19. Andrew Feenberg e a Bidimensionalidade Da Tecnologia

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    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 27, n. 40, p. 111-142, jan./abr. 2015

    Andrew Feenberg e a bidimensionalidade da tecnologia[I]

    Andrew Feenberg and the bidimensionality of technology

    [A]

    Wendell Evangelista Soares Lopes*

    Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiab, MT, Brasil

    [R]Resumo

    O presente ensaio analisa criticamente a principal tese de Feenberg sobre a natureza da

    tecnologia: sua bidimensionalidade. Consideramos primeiro o desenvolvimento da teoria

    crtica da tecnologia em Feenberg; como, a partir do abandono das noes heideggeriana

    e positivista de tecnologia, o autor encara o que ele acredita ser o verdadeiro mundo da

    tecnologia em seu vir a ser, enquanto intrinsecamente relacionada com o social. Nisso, ele

    se aproxima da tradio da Teoria Crtica, especialmente de Marcuse, de quem foi aluno.

    Entretanto, trata-se, como veremos, de uma apropriao crtica: enquanto Marcuse pensa

    que essa tecnologia que substituiu a ontologia deu origem a um homem unidimensional,

    cuja existncia incapaz de ultrapassar sua facticidade com uma mudana qualitativa da

    realidade na realidade, isto , uma forma de existncia em que a transcendncia histrica

    atrofiada; Feenberg acredita, por sua vez, que essa tecnologia foi mal concebida em sua

    * WESL: doutor em Filosofia, e-mail: [email protected]

    DOI: 10.7213/aurora.27.040.DS05 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    essncia, uma vez que no se percebeu seu aspecto bidimensional, isto , o fato de que

    sendo no apenas um projeto abstrato, mas em si mesmo composto de um momento

    social contingente, a transcendncia histrica parte inelutvel do processo tecnolgico

    como tal. Esse carter transformador, no interior da tecnologia, articulado por Feenberg

    a partir da diferena entre tcnica e experincia integrativa, enquanto dois momentos da

    prpria racionalidade tecnolgica. Mostramos tambm como essa bidimensionalidade da

    tecnologia deve ser entendida de maneira holstica e dialtica, buscando, por fim, aplicar

    e testar a teoria crtica de Feenberg a partir do caso que mais goza do apreo do autor, a

    Internet tema, inclusive, do ltimo livro editado por ele, junto com Norm Friesen, (Re)

    Inventing the Internet (2012) , o que nos permitir entrar numa discusso final de alguns

    pontos crticos de sua filosofia da tcnica.[P]

    Palavras-chave: Feenberg. Filosofia da tecnologia. Bidimensionalidade. # [#[B]

    Abstract

    The present essay aims at analyzing critically Feenberg's main thesis about the nature of tech-

    nology, namely, its bidimensionality. We shall consider at first the developing of Feenbergs criti-

    cal theory of technology; how from the abandoned old Heideggerian and positivist notions of

    technology the author faced what he thinks to be the real world of technology, which means to

    think technology as intrinsically linked to the social. In this way, Feenbergs approach can be ap-

    proximated to the known tradition of Critical Theory, especially to Marcuse, of whom he was stu-

    dent. However, this re-appropriation is, as we shall see, a critical one: while Marcuse thinks that

    the technology which has replaced ontology led to a one-dimensional man, whose existence is

    unable to overcome his facticity with a qualitative change of reality into reality, that is, with a

    way of life where the historical transcendence is stunted, Feenberg believes in turn that this tech-

    nology was ill-conceived in its essence since it was not realized its bidimensional aspect, namely,

    the fact that it is not just an abstract, but also an integrative and contingent social moment, the

    historical transcendence is an inescapable part of the technological process as such. This trans-

    forming character of technology in itself is articulated by Feenberg from the difference between

    technical and (social) meaning, while two moments of the technological rationality. We will

    show how this bidimensionality of technology is to be understood in its own holistic and dialec-

    tical process. Finally, we will seek to apply and test Feenbergs critical theory of technology with

    the case that seems the most appreciated one to the author, the internet theme of the latest

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    book edited by him with Norm Friesen, (Re)Inventing the Internet (2012) something which will

    allow us to get into a final discussion of some critical points of his philosophy of technology. [K]

    Keywords: Feenberg. Philosophy of technology. Bidimensionality.

    Introduo

    A reflexo filosfica sobre a tecnologia tem uma histria que mal comeou. Como o mostrou Gilbert Hottois (2003), depois de seus pri-mrdios no pas dos teutos, encontrando por l uma representao du-radoura, a filosofia da tcnica encontrou uma representatividade no to robusta na Frana, mas recebeu um forte investimento nos Estados Unidos. A obra de Andrew Feenberg, junto com aquelas de A. Borgman, L. Winner, D. Ihde, aparece justamente no interior dessa forte investi-da da tradio americana na filosofia da tecnologia, caracterizada por Hans Achterhuis (2001) como a expresso de uma verdadeira virada emprica. No que se segue, buscarei refletir mais especificamente so-bre o que considero ser o cerne da filosofia da tecnologia em Feenberg: a ideia de uma essncia bidimensional da tecnologia. Defenderei que Feenberg possui, num sentido muito especfico, uma posio essencia-lista sobre a tecnologia, e que a partir do que se pode chamar de bidi-mensionalidade da tecnologia ele tenta extrair os elementos de uma poltica tecnolgica socialista. De um lado, uma tarefa ontolgica; de outro, um projeto poltico embora em seu ncleo trate-se de uma filosofia da tecnologia que abarca ambos os aspectos.

    O primeiro ponto a se considerar a ideia mesma de uma concep-o essencialista em Feenberg. A princpio, pode parecer que ele rejeita qualquer ideia de uma essncia da tecnologia. Esse, entretanto, no o caso. Antes, preciso dizer que h nele uma relao ambgua com o essencialismo tecnolgico. Por um lado, bem verdade que Feenberg (1999, p. viii) afirma claramente a necessidade de uma filosofia anties-sentialista da tecnologia. No obstante, a despeito dessa afirmao, ele tambm complementa, mais frente, que em seu livro ele prope

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    uma teoria da essncia da tecnologia como um fenmeno social (FEENBERG, 1999, p. 17). O que dizer ento dessa ambiguidade?

    Creio que Iain Thomson (2006, p. 54) acerta ao dizer que pa-rece que o problema no com o essencialismo tecnolgico enquanto tal, mas, antes, com tipos particulares de essencialismos tecnolgicos. Tambm Larry Hickman (2006, p. 76) percebeu, de algum modo, que a recusa de Feenberg em relao ao essencialismo no , de fato, ou-tra coisa seno o apelo a uma nova compreenso, uma compreenso funcionalizada das essncias. No obstante, com o termo compre-enso funcionalizada Hickman entende uma concepo meramente pragmtica de essncia. Nesse pormenor, afastamo-nos de Hickman. Pois, muito antes, como se pode, inclusive, confirmar em Questioning technology e em Replies to critics, Feenberg (1999, p. 201; 2006, p. 194) fala de um conceito histrico de essncia. No mesmo sentido, no referido Replies to critics, especialmente, ele mostra que, apesar da diferena en-tre a maneira ontolgica de Heidegger pensar a tecnologia e sua prpria maneira ntica de pens-la, permanece verdade que o conceito heideg-geriano de essncia no se refere a um tipo geral sob o qual recaem as tecnologias particulares, pois essas so, antes, pensadas histrica e dina-micamente, da forma, portanto, que ele tambm gostaria de defender a partir de fundamentos um pouco distintos (FEENBERG, 2006, p. 194). Nesse sentido, Feenberg compara a noo de essncia em Heidegger com os universais concretos em Hegel, diferentes justamente dos uni-versais abstratos, que so exatamente o gnero de entes particulares.

    Que Feenberg fale, ento, de uma posio antiessencialista no significa que se trate de um pensamento alheio afirmao de uma essncia da tecnologia, mas, antes, contra o essencialismo, que tal como ele o concebe, sustenta que h uma, e apenas uma, essncia da tecnologia e que ela a responsvel pelos principais problemas da civilizao moderna (FEENBERG, 1999, p. 3).

