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    MTHESIS 10 2001 287-318

    O CAVALEIRO DA DINAMARCA

    de SOPHIA DE MELLO BREYNERUma proposta didcticapara o Ensino Bsico

    ROSA MARIA SOARES COUTO

    Um texto literrio reescreve-se indefinidamente

    a partir de uma sucesso infinita de leituras.Roland Barthes

    O conto O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner uma das obras recomendadas para o 7 ano unificado pelo programade Lngua Portuguesa do Ministrio da Educao para uma leituraintegral e orientada.

    O estudo do conto dever, naturalmente, ser antecedido de umaapresentao biobibliogrfica da autora, at porque Sophia de MelloBreyner uma presena constante, quer em narrativa quer em poesia,nos curricula de Lngua Portuguesa do 2 e 3 ciclos e do secundrio.Com efeito, para o 2 ciclo, so recomendadas, para uma leituraintegral e orientada no 5 ano, as narrativas: A Floresta,A Menina doMareA Fada Oriana; no 6 ano: O Rapaz de Bronze eA rvore . Parao 3 ciclo, no 7 ano: a j referida obra O Cavaleiro da Dinamarca eno 8 ano: Histrias da Terra e do Mar. A narrativa de Sophia deMello Breyner volta a ter lugar no programa de Lngua Portuguesa no12 ano com os Contos Exemplares. No respeitante poesia, ela estpresente em todos os nveis de ensino.

    Relativamente biografia, devero salientar-se, preferencial-mente, aspectos que tenham sido responsveis, de forma mais directa,pelo percurso literrio seguido pela escritora e que possam, por isso,ajudar a compreender melhor o seu perfil literrio bem como a sua

    obra em geral, no que concerne, por exemplo, persistncia dedeterminados temas.Neste sentido, aconselhvel a leitura, na aula, de alguns

    extractos de depoimentos biobibliogrficos dados pela prpria Sophiaem entrevistas.

    Passo a transcrever um desses possveis extractos tirado daantologia De Que So Feitos os Sonhos, no s por ser curioso e

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    esclarecedor do motivo que levou Sophia de Mello Breyner a escreverliteratura infantil, mas tambm por revelar como surgiu o livro AMenina do Mar:

    Porque comecei a escrever para crianas?Comecei a inventar histrias para crianas quando os meus filhos

    tiveram sarampo. Era no Inverno e o mdico tinha dito que eles deviam ficarna cama, bem cobertos, bem agasalhados. Para isso era preciso entret-los odia inteiro. Primeiro contei todas as histrias que sabia. Depois mandeicomprar alguns livros que tentei ler em voz alta. Mas no suportei a pieguiceda linguagem nem a sentimentalidade da mensagem: uma criana umacriana, no um pateta. Atirei os livros fora e resolvi inventar. Procurei a

    memria daquilo que tinha fascinado a minha prpria infncia. Lembrei-mede que quando eu tinha cinco ou seis anos e vivia numa casa branca na duna a minha me me tinha contado que nos rochedos daquela praia1 moravauma menina muito pequenina. Como nesse tempo, para mim, a felicidademxima era tomar banho entre os rochedos, essa menina marinha tornou-se ocentro das minhas imaginaes. E a partir desse antigo mundo real eimaginrio, comecei a contar a histria a que mais tarde chamei A Meninado Mar.

    Os meus filhos ajudavam. Perguntavam: De que cor era o vestido da menina? O que que fazia o peixe?Alis, nas minhas histrias para crianas quase tudo escrito a partir

    dos lugares da minha infncia.2

    Numa outra entrevista, inserta em As crianas entrevistam 16escritores, Sophia revela-nos como surgiu o livro A Floresta. Vejamoscomo foi:

    A ideia do livro A Floresta foi duma quinta, como a da minha av,onde vivia quando era pequena. Por exemplo, aquela histria dos anes porque havia umas rvores com umas razes que se viam ao de cima da terra,e eu fazia ali casas, com musgo, pedras, canas, etc..3

    Verificamos, assim, que os lugares predilectos da infncia deSophia servem de palco s suas histrias e que continuam a exercerum grande fascnio na escritora ao ponto de constiturem umapresena constante na sua obra, tanto em prosa, como em verso. Por

    exemplo, o mar percorre toda a sua poesia e est presente tambmnos contos, recorde-se, entre outros, A Saga eA Casa do Mar, ambos

    1 A praia a que Sophia de Mello Breyner se refere a praia da Granja. Comefeito foi nesta praia e na cidade do Porto que Sophia viveu a sua infncia ejuventude.

    2L. D. SOARES (2000: 19).3 Citado de F. COSTA e R. de CASTRO (1995: 35).

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    inseridos na obra Histrias da Terra e do Mar, que, alis, tambmuma das obras indicadas pelo programa de Portugus do 8 anounificado. A atestar o fascnio que o mar exerce na escritora, refiram-se, por exemplo, dois pequenos poemas: o primeiro, constitudo porum dstico, intitula-se Inscrio e foi extrado do Livro Sexto; osegundo, formado por uma quadra, intitula-se Mar e foi retirado dacolectnea Poesia I.

    INSCRIO

    Quando eu morrer voltarei para buscaros instantes que no vivi junto do mar.

    MAR

    De todos os cantos do mundoAmo com um amor mais forte e mais profundoAquela praia extasiada e nua,Onde me uni ao mar, ao vento e lua.

    Detenhamo-nos agora no conto O Cavaleiro da Dinamarca.Facilmente se constata que, tambm neste conto, a vida e a obraandam de mos dadas. Com efeito, a ascendncia dinamarquesa, porparte do pai, o gosto pelas viagens, a seduo pela beleza das coisas edos lugares e o profundo sentimento religioso esto nele bem patentes.

    O professor dever iniciar o estudo do conto, comeando porpedir aos alunos que observem atentamente o livro4 e que faam olevantamento dos elementos paratextuais constantes na capa e contra-capa e, de seguida, que infiram sobre o ttulo e sobre a ilustrao.

    Assim sendo, o aluno dever ser levado a constatar que a simplesleitura do ttulo transmite informaes relativas a duas das categoriasda narrativa: diz-nos que uma das personagens um Cavaleiro, dando-nos informaes sobre ela, mais concretamente sobre a suanacionalidade, Dinamarquesa. Somos, assim, pelo ttulo, levados aconcluir que este Cavaleiro ser o protagonista da aco, pois d o

    ttulo ao prprio conto, o que atesta a sua relevncia, e que aDinamarca ser, provavelmente, o ou um dos espaos fsicos onde sedesenrola a aco do conto. A finalizar a explorao do ttulo, e demodo a estimular a criatividade dos alunos, poder-se- pedir-lhes queimaginem possibilidades narrativas sugeridas pelo ttulo.

    4 Para a elaborao deste trabalho utilizou-se a 48 edio da editoraFigueirinhas, 1997.

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    Para um conhecimento mais aprofundado do protagonista, poder-se- ainda pedir aos alunos que exponham o conceito que tm deCavaleiro, que se pronunciem sobre a poca em que o situariam, demodo a fazerem conjecturas quanto ao tempo cronolgico da narrativae que pesquisem, em actividade de interdisciplinaridade com Histria,o seu valor simblico. Com efeito, um Cavaleiro smbolo detriunfo e de glria, sacrifica-se por uma causa at morte e essa causa, geralmente, (uma empresa) de carcter moral e sagrado5.

    Posteriormente, medida que se for lendo e analisando o conto,poder-se- ver se a personagem Cavaleiro corresponde ou no a estevalor simblico to nobre que atribudo aos cavaleiros. Em

    interdisciplinaridade com Geografia, e de modo a contextualizarmelhor os alunos, poder-se- pedir-lhes um trabalho de pesquisa sobrea Dinamarca: localizao geogrfica, rea, densidade populacional,capital, regime poltico, unidade monetria, lngua oficial, religio deestado, etc.

