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 ensaios | vmmmm Epígrafe, São Paulo, Edição Um, p. 91-103, 2014 91 O “RETORNO” DO IMPRESCINDÍVEL:CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NARRATIVA HISTÓRICA E O OFÍCIO DO HISTORIADOR  DOI: 10.11606/issn.2318-8855.v1i1p91-103 Heitor Reider Rodrigues Bohn* 1  Palavras-chave: Narrativa, Historiografia, Escrita da História  Resumo: Este breve ensaio procura ressituar o debate sobre a narrativa em História tendo como ponto de partida a “crise dos paradigmas” na década de 1980, momento de revisão historiográfica que propiciou questionamentos não apenas de teor ideológico, mas do próprio “fazer histórico”, isto é, da rel ação entre os historiadores e suas pesquisas. Procurar-se-á, portanto, discutir, através da seleção de alguns posicionamentos e seus desdobramentos a validade desta modalidade de escrita da história. O historiador é obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano de salvação, de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável. Walter Benjamim O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal e não mais como moedas. Friedrich Nietzsche As duas epígrafes reproduzidas acima, cujos conteúdos têm significados diametralmente opostos, apontam, porém, para a finalidade deste ensaio: propor uma reflexão sobre a elaboração intelectual do material histórico (a pesquisa) por parte dos historiadores, que se faz por escolhas metodológicas, recortes temáticos * Graduando em História pela Universidade de São Paulo.

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    Epgrafe, So Paulo, Edio Um, p. 91-103, 2014 91

    O RETORNO DO IMPRESCINDVEL:CONSIDERAES ACERCA DA NARRATIVA

    HISTRICA E O OFCIO DO HISTORIADOR

    DOI: 10.11606/issn.2318-8855.v1i1p91-103

    Heitor Reider Rodrigues Bohn*1

    Palavras-chave: Narrativa, Historiografia, Escrita da Histria

    Resumo: Este breve ensaio procura ressituar o debate sobre a narrativa em Histria

    tendo como ponto de partida a crise dos paradigmas na dcada de 1980,

    momento de reviso historiogrfica que propiciou questionamentos no apenas de

    teor ideolgico, mas do prprio fazer histrico, isto , da relao entre os

    historiadores e suas pesquisas. Procurar-se-, portanto, discutir, atravs da seleo

    de alguns posicionamentos e seus desdobramentos a validade desta modalidade de

    escrita da histria.

    O historiador obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episdios com que lida, e no pode absolutamente contentar-se em represent-los como modelos

    da histria do mundo. exatamente o que faz o cronista, especialmente atravs dos seus representantes clssicos, os cronistas medievais, precursores da

    historiografia moderna. Na base de sua historiografia est o plano de salvao, de origem divina, indevassvel em seus desgnios, e com isso desde o incio se

    libertaram do nus da explicao verificvel. Walter Benjamim

    O que a verdade, portanto? Um batalho mvel de metforas, metonmias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relaes humanas que foram enfatizadas

    potica e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, aps longo uso parecem a um povo slidas, cannicas e obrigatrias: as verdades so iluses, das quais se

    esqueceu que o so, metforas que se tornaram gastas e sem fora sensvel, moedas que perderam sua efgie e agora s entram em considerao como metal e

    no mais como moedas. Friedrich Nietzsche

    As duas epgrafes reproduzidas acima, cujos contedos tm significados

    diametralmente opostos, apontam, porm, para a finalidade deste ensaio: propor

    uma reflexo sobre a elaborao intelectual do material histrico (a pesquisa) por

    parte dos historiadores, que se faz por escolhas metodolgicas, recortes temticos

    * Graduando em Histria pela Universidade de So Paulo.