    Agora, um aspecto importante precisa ser destacado aqui: Feenberg parece relacionar estreitamente essencialismo e substantivismo. Nesse sentido, antiessencialismo quer dizer tambm que o substantivismo o grande inimigo do filsofo. Que seja o maior inimigo, no significa, en-tretanto, que seja o nico, embora certamente o mais importante. H um

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    certo elogio ao substantivismo por trs desse embate incisivo: apesar de sua insuficincia, ele demonstra uma maior adequao em comparao a outros dois tipos de teoria que aparecem para compor o debate recente da filosofia da tecnologia: o instrumentalismo e o determinismo. Para enten-dermos como Feenberg pensa a essncia da tecnologia, no fazemos mal ao compreender sua posio em confrontao com essas outras teorias que ele prprio compara criticamente com a sua. Tal confrontao feita a partir de uma tipologia baseada em dois eixos principais de anlise, o primeiro refere-se relao tecnologia-homem e o segundo refere-se relao tecnologia-valor. Com essa lgica, Feenberg sumariza o debate atual com o Quadro 1 (levemente alterado).

    Quadro 1 - Espectro das concepes sobre a tecnologia

    A tecnologia Autnoma Hetero(anthropo)nomia(Controlada pelo homem)

    Neutralidade(separao completa entre meios e fins)

    Determinismo(p. ex.: teoria modernizante)

    Instrumentalismo(f liberal no progresso)

    No neutralidade axiolgica(meios formam um modo de vida que inclui fins)

    Substantivismo (meios e fins ligados em sistemas)

    Teoria crtica(escolha de sistemas meios-fins alternativos)

    Fonte: FEENBERG, 2003.Nota: O quadro organizado da seguinte maneira: a parte horizontal superior estabelece a relao

    homem-tecnologia e a parte vertical extrema esquerda indica a relao valor-tecnologia. As quatro partes internas identificam quatro distintas posies na filosofia da tecnologia pensa-das a partir dos parmetros de relao homem-tecnologia e valor-tecnologia.

    Vejamos como cada uma das teorias caracterizada. A primei-ra coisa a se perceber que a histria recente da filosofia representou a afirmao constante de uma posio instrumentalista sobre a tcnica. Tal posio foi inclusive o paradigma da filosofia da tecnologia na era moderna e encontra ainda defensores em nosso tempo. O instrumen-talismo, que goza de proeminncia nas cincias sociais, trata a tecnolo-gia como sujeitada esfera social e a seus valores, embora esses no a

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    possam transformar, sendo assim uma ferramenta (ou meio) neutra, isto , indiferente a fins, a polticas, de carter racional, e, portanto, controlada pelo homem, aplicvel aos mais distintos contextos sociais, e tendo como norma a eficincia, tambm aplicvel a mltiplos con-textos sociais. Deste modo, pensa-se que a elite usa a tecnologia para a mudana social e a industrializao, e que cabe poltica pblica tentar imprimir-lhe freios a partir da anlise crtica das consequncias da auto-mao. Seu exemplo mais claro encarnado pela f liberal no progresso. A neutralidade axiolgica que ela afirma explica a pouca importncia dada tecnologia pela teoria poltica moderna, diferentemente dos en-ciclopedistas que no deixaram de consider-la seriamente.

    Como outra expresso da reflexo moderna sobre a tecnologia, Feenberg (1999, p. 1) afirma que ao fim do sculo XIX, sob a influncia de Marx e Darwin, o progressismo se tornou determinismo tecnolgi-co. Esse determinismo (que se inicia na cincia social a partir de Marx em diante) afirma que o avano tecnolgico uma fora impulsionado-ra da histria, e que no controlada pelo homem, mas o contrrio: as descobertas se endeream a alguns aspectos de nossa natureza, e tanto respondem s nossas necessidades (comida e abrigo) como tambm estendem algumas de nossas faculdades como o caso com compu-tadores, que servem como extenso de nossos crebros. Mais propria-mente, eis o que diz o filsofo:

    a tecnologia est enraizada, por um lado, no conhecimento da natureza e, por outro, nas caractersticas gerais da espcie humana. No cabe a ns adaptar a tecnologia a nossos caprichos, mas, ao contrrio, ns de-vemos nos adaptar tecnologia como a expresso mais significativa de nossa humanidade (FEENBERG, 2003).

    Essa forma biolgico-evolucionista de pensar colocou entre parnteses a relao entre tecnologia e valor, reforando, assim, uma neutralizao da tecnologia (FEENBERG, 1999, p. 2). Tal como o instrumentalismo, o determinismo afirma uma viso otimista e axio-logicamente neutra da tecnologia. A mudana apareceu em sua recusa a uma antroponomia tecnolgica, isto , a uma viso da tecnologia

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    como controlada pelo homem, pois a evoluo tcnica passa a ser pen-sada como um caminho natural tal como a prpria evoluo biolgica.

    O grande sucesso da tecnologia moderna parece ter confirmado essa viso evolucionista e progressista do determinismo. Ao mesmo tempo, ela criou problemas ao inflacionar seu campo de ao e engo-lir tambm a poltica. Esse inflacionamento chama-se tecnocracia, isto , um sistema administrativo amplo, que legitimado pela refern-cia aos conhecimentos [expertise] cientficos, em vez de pela tradio (FEENBERG, 1999, p. 4). contra essa tendncia tecnocrtica que apa-rece o protesto romntico. Tal protesto foi expresso de uma deter-minada compreenso da tecnologia: o substantivismo. Trata-se de uma posio mais complexa e interessante que as outras duas vistas acima (cf. FEENBERG, 2003). Diferentemente da neutralidade axiolgica das duas primeiras, ela atribui valores substantivos tecnologia, alm dos valores meramente formais afirmados pelas outras duas. O que difere um valor substantivo de um valor formal o fato de que ele envolve o compromisso com uma concepo (tico-poltica) especfi-ca de vida boa. Desse modo, a tecnologia no pode ser utilizada para qualquer propsito desejado pelos indivduos e grupos; ela no mera-mente instrumental. O exemplo de Feenberg aquele da diferena entre religio que fornece certas regras de ao e desaprova outras e o dinheiro que no tem qualquer valor especfico e por isso pode ser-vir a qualquer sistema de valor. Para o substantivismo, a tecnologia comparvel mais a uma religio do que ao dinheiro, porque como a escolha de um meio de vida.

    A no neutralidade axiolgica no a nica diferena que sepa-ra o substantivismo dos outros dois tipos de teoria referidos. Contra o instrumentalismo mais especificamente, a teoria substantiva rejeita qualquer ideia de uma antroponomia tecnolgica, isto , para ela, a te-oria instrumental erra no s por sua cegueira s implicaes culturais da tecnologia, mas tambm por no perceber que a tecnologia se mos-tra agora como uma verdadeira fora autnoma na cultura, o que o mesmo que dizer que no lugar da antroponomia tecnolgica ela coloca a autonomia tecnolgica. E isso assim porque, enquanto novo siste-ma cultural, a tecnologia reestrutura a esfera social, exercendo controle

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    sobre ela e espalhando-se de maneira onipresente. A afirmao desse aspecto autnomo da tcnica moderna a similaridade entre substan-tivismo e determinismo, e, de fato, a maioria dos tericos substantivis-tas , sob o aspecto da relao entre homem e tecnologia, determinista tambm. No entanto, h uma grande diferena entre o modo como es-sas duas teorias percebem a autonomia tecnolgica. Os deterministas so otimistas e progressistas. Os substantivistas, por sua vez, veem a autonomia tecnolgica como ameaadora e perigosa. A razo para o pessimismo de um e o otimismo do outro sua nfase na dominao ou no progresso, respectivamente. Em geral, por afirmar a neutrali-dade axiolgica da tecnologia que o determinista s consegue perceb--la com bons olhos. Por outro lado, ao conceb-la como no neutra, e ao ver a dominao descontrolada como seu trao mais caracterstico, o substantivismo no pode seno dirigir-lhe as mais fortes crticas e desconfianas. Frente ao crescimento desse destino de dominao tec-nolgica, os substantivistas s podem, de fato, ver a tecnologia como a fonte da mais extrema distopia imaginvel, e, por causa disso, apenas um retorno tradio ou simplicidade oferece uma alternativa ao rolo compressor do progresso (FEENBERG, 2002, p. 7). No sem motivo, o substantivismo foi percebido como a expresso de um protesto ro-mntico, em contraposio viso muito mais positiva e otimista dos enciclopedistas, por exemplo1.