    Seguidamente, os alunos devero debruar-se sobre a ilustraoda capa e contra-capa e pronunciar-se sobre o que esta lhes sugere epara que lugar ou lugares os remete, de modo a, posteriormente,relacion-la com o contedo da obra, mais concretamente com oespao por excelncia da obra que a Floresta. Com efeito, com esteespao a floresta que abre e termina esta narrativa; talvez, por issomesmo, a ilustrao se estenda at contra-capa para dar precisamentea ideia de um priplo fechado e, pela profuso de vegetao, sugere-nos que a floresta um labirinto de arvoredo e, como veremos, oCavaleiro vai, efectivamente, perder-se nela.

    Um outro elemento que merece uma referncia, ainda que breve, o nmero da edio (no caso da obra utilizada para este trabalho a48) por ser evidenciador do grande interesse que a obra tem suscitadonos leitores.

    Passemos agora anlise da obra propriamente dita.A histria deste conto inicia-se com uma longa descrio, que

    comea com: A Dinamarca fica no Norte da Europa... (pg.5) e termina coma seguinte frase: At que certo Natal aconteceu naquela casa uma coisa que

    ningum esperava(pg.10), ocupando, ao todo, onze pargrafos.Esta descrio permite:

    5 Cf. J. CHEVALIER ET A. GHEERBRANT (1999: s.u. Cavaleiro).

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    1. Localizar geograficamente a Dinamarca - no Norte da Europa- e conhecer as caractersticas do Inverno naquele pas (1pargrafo);

    Longos e rigorososNoites muito compridasDias curtos, plidos e geladosA neve cobre a terra e os telhados

    OS INVERNOS Os rios gelamOs pssaros emigram

    As rvores perdem as suas folhasAs florestas geladas e despidasGrande silncio imvel e branco

    S os pinheiros continuam verdes. S eles (...) parecem vivos no meio do grande silncio imvel ebranco.

    Note-se a simbologia do pinheiro. No extremo Oriente ele smbolo da imortalidade, devido persistncia da folha no Inverno6.

    Este primeiro pargrafo permite ao professor explorar com osseus alunos as caractersticas inerentes a este modo de expresso: adescrio . Com efeito, apresenta uma abundante adjectivao,recursos estilsticos (com destaque para a personificao) e frtil emsensaes visuais.

    2. Situar a aco no tempo: H muitos anos, h dezenas e centenas deanos... e no espao: havia em certo lugar da Dinamarca, no extremoNorte do pas, perto do mar, uma grande floresta de pinheiros, tlias, abetose carvalhos. Nessa floresta morava com a sua famlia um Cavaleiro. Viviamnuma casa construda numa clareira rodeada de btulas. E em frente da porta da casa havia um grande pinheiro que era a rvore mais alta da

    floresta. (2 pargrafo)Note-se a indefinio/impreciso temporal e espacial: H muitos

    anos, h dezenas e centenas de anos, havia em certo lugar...

    6 Cf. Ibidem, s.u.pinheiro.

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    No entanto, no que concerne ao espao, regista-se uma gradaono sentido do geral para o particular. Assim temos:

    Dinamarca Norte do pas floresta casa naclareira em frente porta um Pinheiro.

    importante esta referncia e relevncia que dada ao Pinheiro,pois esta rvore um elemento fundamental na histria do conto. Ele-nos referido novamente no final da histria e graas a ele, comoveremos, farol de regresso, que o Cavaleiro consegue chegar at suacasa.

    Recorde-se que o pinheiro considerado, entre os orientais, osmbolo da imortalidade. Talvez a presena e referncia a este smbolono incio do conto constitua, precisamente, um prenncio votivo deuma empresa bem sucedida por parte do Cavaleiro, at porque oesprito que lhe presidiu foi o seu sentimento religioso, a f.

    3. Admirar, nas diferentes estaes do ano, os vrios rostos dafloresta.

    . as btulas cobriam-se de jovens folhas, leves e claras

    . a neve desaparecia

    . o degelo soltava as guas do rio, cuja correnterecomeava a cantar noite e dia

    . a floresta enchia-se de cogumelos e morangosselvagens

    NA PRIMAVERA . os pssaros voltavam do Sul

    . o cho cobria-se de flores

    . os esquilos saltavam de rvore em rvore

    . o ar povoava-se de vozes e de abelhas

    . a brisa sussurrava nas ramagens

    . manhs verdes e doiradas

    . as crianas saam muito cedo e iam colher flores,morangos, amoras e cogumelosNO VERO . as crianas teciam grinaldas que poisavam nos

    cabelos ou que punham a flutuar no rio. as crianas danavam e cantavam sob a sombra das

    rvores

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    NO OUTONO . o vento despia os arvoredos

    NO INVERNO . a floresta ficava imvel e muda, presa emseus vestidos de neve e gelo

    No entanto no Inverno que decorre:. a maior festa do ano

    . a maior alegria

    O NATAL

    Constate-se que o texto continua a ser riqussimo em adjectivos,verificando-se mesmo casos de dupla e at tripla adjectivao:manhs verdes e doiradas;as btulas cobriam-se de jovens folhas,leves e claras; em recursos estilsticos, como por exemplo oanimismo, a personificao, a enumerao e a metfora: a correnterecomeava a cantar noite e dia ;a brisa sussurrava nas ramagens ;

    as crianas saam muito cedo e iam colher flores, morangos, amorase cogumelos;a floresta ficava imvel e muda, presa em seus vestidos de neve e gelo; em sensaes visuais: o cho cobria-se de flores;auditivas: o ar povoava-se de vozes e de abelhas; e que o tempoverbal predominante o pretrito imperfeito.

    A descrio que nos feita por Sophia de Mello Breyner torealista e impressionista que se lhe pode aplicar a afirmao que dizque descrever pintar com palavras. Poder-se- ento pedir aosalunos que, mantendo-se fiis ao texto, desenhem a floresta nas vriasestaes do ano.

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    4. Permite conhecer o modo como era preparada e vivida a noitede Natal em casa do Cavaleiro:

    . juntava-se a famlia

    . vinham amigos e parentes, criados da casa eservos da floresta

    . em frente da lareira armava-se uma enormemesa para todos

    . comiam, riam e bebiam vinho quente ecerveja com mel

    . narravam-se histrias:

    - de lobos e ursos- de gnomos e anes- de Tristo e Isolda7- de Alf, rei da Dinamarca e de Sigurd8

    7 A histria de Tristo e Isolda um mito celta, originrio da Bretanha.Isolda era uma princesa irlandesa e a histria do seu amor por Tristo causou

    uma grande popularidade na Idade Mdia.Um filtro do amor preparado pela me de Isolda foi a causa do grande amor

    deste par desafortunado. Tristo e Isolda beberam-no acidentalmente quando Tristoescoltava a jovem para a Cornualha, onde o rei Marco a esperava para se casarem. Apartir da, apesar de Isolda se ter casado, Tristo e Isolda encontravam-se em segredo,

    mas no conseguiram manter secreta por muito tempo a sua paixo, chegando mesmoa ser encontrados pelo rei Marco, marido de Isolda e tio de Tristo. Comovido pelamisericrdia do tio, Tristo casou e partiu para a Bretanha. Mas no conseguiu serfeliz e a sua paixo por Isolda obrigava-o a ir Cornualha encontrar-se em segredocom ela. Um dia Tristo ferido e manda chamar Isolda para o tratar, pois j uma vezo curara de um grave ferimento. Ela parte para a Bretanha com um unguento mgico.Tinham acordado que o barco que a transportasse deveria envergar uma vela branca.Com cimes de Isolda, a esposa de Tristo disse-lhe ter avistado um barco com umavela negra. Tristo, julgando que essa vela simbolizava que Isolda tinha morrido,perdeu a vontade de viver e lanou-se sobre a sua espada. Isolda tambm no suportoua perda de Tristo e morreu pouco tempo depois de desgosto. Cf. A. COTTERELL,(1998).