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    e cronolgicos e que, por fim, so alinhavados na escrita, na narrativa que se

    queira apresentar sobre os acontecimentos fenmenos histricos. O filsofo

    alemo Walter Benjamin (1892-1940) citado aqui, pois no seu ensaio O Narrador,

    do qual extramos a referida passagem, evoca a narrativa como forma de escrita

    que d sustentao a uma explicao, isto , esta relacionada tentativa de

    decifrao do mundo, este mundo desencantado da modernidade, onde a

    objetividade cientfica, da explicao verificvel se sobrepe quelas exposies

    de carter mtico ou metafsico. Contudo, Benjamim, o eterno rabino marxista,

    nos dizeres do crtico literrio ingls Terry Eagleton, ainda considera o historiador

    moderno um sujeito de conhecimento que aplica intencionalidade na execuo de

    seu trabalho. Para o filsofo de Frankfurt o historiador da modernidade superou (no

    sentido hegeliano do termo: aufheben) as narrativas de origem sobrenatural e

    religiosa, mas ainda anseia por uma verdade, mantendo a iluso de salvao e

    libertao humana, mesmo que seja uma redeno mundana (o fim das divises

    sociais, por exemplo). J Friedrich Nietzsche, apelando para sua filosofia a golpes

    de martelo questiona a prpria validade de uma verdade universal, desconfiando

    daquelas j postas no relacionamento entre os seres humanos. um pensador que

    prefigura nossa realidade ps-moderna, pois j nos Oitocentos criticava a

    sociedade e cultura alems pretensamente modernas e industriais. Como se

    nota no respectivo trecho citado, as verdades estariam indicadas apenas no plano

    da linguagem e ganhariam fora somente quando pronunciadas ou consolidadas no

    (e pelo) conjunto social. A verdade discursiva, portanto, especialmente naquele

    sentido atribudo teoria foucaultiana, reao aos anos de crise das Cincias

    Humanas, uma crise vivenciada a partir da segunda metade do sculo XX. Sendo

    assim, este breve ensaio deve ser considerado como uma procura, no mbito da

    Histria, de responder a este impasse: a narrativa uma modalidade

    inteligivelmente cientfica e permitiria, por sua vez, desdobramentos,

    generalizaes, ilaes e verificaes objetivas das aes humanas e das sociedades

    no tempo ou apenas sintetizam um determinado conjunto de singularidades

    temticas esparsas e pontuais, num carter descritivo de investigao? Perceba-se,

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    pois, que a suposta resposta a esta difcil questo est no cerne da prpria

    importncia da disciplina no conjunto das Humanidades, inclusive da sua condio

    como Cincia Social, cuja especificidade repousaria na relevncia dos assuntos

    humanos tomados na conjuntura social e abordados pela diacronia de eventos, o

    que nos d a noo de processo ou fenmeno histrico.

    Indagando-se a qualquer pretenso historiador que esteja cursando a disciplina

    com o intuito de pratic-la ou simplesmente lecionar em escolas/universidades

    pblicas e/ou privadas a respeito da chamada crise dos grandes paradigmas da

    Histria, logo se observa(se o aluno assistiu minimamente a duas ou trs aulas de

    teoria) que a grande maioria poder responder: trata-se da falncia do marxismo e

    do estruturalismo como sistemas tericos totalizantes e capazes de explicao da

    realidade historicamente constituda, isso devido emergncia de um mundo

    neoliberal e mais ps-moderno! Essa assertiva tornou-se bvia e comumente

    reproduzida mesmo em congressos e colquios, haja vista que os estudantes de

    Histria (quase sem distino) so caracterizados como aqueles que geralmente se

    inclinam para uma maior sensibilidade poltica e uma preocupao social manifesta,

    confundindo-se muitas vezes e at de maneira prejudicial disciplina o trabalho do

    historiador com o do militante poltico. como se nele, como de praxe ocorre com

    qualquer estudioso das Cincias Humanas, fosse depositada a responsabilidade de

    comprovar pelos documentos todas as injustias histricas das desigualdades

    econmicas, polticas e sociais imperantes no sistema capitalista, estabelecendo-se

    a sinonmia entre a figura de historiador com a do justiceiro.