    Uma bela expresso desse protesto romntico, s que a partir de uma perspectiva mais sombria, aquela pintada por Samuel Butler em Darwin among the machines (1873). Face aos ltimos avanos do reino da mecnica, aos quais ele assistiu pessoalmente, Butler (1914 [1973]) se pergunta acerca de que fim esse desenvolvimento poderia ter e de qual seria a direo de sua tendncia. E sua resposta foi a de que o exemplo da evoluo dos relgios de pulso (watch) em detrimento dos antigos relgios (clock), que no seriam mais que tipos existentes de uma raa extinta, lanava luz sobre a questo concernente ao futuro

    1 Para uma exposio acurada dessa polarizao entre o pessimismo romntico e o otimismo enciclopedista, ver Sennett (2008, esp. p. 81-118).

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    do homem, isto , sobre que tipo de seria seu sucessor na supremacia da terra. Mais:

    ns mesmos estamos criando nossos sucessores [], diariamente esta-mos lhes dando maior poder e suprimento atravs de todos os tipos de artifcios engenhosos daquele poder autoregulador e autoatuante, que para eles ser o que o intelecto tem sido para a raa humana (BUTLER, 1914 [1873], p. 182).

    Nesse processo, o homem se tornaria para a mquina o que ca-chorros e cavalos so para ele. E isso por um motivo muito simples:

    cada raa dependente da outra por inmeros benefcios, e, at que os rgos reprodutores das mquinas se desenvolvam de uma manei-ra que ns dificilmente somos capazes de conceber ainda, elas so in-teiramente dependentes do homem para a continuao de sua espcie (BUTLER, 1914 [1873], p. 184).

    O resultado disso Butler antevia com pesar, que, para ele, a cada dia o homem se torna mais subserviente ao desenvolvimento da vida mecnica, de modo que o desenlace de um destino de museu para o homem seria apenas uma questo de tempo. Em vista disso, a sugesto de Butler foi bem clara: guerra s mquinas. Com essa viso sombria e, ao que parece, satrica, ele adiantou aquela que, para Feenberg (1999, p. 3), aparece como uma representao exacerbada do pessimismo substantivista: a frase melodramtica de Marshall McLuhan: a tecno-logia nos reduziu aos rgos sexuais do mundo mquina.

    E, para Feenberg, Heidegger o pensador substantivista mais importante. Mas ele tinha uma maneira peculiar de pensar a autono-mia e o carter no neutro da tecnologia. Pois a partir da perspecti-va heideggeriana, por meio da ao que encontramos nosso mundo como um todo concreto, revelado e ordenado de uma maneira que prpria de nossa poca. E, de acordo com a histria do ser que nos apresenta Heidegger, o modo prprio de desvelamento (revealing ou revelao, segundo a traduo de Feenberg) de nossa era moderna a tecnologia. Como um tal modo de desvelamento, a tecnologia no mera instrumentalidade; a tecnologia no nada tcnica, mas, antes,

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    uma maneira pela qual o que aparece. A essncia da tecnologia designada como Gestell, que Feenberg traduz como enquadramento (enframing). Esse modo moderno de desvelamento enviesado por uma tendncia objetificante, em que tudo reduzido a mera matria prima potencial para a ao tcnica. O que costumava ser parte de um mundo coerente se torna, agora, um simples objeto da vontade pura. Nesse sentido, a tecnologia forma uma cultura de controle universal, da qual nada pode escapar, nem mesmo seus fabricadores humanos. Uma vez que a tecnologia assim concebida, no de surpreender que Heidegger lhe dirija uma severa crtica. Essa crtica foi interpretada por muitos pensadores, dentre eles Feenberg (1999, 2001, 2002), como sin-nimo de pessimismo e fatalismo. Muito embora os humanos possam controlar a tecnologia, eles no podem controlar a obsesso pelo con-trole, pois h um mistrio na tecnologia que no podemos deslindar a partir de nosso ponto de vista tcnico. Esse pessimismo em relao autonomia da tecnologia foi o determinante, segundo Feenberg, para a famosa declarao, supostamente fatalista, de que apenas um Deus pode nos salvar. Entretanto, Feenberg parece ter revisado levemente essa maneira de compreender Heidegger como pessimista e fatalista, pois em um texto posterior diz ele:

    a despeito da aparente nostalgia de Heidegger pelo passado pr-moder-no, ele nunca sugere um retorno antiga techn. Ao contrrio, ele con-templa uma nova era em que novos deuses capacitaro os seres humanos para reclamar seu lugar num mundo no mais envolto em uma ordem tecnolgica. A nova era utilizar a tecnologia, mas no ser tecnolgica. Ela ter uma relao livre com o reino da produo, em vez de com-preender o ser a partir do modelo da produo (FEENBERG, 2005, p. 40).

    No obstante, Feenberg no deixa de destacar: a libertao des-sa forma de experincia [isto , do enquadramento tecnolgico] pode vir de um novo modo de desvelamento [revealing], mas Heidegger no tem ideia de como o desvelamento vem e vai (FEENBERG, 2006, p. 179-180). E mais: o melhor que ele [Heidegger] tem a oferecer a remota esperana escatolgica de que a arte pode recuperar o poder de

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    desvelamento, ou que a prpria gravidade do enquadramento levar ao seu colapso (FEENBERG, 2005, p. 42).

    Mesmo que se possa questionar essa leitura de Heidegger, con-tra essa noo heideggeriana (e tambm a positivista) de tecnologia que Feenberg busca o que ele pensa ser o real mundo da tecnologia, o que quer dizer pensar a tecnologia como intrinsecamente ligada ao social. Nessa direo, seu approach pode e deve ser aproximado da co-nhecida tradio da Teoria Crtica. Ele inclusive chama sua filosofia da tecnologia de Teoria Crtica da tecnologia. Assim, apesar de certo essencialismo ainda presente em algumas concepes da teoria crtica, como as de Horkheimer, Adorno e Habermas, seguindo essa tradi-o, e especialmente Marcuse, de quem ele foi aluno, que Feenberg en-contra sua prpria orientao: relacionar

    o desvelamento tecnolgico no histria do ser, mas s consequn-cias da persistncia de divises entre as classes e entre governantes e governados em instituies tecnicamente mediadas de todos os tipos. A tecnologia pode ser, e , configurada de tal maneira que acaba por reproduzir a regra de poucos em detrimento de muitos (FEENBERG, 2006, p. 180).

    No obstante, essa reapropriao , como veremos, de tipo cr-tico. A principal razo para esse vis crtico est baseada na percep-o de que Marcuse seguiu seu prprio professor, Heidegger, mais do que ele admitia para si mesmo e para ns (FEENBERG, 2006, p. 175-176). E essa aproximao de Marcuse com Heidegger foi obser-vada pelo prprio Heidegger em uma entrevista:

    P.: Alguns creem encontrar relaes entre as perguntas de Marcuse e sua problemtica.Heidegger: No impossvel.P.: Marcuse reconhece, por exemplo, que a tcnica moderna no uma simples acumulao de mquinas, mas uma ordem planetria. Que o homem est atualmente mais entregue a ela [a tcnica moderna] do que em realidade a domina. Heidegger: Eu tenho escrito isto frequentemente.

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    P.: E a pergunta que Marcuse faz a do destino no interior dessa domi-nao. A tcnica , para ele, una forma de existncia mundial que faz de toda a vida uma escravido ao trabalho.Heidegger: Sim, isto Heidegger. Escrevi, no mesmo sentido, que o to-talitarismo no uma simples forma de governo, mas muito antes a consequncia dessa dominao desenfreada da tcnica. O homem est, hoje em dia, abandonado vertigem de suas fabricaes. P. O senhor acha que Marcuse desenvolveu, em definitivo, em uma perspectiva revolucionria, o que o senhor pensa da dominao da tc-nica planetria?Heidegger: Sem dvida. Mas no necessria tambm a pergunta pela essncia da tcnica? (TOWARNICKI; PALNIER, 1981 [1969]).