    8 Sigurd (Jorsalafar) rei da Noruega conhecido pelo nome de o Peregrino deJerusalm (m. 1170). Participou numa grande expedio martima de sessenta naviospara libertar a Terra Santa. Lutou inclusivamente na Pennsula Ibrica contra os

    Muulmanos. Cf. Enciclopdia Luso Brasileira de Cultura, s. u. Sigurd.Sigurd, tambm conhecido pelo nome de Siegfried, ainda o nome de um dos

    heris das lendas germnicas e escandinavas que foi incumbido pelo seu pai adoptivo,Regin, ferreiro do rei da Jutlndia, de recuperar um fabuloso tesouro guardado por umterrvel drago chamado Fafnir.

    Este tesouro pertencera ao ano Andvari e, posteriormente, ao pai de Regin,Hreidmar. Regin e o seu irmo Fafnir, para se apoderarem dele, mataram Hreidmar,mas Fafnir quis o tesouro s para si e transformou-se num drago para o guardar. este tesouro que Sigurd consegue recuperar, matando Fafnir.

    NOITE

    DE

    NATAL

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    - dos reis Magos, dos pastores e dosAnjos

    Em suma, -nos dito que a noite de Natal era igual todos os anos:Sempre a mesma festa, sempre a mesma ceia, sempre as grandescoroas de azevinho penduradas nas portas, sempre as mesmashistrias. Note-se a repetio anafrica do advrbio de temposempre para intensificar a ideia de rotina e monotonia, mas, logo aseguir, surge a adversativa mas para dizer que as coisas tantas vezesrepetidas e as histrias tantas vezes ouvidas pareciam cada vez maisbelas e misteriosas.

    Portanto um verdadeiro esprito de Natal, de paz, alegria econfraternizao reinava em casa do Cavaleiro na noite comprida efria de Natal. Evidenciador desta alegria e calor humano o pargrafoL fora havia gelo, vento e neve. Mas em casa do Cavaleiro haviacalor e luz, riso e alegria. Este pargrafo pe em evidncia o contrasteentre o espao exterior e o espao interior.

    E era assim que, ano aps ano, era celebrado o Natal nestaagradvel e partilhada harmonia, at que certo Natal aconteceunaquela casa uma coisa que ningum esperava.

    esta frase que marca o fim da longa descrio que constitui aintroduo - pois nela se faz a localizao espcio-temporal bem como

    a apresentao de algumas personagens - e o incio da narrao dasperipcias que o Cavaleiro ir viver.

    Esse acontecimento inesperado foi a comunicao, por parte doCavaleiro, da sua inteno de passar o Natal seguinte na gruta ondeJesus Cristo nasceu, em Belm. A esta revelao juntou-se a promessade que dali a dois anos estariam de novo reunidos para celebrarem,como j era tradio, juntos o Natal. A partida fica marcada para aPrimavera, por questes climatricas, pois, como vimos, os invernosna Dinamarca so muito rigorosos.

    So-nos, assim, fornecidos informantes temporais e espaciaisrelevantes que poderemos sintetizar atravs do seguinte esquema(vd fig. 1).

    Embora esta faanha herica de Sigurd lhe tenha granjeado fama e fortuna, a suavida a partir de ento ficou condenada tragdia que acompanhava o tesouromalfadado. Cf. A. COTTERELL (1998: 205 e 224).

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    Fig. 1

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    Com efeito. ficamos a saber que a aco principal, que constituda pela viagem (ida e regresso) do Cavaleiro, ir levar cercade dois anos e que o destino a Palestina. Portanto a aco irdecorrer num espao amplo e heterogneo constitudo pelo itinerrioestabelecido pelo Cavaleiro desde a Dinamarca at Palestina e vice-versa.

    Esta notcia da partida foi acolhida por todos com espanto, comtristeza e inquietao, mas ningum, nem a mulher, apesar de naqueletempo as viagens serem longas, perigosas e difceis, ousou dissuadir oCavaleiro de partir, pois movia-o um sentimento nobre, o sentimento

    religioso, a sua f.Chegada a Primavera, o Cavaleiro deixou a sua floresta e dirigiu-

    se para a cidade mais prxima, que era um porto de mar. Nesse portoembarcou e chegou muito antes do Natal s costas da Palestina. Daseguiu com outros peregrinos para Jerusalm.

    Curioso ser analisar o tempo do discurso, ou seja, o tratamentoque feito pelo narrador do tempo cronolgico da histria, neste caso,da viagem de ida, para, posteriormente, compar-lo com o tempo dodiscurso da viagem de regresso e constatar que h uma grandedisparidade entre eles, como se pode verificar pelo seguinte esquema(vd. fig.2).

    Narram-se, de seguida, as aces praticadas pelo Cavaleiro emJerusalm:

    ?? visitou um por um os lugares santos?? rezou no Monte Calvrio e no Jardim das

    oliveiras?? lavou a sua cara nas guas do Jordo?? viu as guas azuis do lago de Tiberade?? procurou, no testemunho mudo das

    pedras, o rasto de sangue e sofrimento deJesus Cristo

    ?? caminhou nos montes da Judeia

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    Fig. 2

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    . dirigiu-se para a gruta de Belm

    . rezou toda a noite:- pelo fim das misrias e das guerras;- pela paz e pela alegria do mundo

    . julgou ouvir a orao dos anjos

    . desceu sobre ele uma grande paz e confiana

    . beijou as pedras da gruta

    . pediu a Deus que o fizesse um homem de boavontade. pediu aos anjos que o protegessem eguiassem na viagem de regresso, para que, daa um ano, pudesse celebrar o Natal com os

    seus

    Este momento afigura-se, pois, uma boa oportunidade paraexplorar um dos modos de expresso, a narrao, destacando-se ascaractersticas que o definem para que os alunos concluam que estemodo de expresso constitui um momento de avano da aco, ouseja, que tem uma funo nuclear. Constate-se que o carcterdinmico deste segmento narrativo conferido pela existncia deverbos de movimento: visitou,procurou,caminhou,dirigiu-se; pela sucessoencadeada de acontecimentos susceptveis de serem temporalmentereferenciados e pela instantaneidade das aces que se reflecte nautilizao preferencial do tempo do pretrito perfeito.

    Passado o Natal, o Cavaleiro demorou-se ainda dois meses naPalestina, s partindo de Jerusalm para o Porto de Jafa em finais deFevereiro. Foi nesta ocasio que travou grande amizade com um outroperegrino, um mercador de Veneza, em casa do qual se ir hospedarcomo iremos ver.

    Inicia-se assim a sua viagem de regresso, mas, em Jafa, surge oprimeiro dos contratempos, pois devido ao mau tempo s puderamembarcar em meados de Maro. Curioso ser ento notar que foi emMaro que iniciou a viagem com destino Palestina e acaba por sertambm em Maro que se despede da Palestina e inicia a sua viagemde regresso Dinamarca.

    J no mar surge um segundo contratempo, uma tempestade, e, denovo, o modo de expresso que volta a imperar a descrio , paranos dar a conhecer a violncia da tempestade e, de novo, temos umalinguagem rica de expressividade, de sensaes visuais e auditivas, derecursos estilsticos com realce para a personificao, metfora ealiterao.

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    ??O navio ora subia na crista da vaga orarecaa pesadamente estremecendo de ponta aponta.??Os mastros e os cabos estalavam e gemiam.?? As ondas batiam com fria no casco evarriam a popa.??O navio ora virava todo para a esquerda, oravirava todo para a direita.??Os marinheiros davam bomba.??O vento rasgava as velas em pedaos.??Navegavam sem governo ao sabor do mar.

    A violncia da tempestade era tal que o Cavaleiro j pensava queno voltaria a ver a sua terra. Mas, passados cinco dias, a tempestadepassou e, iando velas novas e com a brisa soprando a favor,conseguiram chegar, apesar do mau estado do barco, ao porto dacidade de Ravena, na costa do Adritico, nas terras de Itlia.

    A beleza de Ravena enchia de espanto o Cavaleiro.

