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Centro Universitrio de Braslia UNICEUB Faculdade de Cincias da Educao e da Sade FACES Curso de Psicologia
KEYLA CORRA MONTENEGRO
CUIDADOS PALIATIVOS E PSICOLOGIA
A legitimao da alteridade como promoo da dignidade humana
Braslia 2012
KEYLA CORRA MONTENEGRO
CUIDADOS PALIATIVOS E PSICOLOGIA
A legitimao da alteridade como promoo da dignidade humana
Monografia apresentada Faculdade de
Cincias da Educao e da Sade- FACES,
curso de Psicologia do Centro Universitrio de
Braslia UniCEUB como requisito final obteno do bacharelado em Psicologia.
Orientadora: Profa. Tatiana Liono.
Braslia 2012
KEYLA CORRA MONTENEGRO
CUIDADOS PALIATIVOS E PSICOLOGIA
A legitimao da alteridade como promoo da dignidade humana
Monografia apresentada Faculdade de
Cincias da Educao e da Sade- FACES,
curso de Psicologia do Centro Universitrio de
Braslia UniCEUB como requisito final obteno do bacharelado em Psicologia.
Orientadora: Profa. Tatiana Liono.
Data da aprovao: _____/_____/2012
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profa. Doutora Tatiana Liono (Orientadora)
___________________________________________
___________________________________________
RESUMO
O presente trabalho objetiva problematizar a questo da morte no cenrio atual. O
avano tecnolgico e cientfico da biomedicina suscitam questes ticas a respeito da
dignidade humana. A frequente medicalizao causa um prolongamento desnecessrio do
tempo da morte (distansia) o que causa grande sofrimento para o indivduo e sua famlia. O
sofrimento pode ser tamanho que impede o indivduo de ter uma vida digna o que justifica o
seu pedido por eutansia. Como a eutansia proibida por lei, criou-se um novo conceito para
definir outra possibilidade para a morte, a ortotansia. A ortotansia se refere ao conceito
mais prximo do que se pode chamar de morte digna, pois se fundamenta basicamente em
deixar o curso da morte ocorrer naturalmente sem que os pacientes sejam abandonados. Os
cuidados a estes pacientes so representados pela modalidade de cuidados paliativos que
visam garantir e promover a dignidade humana at os ltimos dias, sem no entanto se utilizar
de teraputicas desnecessrias ou antecipar o momento da morte. Nesse caso, a garantia da
dignidade humana se torna o grande objetivo das prticas em sade, o que envolve o campo
da biotica que pretende ajudar na soluo de tais conflitos ticos suscitados no cuidado com
pacientes terminais. Para a realizao deste trabalho foram utilizados documentos de
importncia nacional e internacional que se referem proteo da dignidade humana. Foram
analisados a Declarao Universal dos Direitos Humanos, a Constituio Federal, a
Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos, a Declarao sobre a Eutansia do
Vaticano, o Cdigo de tica Mdica e o Cdigo de tica do Profissional Psiclogo.
A partir da anlise tornou-se possvel conceber que os cuidados paliativos para serem
efetivamente cuidados que promovam a dignidade humana, devem necessariamente ser
individualizados, pois dignidade um construto subjetivo e individual. A participao da
psicologia neste contexto portanto, envolve a legitimao da alteridade.
Palavras-chave: dignidade humana, biotica, cuidados paliativos, psicologia
AGRADECIMENTOS
Agradeo imensamente a minha famlia pelo apoio e pelas palavras de motivao
e conforto em momentos difceis. Agradeo aos meus queridos avs que so os melhores
exemplos de vida que poderia ter. Aos meus amigos que respeitaram e colaboraram
intensamente com este trabalho, principalmente famlia Checcucci, que sempre me deram a
mo quando precisei. A todos, o meu muito obrigada no s por contriburem para minha
formao acadmica, mas por contriburem intensamente na minha formao pessoal.
Este um problema que afeta literalmente cada pessoa no planeta. Todos ns gostaramos
que nossas vidas e as vidas daqueles que
amamos, terminassem de forma pacfica e
confortvel. Arcebispo Desmond Tutu
SUMRIO
1. APRESENTAO ................................................................................................................ 1
2. CAPTULO 1 - CONTEXTUALIZANDO A MORTE ........................................................ 4
2.1. A Morte Indigna .................................................................................................................. 4
2.2. A Morte Digna ................................................................................................................... 15
2.3. Respaldo Legal da Boa Morte ........................................................................................... 34
2.4. Eutansia Passiva, Ortotansia e Cuidados Paliativos ...................................................... 39
3. CAPTULO 2 - CUIDADOS PALIATIVOS ...................................................................... 43
3.1. Panorama Brasileiro em Cuidados Paliativos.................................................................... 58
3.2. Limitaes dos Cuidados Paliativos .................................................................................. 67
4. CAPTULO 3 - ANLISE DE CONTEDO ..................................................................... 69
4.1. Anlise dos documentos selecionados............................................................................... 73
4.2. Direitos Humanos, Constituio Federal Brasileira e Moral Crist: Fundamentos da
Noo de Dignidade Humana ................................................................................................... 75
4.3. A Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos e Deontologia Mdica ....... 79
4.4. Cuidados Paliativos: fundamentalismo moral ou pluralismo? .......................................... 93
CONCLUSO ........................................................................................................................ 111
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................... 113
LISTA DE SIGLAS
CP Cuidados Paliativos
CEM Cdigo de tica Mdica
CFM Conselho Federal de Medicina
DUDH Declarao Universal de Direitos Humanos
DUBDH Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos
CFP- Conselho Federal de Psicologia
ONU- Organizao das Naes Unidas
OMS Organizao Mundial da Sade
SET - Suspenso de Suporte Teraputico
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Cuidados Paliativos iniciados aps o tratamento curativo ........................................ 52
Figura 2. Cuidados Paliativos iniciados paralelamente ao tratamento curativo ....................... 53
1
1. APRESENTAO
A morte e o morrer so inevitavelmente preocupaes humanas. Com o avano
tecnolgico a humanidade conseguiu alcanar a cura de doenas antes nunca imaginveis. A
confiana na cincia e na tcnica levantam problemticas atuais no que tange ao processo de
morrer na atualidade. Est cada vez mais difcil, apesar dos inmeros recursos, oferecer
populao uma morte sem sofrimento. Os hospitais se tornaram a grande ctedra do
sofrimento humano e a alta incidncia de doenas crnicas letais contribui para o medo
generalizado de morrer presente em nossa sociedade.
As intervenes mdicas cada vez mais sofisticadas no promovem o alvio do
sofrimento no momento da morte, pelo contrrio, contribuem para o prolongamento deste
sofrimento. Comea-se a se observar cada vez mais frequentes a medicalizao da morte
associada a violao da dignidade humana. A eutansia um reflexo da incapacidade da
medicina e instituies de sade de aliviar o sofrimento humano e garantir dignidade no final
de vida. O pedido de eutansia pode ser interpretado como uma denncia de sofrimento
intenso e de indignidade. Assim, se faz necessrio refletir eticamente a respeito de como se
utilizar da tecnologia disponvel no momento da morte. Para isso, surge o conceito de
ortotansia, que implica nem em adiar a morte como tambm no implica no prolongamento
do sofrimento. Implica portanto, no acompanhamento do paciente em seu curso natural de
morte, oferecendo-lhe o suporte necessrio para que este processo possa acontecer com o
menor nvel de sofrimento possvel. com este intuito que surgem os Cuidados Paliativos,
como uma tentativa de operacionalizar a ortotansia a fim de garantir uma morte digna.
A partir do exposto, este trabalho visa problematizar os Cuidados Paliativos e os
aspectos ticos e morais que envolvem o processo de morrer na atualidade. Dessa forma,
tornou-se necessrio a contextualizao da morte no cenrio social, assim como aprofundar
nas questes ticas, morais e legais que a envolve para assim ento discutir sobre os Cuidados
Paliativos. A partir disso, v-se que a partir da anlise de documentos nacionais e
internacionais importantes a esse respeito, que a dignidade humana o conceito chave na
discusso sobre o morrer na atualidade e que nele est implcito a diversidade e a alteridade,
sendo assim, o cuidado na terminalidade deve constituir tambm no respeito diversidade.
Este trabalho tem relevncia na medida em que a incidncia de doenas crnicas
e/ou fatais tem aumentado com o passar dos anos, o que nos leva a acreditar que a ateno
com os cuidados de fim de vida devem tambm aumentar. Assim, importante problematizar
a forma como o processo de morrer tem sido tratado, assim como questionar o envolvimento
do campo da biotica neste contexto. A partir disso, faz-se necessrio compreender qual o
lugar da psicologia neste debate, assim como qual pode ser o seu papel no contexto biotico.
Neste sentido, preciso problematizar a participao da psicologia no contexto da biotica
para que esta comece a refletir sobre o alcance de sua atuao como uma ferramenta poltica e
social.
Este trabalho tem por objetivo problematizar a participao da psicologia no
debate biotico a respeito dos cuidados paliativos como um modelo assistencial que visa
promover a morte digna. Neste sentido, o objetivo geral da pesquisa : Problematizar as
questes ticas que envolvem o contexto da morte e do morrer assim como apontar para o
discurso moral que as envolve. Assim, os objetivo geral tem trs desdobramentos que podem
ser chamados de objetivos especficos da pesquisa:
a) Contextualizar a morte digna e indigna e seus respectivos aportes legais;
b) Apresentar os cuidados paliativos como uma forma de solucionar as questes ticas
que envolvem a morte;
c) Apontar para a essncia moral que rege os cuidados paliativos e problematizar a
participao da psicologia neste contexto.
Para a realizao deste estudo, utilizou-se a metodologia qualitativa a partir da
anlise de contedo de Laurence Bardin (1977) de documentos nacionais e internacionais.
Como instrumentos de pesquisa foram realizados os processos de codificao e categorizao
dos textos utilizados. Foram utilizados como material de pesquisa os documentos:
Constituio Federal (BRASIL, 1988); Declarao Universal de Direitos Humanos (ONU,
1948); Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos (ONU, 2005); Cdigo de
tica Mdica (CFM, 2010); Cdigo de tica do Profissional Psiclogo (CFP, 1987) e
Declarao sobre a Eutansia (VATICANO, 1980).