    Essa semelhana com Heidegger pode ser demonstrada facil-mente com o que Marcuse esboa no ensaio De lontologie a la Technologie (1960), no qual ele apresenta resumidamente as ideias que, mais tarde, apareceriam desenvolvidas em seu One-dimensional Man (1964). Ele mostra que por meio de uma estruturao fsico-matemtica do uni-verso, a cincia moderna permitiu a utilizao e transformao met-dica da natureza, que passou a ser controlada pela potncia do homem, uma vez que ele pode compreend-la em sua verdade mensurvel, calculvel. A ordem que o homem encontra agora aquela de uma finalidade vazia, isto , uma previsibilidade matemtica. O resultado que a totalidade dos objetos no aparecem mais sob a base da experin-cia concreta, da prtica social, mas, antes, sob a prtica administrati-va, organizada pela tecnologia; a se assiste a uma transformao do mundo natural em mundo tcnico, por isso diz Marcuse (1960, p. 55, grifo do autor): a tecnologia [pensada aqui como novo modo de pensa-mento] substituiu a ontologia [enquanto concepo hegeliana que pensa o logos como denominador comum entre sujeito e objeto]. O monismo ontolgico, que ainda conservava a ideia de uma realidade dupla, du-alista, tem esse mesmo dualismo minado com a transformao da rea-lidade natural em realidade tcnica, pois a matria perde seu carter de substncia, tornando-se mera estrutura matemtica em si exposta observao e ao clculo do sujeito humano. Assim,

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    a tenso entre o sujeito e o objeto e o carter dualista e antagnico da re-alidade tendem a desaparecer, e com eles a bidimensionalidade da exis-tncia humana, a capacidade de considerar um outro modo de existncia na re-alidade, de ultrapassar a facticidade at suas possibilidades reais (MARCUSE, 1960, p. 55 [grifo meu]).

    Essa faculdade de viver segundo duas dimenses, isto , essa faculdade de ultrapassar a facticidade com uma mudana qualitativa da realidade na realidade, portanto, a transcendncia histrica, prpria do homem da civilizao pr-tecnolgica, foi atrofiada por esse novo modo de pensar cientfico-tcnico, prprio de nosso mundo tecnolgico. Essa atrofia se mostra como resultado da tendncia tecnolgica (e no puramente ideolgica) de nossa sociedade industrial, que parece engen-drar um modo de pensar e agir que rejeita os valores, as aspiraes e as ideias que no se encontram em conformidade com a racionalidade do-minante. essa tendncia tecnolgica, portanto, que suprime uma das dimenses humanas: a dimenso transcendente, a dimenso que busca terica e praticamente ultrapassar a sociedade dada. Em funo dessa tendncia atrofiadora, diz Marcuse (1960, p. 55), o homem torna-se um ser unidimensional. O homem unidimensional aquele controlado pela estratgia poltica tecnolgica dos que tm o poder tecnolgico, e que desse modo estabelecem uma neutralizao das foras negadoras.

    Embora no deixe de trazer bem de perto o aspecto social en-quanto relacionado com a racionalidade tecnolgica, Feenberg acredi-ta que Marcuse erra ao deixar escapar o fato de a tecnologia no ser apenas um projeto abstrato, mas um projeto que em si mesmo integra um momento social contingente, o que torna a transcendncia histrica ainda possvel uma histria depois do fim da histria2. Ao narrar o desenvolvimento de seu pensamento, Feenberg afirma ter escrito,

    2 O aluno dissidente explicita, entretanto, que mais tarde ele mesmo passou construir uma leitura mais simptica de seu antigo professor. E, de fato, Marcuse via como possvel e mesmo tinha como inteno uma restaurao da bidimensionalidade enquanto alternativa ao homem unidimensional. Do filsofo, pode-se ouvir, por exemplo, o seguinte: na medida em que os valores estticos so valores no agressivos par excellence, a arte enquanto tecnologia e tcnica implicaria o surgimento de uma nova racionalidade na construo de uma sociedade livre, isto , o surgimento de novos modos e objetivos do prprio progresso tcnico (MARCUSE, 2006b, p. 118).

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    inclusive, em 1966, um longo ensaio sobre Marcuse chamado Beyond One-Dimensionality, no qual, j naquela poca, tentara mostrar como uma sociedade unidimensional poderia submeter-se a uma nova dial-tica (FEENBERG, 2006, p. 176). Embora muita coisa tenha mudado, de l para c, em seu trabalho, a inteno permaneceu similar.

    Como confirmao desse direcionamento, uma contribuio importantssima foi prestada ao projeto de Feenberg com a exploso de trs grandes revolues que ele teve a oportunidade de presen-ciar. A primeira delas, confluentemente com sua assimilao crtica de Marcuse e Foucault, foi a revoluo poltica da Nova Esquerda, represen-tada especialmente pelo criticismo cultural, o movimento estudantil, o feminismo e o ambientalismo. Uma segunda revoluo, a revoluo computacional, tambm se mostrou exemplar. Em 1982, revela Feenberg (2006, p. 177), ele foi chamado a ajudar a criar o primeiro programa de educao online, e, desse modo, pde acompanhar de perto o desen-volvimento da Internet e ver a ao humana influenciar o sentido do desenvolvimento tecnolgico na direo da educao online. Esse era um resultado que caminhava junto com a revoluo da nova sociologia da tecnologia, nos anos 80, com a escola do construtivismo social e a teoria da rede de atores na Inglaterra e Frana, que conseguiram colocar em destaque a importncia dos vrios grupos sociais como atores no de-senvolvimento. Nesse contexto, afirma Feenberg (1999, p. 10-11), ho-mens de negcio, tcnicos, clientes, polticos, burocratas esto todos envolvidos de uma forma ou de outra.

    Todos esses exemplos concretos se mostraram como uma con-firmao do que Feenberg (2006, p. 177 [grifo meu]) chama de sua teoria da ambivalncia da tecnologia. Com o termo ambivalncia da tecnologia entramos no cerne de sua filosofia da tecnologia. Para en-tendermos seu significado, devemos partir da insatisfao principal de Feenberg com o que ele acredita ser o substantivismo distpico de Heidegger e Marcuse. Do mesmo modo que este ltimo uma trans-formao do determinismo com a ideia de no neutralidade axiolgica, tambm a Teoria Crtica da tecnologia o do instrumentalismo. Contra a ideia de uma autonomia tecnolgica, Feenberg nos convida a no nos esquecermos de que h ainda lugar para se afirmar uma verdadeira

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    antroponomia tecnolgica. nesse contexto que Feenberg apresenta, em Questioning Technology (1999), o conceito de ambivalncia. Diz ele:

    a diferena [entre teoria crtica da tecnologia e instrumentalismo] que aqui [no caso da teoria crtica da tecnologia] as escolhas no se encontram no nvel dos meios particulares, mas no nvel dos sistemas meios-fins como um todo. Chamo a disponibilidade [availability] da tec-nologia para desenvolvimentos alternativos com diferentes consequn-cias sociais sua ambivalncia. O que est em jogo na ambivalncia da tecnologia no apenas o alcance limitado dos usos permitidos por qualquer design tcnico, mas o nmero completo de efeitos dos sistemas tecnolgicos como um todo (FEENBERG, 1999, p. 7).

    Em Transforming technology (2002), ao pensar a tecnologia como sistema metaestvel, Feenberg ainda mais claro a esse respeito: tec-nologia, diz ele, no uma coisa no sentido usual do termo, mas um processo ambivalente de desenvolvimento suspenso entre diferentes possibilidades (FEENBERG, 2002, p. 15)3. A tecnologia aparece a, por-tanto, como um campo de batalha, e no como um destino irrevogvel.

    Agora, se bem se percebe, ambivalncia o termo que Feenberg utiliza no lugar do que Marcuse chamou de bidimensionalidade da existncia humana (pr-tecnolgica), isto , a faculdade de abertura ou transcendncia histrica. Com uma diferena: aquilo que antes excedia tecnologia em Marcuse, algo como um momento anterior e pleno do humano, aparece em Feenberg compondo o prprio ser da tecnologia, e no algo diferente dela. E o que era uma transformao do conceito heideggeriano de transcendncia, em Marcuse, traduzido no proces-so dialtico inscrito na dualidade de atores tcnicos. Com base nisso, gostaria de nomear ento a tese do presente estudo: em Feenberg a bidi-mensionalidade a essncia da tecnologia. A mudana de ambivalncia

    3 Em outro lugar, ele ainda diz: definirei a essncia da tecnologia como o lugar sistemtico para as variveis socioculturais que realmente diversificam suas realizaes histricas. Nesses termos, a essncia da tecnologia no se identifica simplesmente com aquelas poucas caractersticas distintivas compartilhadas por todos os tipos de prtica tcnica. Aquelas constantes determinaes so meramente abstraes dos estgios socialmente concretos de um processo de desenvolvimento. a lgica [dialtica] desse processo que desempenhar agora o papel da essncia da tecnologia (FEENBERG, 1999, p. 201, grifo meu).