    ??As belas igrejas??As altas naves??Os leves arcos

    ??As finas fileiras de colunas??Os mosaicos multicolores com esguias figurasde rainhas e santos

    Visto o navio no estar em condies para poder seguir viagem, oMercador de Veneza convidou o Cavaleiro para seguir com ele at sua cidade, pois se Ravena o espantava, Veneza, construda sobre asguas, deslumbr-lo-ia ainda mais e, de l, poderia seguir por terrapara o porto de Gnova donde partem constantemente navios para aFlandres e, assim, ficaria a conhecer as belas e ricas cidades do Norteda Itlia.

    A referncia opulncia e prosperidade das cidades do Norte daItlia um indicador do tempo cronolgico da narrativa principal, poissabemos que as cidades italianas foram palco de um grandedesenvolvimento comercial, econmico e cultural no sculo XV.

    O Cavaleiro decidiu aceitar o convite do Mercador e seguiu comele para Veneza.

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    pertinente que os alunos vo acompanhando e assinalando nummapa o percurso da viagem de regresso do Cavaleiro e que observemimagens sobre os principais locais por ele visitados.

    De novo surge um momento de pausa na aco para descrever a,paradoxalmente, indescritvel beleza desta cidade e tambm as festasque o Mercador dava no seu palcio em honra do Cavaleiro, ospasseios, as conversas, etc.. E mais uma vez se destacam os recursosestilsticos, a abundante adjectivao, as sensaes visuais, auditivas,etc..

    Com efeito, em Veneza, tudo foi espanto para o Cavaleiro: acidade area e leve pousava sobre as guas verdes, ao longo da sua

    prpria imagem, parecendo-lhe fantstica, irreal, nascida do mar, feitade miragens e reflexos.

    ??As ruas eram canais ondedeslizavam estreitos barcos finos eescuros9.??Os palcios cresciam das guas quereflectiam os mrmores, as pinturas, ascolunas.??Area e leve a cidade pousava sobreas guas verdes, ao longo da suaprpria imagem.??Vozes, risos, canes e sinos

    enchiam o ar da tarde.?? tanta riqueza e tanta beleza.

    precisamente neste espao propcio s histrias de encantar quesurge a primeira das quatro narrativas de encaixe, a histria deVanina, uma histria secundria, mas tambm ela encantadora, bemao gosto romanesco. Recordemo-la:

    Vanina, a rapariga mais bela de Veneza, era orf de pai e me eestava sob a tutela de Jacob Orso. Este prometera-a em casamento aArrigo. Como Vanina se recusara a casar com ele, por o achar velho e

    feio, o seu tutor, como castigo pela sua desobedincia, mantinha-aenclausurada em casa, sempre vigiada pelas aias. S noite, quandotodos dormiam, que Vanina encontrava um pouco de liberdade e iaento para a varanda do quarto pentear os seus belos e perfumadoscabelos.

    9 Estes barcos so as famosssimas gndolas.

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    Certo dia passou pelo canal, em frente varanda onde Vanina sepenteava, um belo e destemido navegador chamado Guidobaldo.Vanina e Guidobaldo apaixonaram-se e, como Jacob Orso tivesserecusado a mo de Vanina a Guidobaldo e o ameaasse de morte seele no sasse da cidade, Guidobaldo partiu, mas levou com eleVanina e nunca mais foram encontrados.

    Antes de se entrar na anlise das categorias desta narrativasecundria, convir informar os alunos da razo pela qual podemosafirmar que estamos perante uma narrativa de encaixe.

    Pondo ento os contedos de funcionamento da lngua ao servioda compreenso, dever-se- levar os alunos a decomporem a palavra

    encaixe nos seus elementos constituintes, classificando-a quanto aoprocesso de formao, identificando a palavra primitiva caixa edescobrindo o significado do prefixo en- proveniente da preposiolatina in que significa: dentro de . Os alunos ficaro ento acompreender o conceito de narrativa de encaixe, e percebero que estahistria encaixada, pois surge inserta na histria principal. Estecontedo pode ser sistematizado atravs de um esquema muitosimples que ir ser completado por eles medida que forem surgindooutras narrativas tambm de encaixe.

    A VIAGEMDO

    CAVALEIRO

    HistriaDe

    Vanina

    HistriaDe

    Giotto

    Histria

    DeDante

    Histria

    DePero Dias

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    Seguidamente, poder-se- pedir aos alunos que delimitem ahistria de Vanina, constatando que ela nasce da curiosidade doCavaleiro acerca do belo palcio que avistou em frente varanda ondeconversava com o Mercador, perguntando quem morava ali. A histriacomea precisamente quando o Mercador responde ao Cavaleiro,satisfazendo-lhe a sua curiosidade: Agora ali s mora Jacob Orso... (pg.20) e estende-se at pgina 26: E Vanina e Guidobaldo nunca mais foramencontrados.

    Assim, delimitada a histria, identificados o narrador e onarratrio, respectivamente o Mercador e o Cavaleiro, os alunospodero comear por fazer o levantamento das personagens da

    histria, classificando-as quanto sua relevncia na aco ecaracterizando-as e identificando os diferentes tipos e processos decaracterizao.

    Quanto ao espao fsico, constataro que, neste momento danarrativa, ele coincidente na narrativa principal e secundria, emboraem tempos dspares, mas, mais uma vez, semelhana do queacontece nas histrias de encantar do maravilhoso popular, o tempoafigura-se indeterminado: Agora ali s mora Jacob Orso com os seus criados,mas antes tambm ali morou Vanina, que era a rapariga mais bela de Veneza. Comefeito, o advrbio de tempo antes no determinado.

    Para finalizar o estudo desta narrativa, os alunos poderoclassific-la quanto ao seu desfecho e, para exercitarem a imaginao

    e aperfeioarem a expresso escrita, podero dar-lhe continuidade oureformular o desfecho dando-lhe uma verso diferente.Posteriormente, podero recordar histrias de amores impossveis ouproibidos que ficaram clebres e se perpetuaram ao longo da histria,como por exemplo: Sanso e Dalila; Pramo e Tisbe; Tristo e Isolda;Pedro e Ins; Romeu e Julieta; etc., comparando-os com a histria deVanina e Guidobaldo, destacando as semelhanas e as diferenas.

    E foi assim que, em conversas, festas, ceias e passeios, se passouum ms e o Cavaleiro anunciou a sua inteno de prosseguir viagem,recusando o convite do Mercador para se associar aos seus negcios eestabelecer a sua vida em Veneza.

    Passados trs dias, partiu em direco a Gnova com cartas deapresentao para ser recebido pelos homens mais nobres das cidadesdo Norte da Itlia. Estava-se em Abril. Aconselhado pelo Mercador,decidiu no entanto fazer, a meio da viagem para Gnova, um desviopara conhecer a clebre cidade de Florena. Passou por Ferrara,Bolonha e, no princpio de Maio, chegou a Florena.

    Florena, com os seus telhados vermelhos, as suas torres, as suascpulas, os seus campanrios, as igrejas de mrmore preto e branco, as

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    muitas esttuas, espantou o Cavaleiro, tal como o havia espantado abeleza de Veneza. Curioso ser analisar neste segmento descritivo dacidade de Florena a adjectivao utilizada, as cores referidas,comparando-as com as utilizadas na descrio de Veneza, e inferirsobre o contributo destes elementos visuais numa descrio.Constataro que uma pequena frase sintetiza a diferena existente nadescrio das duas cidades: Mas aqui tudo era mais grave e austero.

    Em Florena, o Cavaleiro, com a carta de apresentao que lhedera o Mercador de Veneza, procurou a casa do banqueiro Averardo ea ficou hospedado. De novo surge um segmento descritivo para nosdar a conhecer a casa do banqueiro e a forma como ocupavam os

    seres. E o que espantou mais o Cavaleiro foi, precisamente, o teordas conversas aos seres:

    ?? discutiam os movimentos do Sol10 e da luz?? discutiam os mistrios do cu e da Terra?? falavam de Matemtica, de Astronomia, de

    Filosofia?? falavam de esttuas antigas?? falavam de pinturas acabadas de pintar?? falavam do passado, do presente e do futuro?? falavam de poesia, de msica e de

    arquitectura.