    Evidentemente, que no queremos dizer aqui que o historiador seja passivo

    diante de seu objeto de estudo2, que no se sensibilize pelas questes de seu

    presente, afinal ele no um simples recolhedor de fatos. Entretanto, imputar a

    essa profisso tal fardo em demasia eclipsar o prprio ofcio em si daquele que se

    dedica no menos a problematizar quanto compreender o passado, por meio da

    2J Hegel no famoso texto A razo na histria, publicado postumamente e baseado nas aulas de filosofia deste pensador entre 1822 e 1830 alertava, em resposta implcita a Ranke, que tambm o

    historiador corrente e mediano, que intenta e pretende conduzir-se apenas maneira de inventariante, entregando-se somente ao que dado, no passivo no seu pensar; traz consigo as suas categorias e v atravs delas o existente (pgina 33).

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    confrontao de vestgios materiais ou documentais que foram legados por

    homens que viveram em sociedades que viveram em sociedades situadas em

    espao-tempo distinto. Reconhece-se o passado ento como dado existencial

    inaltervel, por mais que alguns julguem atualmente o seu produto como fico,

    resultado da imaginao do historiador, porquanto relato de uma pessoa sobre os

    relatos e memrias de outras em pocas anteriores, ocasionando-se, ento, outro

    impasse epistemolgico da Histria, pois tratar-se-ia de utilizarmos a narrativa

    apenas como uma forma literria que se sobreporia s outras representaes

    individuais ou coletivas3.

    Interessante observar como neste contexto de crise de identidade vivida

    pela Histria na dcada de 1980, uma crise provocada pela emergncia de uma

    multiplicidade de questes sociais e polticas propiciadas pelo fim do bloco sovitico

    e da reestruturao do mundo sob a hegemonia da democracia americana, a

    pluralidade de posicionamentos dos seguidores de Clio tornou-se sintomtica e

    exige uma reviso historiogrfica. Em primeiro lugar, porque nos obriga a

    reconhecer a peculiaridade das escolhas e do ofcio de cada historiador, por mais

    que este professe filiao com esta ou aquela tendncia historiogrfica, ou mesmo,

    esta ou aquela opo poltica. Em segundo lugar indispensvel aos historiadores a

    reflexo sobre sua disciplina, que deve ser feita com tanto afinco quanto a sua

    busca por um conjunto de documentos, a escolha de uma periodizao e a

    elaborao de um problema, que a definio de um tema de pesquisa. Pois se no

    reconsiderarmos a Historiografia, aqui definida no seu sentido mais imediato, como

    histria da Histria o desenvolvimento do trabalho dos historiadores desde a

    institucionalizao da disciplina no apreenderemos a noo de como as

    perguntas do presente levam (e sempre levaram) os historiadores a se interrogar e

    avaliar o passado, do qual este mesmo presente sempre resultado, ou seja, a

    3Hayden White, historiador americano e conhecidssimo por suas crticas epistemolgicas historiografia aqui o autor chave na discusso sobre a questo da representao narrativstica na Histria. Um texto assaz hermtico de sua autoria intitulado A questo da narrativa na teoria contempornea da Histria, publicado pela Revista de Histria da Unicamp (1991), procura enfocar a dimenso figurativa e discursiva pela qual os historiadores escrevem sobre o passado, alm de complexificar o debate colocando tambm, como vimos, a questo da intencionalidade.

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    famosa interdependncia entre o passado e o presente, tenso que define qualquer

    pretenso de pesquisa histrica.

    Como este trabalho prope-se a captar determinado momento na

    Historiografia, mais especificamente aquele que se configurou a partir de 1970, em