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    para bidimensionalidade no faz violncia conceitualidade do fi-lsofo, pois alm de conservar sua relao de aproximao crtica com Marcuse, encontra respaldo nos textos do prprio Feenberg, nos quais ele fala, por exemplo, da tecnologia como um fenmeno bidimensio-nal [a two-sided phenomenon] (FEENBERG, 2002, p. 16; 2006, p. 180), ou de uma interpretao bidimensional da tecnologia [two-sided inter-pretation of technology] (FEENBERG, 2002, p. 17), e mesmo da natu-reza bidimensional [two-sided nature of technology] (FEENBERG, 2006, p. 183). Parece-me bastante claro que o adjetivo two-sided tem, para Feenberg, o sentido de ter dois aspectos ou dimenses, e a seguinte passagem nos d o indicativo de que tal adjetivo est sendo pensado em contraposio a unidimensional:

    A tecnologia um fenmeno bidimensional [two-sided phenomenon]: por um lado, h o operador; por outro, o objeto. E na medida em que ambos, operador e objeto, so seres humanos, a ao tcnica um exerccio de poder [] A unidimensionalidade resulta da dificuldade de criticar essa forma de poder em termos de conceitos tradicionais de justia, liberdade, igualdade, e assim por diante (FEENBERG, 2002, p. 16, grifos meu).

    Para entendermos de maneira mais direta o que essa bidi-mensionalidade, precisamos voltar ao que Feenberg v como proble-mtico no essencialismo substantivista, a saber: sua viso dualista (FEENBERG, 1999, p. xi), ou se se preferir, sua concepo de um dua-lismo entre tcnica e sentido [meaning] (FEENBERG, 1999, p. viii), isto , entre a dimenso tcnica e a dimenso da experincia (significativa enquanto prtica no mundo da vida), muito embora as duas coisas es-tejam totalmente interligadas. por isso que o filsofo pode tambm dizer: o que o essencialismo concebe como ciso ontolgica entre tec-nologia e significao [meaning], eu concebo como terreno de embate entre diferentes tipos de atores diferentemente engajados com tecno-logia e significao (FEENBERG, 1999, p. xiii). Devemos considerar primeiro a relao entre tecnologia e significao (social) enquanto dois momentos da racionalidade tecnolgica como tal, para depois pensar-mos o engajamento dos atores com esses elementos.

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    O que est em jogo a , para Feenberg, o fato de as pessoas co-muns utilizarem a tecnologia como uma dimenso de seu mundo da vida [lifeworld]. Elas se apropriam das tecnologias e tentam adapt--las aos significados que iluminam suas vidas. Permitam-me mostrar isso com um exemplo extrado de uma recordao pessoal ainda de meu tempo de adolescente. Na hora do almoo, minha me me cha-mava com a seguinte assertiva: Wendell, o prato est na mesa. Ao dizer isso, ela certamente no se entregava a qualquer tipo de descri-o fenomenolgica da relao de sobreposio entre o prato e a mesa. Tratava-se, antes, de algo muito mais simples e, ao mesmo tempo, mais refinado, que eu pr-compreendia sem jamais ter refletido a respeito e sem que ela jamais tivesse me explicado. Talvez uma indicao impor-tante para essa pr-compreenso fosse o fato de que ao pegar o prato e logo retornar ao meu quarto, ela expressava veementemente longas reclamaes quanto ao meu isolar-me de meus pais at mesmo na hora do almoo. Ora, tais reclamaes expressavam que a afirmao o pra-to est na mesa no queria dizer que o prato estava l para que eu pudesse peg-lo, mas que estava l para que eu me sentasse mesa; significava no o chamado para a separao entre prato e mesa, mas para a juno entre filho e famlia mesa no se tratava certamente de fenomenologia, mas continha a significao implcita desse objeto tcnico que chamamos de mesa: um ente que comparece no mundo com a funo de reunir pessoas para uma dada atividade conjunta. O uso da mesa, sua essncia, no era a de apenas apoiar objetos para a refeio, mas possibilitar a reunio e confraternizao dos humanos. A mesa pensada como objeto para apoiar objetos da refeio em nada se aparenta com a funo do sentar mesa com a qual to bem acos-tumados estamos. O sentar-se mesa faz certamente parte de uma ressignificao do uso desse objeto. Que aps essa ressignificao te-nha se alterado a prpria forma de seus inventores conceberem sua criao com modelos distintos, isto s foi permitido pela prpria res-significao do uso cotidiano dos usurios.

    Ora, se bem se observa, tudo isso no seno o que nos ensinara Heidegger sobre a essncia de um instrumento (Zeug). Essa essncia ,

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    para alm de sua utilidade (Dienlichkeit), sua fiabilidade (Verlsslichkeit) (cf. HEIDEGGER, 1977[1935/36], p. 20). Fiabilidade a qualidade da-quilo que fivel, confivel. De algo fivel sempre esperamos algo, e essa esperana da ordem de uma pr-compreenso compartilhada com outros. A mundanidade do mundo jamais pode ser pensada sem o ser-com. justamente ao ser com outrem que o Dasein pode esperar algo de um Zeug.

    Pois bem, buscvamos exemplificar o aspecto bidimensional em Feenberg e terminamos ao lado de Heidegger. No teramos por acaso nos desviado da rota? A resposta no, e a razo nos oferecida pelo prprio Feenberg (2006, p. 179): concebo arranjos tcnicos enquanto instituindo um mundo num sentido parecido ao de Heidegger, uma estrutura dentro da qual as prticas so geradas e as percepes, or-denadas. Quer isto dizer: o tcnico tambm abrange as significaes mundanas dos humanos.

    Mas se Feenberg segue Heidegger ao pensar essa dimenso mun-dana no interior da tecnologia, como explicar a crtica que ele dirigira quele anteriormente? A resposta nos leva direto ao segundo aspecto da bidimensionalidade tecnolgica, isto , relao entre atores dominantes e subordinados. O que se deve entender que, embora Heidegger no deixe de lado completamente essa forma de pensar a essncia do Zeug, ele toma conscincia que essa forma de pensar ainda estava muito presa a um contexto artesanal, povoado por martelos, sapatos e jarras. Die to-tale Mobilmachung (1931) e Der Arbeiter (1932), de Ernst Jnger, recobram dele, entretanto, uma reviso de suas ideias. em funo disso que o segundo Heidegger abandona o horizonte de uma cotidianidade artesa-nal para pensar a essncia da tcnica como Gestell. Com essa mudana, ele parece dar pouca fora ao momento de ressignificao dos usurios e concentra sua reflexo sobre a perspectiva de uma elite que busca ad-ministrar a vida a partir de um horizonte cientfico-tcnico. justamen-te contra essa guinada no pensamento de Heidegger que Feenberg se contrape, valendo-se dos trabalhos do construtivismo social, com os quais ele pensa o carter contingente dos projetos e usos tecnolgicos enquanto permeados pela relatividade social e histrica decorrente dos

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    interesses dos vrios atores tcnicos. Essa inter-relao entre os vrios atores ganha um contorno mais bem definido a partir da concepo de poder elaborada por Foucault, de quem Feenberg (1999, p. 8) extrai a ideia de novas formas de luta local sem qualquer estratgia global. A se explicita claramente a ideia de uma natureza dual da tecnologia com a polarizao entre o ponto de vista estratgico, de um lado, enquanto res-pondendo pelo exerccio do poder tcnico, e, do outro, o ponto de vista ttico, isto , dos sujeitos subordinados ao poder estratgico, mas que ao mesmo tempo desempenham resistncias micropolticas improvisadas. justamente ao desconsiderar essa segunda dimenso do processo tec-nolgico, isto , a dimenso ttica, que Heidegger recebe as crticas de Feenberg. Eis o que ele diz:

    minha mais fundamental acusao acerca de Heidegger a de que ele prprio adota impensadamente o ponto de vista estratgico sobre a tec-nologia para conden-la. Ele a v exclusivamente como um sistema de controle e negligencia seu papel nas vidas daqueles subordinados a ela (FEENBERG, 2006, p. 184).