    Em suma: Parecia que toda a sabedoria da Terraestava reunida naquela sala.

    Feito este levantamento, poder-se- analisar o significado darepetio verbal e o valor do tempo verbal do pretrito imperfeito,como tempo da durabilidade ou continuidade da aco.

    Ora, foi precisamente numa dessas ocasies, em que o teor daconversa era a obra de Giotto, que o Cavaleiro, no sabendo de quemse tratava, com uma simples pergunta: - Quem Giotto? d origem aoaparecimento da segunda histria encaixada, cujo narrador Filippo. extremamente importante a reposta que Filippo d a esta perguntapela referncia temporal que feita, pois quando Filippo diz queGiotto um pintor do sculo passado, permite-nos tirar ilaes quanto

    10 Note-se que a teoria vigorante nesta poca (sc.XV) era a teoria geocntricaconcebida por Ptolomeu: a Terra estava imvel, tendo nove planetas a girar em seuredor. O geocentrismo s foi substitudo pelo heliocentrismo, com Coprnico, nosc.XVI.

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    ao tempo cronolgico em que se desenrola a histria do Cavaleiro.Com efeito, Giotto di Bondone foi um pintor italiano nascido emColle di Vespignano, junto de Florena, em 1266 ou 1267, e falecidoem Florena, em 1337. Assim sendo, ficamos a saber que a histria daviagem do Cavaleiro decorre no sculo XV.

    Feita a identificao do narrador e narratrio da histria,recordado o motivo pelo qual se pode considerar uma histriaencaixada, poder-se- fazer a delimitao da histria, que se estendeda pgina 31 at pgina 34: Giotto tornou-se assim o pintor mais clebredaquele tempo.

    Efectuada a leitura desta narrativa secundria, poder-se-

    recomendar aos alunos, como leitura extensiva e complementar, a obraUm rapaz chamado Giotto de Paolo Guarnieri e Bimba Landmann,publicada pela editora Livros Horizonte. Tomando este livro comoponto de partida, poder-se- pedir que procurem adaptar esta bonitahistria a Banda Desenhada, em regime de interdisciplinaridade comEducao Visual e Tecnolgica.

    Ser tambm pertinente pedir aos alunos que pesquisem emenciclopdias e histrias de arte quem foi Giotto e Cimabue, de modoa, posteriormente, conseguirem separar o que nesta narrativa histriado que lenda. Com efeito, pouco se conhece da vida de Giotto,sobretudo no que diz respeito sua juventude. Um dos autores que sededicou ao estudo da vida e obra de Giotto foi Vasari11. Vejamos o

    que ele diz na biografia que escreveu de Giotto, alis, muitosemelhante histria narrada por Sophia de Mello Breyner sobre estapersonagem:

    A arte da pintura comeou a reviver numa pequena povoao vizinha deFlorena, chamada Vespignano. Ali nasceu um rapazito de gnio maravilhoso,que sabia desenhar uma ovelha do natural. Um dia passou por aquela aldeia o pintor Cimabue, que ia a Bolonha, e, ao ver o rapazito a desenhar as suasovelhas numa pedra, cheio de espanto, perguntou-lhe como se chamava: chamo-me Giotto e meu pai, que vive nesta casa, chama-se Bondone. Ento Cimabue pediu ao pai que lhe confiasse o filho, que, com o tempo, viria a ser o seudiscpulo predilecto12.

    11 Giorgio Vasari pintor, arquitecto e escritor italiano (Arezzo, 1511 Florena, 1574). O principal legado de Vasari constitudo pelas suas obras escritas,principalmente as clebres Vite, onde pela primeira vez se faz o confronto da biografiados artistas com a descrio da sua obra, e a sua integrao numa teoria de arte: Levite d pi eccelenti Pittori, Scultori e Architettori, Florena, 1550 e 1568.

    12 J. PIJOAN (1978: 20).

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    No entanto este texto considerado fantasista13, sendo de pr departe a lenda do jovem pastor descoberto e protegido por Cimabue.Sabe-se, no entanto, que foi discpulo de Cimabue e que revelou desdecedo um talento em nada inferior ao do seu mestre. A este propsitoconta-se uma histria curiosa: Giotto, quando ainda era criana ealuno de Cimabue, havia pintado uma mosca no nariz de uma figurana qual o prprio Cimabue estava a trabalhar. A mosca era to fielque, quando o mestre retornou para continuar o seu trabalho, elepensou tratar-se de uma mosca de verdade e levantou a sua mo vriasvezes para afast-la.

    Quanto a Cimabue, sabe-se que foi um pintor italiano de nome

    Cenni di Pepi, mais conhecido por Cimabue, que nasceu em Florena,provavelmente em 1240 e que ter falecido depois de 1302. A suatcnica e estilo foi seguida, entre outros, por Giotto.

    Para desenvolver o sentido esttico dos alunos e estimular asensibilidade, poder-se-o mostrar pinturas da autoria de Cimabue ede Giotto.

    Ser pertinente levar os alunos a constatar que no final destahistria encaixada, se faz referncia a uma outra figura - Dante: Giottotornou-se assim o pintor mais clebre daquele tempo. E Dante, que ele retratou14 eque foi seu amigo fala dele no seu poema

    15. O desconhecimento desta figurapor parte do Cavaleiro suscita por parte deste uma nova pergunta: -Quem era Dante?- que vai introduzir, assim, uma terceira histria

    encaixada, a partir do momento em que Filippo satisfaz, mais umavez, a curiosidade do Cavaleiro. Com efeito, a breve apresentao deDante, feita por Filippo: Dante foi o maior poeta da Itlia, um poeta que

    13 Cf. Verbo Enciclopdia Luso Brasileira de Cultura, s. u. Giotto.14 Este retrato de Dante pintado por Giotto encontra-se actualmente exposto na

    capela de Bargello no Palcio de la Podest, em Florena e, provavelmente, foi onico retrato pintado enquanto Dante era vivo.

    15 Este poema A Divina Comdia e a referncia a Giotto a que se faz alusoencontra-se no canto XI, versos 94 97: Credette Cimabue ne la pittura

    tener lo campo, e ora h Giotto il grido,si che la fama di colui scura.Cos ha tolto luno a laltro Guido

    La gloria de la lingua; ...

    Acreditou Cimabue na pinturaser primeiro, e Giotto o h vencido,tanto que a fama se lhe torna obscura:assim tirou a um o outro Guidoa glria desta lngua ...

    Traduo de Vasco Graa Moura, A Divina Comdia de Dante Alighieri, VendaNova, Bertrand, 1997.

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    conhecia os segredos deste mundo e do outro, pois viu vivo aquilo que ns s veremosdepois de mortos, foi de tal forma surpreendente que o Cavaleiro noresistiu a pedir que lhe contasse essa histria to extraordinria esurge, assim, a terceira histria encaixada narrada por Filippo e cujoprotagonista Dante.

    A narrao desta histria inicia-se na pgina 34 e conta queDante, apenas com nove anos, apaixonou-se por Beatriz que tinha oitoanos e que era a criana mais bela de Florena. Mas Beatriz morreuem plena juventude e Dante, no conseguindo superar o desgosto,entregou-se a uma vida de loucuras e erros, at que no ano de 130016,numa sexta-feira Santa se encontrou perdido numa floresta escura e

    selvagem onde lhe apareceram um leopardo, um leo e uma loba.Note-se que estes elementos tm um valor simblico. Assim, a selvaescura representa os erros e desvios da condio humana. Podemosento concluir que esta selva escura em que Dante se encontrou foiprecisamente o cair em si, o tomar conscincia da vida desregrada quevinha vivendo. As trs feras que aparecem a Dante correspondem aoutras tantas disposies pecaminosas. O leopardo interpretadocomo um smbolo da luxria, o leo como um smbolo da soberba, e aloba como um smbolo da avareza. Correspondiam s trs grandesdivises do Inferno, isto , s trs disposies que o cu no queria edas quais se entendia derivarem todos os pecados.

