em justia precisa do outro, do alter. Assim, a alteridade propriedade essencial da justia92.

    Como ser justo prestar o devido a algum, tambm seria essencial idia dejustia a exigncia de um dever93.

    88 NADER, Paulo. Op. cit. p. 117.89 Idem.90 REALE, Miguel. Op. cit. p. 641.91 Segundo Miguel Reale (Op. cit. p. 641-642), So Toms sustentou que a

    justia legal teria primazia sobre a justia comutativa e a justiadistributiva.

    92 Idem.

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    5.6. Algumas das contribuies de So Tomas para o direito moderno.Entre as inmeras contribuies do pensamento de So Toms para o direito

    moderno, destacam-se as seguintes: (a) planta as sementes para das liberdadesindividuais do direito moderno; (b) estabelece as premissas da funo social dapropriedade e (c) fortalece a doutrina e a lei humana como fontes do direito.

    5.6.1. Sementes das liberdades individuais do direito moderno.So Toms acreditava que a finalidade ltima do homem era a felicidade (que

    em ltima instncia culminava na salvao eterna). Portanto, a lei, sendo fruto darazo, deveria contribuir para a busca deste fim. Diante disso, o senhor no poderia,por exemplo, interferir na vida sacramental do seu escravo, que deveria ter totalliberdade quanto ao seu casamento. Essa , segundo Michel Villey, uma dassementes das liberdades individuais do direito europeu moderno94.

    Segundo o renomado jurista francs, a filosofia tomista est na origem dedireitos como o da liberdade de conscincia e liberdade de opinio (quando defendeque a educao deve ser tirada do controle do Estado) e da noo de necessidadede se proteger o indivduo frente a polis, no que se refere aos interesses de suaalma95.

    5.6.2. A justia legal e a funo social da propriedadeA noo de justia legal (ou geral) de So Toms, como demonstrado

    anteriormente, representa a antecipao da idia de justia social. A EncclicaRerum Novarum, que faz diversas remisses doutrina tomista, refere-se s idiasda Doutrina Social da Igreja Catlica que exerceram influncia na transio doEstado Liberal clssico para o Estado Social.

    A idia da funo social da propriedade, acolhida expressamente no incisoXXIIII do artigo 5 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988,tambm encontra sua semente na doutrina de So Toms sobre a posse e o usodas riquezas, em que destacada a obrigao de todo cristo de dar o que excederao necessrio ao pobre como dever de caridade crist96.

    93 Nader. Paulo. Op. cit. p. 118.94 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 165.95 Ibidem. p. 164-165.96 Conferir a Constituio Pastoral Gaudium et Spes (1965) e as Encclicas

    Populorum Progressio (1967) e Centesimus Annus (1991) que contm diversasreferncias doutrina tomista sobre a justia social.

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    5.6.3. Fortalecimento da doutrina e a lei humana como fontes do direitoMichel Villey se refere a, pelo menos, mais duas contribuies importantssimas

    de So Toms para o direito moderno. Ele foi o responsvel pelo advento dadoutrina como fonte de direito e foi quem reabilitou a lei humana como necessriae boa, revertendo o pensamento agostiniano que via a lei terrena como prescindveldiante das Sagradas Escrituras97.

    De fato, embora grande parte dos manuais jurdicos no inclua a doutrinacomo fonte de direito autnoma, no h como se negar o papel que a doutrinaocupou na produo do direito dos sculos XVI a XVIII98 e que parece ocuparat os dias de hoje, por exemplo, na Corte Constitucional Alem.

    Da mesma forma, o direito positivo humano um dos pilares dos sistemasjurdicos modernos, o que levar Villey a concluir:

    Nas cidades e nos reinos, e, para comear, no imprio, asegunda metade do sculo XIII e o sculo XIV veromultiplicarem-se estatutos e ordenanas: frutos de um direitolaico, armado de regras fixas e precisas, que segue paraleloao desenvolvimento da organizao judiciria. A filosofiade so Toms correspondeu perfeitamente s necessidadese possibilidades dos Estados modernos nascentes.99

    6. CONCLUSO

    O tema da justia no pensamento medieval empolgante e motiva oinvestigador a aprofundar seus estudos nos livros de filosofia, bem como nasobras escritas por Santo Agostinho, por Santo Isidoro de Sevilha e por So Tomsde Aquino.

    Merece ser afastada a preconceituosa idia de que a Idade Mdia foi um perodode trevas culturais. Pelo contrrio, nessa poca surgiram as universidades europiase houve intenso intercmbio acadmico, que pode ser comprovado pelas inmerasviagens de So Toms de Aquino, que propiciaram a elaborao de obras doporte da Suma Teolgica.

    97 VILLEY, Michel. Op. cit. p. 183-198.98 Idem.99 Ibidem. p. 197.

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    Interessante observar a quantidade de institutos jurdicos modernos que fincamsuas razes em estudos realizados na era medieval e que, por suas qualidades tericas,exercem influncia ainda nos dias de hoje.

    Diante desse quadro, o presente estudo tentou apresentar, inicialmente, algunsaspectos histricos relevantes para a formao do pensamento medieval. Emseguida, trouxe alguns elementos o pensamento de Santo Agostinho, indicando ocontexto de sua produo, a importncia de sua obra Cidade de Deus e ressaltandoalguns pontos sobre a justia no seu pensamento.

    Aps tecer breves consideraes sobre o pensamento jurdico de Santo Isidorode Sevilha, esta monografia comeou a investigar a produo de So Toms deAquino, seguindo metodologia semelhante empregada com o Bispo de Hipona.Apresentou uma biografia resumida de So Toms e destacou a importanteconciliao entre f e razo que serviu de norte para o pensamento tomista.

    Em seguida, este artigo tentou indicar os elementos essenciais da lei, na filosofiade So Toms, e suas espcies, bem como a justia, sua classificao e propriedadesessenciais, para o mesmo pensador. Por fim, esta pesquisa tentou sugerir algumascontribuies de So Toms de Aquino para o direito moderno.

    Se este modesto texto servir para aguar a curiosidade do leitor a respeito dajustia no pensamento medieval, ele ter alcanado plenamente seu objetivo.

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