4
2. CAPTULO 1 - CONTEXTUALIZANDO A MORTE
2.1. A Morte Indigna
Em uma sociedade moderna, ocidental e extremamente globalizada, o enfoque no
avano tecnolgico e cientfico so caractersticas dos sculos XX e XXI. A morte, a doena e
o sofrimento, no entanto, foram desaparecendo do cenrio social conforme o passar do tempo.
Aris (1977) em seu trabalho A Histria da Morte no Ocidente faz um panorama histrico
de como a morte ocupou diferentes lugares em diferentes momentos histricos e culturais.
Neste mesmo trabalho, Aris (1977) caracteriza a atitude da sociedade frente morte e ao
morrer. Usaremos a Idade Mdia apenas a ttulo de comparao com os dias atuais.
Na Idade Mdia, a postura da sociedade diante da morte tinha um carter mais
familiar, as pessoas tinham maior participao no seu processo de morrer (Esslinger, 2004). A
chamada morte domada (Aris, 1977) representa uma atitude de familiaridade e autonomia
frente morte, bem diferente da representao de morte caracterstica do sculo XX. Nos
tempos atuais, a morte sofreu grandes transformaes de cunho cultural mudando seu
significado e transformando intensamente a atitude humana perante ela. A morte invertida
(Aris 1977) se caracteriza por sua inimizade com a humanidade. Uma caracterstica
importante da representao da morte invertida a necessidade que a morte passe
despercebida tendo como caracterstica o combate doena, a dor e o sofrimento na tentativa
de se vencer a morte criando a iluso de sermos imortais (KOVCS,2003; PESSINI, 2008).
a partir deste momento que falar da morte se torna mais difcil: esta comea a
ocupar o lugar do oculto, do vergonhoso, do interdito (KOVCS, 2003; ESSLINGER 2004).
Eis que ocorre ento uma ruptura: o homem - nico capaz de se entender finito - rompe com a
morte. Tal rompimento pode ser observado em Esslinger (2004, pg 27) que cita o estudo de
Baudoin e Blondeau (1993). Segundo os autores, a morte retirada do mundo dos vivos causa
5
conflitos tanto na deciso sobre incio e suspenso de tratamentos como na delegao de
poder para a figura do mdico que acaba por decidir o destino de seu paciente. A
expropriao da morte do cotidiano se d tambm no espao fsico da sociedade, uma vez que
a morte passou a ocorrer em hospitais, local este que pode ser caracterizado pela palavra
assepsia (KOVCS, 2003). A hospitalizao da morte se torna uma caracterstica da
sociedade contempornea em que se pode observar o surgimento da morte moderna. A
morte moderna representa um processo de morte fortemente medicalizado, onde o paciente
submetido s regras institucionais que privilegiam no o paciente, mas a competncia mdica
(MENEZES,2003). Nobert Elias (1982, pg. 36) descreve que no morrer atual, apenas as
rotinas institucionalizadas do uma estrutura social para quem est morrendo, essas porm,
so destitudas de sentimento e acabam por gerar isolamento.
Prevalece no af do desenvolvimento tcnico e cientfico uma cultura de
valorizao da tcnica, da cura e do controle e o hospital o palco onde tudo isso acontece. O
hospital alm de favorecer o combate doena e a morte cumpre outra funo: esconde a
morte, a doena o sofrimento e a degradao dos olhos da sociedade; transformou-se em um
depsito daquilo que a sociedade no consegue lidar; uma forma socialmente aceita de
asilamento (KOVCS 2003). A morte institucionalizada permite uma sensao de controle
sobre a doena e sobre o processo de morrer, centralizado no poder mdico e nos recursos
tcnicos disponveis. Benatar (2002 pg. 26) discute o relacionamento entre mdico e paciente
como uma relao de poder, onde este est nas decises mdicas. O centramento do poder
mdico caracteriza aquilo que se chama de paternalismo, que para alguns autores como
Pessini (2006), Esslinger (2004) e o prprio Benatar (IDEM) deve ser ultrapassado se
quisermos alcanar uma morte mais humana, uma vez que o compartilhamento do poder
promove uma relao de autonomia e no de dependncia (BENATAR, 2002, pg. 32).
6
Agindo desta forma, o mdico no se d conta de que ele se faz instrumento
de um paternalismo ultrapassado, tira do paciente o controle de um dos
momentos mais importantes de sua vida, faz deste um objeto passivo (alis,
o termo paciente contm implicitamente a conotao de passividade), e
simboliza, desta forma, a atitude moralista da medicina tradicional de outra
poca. (Baudoin e Blondeau, 1993, pg. 58 apud Esslinger, 2004, pg 28)
A reflexo acima questiona a autoridade mdica em relao autonomia do
paciente. A autonomia pode ser definida como a capacidade de auto-governo; uma deciso
autnoma aquela que resulta da informao dada a fim de esclarecer sobre: tratamentos,
teraputicas, prognsticos, riscos, malefcios e benefcios de cada conduta biomdica(DINIZ
e COSTA, 2004 pg. 127).
Martin (2006, pg. 40), indica que o paternalismo no mal intencionado, mas que a
tenso existente entre o paternalismo (que representa as decises mdicas tomadas com base
naquilo que o mdico acredita ser melhor para o paciente) e a autonomia (decises mdicas
baseadas naquilo que o paciente acredita ser melhor para si) configura um grande desafio
tico, j que para ele nem sempre fcil a promoo da autonomia, mas esta se faz necessria
como parte do respeito dignidade do ser humano. Assim o autor ressalta que o doente tem o
direito de saber a realidade, possibilitando que o sujeito saia da ignorncia; para ento poder
exercer o seu direito de decidir de forma consciente.
No entanto, a promoo da autonomia no contexto da morte medicalizada e
tutelada pouco incentivada, o paternalismo reinante e apesar de ser bem intencionado,
coloca o paciente em risco de morrer de forma indigna. Exercer a autonomia no contexto da
morte significa apropriar-se dela, no encarregando desta forma, outras pessoas de decidir
sobre uma morte que no lhes pertence. A morte, neste sentido, torna-se uma extenso da vida
uma vez que a tomada de decises faz parte da vida humana, onde o exerccio de decidir
tornam os indivduos responsveis por si prprios (JARAMILLO, 2006, pg. 24/26).
O paternalismo mdico alm de impedir a tomada de deciso pelo sujeito e o
pleno exerccio de sua autonomia pressupe que o paciente concorda com sua deciso. As
7
decises de final de vida so fundamentalmente ticas e morais e pressupor uma concordncia
impede que opinies diferentes possam surgir. Nem sempre certo que paciente e profissional
concordaro perfeitamente no que tange as teraputicas a serem utilizadas, pois apesar do
desejo da cura estar na grande maioria das vezes presente, as pessoas podem no desejar
sofrer mais que o necessrio.
O fato de as pessoas estarem dispostas a aguentar muita coisa na esperana
de encontrar a cura no significa que elas devam ser submetidas a mais dor,
sofrimento e perda de dignidade do que o necessrio (MARTIN, 2006,
pg.44).
Alm disso, as terapias devem ser propostas de acordo com cada caso, cada
estgio da doena e com cada paciente, pois aquilo que pode ser considerado necessrio para
um paciente, pode ser excessivo para outro (DINIZ2006, pg.1741). No clara e objetiva a
prescrio de tratamentos, muitas vezes impossvel discernir quando uma interveno til
ou intil e quando se deve aceitar a irreversibilidade da doena (PESSINI 2009).
Assim, a tomada de deciso de fundamental importncia, pois esta pode ser a
diferena entre o sofrimento e a dignidade. Para evitar que a deciso mdica de optar por um
determinado tratamento cause mais sofrimento que benefcio ao paciente, o mdico possui o
Cdigo de tica Mdica (CFM 2010), mas este sozinho no consegue solucionar todos os
casos. Grande parte das decises partir da conscincia do mdico, ou seja, de um
posicionamento individual.
Quando se tem como objetivos mdicos: salvar e prolongar a vida, promover e
manter a sade e aliviar a dor e o sofrimento (grifo nosso, PESSINI 2001 apud Esslinger
2004); tomar decises em casos extremos se torna bastante complexo. Em caso de
incurabilidade, por exemplo, os objetivos salvar e prolongar a vida e aliviar a dor e o
sofrimento entram em conflito, dependendo assim de um posicionamento moral do mdico
assim como de seu entendimento da tica profissional a que se refere. No complexo contexto
8
da morte medicalizada, o centramento do poder no mdico somado aos grandes recursos
tcnicos e uma supervalorizao da cura, tem constantemente levado os profissionais a
prevalecerem o primeiro objetivo em detrimento dos outros, ainda que possuam obrigao de
cumpri-los. Alm disso, o limite entre estes objetivos se torna cada vez mais tnues, o que
dificulta mais ainda a tomada de deciso. A falta de clareza no est presente apenas no
conflito entre os objetivos mdicos, mas a prpria fronteira entre a vida e a morte torna-se
cada vez mais tnue e sutil, a linha entre a vida e a morte no momento atual, imprecisa:
torna-se muito difcil diferenciar a vida da morte, e a morte da vida. Talvez nem se perceba
quando a morte de fato ocorreu (DINIZ e LIONO 2009; KOVCS, 2004, pg.73).
De fato, o que ocorre que prevalecendo o objetivo de salvar e prolongar a vida,
os inmeros recursos disponveis, ainda que se saiba que a morte inexorvel vida humana,
so fortemente utilizados para combat-la num intuito de evit-la ao mximo possvel, o que
permite a sobrevivncia a momentos agudos da doena, resultando assim, no prolongamento
do sofrimento (DINIZ E LIONO, 2009). Esta atitude frente morte revela uma enorme
dificuldade de se lidar com ela. Como afirmado por Diniz (2006, pg. 1742), a morte no
contexto biomdico tem adquirido carter de fracasso, o que leva a uma situao paradoxal,
em que os profissionais da sade so os que mais tm contato com a morte e ao mesmo tempo
so eles os que tm mais dificuldade em aceit-la como um processo natural.