    que o assunto em pauta era, par excellence, a narrativa histrica, caber-nos-ia

    verificar as razes e razes do porqu os historiadores voltaram-se para uma

    reflexo sobre os modos de escrita da Histria. De maneira preliminar, poderamos

    dizer que, neste extenso e complexo debate, os maiores provocadores seriam, na

    sua verso dos anos 1970, certamente,Lawrence Stone historiador ingls que

    tinha uma viso muito simplista da narrativa histrica e, nos anos de 1980, no

    contexto agudo da crise, Hayden White, que atribuiu valor mais literrio do que

    propriamente epistemolgico para o fazer do conhecimento histrico. Havia ainda

    os que procuravam dar se no um sentido, pelo menos uma lgica para a

    manuteno do ofcio do historiador nas sociedades contemporneas. Entre estes

    ltimos, estariam aqueles que dariam ateno aos contrapontos oferecidos pela

    argumentao de Eric Hobsbawm;da volta aos clssicos do sculo XIX como

    pretende Franois Hartog, ou ainda nas anlises sugeridas por Peter Burke. Faremos

    toda esta operao de reconstituio do debate, guardando, como deve ficar

    evidente, as devidas ressalvas das distintas linhagens historiogrficas ou opes

    ideolgicas que separam todos estes historiadores.

    Selecionamos e mencionamos esses autores, pois um dos objetivos desse

    pequeno ensaio , alm da tentativa de responder quela pergunta inicial, pontuar

    as vises destes decanos sobre a narrativa. Por ora, podemos afirmar que por mais

    que esta seja rechaada ou glorificada na discusso maior sobre o estatuto (literrio

    ou epistmico) da Histria, foi sempre por meio desta modalidade de escrita que o

    historiador, para citar a feliz expresso de Febvre, construiu e chamou os fatos

    vida (FEBVRE, 1989, p.32).

    A gnese do debate em torno da narrativa histrica no longnqua de ns,

    conforme anunciamos. Podemos dizer que fora reintroduzido na cena

    historiogrfica contempornea pelo artigo do historiador ingls Lawrence Stone

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    (1919-1999) e publicado pela revista acadmica britnica Past and Present em

    novembro de 1979, cujo ttulo era The Revival of Narrative: Reflections on a New Old

    History, em que Stone definia a narrativa como:

    () a organizao de materiais numa ordem de sequncia cronolgica e a concentrao do contedo numa nica estria coerente, embora possuindo sub-tramas. A histria narrativa se distingue da histria estrutural por dois aspectos essenciais: sua disposio mais descritiva do que analtica e seu enfoque central diz respeito ao homem e no s circunstncias. Portanto, ela trata do particular e do especfico, de preferncia ao coletivo e ao estatstico (STONE, 1991, p. 13-14).

    Da que o autor segue o texto apresentando uma espcie de compndio dos

    diversos campos da profisso histrica desde a constituio da disciplina em fins do

    sculo XIX e as posteriores tendncias do XX (cliometristas, marxistas, annalistes,

    etc.) e da sua utilizao (ou no) da narrativa. ntido neste artigo, que Stone est

    preocupado em mapear os diferentes segmentos (histria cultural, serial-

    quantitativa ou cliomtrica, histria social britnica, histria das mentalidades) e a

    possibilidade ou no de adequao dessa variante da escrita histrica, capaz de

    apreender mais o singular e o curso dos acontecimentos, portanto, capaz de fazer

    retornar o indivduo, ou melhor, as aes humanas at ento submetidas s foras

    impessoais da estrutura/produo. Assim, o ressurgimento da narrativa para

    Stone explica-se pela desiluso dos historiadores quanto aos modelos econmicos

    generalizantes e deterministas. No entanto, como observou Peter Burke,

    perceptvel em seu texto a tristeza diante do que ele chama de a mudana do

    modo analtico para o descritivo (BURKE, 1992, p. 330).