    s por pensar a tecnologia a partir do ponto de vista do ator estratgico que Heidegger no v sua frente a possibilidade de mu-dana aberta ao ator ttico. Feenberg, por sua vez, se vale de dois as-pectos para pensar a contingncia e a possibilidade de transcendncia histrica. Por um lado, preciso atentar para um aspecto da dinmica tecnolgica como tal: a tese do filsofo da tecnologia que o futuro da tecnologia imprevisvel. Ele afirma ter chegado a essa concluso ao conversar com um importante nome da rea da informtica:

    Quando eu trabalhava com computadores, tinha muitos contatos de alto nvel no mundo dos negcios [...]. Certa vez, o vice-presidente da segunda maior companhia de computadores do mundo levou-me para almoar e perguntou qual era minha viso sobre o futuro da com-putao pessoal. Eu disse para mim mesmo: se eu, um estudante de Marcuse, sou um especialista no futuro da tecnologia falando com esse vice-presidente, ento ningum sabe nada! (MARICONDA; MOLINA, 2009, p. 167).

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    Quer isso dizer: os atores dominantes no so, nem podem ser, videntes quanto ao rumo da estratgia tecnolgica que eles prprios encabeam. Segundo Feenberg, a ideia de uma racionalidade tecno-lgica pura, que seria independente da experincia, essencialmente teolgica (FEENBERG, 2010a, p. xix). Essa ideia fica ainda mais clara da maneira com o diz em outro lugar diz Feenberg (2006, p. 179):

    distinguindo a situao de um ator finito de um hipottico ator infi-nito capaz de um fazer a partir do nada. O ltimo pode agir sobre seu objeto sem reciprocidade. Deus cria o mundo sem sofrer qualquer recuo, efeitos colaterais, ou blowback. Essa a ltima hierarquia prtica estabelecendo uma relao de uma via s entre ator e objeto. Mas no somos deuses. Seres humanos podem apenas agir sobre um sistema ao qual eles mesmos pertencem. Como uma consequncia, cada uma de suas intervenes retorna para eles em alguma forma de feedback de seus objetos []. Assim, o sujeito tcnico no escapa da lgica da fini-tude afinal.

    Por outro lado, no s a estratgia do ator dominante no pode adotar uma perspectiva divina, providencial, em funo da lgica da finitude implcita na dinmica do ator estratgico humano; mas tambm no o pode porque igualmente precisa passar pela prova da ttica de atores que assimilam e ressignificam a seu modo o sentido da tecnologia. Esse segundo aspecto toca o ponto central da essncia bidi-mensional da tecnologia e formalizado conceitualmente por Feenberg com o que ele chama de teoria da instrumentalizao, que visa mos-trar o carter, a um s tempo, dialtico e holstico da tecnologia. Com tal teoria, Feenberg distingue dois nveis de anlise da tecnologia. No primeiro, aquele de uma instrumentalizao primria, est em jogo o modo de desvelamento tecnolgico, isto , a orientao funcional original diante da realidade, na qual os momentos reificantes de um projeto tcnico so enfatizados.

    Esses momentos se expressam pela ao dos atores dominan-tes. Esses atores detm os meios tecnolgicos (no lugar da ideia mar-xista de meios de produo) e gozam, assim, de uma autonomia ope-racional, isto , a liberdade de tomar decises independentemente dos

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    interesses dos atores subordinados, e por isso mesmo ocupam uma posio estratgica para exercer o controle do design tcnico. Esse con-trole autnomo exercido no sentido de encontrar e assegurar exequi-bilidades (affordances) de futuros dispositivos e sistemas, e com essa meta muito mais refinada que a mera eficincia que eles acabam agindo de maneira descontextualizada e tambm reducionista, isto , sem levar em considerao o contexto de aplicao do objeto tcnico e separando as qualidades primrias (qualidades consideradas impor-tantes para o projeto de controle tecnolgico) das secundrias, reduzin-do-as aos seus aspectos teis. Como extenso desse sistema forjado por uma autonomia operacional que aparece o que se chama tecnocracia, que como tal protege-se contra as presses pblicas, sacrifica valores da comunidade, e ignora necessidades incompatveis com sua prpria reproduo e a perpetuao de suas tradies tcnicas (FEENBERG, 2010a, p. 71).

    Se essa fosse toda a histria, Heidegger e Marcuse teriam razo ao acusar a essncia calculadora da tecnologia em sua racionalidade positivista. Mas essa no toda a verdade, pois a tecnologia no se resume ao seu aspecto tcnico estratgico. H tambm que se atentar para uma instrumentalizao secundria, relacionada propriamente ao, a partir da qual os objetos so constitudos em seus contextos so-ciais especficos. Nesse segundo nvel, os quatro momentos reificadores da prtica tcnica estratgica acabam encontrando seus momentos de compensao integrativa. por causa desse momento integrativo, qual seja, a experincia apropriativa dos atores subordinados, que Feenberg defende que a tcnica dialtica (FEENBERG, 2002, p. 176). O que acontece que se, por um lado, os atores estratgicos podem conceber seu projeto tcnico de maneira descontextualizada e reducionista, por outro, os excludos ou afetados negativamente por um tal design po-dem, por sua parte, perceber as consequncias indesejveis de tal design e em razo disso se oporem, oferecendo, assim, resistncia. Como diz o prprio Feenberg (2002, p. 182): o sujeito tcnico conforma-se com as tendncias do prprio objeto para extrair um resultado desejado. Esse , inclusive, o horizonte de uma transformao democrtica a partir de baixo, pois as resistncias podem pesar nos projetos tecnolgicos

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    futuros. Assim, ao abrir espao para o investimento vocacional do ator subordinado e sua consequente tomada de iniciativa em um jogo t-tico contra a estratgia do ator dominante, a descontextualizao e a reduo dos objetos tcnicos conhecem uma sistematizao, o que os conecta com outros objetos tcnicos, com seus usurios e com a nature-za, formando, assim, dispositivos e organizaes realmente teis, bus-cando tambm responder o reducionismo com a mediao dos objetos tcnicos pelas qualidades estticas e ticas que podem ser incorporadas a seu design original.

    O conceito de cdigo tcnico (FEENBERG, 2002, p. 74-80, 2006, p. 185, 2010, 68-69) aparece justamente para mostrar essa relao entre o projeto tcnico original e sua apropriao social. Eis como o define Feenberg (2010a, p. 68): um cdigo tcnico a realizao de um in-teresse ou ideologia em uma soluo tecnicamente coerente para um problema [] um cdigo tcnico descreve a congruncia de uma de-manda social e uma especificao tcnica. Agora, numa sociedade tec-nolgica como a capitalista, os cdigos tcnicos so enviesados a partir dos valores dos atores dominantes, e caso passem despercebidos, ou mesmo reforados, pela prpria sociedade, eles se tornam hegemni-cos. Essa hegemonia pode ser colocada em xeque caso encontre a re-sistncia dos atores subordinados. A esse respeito, observa Feenberg (2002, p. 183):

    nas sociedades industriais de hoje, a prtica tcnica oferece apoio para essas formas progressivas de integrao [isto , a resistncia ttica] ape-nas na medida em que o protesto poltico ou as presses competitivas as impem, mas sob o socialismo, a tcnica poderia incorporar princpios integrativos e procedimentos em seu modus operandi fundamental.