A transformao do cenrio da morte que aqui discutimos tem fortes
consequncias sociais, uma delas o medo. Pessini (2008) revela que o processo de morrer
temido pela sociedade, no iderio social a morte frequentemente associada dor, solido,
dependncia e impotncia. Ou seja, a ideia do processo de morrer quase sempre
acompanhada de sofrimento. A morte desejada pela nossa sociedade atual a morte repentina,
de preferncia durante o sono (KOVCS, 2003, pag. 72). Este desejo expressa no s o medo
da morte em si, mas o medo de vivenci-la: o processo da morte o objeto do medo. O estudo
9
de Lolland (1978, apud Kovcs 2003) descreve cinco contingncias que levam ao medo da
morte: a) alto nvel de tecnologia mdica; b) deteco precoce de doenas; c) definio
complexa de morte; d) alta incidncia de doenas crnicas e e) interveno ativa no processo
de morte. Esta morte temida pode ser representada pelo conceito de m morte, aquela
marcada pela intensa medicalizao, sofrimento, solido e medo (KOVCS 2003). esta a
morte que possumos hoje no Brasil. Uma evidncia disso, est no relatrio do The Economist
Intelligence Unit de 2010 em que a qualidade de morte no Brasil foi classificada como uma
das piores do mundo. De quarenta pases, o Brasil obteve a 38 colocao, ficando na frente
apenas da Uganda e da ndia, o que evidencia que ns vivemos sim a m morte.
A m morte pode ser relacionada com o surgimento de um novo estgio da vida
humana: a sobrevida sob intensa medicalizao (DINIZ E LIONO 2009). Nesse modelo de
morte fortemente medicalizada, o enfermo possui poucas possibilidades de acesso ao
conhecimento do que se passa consigo prprio e de decidir sobre as teraputicas utilizadas.
sobre este ponto, o da violao da autonomia do paciente e de sua dignidade que se reivindica
o direito a morte digna (MENEZES 2003). O movimento poltico e social do direito a morrer
com dignidade no surgiu para demonizar os recursos tcnicos da prtica mdica, mas de
garantir que estes recursos sejam usados em benefcio do paciente, evitando a violao de
seus direitos. O devido uso da tecnologia deve passar por uma reflexo tica, moral e legal.
No se trata de questionar somente o uso da tecnologia, mas tambm de questionar sobre o
sentido de seu uso (BETTINELLI e col. 2006, pg.92; PESSINI 2002). A moderna
tecnologizao da sade poderia nos levar a crer que a morte seria um evento menos sofrido,
porm, o alcance do conhecimento e da tcnica muitas vezes no tem servido ao profissional
para atuar em benefcio do paciente, tornando o morrer um processo mais complexo e
solitrio. A instrumentalizao do hospital teve como consequncia a instrumentalizao da
relao entre mdicos e pacientes, o que resultam em despersonalizao, desumanizao e
10
objetificao do enfermo (MENEZES 2003). A individualidade do enfermo em processo de
morrer tem sido comumente substituda pelo atendimento padro protocolar, o que acaba por
despersonalizar a morte, fazendo desta um evento annimo.
Este cenrio representa a incompetncia da medicina centrada na cura em atender
com eficincia os pacientes que vivem com enfermidade crnica e/ou no respondem mais ao
tratamento curativo (SANTOS e MATTOS 2011). Apesar de toda a tecnologia disponvel a
medicina curativa tem fracassado em proporcionar uma boa morte para estes pacientes. Uma
das razes pelas quais essa boa morte ainda no foi alcanada, pela falta de reconhecimento
das necessidades que vo alm do desconforto fsico. A medicina curativa centraliza o foco da
ateno no corpo do paciente que no resiste mesmo com tantos investimentos profissionais e
tecnolgicos. Assim, a busca pela cura da morte atinge o pice da desumanizao (COSTA e
COSTA,2002, pg. 470).
Os pacientes em questo possuem demandas que esto para alm da falncia do
corpo. Mauksch em 1975 j se referia a estas necessidades quando afirmou que o morrer
uma experincia total, em que o rgo afetado deixa de ser o item bsico (apud PY e
OLIVEIRA, 2006). Portanto, para se oferecer uma boa morte necessrio consider-la como
uma experincia total, que envolve o sujeito como um todo, atendendo-o em sua
integralidade. Neste sentido, fundamental considerar cada paciente como pessoa, em sua
individualidade e subjetividade.
Entende-se que atender o sujeito em sua integralidade implica no seu
reconhecimento como um sujeito complexo, que ao vivenciar o seu processo de morrer deve
ter espao para compartilhar com a equipe e a famlia, seus medos, desejos e fantasias. Para
que isso de fato acontea este cenrio da morte atual tem que se transformar, a comear pelo
prprio significado da morte que precisa sair do lugar do interdito e do fracasso, pois
enquanto estes forem os significados hegemnicos da morte, esta provavelmente ser sempre
11
uma violao da dignidade. A dignidade humana representa o resgate do respeito ao valor
intrnseco da vida humana, que mesmo na morte merece ser protegido. Lepargneur (2002)
ressalta que o conceito de dignidade est diretamente relacionado ao conceito de pessoa. A m
morte, ou a morte indigna pode ser considerada como uma violao da dignidade humana
uma vez que desrespeita a pessoa doente.
O paradigma que atende mais a doena da pessoa do que a pessoa doente o
paradigma da cura, definido por Martin (1998) como o paradigma tecnocientfico (apud
PESSINI 2002). Este o paradigma representativo dos sculos XX e XXI pelo grande uso da
tecnologia e farmacologia. Este paradigma possui como valores fundamentais o conhecimento
cientfico e a eficcia tcnica e neste af tcnico possui como objetivo final a cura (MARTIN
2006,p.34). Exemplo deste paradigma so as UTIs, lugares asspticos, monitorados, com
nfima privacidade e controle total. geralmente no contexto do paradigma tcnocientfico
que se tem a distansia.
Distansia o conceito utilizado para descrever um processo de morte longo,
acompanhado de muita dor e sofrimento caracterizado por um excesso de intervenes
teraputicas que falham em contribuir para a mudana do quadro mrbido, pode ser tambm
conceituada como tratamento ftil ou intil (DINIZ 2006; PESSINI 2002). E pode ser
definida como:
O comportamento mdico que consiste em utilizar processos teraputicos
cujo efeito mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou intil, porque a
cura impossvel e o benefcio esperado menor que os inconvenientes
previsveis (POHIER apud Pessini 2002).
A distansia uma ao que possui como fim o adiamento da morte e no o
benefcio do paciente. Este conceito se fundamenta no s na noo do sofrimento causado
pelo uso excessivo de recursos teraputicos, mas tambm numa transformao do sujeito em
12
objeto, escravo da tecnologia (BOMTEMPO 2012). Sobre isso Hooft (2002, pg.502) ressalta
que o respeito dignidade humana traduz-se na recusa da instrumentalizao do ser humano.
Com nfase sobre o biolgico, o sofrimento, a dor e a prpria morte se
tornam problemas tcnicos a serem resolvidos, mais do que experincias
vividas por pessoas humanas. O preo que se paga pelo bom xito da
tecnologia a despersonalizao da dor e da morte nas unidades de terapia
intensiva, com todo o seu maquinrio impressionante. (MARTIN apud
Pessini 2001, pg.184).
Tem-se aqui uma relao hierrquica definida, a tcnica se sobressai ao humano,
transformando-o em um mero objeto de interveno. Com o intuito de deixar bastante
evidente a distansia, utilizaremos cinco categorias para descrev-la (MORAIS 2010):
1) um ato prolongado gerado pelo desenvolvimento tecnolgico;
2) Um fato cientfico, gerado pelo aperfeioamento da monitorao;
3) Um fato passivo j que as decises pertencem aos mdicos e familiares;
4) Um ato profano, pois no atende s crenas e valores do paciente;
5) Um ato de isolamento, pois o sujeito morre em solido.
J entendemos o que a distansia e o seu contexto social e institucional, mas
importante olharmos tambm os aspectos morais que baseiam essa prtica. Sabemos que na
prtica da distansia o importante prolongar ao mximo a vida, o que significa em termos
tcnicos a manuteno dos sinais vitais. A concepo do que a vida reduzida a aspectos
fsico-corporais e nesta perspectiva uma prtica que corresponde ao vitalismo fsico, que
consiste na vida fsica enquanto um valor absoluto que independente de outros valores como
autonomia e dignidade (PESSINI 2009). Esta uma concepo de vida questionvel, pois
essa reduo no representativa da totalidade da vida humana.
Horta (1999) inclusive destaca que manter a vida a qualquer preo significa
conceb-la como um bem supremo e absoluto, ou seja, acima inclusive de outros valores
13
como liberdade e dignidade, o que para ele uma idolatria. Essa idolatria pela vida encontra
fundamento no princpio da sacralidade da vida, em que a vida um dom dado por Deus para
a administrao do homem. Este princpio evoca a intangibilidade da vida o que leva os
profissionais a agir de forma a tentar manter a vida a qualquer custo, abrindo caminhos para
tratamentos abusivos (PESSINI 2009). O princpio da sacralidade da vida a considera como
um dom dado por Deus, e dessa forma s Ele pode decidir a respeito da vida e da morte;
assim, o homem no tem direito a determinar o seu prprio fim. Sendo assim, assume-se uma
relao de proximidade entre o princpio da sacralidade da vida com a prtica da distansia,
pois em ambos a vida um valor absoluto. Segundo Silva (2004, pg.332) os defensores do
princpio da sacralidade da vida so considerados como defensores da distansia.
O absolutismo deste princpio coloca a vida em um patamar de intocabilidade e
este o fundamento moral que motiva a distansia (DINIZ e COSTA, 2004). Para Diniz
(2006), o que ocorre na distansia uma confuso conceitual entre sacralidade da vida e
santidade da vida. Estar vivo um direito laico, garantido constitucionalmente e o conceito de
sacralidade da vida corresponde em assegurar o valor moral da vida humana, havendo,
portanto, uma relao prxima entre o direito de viver e o princpio da sacralidade da vida.
Porm, assegurar o direito de estar vivo e reconhecer o valor moral da existncia humana no
corresponde em supor que a vida intocvel (Diniz, 2006, pg.2). A intocabilidade da vida
est implcita no princpio da santidade da vida, que um princpio dogmtico religioso, o
qual no tem implicaes no nosso ordenamento jurdico e portanto, no h obrigatoriedade
em cumpri-lo. Desta forma, considerando-se que a vida definitivamente um bem, porm um
bem no absoluto, a distansia torna-se uma prtica injustificada. O prolongamento da vida
por si s no pode ser considerado como um bem (DINIZ e COSTA, 2004, pg. 129).