    J Hobsbawm em sua contundente rplica Some Comments publicada para a

    mesma revista, rechaa a viso de Stone de que haveria um ressurgimento da

    histria narrativa, cujo carter seria mais de compreender o como do que enfatizar o

    porqu. O historiador marxista ingls ainda acreditava que a disciplina permitiria

    generalizaes acerca das sociedades humanas e seu desenvolvimento

    (HOBSBAWM, 1991, p. 41), isto , no estatuto epistmico da Histria, ou como diria

    Febvre na Histria como estudo cientificamente conduzido. Nesse sentido, sua

    crtica estaria ligada ao entendimento de que os indivduos privilegiados na

    narrativa histrica no so um fim em si mesmo e poderiam dar acesso s estruturas

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    sociais latentes, em especial, a das mentalidades. excepcional a sofisticao de

    Hobsbawm em reconhecer o campo das mentalidades seno como autnomo pelo

    menos no imediata e mecanicamente determinado pelos condicionantes da base

    econmica ou material, mas como uma dimenso da existncia humana

    complementar aos modelos que buscam a interpretao:

    () Pode-se considerar a nova histria dos homens e mentalidades, ideias e acontecimentos, mais como uma complementao do que como uma suplantao da anlise das tendncias e estruturas socioeconmicas (HOBSBAWM, 1991, p. 43).

    Como se observa, nesse aspecto do debate acerca da narrativa histrica, a

    relao sua aplicao metodolgica se d pela tenso entre estrutura e

    acontecimento, ou seja, entre carter explicativo e narrativo da escrita histrica.

    Neste ponto, Peter Burke (novamente ele) apresenta-nos uma interessante

    distino do que ele chama de explicao estrutural e explicao narrativa,

    fornecendo-nos um exemplo interessante da dicotomia entre estes dois nveis na

    escrita tradicional da Histria (leia-se aquela praticada no sculo XIX) e a escrita

    moderna da Histria, configurada sobre os influxos terico-metodolgicos dos

    Annales:

    Os historiadores desses dois campos: estrutural e narrativo diferem, no apenas na escolha do que consideram significativo no passado, mas tambm em seus modos preferidos de explicao histrica. Os historiadores da narrativa tradicional tendem e isto no exatamente contingente a exprimir suas explicaes do tipo as ordens chegaram tarde de Madri, porque Felipe II no conseguia decidir o que fazer, em

    outras palavras, como diriam os filsofos: a janela quebrou, porque Brown atirou nela uma pedra. Os historiadores estruturais, por outro lado, preferem explicaes que tomam a forma: a janela quebrou

    porque o vidro era frgil ou (citando o famoso exemplo de Braudel) as

    ordens chegaram tarde de Madri porque os navios do sculo dezesseis demoravam vrias semanas para cruzar o Mediterrneo. Como observa Stone, o chamado renascimento da narrativa tem muito a ver com uma crescente desconfiana do segundo modo de explicao histrica, frequentemente criticado como reducionista e determinista (BURKE, 1992, p. 332).

    Entretanto, se para Burke a tradicional oposio entre os acontecimentos e as

    estruturas pode ser superada pelo que ele chama de inter-relacionamento entre

    formas narrativas de anlise ou formas analticas de narrativa (BURKE, 1992, p. 37)

    considerando a variedade dos temas especficos sobre os quais o historiador possa

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    de debruar histria da masculinidade, da feminilidade, da famlia, do roubo, etc.

    Hobsbawm far uma observao mais prudente acerca da pluralidade dos objetos

    novos que a nouvelle histoire traz ao mbito da disciplina, discutindo mesmo se isso

    no implicaria a fragmentao da Histria, fragilizando a sua capacidade de sntese

    em relao aos processos e dinmicas mais gerais, estrutural e temporalmente

    diacrnicas:

    () O problema de reunir as vrias manifestaes do pensamento e ao humana num perodo especfico no novo nem desconhecido. Nenhuma histria da Inglaterra sob Jaime I que omita Bacon ou trate-o exclusivamente como advogado, poltico ou figura da Histria da Cincia ou da Literatura h de ser satisfatria. Ademais, isso reconhecido mesmo pelos historiadores mais convencionais, mesmo quando suas solues (um captulo ou dois sobre cincia, literatura, educao ou alguma outra coisa em apndice ao corpo principal do texto poltico- institucional) so insatisfatrias. Mas, quanto maior o leque de atividades humanas aceito como legtima preocupao do historiador, com tanta maior clareza entende-se a necessidade de estabelecer conexes sistemticas entre elas e tanto maior a dificuldade de alcanar uma sntese. Naturalmente, isso muito mais do que um problema tcnico de apresentao, mas tambm consiste nisso. Mesmo os que continuam a se guiar em suas anlises por algo semelhante ao modelo hierrquico em trs teros da base e das superestruturas, rejeitado por Stone, podem consider-lo como um guia imprprio para a apresentao embora provavelmente seja menos imprprio do que uma pura narrativa cronolgica (HOBSBAWM, 1991, p. 42).