    Nesse sentido, o cdigo tcnico tecnocrata pode e deve dar lugar, segundo Feenberg, a um cdigo tcnico socialista. E como orientao para uma poltica tecnolgica, a teoria crtica da tecnologia tem como uma de suas funes identificar exatamente os limites dos cdigos tcnicos criados pela autonomia operacional, tentando abrir espao para uma democratizao da tecnologia, na qual os valores

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    dos atores subordinados tambm possam ter voz regulativa na din-mica tecnolgica.

    essa reorientao ttica prpria do processo tecnolgico que responde pelo que Feenberg (2002, p. 184) chama de poltica de design holstico, que como tal d origem a um sistema tecnolgico mais ho-lstico. A respeito desse aspecto holstico da tecnologia, permito-me ser mais breve. Feenberg o elucida a partir da ontologia existencial dos objetos tcnicos tal como a elabora Simondon. Para o filsofo francs, o progresso tcnico deve ser pensado a partir do conceito de concretiza-o, isto , a partir da tendncia que os objetos tcnicos tm de se tor-narem tanto mais concretos quanto possvel, o que se estabelece atra-vs de nveis sempre mais sinrgicos entre as tecnologias e seus vrios ambientes. O nvel de concretude pensado a partir dos estruturais mais ou menos integrados dos seres tcnicos. Quanto menos integrado, mais abstrato o objeto tcnico; quanto mais integrado, mais concreto. Tecnologias mais sofisticadas apresentam uma sinergia que cria mes-mo um ambiente associado (associated milieu) a ela. No difcil enten-der a relao que Feenberg observa entre seu pensamento e o que diz a Simondon: o ambiente que exige correes do objeto tcnico projetado abstratamente por seu inventor anlogo ao ator subordinado que do mesmo modo se reapropria de maneiras inesperadas do projeto tcnico do ator dominante. com isso em mente que Feenberg (2002, p. 187) afirma que a passagem dos abstratos incios tcnicos para resultados con-cretos uma tendncia geral integrativa do desenvolvimento tecnolgico que supera a herana reificada do industrialismo capitalista.

    Com esse ltimo elemento dialtico-holstico encerra-se a teoria crtica da tecnologia com sua nova forma de compreender a essncia bidimensional da tecnologia. Essas anlises fortemente conceituais po-dem ganhar maior alcance compreensivo, entretanto, se pudermos vi-sualiz-la a partir do horizonte de um exemplo concreto. Para tal exem-plificao, utilizarei, por fim, um caso que goza de certo apreo por parte de Feenberg, a Internet tema, inclusive, do ltimo livro edi-tado por ele junto com Norm Friesen, (Re)Inventing the Internet (2012).

    Embora a primeira rede de computadores tenha sido o sistema Minitel Francs, que, no entanto, no conseguiu emplacar em funo

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    da ao de Hackers, a Internet, hoje to conhecida, foi a primeira rede de computadores domstica de sucesso. Mas a Internet no foi proje-tada inicialmente para a comunicao pblica, tal como a conhecemos atualmente, primeiramente tinha uma inteno militar: a comunicao segura proporcionada pela tecnologia chamada de packet switching, base da Internet, e que em vez de um centro computacional (facilmen-te localizvel e destrudo) se estende por diferentes computadores. Justamente porque a inteno militar era a capacidade de sobrevivn-cia e no o controle, o projeto militar foi transformado para o alcance de usurios comuns. Como o projeto militar reconhecia a importncia de pesquisa cientfica como auxiliadora, e como acreditava-se que a co-municao entre pesquisadores era fundamental para a pesquisa, o sis-tema ARPANET comeou a funcionar online, estando disponvel para vrias universidades. Um engenheiro logo introduziu um programa de e-mail, que, embora inicialmente visto como um tipo de socializa-o libertina, foi percebido como possuindo grandes potenciais e assim liberado. Essa nica deciso foi o que possibilitou a Internet que co-nhecemos hoje, e no obstante ela poderia ter tomado uma forma com-pletamente totalitria de controle informacional. A Internet aparece, portanto, como um grande exemplo da resistncia integrativa dos ato-res subordinados. E no s por suas origens, mas tambm em sua pro-messa futura de uma comunidade online com potenciais democrticos.

    Apesar dessas potncias promissoras, a rede de computadores co-nheceu uma srie de crticas. Dentre outras tantas, a importante crtica de Darin Barney lanou, entretanto, a suspeita de que, tal como aconte-ceu com outros meios miditicos, os usos polticos poderiam se tornar uma exceo e a Internet definida pelo autodivertimento narcsico e o negcio (FEENBERG, 2012a, p. 9). Em resposta a Barney, Feenberg busca avaliar o problema a partir de um approach construtivista, isto , tentando pensar as tecnologias no como coisas, mas como processos em movimento mais ou menos rpido, o que serve de advertncia tam-bm para o fato de que o processo arrasta primeiro em vrias direes diferentes, mas finalmente estabilizado numa forma singular mais ou menos durvel (FEENBERG, 2012a, p. 10). Esse modo de pensar o que explica, inclusive, aquilo que os construtivistas chamam de flexibilidade

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    interpretativa da tecnologia, isto , uma espcie de indefinio quanto ao carter de uma determinada tecnologia. A Internet entra justamente nesse caso, j que seu desenvolvimento no encontrou ainda estabilidade.

    em funo dessa falta de estabilidade atual que, por sua parte, Feenberg identifica trs grandes caminhos possveis e no autoexclu-dentes de estabilizao da Internet. O primeiro poderia seguir o modelo da informao. Esse modelo foi o original e durou muito tempo enquan-to privilegiando a distribuio de informao. Pensava-se que a infor-mao poderia ento substituir a indstria enquanto maior fonte de riqueza. A expectativa se mostrou ilusria, e a informao se mostrou mais atrativa para a comunicao pessoal do que para os negcios. Um segundo caminho pode seguir o modelo do consumo. Embora em seus primrdios a Internet tenha sido virulentamente hostil a atividades comerciais em sua esfera, mais tarde, entretanto, o cyberspace conhe-ceu o que Feenberg chama de a exploso ponto com (boom dotcom). Hoje o mercado virtual uma fbrica de prosperidade e h uma forte possibilidade de esse modelo tornar-se o dominante. O fato de filmes e TVs estarem ainda por entrar no circuito virtual aumentaria enor-memente o uso consumista (atrelado indstria do entretenimento) na rede de computadores. O governo americano tem j sofrido for-te presso por parte de empresas de entretenimento e provedores de servio de Internet para abrir o caminho legislativo para esse circuito. Para Feenberg, isso significaria o fim da neutralidade da network. Apesar dessa tendncia, o filsofo aposta, todavia, no modelo da co-munidade. Ele afirma que o tipo de usurio prevalecente na Internet continua sendo aquele que busca comunicao livre. Essa se estabe-lece em dois tipos bsicos: o e-mail individual e as formas de comuni-cao de grupo como listservs, computer conferences e web forums, que eram separados das homepages, mas foram integrados, combinando comunicao e contedo pessoal, o que veio a formar as redes sociais (Facebook, blogs, Myspace)4. As comunidades se formam justamente

    4 vlido ressaltar que em Questioning Technology, Feenberg (1999, p. 128) j afirmava que a nfase na comunicao dos exemplos ambientais, da AIDS e da Minitel revela a situao dessa nova poltica. Com efeito, o papel da comunicao no design pode servir como uma pedra de toque da poltica democrtica na era tecnolgica.

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    nessas redes sociais. Ora, para Feenberg, qualquer tipo de formao de comunidade, lugar original onde os seres humanos podem discu-tir seus valores, de relevncia democrtica. Essa mesma relevncia pode ser percebida com o caso da educao online. Mas Feenberg ad-verte que para manter essa estrutura, o modelo da comunidade exige a neutralidade continuada da network, de modo que a comunicao no profissional, no lucrativa e politicamente controversa no venha a ser marginalizada (FEENBERG, 2012a, p. 12). Uma Internet pol-tica, uma Internet democrtica, depende, por fim, da capacidade dos usurios comuns defenderem um tal potencial nos anos que se seguiro. E em entrevista concedida revista Esprit, Feenberg (2012b, p. 52) ressalta: os crticos que dizem que esse controle [da Internet] est j inteiramente nas mos dos interesses comerciais no fazem ou-tra coisa seno desmobilizar a resistncia.