Como bem expresso anteriormente por Diniz (2006), o direito de estar vivo um
direito laico garantido por nosso ordenamento jurdico. O que nos leva a refletir sobre as
14
consequncias jurdicas da distansia. Torre (2011) assume que muitas vezes a distansia
ocorre porque o profissional tem medo de ser responsabilizado criminalmente pela morte de
seu paciente, o que o levaria a perder sua licena mdica. Infelizmente, essa uma realidade
no Brasil e por isso a importncia da discusso a respeito da legalidade ou no legalidade da
distansia, tanto para proteger os profissionais de possveis processos como para proteger os
pacientes de sofrer indeterminadamente em seu processo de morte.
O Cdigo de tica Mdica (CFM, 2010), instrumento de importante valor tico,
moral e legal norteia as prticas mdicas a partir do que considerado eticamente aceitvel.
Aps passar por uma reviso no ano de 2010, o novo cdigo probe a distansia, sob a forma
de procedimentos teraputicos desnecessrios (princpio fundamental XXII) e por ser
vedado ao mdico utilizar seus conhecimentos para gerar sofrimento fsico ou moral
(princpio fundamental VI) e em vrios artigos do cdigo aparecem condenaes indiretas
distansia, o cdigo de tica mdica, porm, ser analisado com maior profundidade mais
adiante.
O direito brasileiro fundamentado em concepes humanistas no protege a
prtica da distansia e no a condena expressamente como distansia, porm condena
sofrimentos desnecessrios causados por outrem. Assim como no Cdigo de tica Mdica, a
condenao est sob a forma de tratamentos desumanos desnecessrios, mais especificamente
o artigo 5, inciso III da Constituio Federal (BRASIL, 1988) que diz que ningum ser
submetido tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Torre (2011), diante dessa
expresso constitucional afirma que inadmissvel a afirmao de que o mdico possui o
dever de manter teraputicas desnecessrias ou inteis. O Cdigo Civil (BRASIL, 2002)
brasileiro de 2002 tambm condena a distansia pelo Art.15 que determina que: ningum
pode ser constrangido a submeter-se com risco de vida a tratamento mdico ou interveno
cirrgica (BOMTEMPO 2012, pg 42).
15
Diante do exposto, fica evidente a condenao da prtica da distansia tanto moral
quanto tica e legal. A prtica da distansia representa uma violao dos direitos humanos e
da dignidade e pode inclusive caracterizar uma conduta criminosa (BOMTEMPO 2012).
Para concluir preciso deixar claro que o prolongamento da vida no por si s a
razo da condenao tica e legal da distansia. Porm submeter algum a um sofrimento
desnecessrio por tempo indeterminado sem chances de reverter o quadro clnico submeter o
paciente a tratamento desumano, violando a dignidade humana:(...) O prolongamento da vida
somente pode ser justificado se oferecer s pessoas algum benefcio, ainda assim, se esse
benefcio no ferir a dignidade do viver e do morrer. (S, 2005, pg.32 apud Bomtempo
2012, pg.41).
2.2. A Morte Digna
A reforma da prtica assistencial para um morrer com dignidade perpassa por uma
reviso moral do valor da vida como dito anteriormente. A dignidade humana neste nterim
transforma-se no valor central em que se baseia toda a prtica mdica. A ideia reivindicar a
proteo dignidade, uma vez que ela no se perde mesmo em condies de vulnerabilidade,
assumindo assim que a ideia de dignidade acompanha toda a jornada da existncia, incluindo
a o momento da morte (ARAUJO, 2011). neste contexto que a morte passa por uma
transformao de significado; deixa de ser um fracasso tcnico para ser um fato intrnseco da
vida humana. Essa transformao levanta a possibilidade de se falar sobre a morte e no sculo
XXI fala-se mais a respeito da autonomia e do direito de morrer dignamente. Assim, a morte
que antes era objeto de excluso e constitua em um verdadeiro tabu social transforma-se em
tema de proliferao discursiva, palco de debate moral, tico e poltico (MENEZES, 2009,
pg.227).
16
O modelo da boa morte defende que o valor da vida no se esvai no processo de
morrer. Isso se torna evidente no relatrio da Organizao Mundial da Sade (1997) em que
fica claro o apoio da OMS ao movimento da boa morte (apud Esslinger, 2004 pg.43):
Inevitavelmente, cada vida humana chega ao seu final. Assegurar que isto acontea de uma forma digna, cuidadosa e menos dolorosa possvel, merece
tanta prioridade quanto qualquer outra. Esta uma prioridade no somente
para a profisso mdica, para o setor de sade ou para os servios sociais,
mas para toda a sociedade.
A busca pela dignidade da morte surge em um movimento poltico e social que
visa rejeitar a morte medicalizada e a distansia promovendo uma rehumanizao do processo
de morrer numa tentativa de revitalizar a atitude da morte domada (ARIS, 1977;
KOVCS, 2003 pg.78). Uma das caractersticas deste movimento, ao contrrio da morte
invertida (ARIS 1977); de buscar a reinsero da morte na sociedade considerando-a
como um elemento significativo da vida humana e que por isso deve ser ter dignidade
(KOVCS, 2003).
importante, no entanto, ressaltar que o surgimento do movimento social da boa
morte, cuja mentalidade de aceitao da morte como evento inexorvel da vida humana, no
substitui o movimento de medicalizao da morte e da mentalidade da morte como um
fracasso. Ambos os movimentos existem contemporaneamente podendo inclusive coexistir
em uma mesma instituio - o que acaba por causar maior tenso no debate tico a respeito da
vida e da morte.
Podemos comear a entender o alcance social do movimento a comear pelo
termo que o representa. O conceito de boa morte significa socialmente estar preparado para
morrer (HOWARTH e LEAMAN,2001, pg. 63). Nele est implcita uma mudana social
diante da morte ultrapassando as paredes dos hospitais. Ou seja, o movimento da boa morte
objetiva alcanar a sociedade como um todo oferecendo a oportunidade de olhar a morte
17
sobre um ngulo diferente e assim possibilitar outra atitude frente a ela, que no seja de
negao e de medo. Na busca pela boa morte destacam-se os movimentos da filosofia
hospice, que envolve um novo modelo de institucionalizao, os cuidados paliativos, o morrer
em casa e a morte natural. Cada movimento em suas particularidades compe um cenrio
maior de reivindicao pela morte digna. Todos eles tm em comum a oposio morte
medicalizada e formam um movimento organizado para tirar a morte da tutela mdica e
devolv-la aos sujeitos deste processo (HOWARTH e LEAMAN, 2001, pg. 335). Para fins
deste trabalho, citaremos a filosofia hospice e os cuidados paliativos.
Duas autoras em particular, contriburam imensamente para revolucionar o
cenrio da morte no mundo: Elizabeth Kbler-Ross e Cicely Saunders. As duas autoras
preocupavam-se com o bem morrer de forma a manter a dignidade humana at seu ltimo dia.
O presente debate fruto do trabalho dessas duas autoras e seus esforos esto presentes at
hoje em diversos lugares do mundo, onde o morrer com dignidade j uma realidade.
importante para este trabalho, inclusive, reconhec-las em sua magnitude e importncia para o
campo que est sendo estudado e contribuir para que seus esforos no tenham sido em vo.
Kbler-Ross (1926-2004) publicou em 1969 sua obra mais famosa sob o ttulo de
Sobre a Morte e o Morrer, onde a autora descreve sua experincia como psiquiatra no
acompanhamento de pacientes gravemente enfermos. Nesta obra de referncia, Kbler-Ross
(1926-2004) apresenta os cinco estgios pelos quais passam os pacientes com diagnstico de
uma doena grave (KOVCS 2003, pg.90). So eles: negao, raiva, barganha, depresso e
aceitao. O estgio final chamado de aceitao considerado por Howarth e Leaman (2001)
como um smbolo cultural de oposio negao da morte. Esta obra foi uma das primeiras
obras que refletiram sobre a situao psicoemocional de pacientes gravemente enfermos e
mais, reflete a necessidade abrir espao para ouvi-los no s para aliviar-lhes as angstias,
mas porque suas contribuies podem ser de grande utilidade para a sociedade em geral.
18
Kovcs (2003), famosa autora brasileira, acredita que a obra de Kbler-Ross
reflete o quanto os pacientes em terminalidade ainda esto vivos e possuem demandas muitas
vezes ignoradas por s se enxergar rgos e sintomas, e descreve que para a autora, uma
pessoa beira da morte precisa de paz, descanso e dignidade. Esta pioneira da morte digna
defendia fortemente a boa morte enquanto movimento social e condenava outros tipos de
morte digna como a eutansia e o suicdio assistido, porque para ela, eliminar o sofrimento
pela eliminao do sofredor impede que a morte possa ensinar suas ltimas lies. Kbler-
Ross entendia que o sujeito que est em processo terminal tem uma grande oportunidade de
aprendizagem. Essa uma viso que est presente nos dias atuais. Jaramillo (2006, pg. 21)
expressa esse mesmo sentimento citando Hans Kng: Morrer com dignidade uma
oportunidade inestimvel, um grande presente: uma grande ddiva e ao mesmo tempo uma
grande tarefa para a humanidade.
O que se quer mostrar que, desde que o sofrimento seja cuidado e a dignidade
mantida, a morte pode ser uma oportunidade de crescimento para o sujeito que a vive, pois
este ter a oportunidade de olhar a vida de um ngulo particular, que no pode ser reproduzido
em nenhum outro momento. Este momento nico vivenciado pelos pacientes em questo pode
ser comparado a um espelho, comparao feita por Earp (1999, pg. 20) onde a morte algo
que no possui contornos prprios, mas que reflete imagens, vivncias e realidades. Para ele,
a morte antes de tudo um evento psicolgico, podendo ser um momento nico de
crescimento e o resultado ltimo da individualidade (EARP, 1999, pg.35). Kbler Ross
como dissemos, acreditava fortemente nesta ideia, destacando ainda mais a necessidade dos
cuidados eficientes para aliviar o sofrimento para que, desta forma, a aprendizagem pudesse
acontecer. Uma grande contribuio do seu trabalho se refere tambm individualizao do
cuidado, a retomada da individualidade no processo de morrer e na promoo da autonomia.
19
Esslinger (2004, pg 57) destaca que para Kbler- Ross era necessrio e importante que
paciente pudesse:
Manter sua autonomia, tendo direito inclusive a recusar tratamentos;
Ser ajudado ao mximo para manter as habilidades que lhe restam,
conservando a eficcia de suas aes;
Ser ajudado a resolver conflitos residuais e satisfazer desejos remanescentes
que sejam compatveis com sua situao;
Ter direito a coreografar sua prpria morte.