    Valeu a Dante a sombra de Virglio17 que fora enviada por Beatriz

    para conduzir Dante at ela. Primeiro passaram a porta do Infernosobre a qual se encontra a inscrio: Vs que entrais deixai toda aesperana

    18. Depois atravessaram os nove crculos19 onde se encontramos condenados. Aqui viram:

    16 A escolha do ano 1300 no foi arbitrria, pois foi o do primeiro Jubileu; eDante, catlico, peregrinou a Roma. Sendo este ano, portanto, sinal de penitncia ereconciliao com Deus, serviu de marco para o poeta principiar, aos 35 anos, aperegrinao expiativa pelo horror do Inferno.

    17 Virglio poeta latino nascido em Mntua (7019 a.C.), o autor dasBuclicas, das Gergicas e da Eneida.

    18 Este o ltimo dos nove versos que constituem a inscrio que Dante viu porcima da porta do Inferno e que ele apresenta nos versos 19 do canto III d A Divina

    Comdia.19 O 1 crculo designado de Limbo. , tal como diz Dante no seu poema ADivina Comdia, onde se encontram as almas boas que no conheceram a f, onde elesitua alguns grandes poetas antigos; no 2 crculo encontram-se os luxuriosos efamosos pecadores carnais; no 3 os gulosos; no 4 os avaros e prdigos; no 5 oscolricos e iracundos; no 6 os epicuristas (o materialismo epicurista negava aimortalidade da alma, sustentando que ela morria com o corpo); no 7 os violentos:contra si prprios (suicidas), contra outrem, contra Deus, contra a Natureza(sodomitas) e os usurrios; no 8 os fraudulentos, rufies, sedutores, aduladores,

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    ?? viram os que esto cobertos porchuvas de lama?? viram os que so eternamentearrastados em tempestades de vento?? viram os que moram dentro do fogo?? viram os traidores presos em lagosde gelo

    Note-se a repetio viram os que para intensificar a quantidadede almas que padecem martrios cruis e para dar a ideia demovimento, de que se iam deslocando atravs dos crculos.

    A repetio na estrutura frsica surge tambm na descrio destamorada infernal:

    ??Por toda a parte reinava a escuridocomo numa mina.??Por toda a parte se erguiam monstrose demnios??Era um reino subterrneo, sem sol,sem lua e sem estrelas, iluminadoapenas pelas chamas infernais

    Finda a visita ao Inferno, voltaram luz do sol e chegaram ao

    Purgatrio, descrito como um monte no meio de uma ilha subindo para o cu.Aqui encontram-se as almas que, atravs de preces e penitncias,aguardam o perdo e a admisso ao Paraso.

    Por fim chegaram ao cimo do monte do Purgatrio onde fica oParaso Terrestre e foi a que se deu o reencontro de Dante comBeatriz. Ento esta explicou-lhe que o objectivo de o levar a fazeraquela viagem foi para que ele tivesse conscincia do quanto sofremos injustos e pecaminosos e se emendasse, para que fosse digno dafelicidade e alegria que reina no cu. Pediu-lhe ainda que, ao voltar terra, escrevesse um livro onde contasse tudo o que viu, de modo a

    simonacos (< Simo Magno, personagem bblica que quis comprar aos apstolosPedro e Joo a faculdade de comunicar o Esprito Santo aos baptizados dasignificar : aquele que trafica coisas sagradas), adivinhos e feiticeiros, traficantes,hipcritas, ladres, semeadores de escndalos, falsificadores (de pessoas e de moeda).Entre o crculo 8 e o 9 encontravam-se os gigantes. No 9 crculo os traidores (dosparentes, polticos, dos hspedes, dos benfeitores).

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    ensinar os homens a detestarem o mal e a desejarem o bem. Danteassim fez e esse livro A Divina Comdia.20

    Ser interessante fazer-se o levantamento dos termos relacionadoscom o Inferno e o Cu para constatar a diferena entre estes doislugares. Assim temos:

    Cu / Paraso Inferno

    relvas condenados

    bosques chuvas de lama

    fontes tempestadesflores fogo

    felicidade presos

    alegria lagos de gelo

    anjos monstros

    cnticos demnios

    estrelas

    Locus amoenus Locus horrendus

    Este levantamento vocabular bem elucidativo da diferenaexistente entre estes dois locais, diferena esta que notria tambmnas cores referidas, ao ponto de podermos identificar o Paraso com olocus amoenus dos clssicos e o Inferno com o locus horrendus.

    Terminada a narrao desta viagem de Dante atravs do reino dosmortos (pg.39), o Cavaleiro confessa ter sido a histria mais

    20 At 1500, aproximadamente, o ttulo do poema de Dante era apenasCommoedia (Comdia). Esta designao era atribuda, na poca, s composies que

    abordavam assuntos em que ao sublime se combinasse o trivial; o religioso aoprofano; o alento ao desalento; enfim, a contradio que o homem governado porsentimentos e paixes.

    O adjectivo divina que consta do actual nome do poema foi-lhe introduzidopor Giovanni Boccaccio que, considerando o poema imensurvel pelo nvel artstico,pelo tema, pela ambientao, pela actualidade e pelo endereamento certo imortalidade, qualificou-o com o adjectivo que mais lhe parecia cabvel: Divina. Aprimeira edio veneziana, de Giolito, impressa em 1555, traz esse ttulo. E assimficou a chamar-se.

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    extraordinria que j alguma vez ouviu e, por isso, continua aconversar com Filippo sobre o destino de Dante aps o regresso aoreino dos vivos, prolongando-se desta forma esta narrativa at pgina 40.

    O fascnio do Cavaleiro por tudo o que ouvia naquela casa era talque resolveu demorar-se a mais algum tempo. Assim:

    ??percorria as ruas e as praas

    ?? visitava os conventos, ospalcios, as bibliotecas e asigrejas

    ?? ouvia as sbias conversas dosamigos de Averardo

    Mas nem todo este espanto e entusiasmo por Florena, nemmesmo o convite que o banqueiro Averardo fez ao Cavaleiro para seestabelecer em Florena e associar-se aos seus negcios, o demoveramde cumprir a promessa feita famlia: - Quero passar com eles o prximoNatal como lhes prometi. Dentro de trs dias terei de partir. E assim foi, tendo-lhe sido dada uma carta de recomendao para um rico comerciante da

    Flandres, amigo do banqueiro Averardo.Dirigia-se ento para Gnova o Cavaleiro, para embarcar noporto num dos navios que, no princpio do Vero, sobem de Itlia paraAnturpia. Mas outro imprevisto acontece ao Cavaleiro: adoece,devido talvez ao sol escaldante ou gua no potvel que bebera pelocaminho e v-se obrigado a pedir guarida num convento. A, foiacolhido e tratado pelos frades com chs de razes de flores, com plulas dealos, com xaropes de mel e vinho quente, com ps misteriosos e emplastros de farinhas e ervas. Poder-se- implementar, sobre este assunto, umpequeno debate, onde se auscultem as opinies dos alunos sobre aeficcia dos remdios e mezinhas caseiras, contrapondo-a damedicina moderna. Poder-se- tambm pedir, com o objectivo de

    estimular o gosto pela preservao do patrimnio cultural e de modo aincrementar o convvio entre as camadas mais jovens e os mais idosos,que recolham, atravs de entrevistas, rezas e/ou oraes comobjectivos curativos e todo o tipo de receitas de mezinhas e remdioscaseiros, devendo essas receitas serem registadas num dossier deturma.

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    A estada do Cavaleiro no convento foi de dois meses e meio,pois, apesar de a febre ter baixado passado um ms e meio, o seuestado de debilidade no lhe permitia continuar viagem, tendo de ficarmais um ms a recuperar as suas foras.