    O debate historiogrfico em torno da narrativa foi to intenso, como

    demonstraram estes autores britnicos (Stone, Hobsbawm e Burke), sobretudo

    num contexto de desiluso dos grandes paradigmas norteadores da escrita e

    compreenso da Histria seja o marxismo ou o estruturalismo que se

    promoveram questionamentos de vrios tipos quanto validade da disciplina, como

    at mesmo se a composio do texto do historiador seria arte ou cincia. Sendo a

    dcada de 1980 um marco cronolgico de inflexo, levando experimentao de

    um novo regime de historicidade, o do Presentismo (conceito cunhado por

    Franois Hartog) em que se reconhece no ser o passado mais possvel de ser

    reconstitudo na sua integralidade nem to pouco o futuro previsvel, tornando este

    perodo existencial que vivemos um continuum alargado e indeterminvel, como se

    pensar o ofcio do historiador na contemporaneidade? Dever ele

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    irremediavelmente aceitar seu destino e de sua sociedade com amor fati, na bela

    expresso cunhada por Nietzsche?

    Talvez o historiador francs Hartog tenha razo quando chama ateno, para

    que ns historiadores ou futuros historiadores atenhamos importncia da

    metodologia histrica num momento de desiluso poltica e de estase social. Faz-se

    mister, neste tempo marcado pela globalizao mundial da economia capitalista,

    reconhecermos a falncia de certos pressupostos sobre o social respaldados pelo

    progresso cientfico e sequiosos pela promessa de mudana no futuro? A disciplina

    histrica no teria em sua gnese uma vocao para tornar-se Cincia, vocao esta

    que nas dcadas de 1920 e 1930, com o surgimento da primeira gerao do Annales,

    resvalou na elaborao consistente de um paradigma adequado para um estudo

    que deveria privilegiar o reconhecimento do funcionamento e organizao da vida

    humana numa determinada sociedade e num determinado tempo? Por isso ele

    revisita o trabalho de Fustel de Coulagens em O sculo XIX e a Histria: O caso Fustel

    de Coulanges, em cujo prefcio diz:

    Por volta de 1980, porm, j no se duvida de que esses modelos cientficos, grandes consumidores de futuro, e firmemente atados ao conceito de progresso, sejam cada vez mais inoperantes. Abre-se um tempo de estase, momento de pausa em que o olhar para trs se torna legtimo: para abranger o caminho percorrido, para tentar entender onde nos encontramos hoje e por qu. uma forma de manter-se distncia, passando do prospectivo ao retrospectivo: as pessoas preocupam-se com genealogia e as empresas com seus arquivos. Como as outras disciplinas, a histria no escapa a esse movimento, mas no de modo algum a sua iniciadora. A reintroduo da histria na histria, praticada e proclamada por Febvre, preconizada por Marrou e Aron contra a histria positivista, preparou, porm, o terreno: o historiador est disposto a entrar na

    categoria histrica. Trata-se de outras tantas condies que favorecem a abertura de um espao para uma histria da histria (HARTOG, 2003, p. 21).