Fica assim evidente a preocupao da autora com a dignidade e a autonomia no
processo do bem morrer, inegveis contribuies para revolucionar o cenrio da morte no
sculo XX originando o movimento social em questo.
Outra autora que contribuiu com seu pioneirismo para o movimento da boa morte
foi Cicely Saunders (1918-2005). Seu pioneirismo e profunda humanidade influenciaram o
cenrio da morte a partir da criao de uma nova instituio hospitalar chamada hospice ou
hospital de retaguarda. Dedicou sua vida e obra ao alvio do sofrimento humano, obras que
so referncia at hoje. Uma de suas grandes preocupaes com o bem morrer centrava-se na
questo da dor e na administrao de opiides e foi pioneira na administrao de medicao
contnua para alvio da dor (HOWARTH e LEAMAN 2011, pg 455). Sobre isso, Kovcs
(2003, pg.124) descreve um relato de uma paciente que antes das prticas introduzidas por
Cicely Saunders chegou a pensar em suicdio em decorrncia da dor que sentia. O contato
com os pacientes gravemente enfermos foi fundamental para que Cicely, ouvindo suas
necessidades, pudesse criar uma melhor teraputica para tratamento da dor tanto em suas
dimenses fsicas como emocionais, sociais e espirituais, criando ento o conceito de dor
total (1964).
20
O conceito de dor total reflete a preocupao de Saunders com o sujeito em sua
integralidade. Peres (2007, pg. 85) separa a dor total em categorias para melhor explic-la.
Sendo assim, segue que a dor fsica envolve a dor do corpo assim como outros desconfortos
fsicos, a dor emocional se refere a possveis manifestaes emocionais sentidas pelos
pacientes em terminalidade, como depresso, angstia, ansiedade, entre outras. J a dor social
se refere situao atual do paciente, como isolamento, sensao de abandono e medo da
separao. A dor espiritual est presente nas angstias do paciente com o ps-morte por
exemplo.
Dessa forma, a partir desse conceito amplo de dor, Cicely Saunders provoca
profissionais da sade a prestarem maior ateno a outras dimenses do ser humano que no
s a fsica. Nisso a autora se assemelha Kbler-Ross, que acreditaram no atendimento
pessoa de forma integral, indo de encontro com as prticas institucionalizadas de suas
respectivas pocas. Outra semelhana encontra-se no entendimento da morte como uma
experincia a ser vivida e no seu potencial para o crescimento, pois o enfoque na dor remete
ao que reflete Peres (2007, pg. 85): uma pessoa com dor intensa jamais ter condies de
refletir sobre o significado de sua existncia.
Alm da revoluo no tratamento e na conceituao da dor, Cicely Saunders
possui outra grande contribuio no que se refere institucionalizao de pacientes em
terminalidade. O St. Christophers Hospice foi a instituio fundada por ela em 1967,
influenciando fortemente o movimento do bem morrer funcionando como uma alternativa aos
hospitais gerais. A criao do hospice contribuiu para a grande divulgao da filosofia
hospice com a criao inclusive de grupos internacionais como o International Group on
Death, Dying and Bereavement, fazendo de Cicely uma defensora internacional da boa morte
(HOWARTH e LEAMAN, 2001).
21
A filosofia hospice foi imprescindvel para o surgimento dos cuidados paliativos,
como veremos mais a frente. Hospice ou hospital de retaguarda representa um modelo
institucional alternativo ao modelo hospitalar centralizado na cura, pois atua centrado no
cuidado com seus pacientes. Tambm foi palco para o desenvolvimento das equipes
multidisciplinares, incluindo o voluntariado (HOWARTH e LEAMAN, 2001, pg. 278). O
conceito fundamental da filosofia hospice repousa na reflexo a respeito do cuidado total, na
melhora das prticas assistenciais e na sua reproduo pelo mundo. O St. Christophers
portanto, representa a concretizao da filosofia hospice. Esta repercutiu pelo mundo todo, e
foi implantada em quase todos os quadrantes do mundo. importante ressaltar que os
hospices recebem o apoio e o reconhecimento da Organizao Mundial da Sade desde 1980
(PESSINI, 2006, pg.185).
Aps o exposto, podemos reconhecer a importncia dessas autoras para o
movimento da morte com dignidade, que extremamente preocupadas com a dor e o
sofrimento humano na hora da morte construram novas formas de assistir ao paciente
terminal de forma a manter a dignidade at o ltimo dia. Esse profundo respeito pela vida
humana em seu ocaso se expressa claramente em uma frase clebre da Cicely Saunders que
diz:
Ao cuidar de voc no momento final da vida, quero que sinta que me
importo pelo fato de voc ser voc, que me importo at o ltimo momento de
sua vida, e faremos tudo o que estiver ao nosso alcance no somente para
ajud-lo a morrer em paz, mas tambm para voc viver at o dia de sua
morte (Saunders, 1976, apud Pessini e Barchifontaine orgs, 2009, pg. 366).
Diante das contribuies das autoras que revolucionaram a morte no sculo XX,
podemos dizer que alguns fatores so fundamentais para a real promoo da morte digna.
Bousso e Poles (2007, pg.142) elencam treze fatores como essenciais para a morte digna dos
quais citaremos apenas oito:
22
Controle efetivo da dor e dos sintomas de desconforto fsico;
Atendimento das necessidades fsicas, emocionais, sociais e espirituais;
Trabalho da equipe multidisciplinar;
Informaes verdadeiras, honestas e congruentes;
Comunicao efetiva e emptica;
Participao da famlia e do paciente em todo o processo decisrio
Respeito s preferncias pessoais e diversidades culturais;
Oportunidade para despedidas.
Gostaramos de nos debruar em alguns desses fatores. Os trs primeiros fatores
ficaram claros diante da contribuio de Kbler- Ross e Cicely Saunders, so fundamentais
para transformar a morte em uma experincia digna, os cinco fatores que os seguem
discutiremos agora. Um forte argumento para a construo da boa morte enquanto prtica
legtima de assistncia sade pauta-se nos conceitos de autonomia e liberdade. A autonomia
pessoal e a dignidade humana esto intrinsecamente relacionadas e no podem ser excludas
do processo de morrer. A autonomia , portanto, parte constituinte da dignidade humana,
como expressa Bomtempo (2012):
A concepo de dignidade humana que ns temos liga-se possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua personalidade conforme sua prpria
conscincia, desde que no sejam afetados os direitos de terceiros. Esse
poder de autonomia tambm alcana os momentos finais da vida da pessoa.
Revelada a importncia da autonomia para a manuteno da dignidade, vejamos
algumas classificaes. Bousso e Poles (2007, pg.139) classificam autonomia a partir da
titularidade da vida, onde este (o titular) decide enquanto sujeito cognitiva e moralmente
competente sobre seu prprio caminho at a morte. J Morais (2010), classifica a autonomia
como: a capacidade do ser humano de decidir o que bom; aquilo que bem-estar. Ribeiro
23
(2006) considera autonomia como a capacidade de se autodeterminar, capacidade esta que
inerente dignidade humana.
O exerccio da autonomia, porm, dependente da liberdade (MORAIS, 2010). A
capacidade da escolha depende diretamente da liberdade para escolher, assim, o sujeito
autnomo pode ser considerado como um sujeito livre, livre para escolher a sua prpria vida
assim como para escolher sua prpria morte. Lepargneur (2002, pg.482) concorda com esse
argumento e indica que o homem deve ser respeitado enquanto sujeito moral livre, autnomo
e responsvel. Andrade (2004) afirma a liberdade como um dos pilares da dignidade porque
esta permite ao homem exercer seus direitos e sua censura constitui uma violao de direitos.
O respeito autonomia e consequentemente liberdade, garante que a morte
passe a ser uma extenso da vida, onde o sujeito da vida ativo no seu processo de morrer,
individualizando-o de acordo com suas preferncias, crenas e valores. Assim, concordamos
com Liono e Diniz (2009) quando afirmam que: o que se reclama aqui a singularidade da
existncia, o direito de escolha de cada pessoa diante de uma experincia tambm nica que
a morte.
Apesar de defender a individualizao do morrer a partir das escolhas pessoais do
sujeito do processo, o profissional no est isento de responsabilidade quanto s decises
tomadas. Afinal, s possvel obter liberdade de escolha para o exerccio da autonomia
quando se tem o devido acesso informao. Como considera Andrade (2004): no pode ser
considerado livre aquele que no possui acesso educao.
Como consta nos fatores quatro e cinco a comunicao entre profissional e
paciente tem importante funo: a base do exerccio da autonomia. Jaramillo (2006, pg.27)
sobre isso comenta que toda pessoa tem o direito de saber sua realidade para ento ter o poder
de decidir sobre seu presente e futuro. Martin (2006,pg.41) afirma claramente a violao da
autonomia do enfermo quando o profissional decide algo sem consult-lo. Alm disso, como
24
indica Bousso e Poles (2007, pg. 141) para o exerccio pleno da autonomia necessrio que
todas as partes envolvidas estejam em posio simtrica, ou seja, comunicar-se apenas com o
paciente no promoo de autonomia uma vez que este paciente encontra-se em uma
unidade familiar, como expresso no fator seis. Sobre o assunto Menezes (2009, pg.235)
comenta: para alcanar a boa morte necessrio que todos compartilhem da mesma viso,
que percorram uma trajetria dirigida aceitao do trmino da existncia. A famlia neste
sentido faz parte do processo de deciso tanto quanto o prprio enfermo sendo que este,
obviamente, possui prioridade.
O princpio da autonomia, portanto, vai alm do cuidado individual com o
paciente e colabora para uma reviso tica da relao provocando consequentemente o
compartilhamento do poder, o que difere significativamente da postura paternalista. Disso
decorre maior reconhecimento do paciente como pessoa, titular de direitos e titular do poder
de deciso a respeito da sua vida e da sua morte.