    Segue-se um momento de pausa na aco, para descrever oconvento e o tipo de vida que o Cavaleiro viveu na suaconvalescncia. Este momento afigura-se portanto uma boaoportunidade para explorar as caractersticas inerentes a este modo deexpresso: a descrio.

    Substantivos Adjectivosconvento pequeno, calmo e silencioso

    cela caiada

    claustro quadrado

    pinturas suaves

    milagres maravilhosos

    rosas brancas

    cu azul

    Esto tambm presentes sensaes auditivas e visuais, como oatestam as seguintes expresses:

    Estendido na sua cela caiada escutava o murmurar das fontes na cercae os cnticos dos religiosos.

    No meio do claustro corria uma fonte e em sua roda cresciam cravos erosas brancas. No cu azul as andorinhas cruzavam o seu voo.

    Curioso ser notar que todos estes elementos descritivos se

    conjugam de modo a deixarem emanar um esprito de paz, de alegria ede amor.E foi, com efeito, nesta paz que as foras do Cavaleiro se foram

    restabelecendo at poder prosseguir a sua viagem. Restabelecido,continuou a sua viagem para Gnova, mas, quando l chegou, era jfinal de Setembro e todos os navios com destino Flandres haviam jpartido. ento que o Cavaleiro, fiel sua promessa feita famlia,resolve continuar a viagem por terra, a cavalo, at Bruges. Parava

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    apenas o necessrio para comer e dormir, pois como era um homemde palavra, queria chegar antes do Natal sua terra. Chegado Flandres, onde caam j os primeiros flocos de neve e fazia j um friode Inverno, o Cavaleiro dirigiu-se para Anturpia, onde procurou onegociante flamengo para quem o banqueiro Averardo lhe dera umacarta de recomendao.

    Ser conveniente que os alunos vo acompanhando num mapa oitinerrio do Cavaleiro, onde possam ir assinalando esse percurso,bem como anotando os principais acontecimentos que lhe foramsucedendo.

    Em Anturpia bem recebido pelo Flamengo e, semelhana do

    que lhe aconteceu em Veneza e Florena, o Cavaleiro vai tambmaqui espantar-se e deleitar-se com alguns aspectos. Um dessesaspectos o paladar diferente da comida, que esta estava temperadacom especiarias desconhecidas para o Cavaleiro. Isto levou oFlamengo a afirmar que o Cavaleiro conhecia mal o mundo novo. OCavaleiro, para lhe provar o contrrio, narra-lhe ento a histria da suaviagem at chegar ali e, embora o Flamengo reconhea que uma belahistria, disse-lhe que no tardaria a chegar algum que lhe iria contarhistrias muito mais espantosas. Ficamos assim alertados para osurgimento de mais histrias encaixadas. De facto, mal o Flamengoacabara de dizer isto, chegou um dos capites dos seus navios quehavia regressado de uma viagem e trazia com ele trs cofres: um cheiode pequenas prolas, outro cheio de ouro, e o terceiro cheio depimenta. Tambm isto deixou o Cavaleiro espantado e curioso, aponto de pedir ao capito que lhe falasse das suas viagens.

    Passamos ento, a partir daqui, a ter o capito dos navios comonarrador das viagens martimas por ele protagonizadas, estamos,portanto, na presena de um narrador participante. Deu-lhe ento aconhecer que viajara por todos os portos da Europa, desde o marBltico at ao Mediterrneo, embora navegasse sobretudo entre osportos da Flandres e da Pennsula Ibrica. Mereceu, no entanto,destaque a narrao de uma histria em que, com o desejo de ir maislonge do que o habitual, resolveu alistar-se nas expedies

    portuguesas que navegam para o Sul procura de novos pases. Estedado tambm importante, pois sabemos que o perodo ureo dosdescobrimentos portugueses o sculo XV, o que alis vemcorroborar a ilao tirada relativamente ao tempo cronolgico danarrativa principal, atravs da histria de Cimabue e Giotto e tambmatravs da de Dante.

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    Essa histria a que se inicia em Lisboa e que tem comoobjectivo explorar as costas de frica. As pginas que se seguem soum testemunho histrico, descrevem-nos as belas praias da costaafricana bem como os seus habitantes e revelam-nos as tentativas deentendimento entre ambas as partes, dificultadas pelo facto de a lnguano ser comum. Ora, precisamente numa dessas tentativas que surgea histria do incidente ocorrido com o portugus Pro Dias (p.52-57) eque constitui a ltima das narrativas de encaixe existentes nesta obra.

    Assim um dia a caravela ancorou em frente duma larga e bela baarodeada de maravilhosos arvoredos. Na longa praia de areia branca e fina umpequeno grupo de negros espreitava o navio. Ento o capito resolveu mandara terra dois batis com homens para que tentassem estabelecer contacto comos africanos. assim que se inicia a histria encaixada de Pro Dias, primeiro

    com uma pequena descrio do local de desembarque e depois com aapresentao do objectivo do capito: estabelecer contacto com os africanos.Seguidamente -nos apresentada a personagem que vai protagonizaresta narrativa de encaixe: Pro Dias.

    Mas logo que os bateis tocaram a areia os negros fugiram e desapareceramno arvoredo.

    -Talvez tenham tido medo por ver que ns somos muitos e eles poucos disse um portugus chamado Pero Dias. E pediu aos seus companheiros quelhe deixassem um batel e embarcassem todos no outro e se afastassem da

    praia.De seguida narram-se as tentativas de Pro Dias para estabelecer

    contacto com um indgena: primeiro atravs da oferta de panoscoloridos, depois atravs da linguagem verbal, e por fim atravs dalinguagem gestual. Este episdio propcio anlise dos diferentestipos de linguagem e formao de um debate sobre as vantagens edesvantagens de uns e de outros.

    Mas, quando tudo parecia estar a correr como Pro Diaspretendia, restando j apenas alguns passos de distncia entre ele e oindgena, um gesto inofensivo da sua parte assustou o indgena quecomeou a fugir e que, ao ver-se perseguido e agarrado por Pro Dias

    e julgando-se perdido, apontou a sua lana, tendo Pro Dias procuradoaparar o golpe com a sua espada. O resultado foi a morte de ambos,sendo a causa o desentendimento das lnguas, a incapacidade demanter um dilogo.

    Quando os companheiros de Pro Dias chegaram praia, disseum deles: - Olhem, o sangue deles exactamente da mesma cor. Esta falapermite levar os alunos a reflectirem e a debaterem a temtica do

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    racismo, dos seus diferentes tipos e das diversas maneiras de semanifestar. Isto porque um dos objectivos do ensino bsico o deincutir nos alunos os valores da cidadania, preparando-os paraviverem e conviverem com uma sociedade heterognea. Dever-se-,portanto, articular os contedos programticos com este objectivo deformao integral, pessoal e social do aluno.

    Parece-me pertinente tambm procurar alargar os horizontesculturais dos alunos, recorrendo, por exemplo, intertextualidade.Assim, partindo da mensagem que este episdio de Pro Dias nostransmite, mais concretamente da frase: - Olhem, o sangue deles exactamente da mesma cor, poder-se- estabelecer intertextualidade com

    uma passagem da obra intitulada Estria d`gua gorda do escritorangolano Luandino Vieira, na qual afirma que a cor da pele no conta,pois esta somente embrulho da alma. A corroborar esta opinio deLuandino Vieira, recordem-se os aforismos: As aparncias iludem ouQuem v caras no v coraes. Ora o aspecto exterior -nos assimapresentado como irrelevante; o importante a maneira de ser daspessoas, o seu ntimo. Esta dever ser pois a concluso a que sepretende que os alunos cheguem.