    O livro de Hartog interessante por apresentar ao seu final um apndice com

    uma seleo de textos do prprio Fustel que demonstra sua singularidade como

    autor do sculo XIX. Temas a respeito da metodologia do historiador como a

    iseno do historiador em relao ao seu presente, a busca pela verdade histrica e

    mesma da sua afirmao de que a histria cincia e no arte, rechaando-se,

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    portanto, as narrativas polticas tradicionais mostra-nos a peculiaridade desse

    historiador do sculo XIX:

    () A histria muito estudada em nossos dias: mas parece-me que, na verdade, as pessoas se servem dela mais do que a estudam. Da mesma forma, todos os partidos invocam a histria em proveito prprio, chamam-na em seu auxlio, fazem dela um instrumento ou uma arma. Talvez fosse sensato comear por conhec-la. Observem nossos jornais, rgos das diferentes opinies que nos dividem; a histria enche metade das colunas, e, para apoiar suas prprias teorias, todos citam a histria com uma segurana inabalvel, como se ela pudesse sustentar as doutrinas mais contraditrias (COULANGES apud HARTOG, 2003, p. 303). () A histria, senhores, no um divertimento ou uma distrao. No era seu desejo, decerto, que eu aqui viesse movido s do propsito de lhes apresentar uma srie de relatos atraentes ou provocantes e de observaes engenhosas. O que os senhores buscam outra coisa que devem exigir daqueles que tm a honra de ocupar esta cadeira. A histria no uma arte que vise narrar com encanto. No se assemelha nem eloquncia nem a poesia. O historiador pode ter imaginao; ela lhe at indispensvel; pois necessrio que ele firme no esprito uma imagem exata e viva das sociedades de outrora; mas a histria no um produto da imaginao (COULANGES apud HARTOG, 2003, p. 305).

    Como se percebe pelo trecho acima Fustel recusava que a Histria pudesse ser

    fruto puramente da imaginao do historiador que deveria,por sua vez, procurar

    encontrar a verdade nos documentos e, note-se, no a respeito das grandes

    personalidades polticas mas, sobre a sociedade investigada por ele. Nesse sentido,

    no podemos acusar todos os historiadores no sculo XIX de positivistas, que

    procuravam sedimentar uma histriamemria objetivamente nacionalista em seus

    respectivos pases, ou seja, um estudo das sociedades exteriores Europa visando

    identificar as supostas razes polticas e culturais legitimadoras do Estado-Nao

    modernos. Este um rtulo carregado de um pr-julgamento e que no leva em

    considerao a procura destes historiadores em captar as estruturas sociais, ainda

    que de maneira rudemente cientfica. Fustel de Coulanges adverte, a histria no

    um produto da imaginao, distanciando-se daquele tipo de Histria, muitas vezes

    fantasiosa sobre a Frana, escrita por Jules Michelet (1798-1874), seu conterrneo.

    Fustel confere, portanto, valor epistemolgico para as possveis asseres

    histricas, algo que deveria ser repensado num momento de tantas indefinies

    sobre a validade cientfica da disciplina. A inflexo perpetrada pelos Annales com

    Marc Bloch e Lucien Febvre por mais que recusasse a histria factual ou

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    HISTRICA E O OFCIO DO HISTORIADOR

    Epgrafe, So Paulo, Edio Um, p. 91-103, 2014 101

    pejorativamente designada como vnementielle, centrada nos fatos polticos e

    relacionados narrativa histrica tradicional, jamais desprezou a narrativa como

    modalidade da escrita da Histria. Pelo contrrio, julgaram-na indispensvel para

    dar inteligibilidade s problematizaes das aes humanas, para adensar suas

    demonstraes a respeito do funcionamento das estruturas sociais sobre os

    agentes histricos, sem recair, no entanto, em determinismos cientficos de

    qualquer espcie. Recordemos o mote de Febvre: Histria um estudo

    cientificamente conduzido. Da a importncia do como escrever uma histria, como

    julgar a veracidade das fontes, enfim, como empreender uma crtica histrica

    distanciada de possveis anacronismos.