No s o paciente passa a ser responsvel pelo seu processo de morte em si como
tambm ele que norteia o profissional em decises ticas difceis. A autonomia funciona
tambm como um mecanismo de soluo de conflitos morais que frequentemente aparecem
quando o assunto a morte. Sendo assim, a autoridade tica e tcnica tornam-se coisas
separadas (DINIZ e COSTA, 2004). O prprio indivduo tem o direito de deliberar a respeito
da sua situao e como uma livre escolha de sua vontade individual, pode impor limites
prtica profissional. Incorporar o princpio da autonomia na prtica mdica significa assumir o
risco da divergncia de opinio, as decises tomadas pelo paciente podem divergir
significativamente da opinio profissional do que seria adequado ou recomendado (DINIZ
2006). Aceitar a divergncia de opinio como parte do processo tem como consequncia no
s um desafio superao do paternalismo, mas tambm cria uma possibilidade maior de se
aproximar do paciente em seus valores, suas crenas, suas formas de compreender e analisar a
25
vida e a morte (fator sete da nossa lista). Assim como afirma Diniz (2006), que reflete que
uma boa medicina no basta para chegarmos a uma boa morte, uma morte digna; ressaltando
a necessidade de se cuidar tambm dos valores, crenas e com o sentido da vida desses
pacientes.
J Menezes (2009), pontua que a divergncia de opinio pode ser um grande
desafio para as equipes que buscam favorecer o morrer com dignidade. Pois como j discutido
anteriormente, famlia, paciente e equipe, todos formam uma unidade em prol de um objetivo
comum. Nessa unidade, pode haver fortes divergncias de cunho moral e tico, que, no
entanto, devem ser trabalhadas para alcanar este objetivo em comum que a boa morte.
Neste contexto, morrer bem pode envolver a no oferta de ressuscitao cardiopulmonar o
que constitui na no reanimao do paciente, no oferta de suporte vital onde est entendido
que o paciente ir morrer sem a teraputica em questo, ou a retirada de uma teraputica j
iniciada o que constitui em retirada de suporte vital que tambm levar o paciente a bito
(BOUSSO e POLES, 2007, pg.138 e 139).
No contexto da boa morte, o morrer torna-se uma questo de deliberao pessoal
sobre o momento e principalmente sobre a forma da morte como um exerccio da vontade
individual, vontade esta que no pode ficar resguardada somente ao paciente, pois isso seria
coloc-lo em isolamento. Neste modelo, o espao para dilogo deve ser amplo, retirando a
relao mdico-paciente-famlia de ncleos isolados para transformar em um ncleo
compartilhado. Ampliando as fronteiras do dilogo, amplia-se tambm o espao para o
surgimento das tenses. Tornar paciente-famlia-equipe em uma unidade compartilhada no
tarefa fcil e no nosso propsito pens-la como um todo uniforme. pensar que apesar das
diferenas pode-se atuar em conjunto para atingir o bem comum.
Neste modelo de unidade compartilhada, a famlia, a equipe e o prprio paciente
podero como j diz o termo, compartilhar. O evento da morte no precisa ser vivido sozinho,
26
cada um na sua dor. preciso abrir espao para os medos, as angstias, as alegrias e
principalmente para as despedidas (fator oito da nossa lista). Py e Oliveira (2006, pg.145) j
se preocupavam com a falta de dilogo que existe entre as unidades envolvidas e concluram
que h uma enorme solido entre elas, que ficam isoladas em suas dores. Sobre isso elas
dizem:
Embora a morte seja presena constante no cotidiano hospitalar, h um conluio em torno do silncio. Esse silncio traz como principais
consequncias a solido do paciente em seu processo de morrer, a solido da
equipe de sade diante dos seus prprios medos e angstias, isolamento da
famlia e um comprometimento do processo de ritualizao da morte; no
havendo possibilidade de despedidas importantes para um processo no
complicado de luto.
Essa abertura promovida pelo movimento da boa morte, tanto de dilogo quanto
de compartilhamento de poder, no cabe no modelo tecnocientfico que apresentamos
anteriormente, principalmente porque a cura deixa de ser o foco da assistncia. Dessa forma, o
movimento da boa morte ou da morte digna contribuiu para mais uma mudana das prticas
em sade: a transio do paradigma da cura ao paradigma do cuidado. O cuidado necessita de
uma transformao de cenrio. O hospital deve transformar-se em um local favorvel para
reduzir as tenses, criar possibilidades para resolver pendncias e os conflitos; transformando
a morte em uma experincia enriquecedora dos momentos finais (BURL e PY, 2006;
RAMOS, et. al. 2011). O paradigma do cuidado se edifica no reconhecimento do limite. Este
paradigma implica em reconhecer o limite da cura e das intervenes mdicas, reconhecer a
morte como uma condio natural da vida humana, interromper os procedimentos fteis e ao
mesmo tempo intervir para promover maior conforto e aliviar o sofrimento; desta forma
preocupando-se mais com a pessoa doente do que com a doena da pessoa (PESSINI 2009).
Este paradigma pode ser denominado como paradigma benigno-humanitrio, que
pode ser visto como uma resposta ao paradigma tecnocientfico, pois no modelo em questo,
27
o valor fundamental no se centra na cura, mas na dignidade do ser humano, no respeito pelos
direitos humanos e na qualidade da existncia do indivduo. Neste paradigma, a pessoa o
valor central que edifica toda a prtica mdica correspondendo aos ideais da boa morte e,
mais especificamente no caso brasileiro, da humanizao da sade. um paradigma em que a
morte digna se torna possvel, pois dignidade, autonomia e liberdade so valores prioritrios
aos valores cientficos e econmicos (MARTIN 2006, p.37). Sendo a pessoa o valor central ao
qual se deve responder, a qualidade da vida dessa pessoa tambm tem lugar nessa discusso.
Estar vivo nem sempre pode ser um bem, como vimos anteriormente e neste sentido a
qualidade de vida tambm passa a ser uma preocupao deste modelo de ateno.
A vida compreendida pelo prisma do princpio da qualidade de vida, tambm
considerada um bem. Porm, um bem conforme sua qualidade. A diferena substancial entre
o princpio da qualidade de vida e o princpio da sacralidade vida que vimos anteriormente
encontra-se na titularidade da vida. No princpio da sacralidade, a vida um dom dado por
Deus e s a Ele pertence, no caso do principio da qualidade de vida o homem se faz
protagonista (PESSINI 2009). Percebe-se um antagonismo entre os dois princpios
(KOVCS, 2003), tal antagonismo se reflete na forma de atuao profissional diante da
morte. Os profissionais que se posicionam a favor da sacralidade tem a tendncia a mant-la
at o final independente da vontade do sujeito, j no caso dos que se posicionam a favor da
qualidade de vida o exerccio da autonomia um elemento fundamental. Assim, afirmar o
princpio da qualidade de vida significa se colocar a servio da pessoa e no somente da vida
(S 2005, pg. 32 apud Bomtempo 2012).
Tal princpio pode levar a entender que o valor da vida dependente de sua qualidade,
assumindo assim que o valor da vida no um valor absoluto e est sujeito graduao.
(PESSINI, 2009; BATISTA e SCHRAMM, 2005). A vida no um valor absoluto, mas
tambm o princpio da qualidade de vida no um princpio soberano, pois apesar da
28
qualidade de vida poder ser ruim a dignidade humana garante um valor fundamental universal
a todas as pessoas. Assim, somente o sujeito da vida poder julgar se sua vida tem valor e que
valor esse. Principalmente porque o critrio da qualidade de vida um critrio altamente
subjetivo que se relaciona com fatores como bem-estar e satisfao em todas as dimenses do
humano (fsico, psquico, social e espiritual) (ESSLINGER, 2004, pg.48). Sendo assim,
afirmamos a qualidade de vida como um princpio individual e subjetivo onde o prprio
sujeito o melhor avaliador: Cada sujeito, em particularidade, define para si aquilo que
qualidade de vida, de acordo com suas necessidades (ESSLINGER, 2004, pg. 50, grifo
meu).
O princpio da qualidade de vida uma das fortes justificativas para a eutansia.
A eutansia um tema bastante polmico por se tratar de provocar a morte de uma pessoa
para aliviar-lhe o sofrimento. H inclusive controvrsia quanto a consider-la como um
movimento pr-dignidade, pois pode ser classificada como homicdio, o que a coloca em um
lugar de proibio e tabu (SILVA 2004). Isso aparece com maior visibilidade nos cdigos de
tica mdica de quase todas as organizaes mdicas. Em um estudo sobre a Amrica Latina,
Kipper (2002, pg. 410) verificou que a maioria das associaes mdicas se posiciona de
forma contrria eutansia, incluindo a brasileira que afirma que a medicina no pode
contribuir para causar sofrimentos, ofender a dignidade e menos ainda para o extermnio do
ser humano (MARTIN, 1998). Ou seja, a eutansia uma raridade mundial e um grande tabu
na maior parte do mundo.
Diniz e Costa (2004) descrevem que com o passar do tempo cada vez maior o
nmero de pessoas que procuram profissionais da sade com o intuito de garantir que sua
morte seja resultado do exerccio da autonomia. Porm Drane (2002, pg.416) acredita que o
fortalecimento dos movimentos a favor da eutansia consequncia do fracasso da medicina
29
em cuidar do sofrimento em final de vida. Impossvel precisar se a eutansia consequncia
do fortalecimento da autonomia do paciente ou se consequncia da m oferta de cuidados.
Eutansia etimologicamente uma palavra de origem grega que significa boa
morte. Cundiff (1992) classifica a essa boa morte como uma forma de abreviar a vida de
um paciente com mal incurvel para acabar com sua dor e sofrimento. Diniz e Costa (2004) a
entendem como um exerccio de um direito individual que encontra fundamento baseando-se
nos princpios da autonomia e da dignidade. Em decorrncia da polissemia do conceito
eutansia, utilizaremos a definio de Martin (1998, pg.172) que diz: a eutansia um ato
mdico que tem por finalidade acabar com a dor e a indignidade na doena crnica e no
morrer, eliminando o portador da dor.
A eutansia considerada uma boa morte porque o objetivo acabar com o
sofrimento insuportvel a partir de uma deciso livre, como um respeito sua vontade
individual e ao seu poder de deciso, porm, por envolver a morte provocada e intencional do
paciente se torna passvel de consideraes ticas, morais e judiciais.