    A intertextualidade pode ainda ser feita com o contoMoambicano intitulado: As mos dos pretos inserto na obra NsMatmos o Co Tinhoso da autoria de Lus Bernardo Honwana, ondeuma criana, o narrador, se questiona sobre a razo pela qual a partede baixo das mos dos pretos branca e, para tentar encontrar umareposta, faz esta pergunta a vrias pessoas. Quase todos demonstram,nas suas respostas, ser profundamente racistas, mas a mensagem quevigora a da me do narrador que diz que Deus fez as palmas dasmos dos pretos iguais s dos brancos, para mostrar que o que oshomens fazem, feito por mos iguais, mos de pessoas que, setiverem juzo, sabem que antes de serem qualquer outra coisa sohomens.

    Atrevo-me a sugerir ainda para intertextualidade, comoalternativa s sugestes anteriormente apresentadas, o poemaLgrimade Preta de Antnio Gedeo que passo a transcrever:

    LGRIMA DE PRETA

    Encontrei uma pretaque estava a chorar,pedi-lhe uma lgrimapara a analisar.

    Recolhi a lgrima

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    com todo o cuidadonum tubo de ensaiobem esterilizado.

    Olhei-a de um lado,do outro e de frente:tinha um ar de gotamuito transparente.

    Mandei vir os cidos,as bases e os sais,as drogas usadasem casos que tais.

    Ensaiei a frio,experimentei ao lume,de todas as vezesdeu-me o que costume:

    nem sinais de negro,nem vestgios de dio.gua (quase tudo)e cloreto de sdio.

    Como se pode constatar atravs deste poema, no s o sangue,como vimos na histria de Pro Dias, ou as palmas das mos, comovimos no conto de Lus Bernardo Honwana, que, nos brancos e nos

    pretos, so iguais, tambm as lgrimas tm a mesma composio.Dever-se- ento levar os alunos a reflectir sobre a mensagem que

    o poema transmite, relacionando-a com a da histria em estudo. Foiprecisamente por compreenderem essa mensagem que oscompanheiros de Pro Dias espetaram entre os dois tmulos, o de ProDias e o do gentio, uma cruz feita com a lana do gentio e a espada docristo, como smbolo da paz e unio entre as duas raas.

    Estas histrias de longnquas viagens, de ilhas desertas, dervores descomunais, de tempestades e calmarias, de povosmisteriosos de pele sombria fascinavam o Cavaleiro, mas era jNovembro e ele anunciou a sua pretenso de seguir viagem por marpara a Dinamarca. Mas nesta poca, com o frio a aumentar de dia paradia, o Cavaleiro j no encontrou nenhum navio que se aventurasse anavegar para o Norte. Mas nem isto, nem o convite do flamengo parase associar a ele e empreender fabulosas viagens que o enriqueceriam,o demoveram de procurar cumprir a promessa feita famlia: passar oNatal em casa; por isso decidiu fazer a viagem por terra, apesar dosriscos que iria correr. Foi, com efeito, uma viagem dura:

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    ?? os rios estavam gelados?? a terra coberta de neve?? o frio aumentava?? os dias eram cada vez maiscurtos

    ?? os caminhos pareciam noter fim

    E noite, quando repousava nas estalagens, o Cavaleiro sonhavacom os palcios de Veneza, com as esttuas de Florena e os negrosnus da costa africana. Mas isto, que outrora o fascinara tanto, surgiaagora como um pesadelo que, girando sua volta, o impedia decontinuar viagem. Talvez isto no passasse da sua prpria conscinciaa sentir-se culpada por se ter demorado tanto, deleitado com o que viae ouvia.

    Mas, apesar de lhe parecer que todas as foras da Natureza setinham conjugado para o impedir de cumprir a sua promessa, ele,homem de f e de palavra, recobrava o nimo e prosseguia a suaviagem. E assim foi, at que, passadas longas semanas, na antevsperado Natal, ao fim da tarde, chegou a uma pequena povoao que ficavaa poucos quilmetros da sua floresta. A recuperou as suas foras e, na

    madrugada de 24 de Dezembro, partiu, pois tinha de chegar a casaantes da meia-noite e o dia era curto e a travessia da floresta difcil,pois estava coberta de neve.

    Penetra ento na floresta, o espao por excelncia da obra, ondeiro decorrer as ltimas peripcias da viagem do Cavaleiro, e queocupa cerca de onze pginas, o que atesta a sua relevncia. Aps doisanos de ausncia, esta parecia-lhe fantstica e estranha.

    Deparamo-nos ento com uma descrio da floresta:

    ?? tudo estava imvel, mudo,suspenso?? o silncio e a solido pareciamassustadores e desmentidos?? as rvores estavam despidas?? os ramos nus desenhavam-senegros, esbranquiados, avermelhados?? s os pinheiros cobertos de agulhascontinuavam verdes

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    Feito o levantamento dos elementos caracterizadores, poder-se-compar-los com os da descrio inicial da Floresta, para constatar assemelhanas e sobretudo reparar que novamente se destaca umelemento: o pinheiro, alis, o nico sinal de vida na floresta. Opinheiro surge assim como smbolo de esperana. E note-se que estespinheiros so abetos, cuja forma se assemelha a um cone: largos embaixo e afilados em cima. precisamente esta rvore da famlia dospinheiros que o catolicismo acabou por incorporar em rituaisreligiosos, atribuindo-lhe, pela sua forma triangular, uma simbologia:passou a representar a Santssima Trindade (Pai, Filho e EspritoSanto).

    Assim, apesar de a neve ter apagado todos os rastos, todos oscarreiros, e de a floresta constituir um autntico labirinto de arvoredo,o Cavaleiro prosseguiu, procurando chegar, ainda com dia, a umapequena aldeia de lenhadores que ficava perto do rio que passava junto de sua casa. Depois bastaria seguir o curso do rio. E,caminhando em direco ao nascente, acabou por chegar aldeia delenhadores. A foi recebido com entusiasmo e alegria, recobrou assuas foras e partiu nessa mesma noite, apesar dos avisos doslenhadores de que seria perigoso. que, agora, que estava to perto,no queria faltar ao prometido famlia, pois iria estragar-lhes oNatal, j que pensariam que alguma coisa m lhe teria acontecido.

    Procurou ento seguir o curso do rio, mas a neve caa espessa ecerrada e o Cavaleiro no conseguia ver nada. Pensou que talvez setivesse enganado, mudou de direco, mas o homem e o rio no seencontravam. Acabou por se confessar perdido, mas, mesmo assim, noperdeu a sua esperana, nem mesmo quando lhe surgiu uma alcateiaou at mesmo um urso, pois em ambas as ocasies, arreigado sua fdisse: - Hoje noite de trgua, noite de Natal, e, com efeito, como que pormilagre, as feras recuavam ao ouvir estas palavras e desapareciam. E oCavaleiro continuava a caminhar ao acaso, levado por pura esperana, poisnada via e nada ouvia. E quando o cavalo j se recusava a continuar, oCavaleiro lembrou-se da Noite de Natal que passara em Jerusalm edos reis Magos que tinham lido no cu o seu caminho. No entanto, o

    cu ali era escuro, mas, mesmo assim o Cavaleiro rezou e,milagrosamente, uma claridade comeou a surgir do meio da massaescura do arvoredo. O Cavaleiro, feliz pela sua reza ter sido ouvida,avanou em direco a essa luz que julgava ser a de uma fogueira dealgum lenhador perdido. Mas a luz continuava a crescer e medida quecrescia, subindo do cho para o cu, ia tomando a forma dum cone. E quandochegou diante da claridade, o Cavaleiro viu que estava na clareira de

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    btulas onde ficava a sua casa e que aquela fogueira era o grandeabeto que ficava junto dela e que estava coberto de luzes. Luzes ques poderiam ter sido l colocadas pelos anjos do Natal para guiar oCavaleiro.

    E assim termina a saga do Cavaleiro. E diz-se que foi graas aesta histria que surgiu o hbito de se enfeitarem os pinheiros na noitede Natal, para guiarem todos aqueles que se encontram perdidos.Desta forma, O Cavaleiro da Dinamarca vem perpetuar, atravs deuma verso escrita, esta lenda explicativa da origem de uma tradionatalcia: a iluminao dos pinheiros.

    Bibliografia:

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