    A prova disso o livro Un destin: Martin Luther de Febvre cuja primeira edio

    foi publicada em 1927, em que este eminente historiador francs valendo-se de uma

    periodizao (1517-1525), de um personagem de grande relevncia histrica e

    respaldado por novas concepes e parmetros a respeito da prtica de seu prprio

    ofcio, procurou e, com maestria, obteve xito ao fazer no uma simples biografia

    tampouco um juzo (FEBVRE, 1994, p. 13) sobre a figura de Lutero , mas antes

    reconstituir por meio das vicissitudes de suas aes as circunstncias de uma

    Europa que resvala em reformas religiosas cujo impacto de extraordinria

    ressonncia. No se trata apenas da vida de Lutero, mas das condies de toda uma

    Alemanha, ou melhor, de uma Europa em pleno sculo XVI. Um verdadeiro exerccio

    metodolgico, poderamos dizer, uma vez que Febvre confronta variadas fontes

    histricas de poca sobre Martinho Lutero e consegue fazer o movimento do

    particular ao geral, do especfico ao mais abrangente, do indivduo sociedade

    valendo-se para isso de um gnero como a narrativa biogrfica.

    Assim, em considerao a esse amplo debate sobre a narrativa, verificamos

    que ela foi desde algum tempo, imprescindvel pesquisa. Contudo ela no equivale

    a um artifcio literrio, fico criada pela mente do observador, no caso, uma criao

    imaginria do historiador. Primeiramente, porque o historiador constri os fatos ao

    se debruar sobre um tema e a colocar problemas, sendo a Histria, portanto, como

    diria Febvre, uma profisso de inteligncia. Em segundo lugar, porque a narrativa

  • ensaios | vmmmm HEITOR REIDER RODRIGUES BOHN

    Epgrafe, So Paulo, Edio Um, p. 91-103, 2014 102

    no incompatvel com a generalizao explicativa ao conjunto de circunstncias e

    processos que o historiador quer compreender, pelo contrrio, ela reveste de

    inteligibilidade a sua argumentao, mesclando o entendimento da memria do

    acontecimento (ou os registros documentais) com outras fontes, dando margem s

    interpretaes que so confrontadas com uma realidade existencial pretrita.

    A possvel resposta nossa pergunta inicial a de que a Histria tem estatuto

    epistemolgico no conjunto das Cincias Sociais. A Histria pode sim fornecer-nos

    um conhecimento objetivo a respeito do passado humano, ensejando explicaes

    respaldadas em comprovaes (vestgios fsicos e documentados) das aes (e

    contradies) humanas no tempo, mas isso depende do engenho e capacidade

    organizativa das informaes recolhidas e do estudo sistemtico elaborado por

    cada historiador, ou seja, no s pura intencionalidade o conhecimento que

    formulamos sobre a Histria, mas tambm este no desprovido, como qualquer

    Cincia Humana, da interveno de um sujeito do conhecimento. Todo historiador

    interfere no material histrico e enquadra-o num tema e numa cronologia, o que j

    revela em si, uma predileo poltica e d ao seu trabalho um teor de preocupao

    (ou no) com o presente em que vive, por mais que se afirme que quanto mais

    remoto e distante for o perodo estudado, maior as chances de sua pesquisa ganhar

    um aspecto mais objetivo e neutro em relao s agonias sociais e das

    contendas ideolgicas travadas na sociedade onde ele est imerso. Enfim, isto

    equivale a dizer que o sujeito e o seu objeto de conhecimento esto aqui numa

    tenso, indicando, no entanto, apenas a uma oposio aparente, no sentido

    aventado por Hegel, pois esto se determinando reciprocamente. Tanto o

    historiador determina a Histria, como a Histria moldou (agora no sentido

    marxiano do termo) a conscincia do historiador. Qualquer pesquisa histrica

    gerada por um interesse, que pode estar intimamente ligada a uma perspectiva

    poltica ou uma realidade social vivida pelo historiador, tanto daquele que estuda a

    Antiguidade Romana, quanto aquele que procura analisar a estrutura escravocrata

    da sociedade brasileira no sculo XIX, por exemplo.

  • ensaios | vmmmm O RETORNO DO IMPRESCINDVEL:CONSIDERAES ACERCA DA NARRATIVA

    HISTRICA E O OFCIO DO HISTORIADOR

    Epgrafe, So Paulo, Edio Um, p. 91-103, 2014 103

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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