A eutansia fundamentada moralmente em todos os princpios que viemos
discutindo sobre a boa morte: no princpio da qualidade de vida, na autonomia pessoal e na
liberdade individual e principalmente na dignidade humana. Assim, eutansia e distansia
tornam-se moralmente antagnicas. Apesar de ambas possurem como ponto comum a
preocupao com o momento da morte se tornam antagnicas moralmente dividindo a morte
em grupos opostos: os que defendem a qualidade de morte e os que defendem a quantidade de
vida (SILVA 2004; MARTIN 1998). Em uma posio contrria distansia a eutansia visa
no prolongar a morte, mas antecipa-la a partir de um pedido expresso do paciente a fim de
cessar-lhe o sofrimento. Pode ser realizada na utilizao ou retirada de teraputicas que tem
por fim causar a morte do paciente. Assim h uma dupla compreenso do que seja a eutansia,
ela tanto pode ser entendida como um exerccio de um direito individual pautado na liberdade
30
de se autodeterminar como tambm pode ser entendida como uma soluo simplista que
incentiva uma conduta homicida para eliminar o sofrimento. Para entendermos melhor a
eutansia, seguiremos a explic-la em todas as suas dimenses. Eutansia pode receber
diferentes classificaes: voluntria, involuntria, ativa, passiva e de duplo efeito. Segundo
Batista e Schramm (2005) pode-se distinguir a eutansia quanto ao ato: ativa ou passiva e de
duplo-efeito e quanto ao consentimento do enfermo: voluntria e involuntria.
A eutansia ativa se caracteriza pelo ato deliberado e consciente do profissional de
antecipar a morte evitando que o enfermo passe por longo perodo de intenso sofrimento.
Seria causar a morte sem sofrimento do paciente por fins humanitrios; um ato de compaixo
e solidariedade. Tal afirmao j levanta um questionamento: compaixo sem dvidas um
sentimento humanitrio louvvel, porm at onde essa compaixo pelo indivduo que
padece na morte no uma desculpa moralmente justificada para lidar com sua prpria
impotncia diante do sofrimento do outro? Esse questionamento baseia-se no estudo de
Ramos et. al. (2009, pg. 278) em que discute que humanamente dramtico estar diante do
sofrimento intenso do outro. Alm disso, o mesmo sentimento que mobiliza pr um fim
antecipado vida, pode ser o sentimento que mobiliza para criar melhores condies de apoio
aos pacientes, a fim de lhes dar bem estar e qualidade de vida, com o mesmo respeito sua
autonomia e liberdade, porm sem que seja necessrio matar a pessoa (MARTIN, 1998).
A eutansia ativa e voluntria segundo Diniz e Costa (2004):
praticada quando a pessoa doente deseja morrer, est devidamente informada sobre sua situao clnica e no se encontra em estado depressivo
no momento da deciso.
a respeito deste tipo de eutansia que se pode afirm-la como um exerccio de
deliberao pessoal, de uma vontade que lhe prpria, escolha feita de forma informada e
autnoma (DINIZ e COSTA, 2004). A defesa da eutansia ativa e voluntria constitui no
31
argumento expresso por Batista e Schramm (2005) onde a liberdade de escolha do sujeito que
decide autonomamente aquilo que considera importante para sua vida (e nisso se inclui o
processo de morte) de acordo com seus valores e interesses deve ser respeitada. No entanto,
h que se ter muito cuidado com os pedidos para morrer, pois o profissional quando realizar a
eutansia deve ter certeza de que est agindo em prol de um direito inalienvel do doente, de
sua escolha consciente e autnoma, de forma a respeit-lo em sua dignidade.
O pedido para morrer pode ser uma escolha feita por impulso do sofrimento
intenso e de uma dor insuportvel. Lepargneur (2009) afirma que no raro encontrar no
Brasil mdicos que afirmem nunca terem recebido pedidos para morrer, porm as pesquisas
mostram o contrrio. Vinte e duas pesquisas realizadas pelo mundo revelam que cerca de 40%
dos mdicos receberam pedidos similares e que cerca de um quarto destes chegaram a pratic-
la. Apesar do tabu moral que envolve a eutansia no debate pblico e jurdico, 40% constitui
um nmero significativo, o que levanta ainda mais a necessidade de trazer a eutansia para o
debate de forma aberta. Lepargneur (2009) considera que o tabu moral que envolve a
eutansia existe porque este um assunto que mobiliza fortemente valores e crenas o
dificulta o intercmbio de ideias; Diniz (2006) acredita ser resqucio das prticas de
extermnio nazistas realizadas no passado, ferozmente julgadas hoje pelo pblico em geral,
com embasamento na proclamao dos direitos humanos. Ainda assim, como dissemos
anteriormente, crescente o nmero de pessoas que requisitam a eutansia como uma opo
legal, moral e tica de morrer dignamente.
O problema que encontramos envolve o pedido para morrer. Kovcs (2003, pg.
172) cita um estudo de Chochinov (1995) interessante para problematizar a questo. Neste
estudo, a autora entrevistou 200 pacientes em condio de terminalidade, destes 44,5%
afirmaram querer que a morte chegasse logo, porm apenas 8,5% efetivamente fizeram um
pedido explcito para morrer e 60% deste nmero tinha um quadro de depresso clnica. E
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ainda cita Mishara (1999) que ressaltou que a dor e o sofrimento esto na base dos pedidos
para morrer. Outro argumento usado por Kvacs (2003) baseia-se na afirmao de Hennezel
(2001) que diz que 90% dos pedidos para morrer desapareceriam se os enfermos recebessem
um cuidado melhor, se sentissem menos ss e tivessem maior controle da dor. E completa na
pg. 173:
E ser que o pedido do paciente para morrer no poderia ser tambm uma resposta ao olhar de impotncia do profissional, que no sabe o que fazer na
situao? Como j referi, o pedido para morrer pode ser visto como um
pedido de ateno, uma afirmao de que se humano, que ainda est vivo.
Para ser eutansia ativa e voluntria (grifo nosso) precisa ter o consentimento
expresso do enfermo e esta precisa ser uma deciso autnoma consciente; como vimos, no h
objetividade no que se refere real inteno do enfermo no pedido de encerramento da sua
vida. Lepargneur (2009) afirma: Aceitar o princpio da eutansia assumir o risco de se
equivocar sobre o sentido de tal pedido. A escuta ao pedido para morrer torna-se
extremamente importante para a eutansia voluntria de forma que o profissional tem que
estar aberto a esta escuta sem que seus prprios valores influenciem naquilo que ouve do
paciente. Um pedido para morrer pode ser o disfarce de um pedido de socorro: de ajuda, de
ateno, de maior controle da dor (Lepargneur, 2009), assim como tambm ser uma afirmao
de sua autonomia.
Este um dos fortes argumentos que os crticos mantm contra a prtica da
eutansia, pois inevitavelmente, equvocos ocorrero e pessoas sero assassinadas por no
terem seu pedido de ajuda devidamente escutados. Outros argumentos contra foram descritos
por Cundiff (1992) em uma obra inteira dedicada ao tema da eutansia sob o ttulo de A
Eutansia no a Resposta. Citaremos os mais comuns. O argumento da ladeira escorregadia
se preocupa com o efeito social a longo prazo que a legalizao da eutansia poderia causar,
sobre este argumento ele diz:
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Este (o argumento) defende a possi-bilidade de alguns casos em que a
eutansia activa adequada, mas em que a legalizao de alguma forma de
eutansia provocaria graves consequncias sociais e legais de longo alcance.
A par dos casos justificveis de doentes terminais que solicitam e recebem
uma morte misericordiosa rpida, haver inevitavelmente casos em que a
eutansia estar de todo errada. (Cundiff, 1992, pg.81)
interessante observar que o argumento contrrio eutansia no a desconsidera
como uma opo muitas vezes vivel de assistncia ao enfermo, porm com absoluta certeza
no uma soluo comum a todos. Dessa forma, outro argumento utilizado baseia-se no risco
do abuso da tcnica colocando em risco a vida de muitas pessoas. Lepargneur (2009) discorda
desse argumento, pois para ele o abuso da prtica no suficiente para torn-la ilegtima. No
entanto, concordamos com Cundiff (1992) no fato de a legalizao da eutansia quando no
embasada em valores morais e ticos fortemente estruturados e numa escuta sensvel, pode
colocar em risco a vida de muitas pessoas que morreriam contra o seu consentimento; ou seja,
eutansia ativa involuntria, o que constitui homicdio (KOVCS, 2003).
Mais um argumento contra a eutansia enquanto prtica legalizada (disponvel
para todos) est no possvel sentimento de obrigatoriedade em aceit-la. Neste sentido, a
morte pode acontecer no porque h um sofrimento intolervel e da vontade individual do
paciente morrer, mas porque ele pode considerar que a sua famlia deve ser poupada do
sofrimento (CUNDIFF, 1992). Lepargneur (2009) acrescenta ainda um relatrio anglicano
que revela que uma licena para a eutansia tem como consequncia a reduo dos cuidados e
dos investimentos para a melhora do paciente e que isto os pressionaria a aceitar a eutansia.
Kovcs (2003, pg.179) enumera quatro argumentos utilizados contra a prtica da eutansia:
A irrenunciabilidade da vida humana.
A existncia de consideraes de ordem prtica como, por exemplo,
mudana de ideia por eventual descoberta de um novo tratamento.
Relatividade do que se entende por sofrimento intolervel.
Idoneidade moral e profissional mdico.
E cita tambm cinco grandes medos que justificam o pedido para morrer:
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Medo do sofrimento no momento de morrer;
Da degenerao do corpo;
Do abandono e da solido;
Do no respeito ao desejo de morrer;
Da dependncia.
No nosso papel afirmar que os medos que justificariam um pedido para morrer,
assim como os princpios ticos em que se apoiam os defensores da eutansia so infundados
e merecem ser desconsiderados. Muito pelo contrrio, ambos os argumentos so considerados
legtimos. Assim como diz Lepargneur (1999, apud Kovcs 2003, pg. 180) a vontade de
morrer no pode de modo algum ser excluda da vida das pessoas. Mas h que se considerar
este um desafio do profissional da sade (mdico e no mdico) em humanizar este processo a
fim de devolver-lhe a dignidade perdida.
2.3. Respaldo Legal da Boa Morte
A boa morte e a eutansia ativa so ambas baseadas em direitos constitucionais e
humanos. A dignidade, autonomia e liberdade so direitos fundamentais. No entanto, como
expresso anteriormente, o que difere a eutansia ativa do debate da boa morte o fato de ter
por fim levar morte do paciente antecipadamente seja atravs do pedido do mesmo
(eutansia ativa voluntria) ou por um ato de compaixo (eutansia ativa involuntria). Assim,
a eutansia ativa em ambas as suas caracterizaes ainda que respeite e defenda a dignidade
humana, a autonomia e a liberdade, no encontra respaldo legal. O fato de levar a morte do
paciente caracterizado como homicdio a partir da definio do Cdigo Penal (BRASIL
1940) no Art.121 que qualifica matar algum como homicdio simples, podendo no mximo
ter a pena reduzida se o crime for motivado por intensa emoo ou alto valor moral. O que
significa que a eutansia ativa no uma possibilidade e, portanto, no pode ser realizada.