    Por fim, gostaria de deixar algumas observaes finais. Deixarei de lado, aqui, questes de carter mais ontolgico como a questo da teleologia no interior do desenvolvimento tecnolgico e o proble-ma dos limites do progresso tecnolgico, que poderia ser buscado na extenso de uma filosofia da histria. Irei ater-me apenas a dois problemas mais localizados. O primeiro concerne ao carter mobili-zador e ttico da distopia. Em oposio ao que Feenberg diz contra as distopias e seu pessimismo o que se reflete em sua ltima crti-ca referida acima a partir de sua entrevista concedida Esprit , h que se dizer que sem os profetas do holocausto ambiental jamais um movimento ambientalista profundamente organizado e militante po-deria ter emergido e se consolidado. Isso nos mostra que os profetas do apocalipse e tecnofbicos tambm precisam ser includos dentro da segunda dimenso tecnolgica, aquela ttica, pois eles tambm formam um importante fator contingencial da prpria tecnologia. As distopias continuaro a aparecer, goste-se delas ou no; e bom que apaream e de algum modo iluminem, ainda que turvamente, nossas expectativas do futuro, para que alertas ainda que deficientemente possamos decidir sobre esse mesmo futuro. O erro de Feenberg me parece ser, nesse caso, no ter percebido que os crticos da tecnologia como seus atores e apropriadores possuem uma influncia real sobre

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    a prpria apropriao dos usurios e dos movimentos organizados. Essa maneira de tratar os crticos da tecnologia como estando fora do processo inteiramente abstrata e no real. Assim, ao mesmo tempo que Feenberg reclama a contingncia do processo tecnolgico em seu acontecer apropriativo, ele critica uma das diversas formas como essa apropriao acontece: a tecnofobia. O processo que a tecnologia e a ordenao axiolgica desse processo so coisas distintas, e Feenberg passa de um aspecto a outro despercebida e equivocadamente, reivin-dicando uma espcie de telos do prprio fator apropriativo no vir a ser tecnolgico. A tese por trs desse comentrio que se um objeto tcni-co no existe de forma previamente dada, mas apenas se estabelece na relao que seu usurio mantm com ele, ento a crtica ao objeto tc-nico no pode passar sem ser considerada uma forma de apropriao tal como a transformao dos significados de uso desse mesmo objeto tcnico. Essa recusa do profetismo por parte de Feenberg mostra como de uma descrio do ser tecnolgico ele salta rapidamente para uma proposta poltica de como deve ser uma transformao democrtica da tecnologia, seu objetivo original5.

    Mas, ao que parece, o maior problema que a filosofia da tecno-logia de Feenberg encontra a falta de uma fundamentao axiolgica que possa guiar aquilo que ele chama de transformao democrtica da tecnologia. H uma espcie de passagem do fato ao valor, do ser ao dever, isto , uma passagem da concepo da tecnologia como bi-dimensional para uma afirmao do contedo que a experincia e as-similao social deve ter. Esse aspecto problemtico do pensamento de Feenberg foi salientado por Gerald Doppelt (2006) e Simon Cooper (2006), a partir de perspectivas distintas a partir do prisma da teoria poltica (liberal) e da tica da biotecnologia, respectivamente. Apesar dessa forte ligao, a crtica de Doppelt fez mais barulho aos ouvidos de Feenberg do que a de Cooper, a quem ele pensa facilmente refutar. Por isso, ficarei apenas com o embate de Feenberg com Doppelt, para

    5 O prprio Feenberg parece ter percebido isso sem tirar as consequncias devidas: o que ele [Marcuse] estava dizendo em 1964, em One-dimensional man [O homem unidimensional], era que nenhuma oposio era possvel, e ns lemos nenhuma oposio possvel com o sentido de precisamos nos opor! Ele provocou a oposio ao dizer que ela no era mais possvel. Esse o paradoxo do pensamento distpico (MARICONDA; MOLINA, 2009, p. 165).

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    apontar o que, de fato, permanece como um ponto de fragilidade do autor de Transforming technology.

    Embora Doppelt (2006) concorde com o argumento de Feenberg sobre o potencial dos interesses marginalizados na remodelagem do processo de design, ele salienta acertadamente que Feenberg no tem como dizer quais interesses so melhores ou mais democrticos. Desse modo, Doppelt defende que conceitos democrtico-liberais como di-reitos e igualdade podem alcanar esse fundamento, sendo de algu-ma ajuda para sua teoria crtica da tecnologia.

    Em sua defesa contra Doppelt, entretanto, Feenberg no ofere-ce de fato uma resposta positiva ao problema. Primeiro ele elucida as inconsistncias da posio liberal de Doppelt e depois sugere uma al-ternativa via liberal. Antes de tudo, ele defende que o argumento de Doppelt padece dos problemas prprios dessa tradio da filosofia po-ltica: o fato de ela ter se fixado em uma explicao mtica do poltico, o contrato social (FEENBERG, 2006, p. 197). Contra esse mito liberal, Feenberg destaca dois problemas: primeiro, o projeto de compreenso dos links entre as foras sociais que modelam nossa sociedade e seus ideais de liberdade, justia, e igualdade no podem ser levados adiante sem tambm levar em considerao a tecnologia (FEENBERG, 2006, p. 197). A filosofia poltica que est atenta ao problema da desigual-dade de renda, por exemplo, precisa considerar tambm o problema da tecnologia, uma vez que o controle das circunstncias materiais de trabalho so determinadas tecnologicamente. Assim, o argumento de Doppelt seria incompleto na medida em que ele no est fundado em uma filosofia da tecnologia (FEENBERG, 2006, p. 198).

    O segundo problema, por sua vez, aparece na forma da constata-o de que tambm a filosofia poltica no se encontra em uma melhor situao que a teoria crtica da tecnologia para enfrentar similares exi-gncias de justificao de seus valores sobre a ao e a igualdade, ao que Feenberg retorna a questo para Doppelt: Afinal, como distingui-mos a ao verdadeira [true agency] da manipulao? E o que torna alguns usos de nossa liberdade privada politicamente digna e outros condenveis? (FEENBERG, 2006, p. 198).

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    Em funo desses dois problemas, o filsofo da tecnologia deve ir alm das duas concepes democrticas tradicionais de liberdade, como ao cidad (autonomia pblica) e liberdades individuais iguais (autonomia individual). Ele deve invocar uma terceira concepo, qual seja a tradio humanista, para a qual uma boa sociedade deveria capacitar os seres humanos a desenvolverem suas capacidades ao m-ximo (FEENBERG, 2006, p. 198). Essa tradio humanista defendida por Feenberg numa direo muito parecida quela dos atuais comuni-taristas. E nela, diz ele:

    os fundamentos so derivados das potencialidades reveladas numa tra-dio histrica qual pertencemos. Esse humanismo hegeliano busca na histria a evidncia de que nosso destino enquanto seres humanos um desvelamento progressivo de capacidades para a autoexpresso livre, a inveno do humano. Pelo fato de pertencermos a uma tradio modelada por lutas que visam melhorar a situao humana, onde quer que presenciemos lutas semelhantes por uma maior realizao da liber-dade, da igualdade, da responsabilidade moral, da individualidade e da criatividade, ns as interpretamos como contribuindo para a maior realizao das capacidades humanas. Mas note-se que enquanto a no-o de realizao das capacidades humanas nos remete totalidade do humano, essa totalidade no est dada de antemo em um ideal especu-lativo, mas precisa emergir do processo real de luta, pedao por pedao (FEENBERG, 2006, p. 199).

    Se assim, preciso ento dizer, por fim, o seguinte: tanto em ter-mos ontolgicos como polticos, a filosofia da tecnologia que Feenberg elabora pressupe uma antropologia filosfica, pois, muito ao estilo dos contemporneos comunitaristas, uma tal tradio humanista no oferece outra coisa seno uma concepo narrativa de self em contrapo-sio ao conceito voluntarista de self prprio da tradio liberal. Ento, se de algum modo Feenberg consegue escapar do problema levanta-do, isso no pode acontecer sem que, para alm da pergunta sobre a essncia da tcnica, se responda aquela antiga questo que se tornou ilustre desde Kant: o que o homem? Essa no uma pergunta en-tre outras. E se de fato no mesmo o ncleo da filosofia, sua estreita

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    relao com esse ncleo nunca pode passar despercebida. Se a querela de Heidegger com a essncia da tcnica permanece ainda hoje algo de no ultrapassvel, porque se tratava a da pergunta pela essncia do homem enquanto aquele ente que antes de tudo capaz de pensar a verdade do ser, mas que, em sua atual condio, foi engolido pela tc-nica, mesmo quando a domina.

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    Recebido: 09/12/2014Received: 12/09/2014

    Aprovado: 16/02/2015Approved: 02/16/2015