Assim, a vida permanece irrenuncivel. O direito vida um direito reconhecido
juridicamente e no pode ser violado. Porm, no se traduz em uma obrigao em manter a
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vida, ou sobrevida, alm do necessrio, pois coloca em risco a dignidade humana (MORAIS
2010). Dito isso, observamos obrigatoriedade moral e legal em manter a dignidade humana
mais do que a vida em si. Sarlet (2007,pg.366) afirma a dignidade humana como:
qualidade intrnseca da pessoa humana, irrenuncivel e inalienvel, deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, no pode, contudo, ser
criada, concedida ou retirada embora possa ser violada.
A dignidade humana um direito constitucional e um direito humano. Como
expresso Declarao Universal de Direitos Humanos (1948): Todas as pessoas nascem livres
e iguais em dignidade e direitos. A dignidade humana um alto valor da Constituio
Federal. Andrade (2004) considera a dignidade humana um dos mais altos valores do
ordenamento jurdico, e est expressa como um princpio fundamental da Repblica pela
Constituio Federal de 1988:
Art.1 A Repblica Federativa do Brasil formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrtico de Direito e tem como fundamentos:
III- a dignidade da pessoa humana.
Sendo esta um princpio fundamental da Repblica, o Estado tem
responsabilidade em proteg-la e promover seu desenvolvimento. Isso se aplica em todas as
fases da existncia humana e em qualquer condio de existncia. No art. 3 inciso IV, a
Constituio indica que um objetivo fundamental da Repblica: promover o bem de todos,
sem preconceito de origem, raa, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de
discriminao. Dessa forma, o enfermo em situao de extrema vulnerabilidade merece
ateno do Estado quanto proteo da sua dignidade. Sobre isso, Bomtempo (2012) reflete
que por isso o direito a morrer com dignidade um direito legtimo para aqueles que j esto
em processo de morrer e completa dizendo que enquanto houver vida, a dignidade humana
36
deve ser garantida at o final. Esse um direito inviolvel e deve ser garantido a todos,
inclusive quem est incapacitado. Andrade (2004) comenta: mesmo aquele que j perdeu a
conscincia da prpria dignidade merece t-la considerada e respeitada. Apesar de como
considera Sarlet (2007) a autonomia e o direito autodeterminao formarem o ncleo da
dignidade humana, o fato da conscincia para exerc-la estar ausente no anula o direito a
mant-la. Sobre isso, o prprio Sarlet (2007) comenta: dignidade no depende de sua
realizao, pois o incapaz possui a mesma dignidade que qualquer outro ser humano. No
entanto, a promoo de dignidade para algum que no est consciente um processo mais
complexo, pois a pessoa titular da dignidade no pode expressar suas vontades e exercer sua
autonomia, esse se torna um dever da famlia enquanto sua representante legal. Todavia, a
famlia somente se torna responsvel pelas decises a respeito do destino do paciente se este
no tiver deixado nenhum documento que expresse sua vontade.
Assim, a autonomia continua a ser um direito do paciente mesmo que
inconsciente. Para tanto, existem instrumentos legais que facilitam o seu exerccio: testamento
em vida, diretivas antecipadas de vontade. Ambos os documentos tem por finalidade
expressar o que o paciente gostaria que acontecesse quando no pudesse mais responder por
si. So decises sobre o tratamento deixadas em um documento oficial, reconhecido
recentemente no Brasil. Sobre isso, comenta Ribeiro (2006):
No caso de inconscincia, o indivduo torna-se incapaz de exercer sua autonomia, expressamente, porm ainda o titular do direito caso haja feito
testamento vital ou as diretivas antecipadas de vontade.
Alm da dignidade e autonomia, outros princpios da boa morte como igualdade e
liberdade tambm encontram respaldo no ordenamento jurdico brasileiro. O prprio
fundamento da dignidade humana pressupe a igualdade, pois todos os homens so iguais em
dignidade e direitos (ANDRADE 2004). Na Constituio Federal (BRASIL 1988), a
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igualdade se expressa no art. 5 que informa que todos so iguais perante a lei (BOMTEMPO,
2012). J a liberdade um direito implcito no direito autonomia, pois autonomia consistem
na liberdade de realizar uma vontade prpria desde que no implique em prejuzo a nenhum
outro (MORAIS 2010). Apesar de estar garantido indiretamente pelo direito autonomia, a
liberdade encontra respaldo legal na Constituio Federal (BRASIL 1988) no art. 5, que
garante a inviolabilidade do direito a liberdade para todos os cidados.
A tomada de deciso no modelo da boa morte pretende respeitar e promover
todos os princpios constitucionais citados acima. Neste sentido, para que isso seja possvel
necessrio o reconhecimento da pessoa como titular de direitos, responsvel por suas escolhas
e no mais o profissional. A pessoa, portanto, torna-se o centro das decises mdicas, o que
caracteriza o que Ribeiro (2006) chamou de empowerment health ou o apoderamento sobre a
sade. O instrumento que oficializa o reconhecimento do paciente enquanto titular da vida,
representa seu apoderamento sobre a sua sade e permite o exerccio da autonomia o
consentimento livre e esclarecido. Este documento garante ao paciente o direito informao
sobre seu quadro clnico, como informa Ribeiro (2006), o documento:
Garante ao usurio o direito informao a respeito de diferentes possibilidades teraputicas de acordo com sua condio clnica,
considerando as evidncias cientficas e a relao custo-benefcio das
alternativas de tratamento, com direito recusa.
O direito recusa aos tratamentos mdicos uma importantssima afirmao da
autonomia do paciente, um reconhecimento da sua capacidade de fazer escolhas conscientes
como titular da vida; a recusa ao tratamento classificada por Ribeiro (2006) como
Suspenso de Esforo Teraputico (SET). Nele se inclui tanto a recusa a tratamentos quanto a
suspenso de teraputicas j iniciadas. Como dito anteriormente, este um direito assegurado
pelo novo Cdigo Civil de 2002 no Art. 15 que informa que ningum est obrigado a
tratamento mdico. Segundo o autor a SET possui respaldo jurdico na Constituio Federal
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(BRASIL, 1988) atravs dos artigos 1 inciso III, e 5 inciso III onde no primeiro est
expresso o princpio da dignidade humana como fundamento do Estado; o segundo expressa a
condenao tortura ou tratamento desumano. A lei 8080/90 no art. 7 reconhece a autonomia
do paciente, o que apoia firmemente o direito recusa de tratamentos. O reconhecimento da
autonomia do paciente em aceitar ou recusar tratamentos est expresso tambm na Carta dos
Direitos dos Usurios da Sade (MINISTERIO DA SADE, 2007).
O Ministrio da Sade a partir da Poltica Nacional de Humanizao (BRASIL,
2005) tem como objetivo resgatar a subjetividade e o valor humano presentes no fazer sade.
Esta mudana poltica favorece a ortotansia como se pode observar no Caderno
HUMANIZASUS (MINISTRIO DA SADE, 2011) onde h um captulo dedicado
humanizao da morte (captulo 6). Nele podese observar o reconhecimento do sofrimento
existente na morte medicalizada e da necessidade de promover uma melhor forma de morrer
para nossos cidados. Neste captulo tambm se destaca a Carta dos Direitos dos Usurios da
Sade (MINISTRIO DA SADE, 2007) que assegura o direito informao adequada ao
paciente (Segundo Princpio), assim como o direito ao atendimento sem discriminao ou
preconceito de qualquer natureza (Terceiro Princpio), impedindo que o paciente seja de
qualquer modo reduzido. O terceiro princpio assegura ao paciente o direito informao
sobre as possibilidades teraputicas, incluindo o direito de recusa das mesmas (Inciso VI). E
no inciso VII garante ao paciente o direito de escolher o local de morte. O paciente no
poder ficar hospitalizado se no for de sua vontade, o respeito a este direito, no entanto, no
pode significar o abandono ao paciente, ou seja, o Estado ainda dever promover
atendimentos domiciliares queles que assim optarem como discutido neste captulo. A recusa
aos tratamentos est novamente prevista na Carta dos Usurios da Sade (MINISTRIO DA
SADE, 2007) no Quarto Princpio em que assegurado o direito de:
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V. Consentimento ou recusa de forma livre, voluntria e esclarecida, depois
de adequada informao, a quaisquer procedimentos diagnsticos,
preventivos ou teraputicos, salvo se isso acarretar risco sade pblica. O
consentimento ou a recusa dados anteriormente podero ser revogados a
qualquer instante, por deciso livre e esclarecida, sem que lhe sejam
imputadas sanes morais, administrativas ou legais (MINISTRIO DA
SADE, 2007).
Uma das primeiras iniciativas brasileiras locais a contribuir com a humanizao
da morte e permitir a ortotansia surgiu no estado do Cear na criao do Cdigo dos Direitos
do Paciente Carta dos direitos e deveres da pessoa hospitalizada no Sistema nico de Sade
SUS (CEAR, 2005). Esta Carta prev como direito da pessoa hospitalizada no sistema de
sade nacional: Art.30 - Aceitar ou recusar o uso de tratamentos dolorosos e extraordinrios,
mesmo que seja para prolongar a vida. Alm da recusa estabelece claramente como deve ser
o tratamento de pacientes com quadros irreversveis no Art. 33: Se em estado terminal, ter
uma assistncia respeitosa, apoiada, generosa e afetiva diante da morte. Desta forma v-se na
iniciativa local a partir do exemplo do estado do Cear e na iniciativa nacional da Poltica
Nacional de Humanizao (BRASIL, 2005) um grande incentivo promoo da morte digna
no pas.
Assim, como parte da garantia dignidade na morte, o modelo da boa morte pode
envolver a recusa aos tratamentos mdicos e como vimos, este um direito do paciente. No
entanto, h muita confuso a respeito da retirada de suporte ou interrupo de teraputicas no
que tange ao conceito de eutansia passiva. Vejamos o que eutansia passiva e suas
consideraes.
2.4. Eutansia Passiva, Ortotansia e Cuidados Paliativos
Euta