713-1691-1-PB

Embed Size (px)

DESCRIPTION

indios celebres

Citation preview

  • 21

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 1-2, jul./dez. 2012.

    ndios clebres do rio grande do norte: a naturalidade de um heri indgena na revista do IHG-RN

    Jailma Nunes Viana de Oliveira Graduanda em Histria - UERN

    Resumo O artigo tem como finalidade trabalhar com a discusso acerca dos ensaios publicados pelo intelectual Lus Fernandes na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte (RIHG-RN) nos anos de 1904 e 1908, na seo dos ndios Clebres do Rio Grande do Norte. A histria do Estado estava sendo construda com vistas a incluir tambm as personalidades histricas que mais contriburam na formao do ser potiguar, e o elemento indgena teria papel importante nesse processo. O interesse pela naturalidade de Antnio Felipe Camaro ser uma das primeiras grandes questes abordadas pela revista do Instituto que se configurava como um importante local de saber e que aglutinava a mais importante elite poltica e intelectual da poca interessada na construo de uma histria potiguar. Palavras-chave: Felipe Camaro; Histria Potiguar; Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte. Abstract The article aims to work with intellectual essays published by Lus Fernandes in Journal of the Institute of History and Geography of Rio Grande do Norte (RIHG-RN) in 1904 and 1908 in the section Indians Celebretad of Rio Grande do Norte. The history of the state was being constructed with a view to also include historical figures that contributed most in the formation of the potiguar, and the indigenous element would have an important role in this process. The interest in naturalness Antonio Felipe Camaro is one of the first major issues addressed by the magazine of the Institute that was configured as an important place of knowing and agglutinated the most important political and intellectual elite of the time interested in building this potiguar history. Keywords: Felipe Camaro; Potiguar History; Institute of History and Geography of Rio Grande do Norte.

    O presente trabalho tem como base um dos captulos escritos para a monografia Um

    heri para a nao: a escrita sobre o indgena colonial para histria do Rio Grande do Norte no incio do sculo XX, concluda em 2013. Nesse sentido, uma discusso mais geral dos artigos publicados na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte (RIHG-RN) por Lus Fernandes, no qual discorrer em grande medida sobre o ndio Felipe Camaro, ser nosso foco de anlise, ao mesmo tempo em que nos permite compreender a construo de um heri indgena, e tambm da viso que se tinha na poca acerca do ndio como partcipe dessa histria nacional. O ponto de vista racial continua presente, e dessa forma, a raa indgena ser interpretada por esse intelectual sob a luz da razo e da verdade histrica que julgou empreender.

    Iniciar uma discusso acerca do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte (IHG-RN) tambm incluir a importncia que teve o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) para a constituio, anos depois, dos demais institutos regionais que seriam instalados pelo Brasil com a finalidade de se pesquisar e escrever sobre a histria local que integraria a histria nacional. Nesse aspecto, entender o papel que o IHGB possui na formao de uma histria nacional entender ao mesmo tempo o quanto a histria do Brasil foi condicionada pelos intelectuais que logo se propuseram a realizar essa rdua

  • 22

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    misso, e que acabaram deixando marcado nas pginas dessa histria tantas idealizaes e compreenses que precisam ser desconstrudas e distanciadas de um esteretipo ou interpretadas sob um vis em que se faa jus, tanto ao pensamento da poca de quem escrevera quem escreve no nada mais do que fruto do seu tempo -, quanto levantar a poeira de uma histria encoberta onde jazem tantos sujeitos, e nesse processo os ndios so encontrados em uma posio de completa generalidade ou mesmo dualidade e cuja histria acabou sendo escrita por uma elite intelectual, que no buscava nestes sujeitos nada mais do que uma gnese digna para o Brasil a fim de legitimar uma histria poltica e econmica que serviria apenas para poucos.

    Acerca disso, interessante a reflexo que Manoel Luiz Salgado Guimares (2011) faz sobre a escrita da histria no sculo XIX, momento em que a histria se consolidava como disciplina, e tinha-se a construo de uma identidade da nao brasileira sob a responsabilidade de uma elite letrada e homens de Estado. Portanto, que projeto historiogrfico seria o mais adequado para dar base a essa nao que seria imortalizada pela histria? A retrica da nacionalidade seria uma sada para empreender esse projeto, constituindo-se em um conjunto de estratgias discursivas cuja caracterstica a disperso de seus elementos constituintes, utilizadas para persuadir os brasileiros de que [...] compartilhavam um passado comum e, consequentemente, a mesma origem e identidade (KNAUSS, CEZAR, 2011, p. 13).

    Outro ponto importante pensar como se deu a formao dessa elite letrada que ir dominar as produes historiogrficas no sculo XIX e consequentemente uma histria da nao. Se a Espanha desde cedo autorizou a criao de universidades em suas colnias, a elite portuguesa dispunha apenas, de imediato, da Universidade de Coimbra, situada em Portugal, onde tal concentrao fez com que houvesse uma homogeneizao intelectual da elite letrada do Brasil. Formando seu prprio pblico, tal elite no imaginava uma separao real de Portugal, mesmo aps a Independncia que fora negociada temendo uma anarquia. (cf. Guimares, 2011, p. 36 e 48). Mesmo assim, ocorrendo tal independncia poltica, viu-se a necessidade de uma independncia cultural, no qual se percebe os intelectuais romnticos tomando a frente nessa misso.

    Assim, os primeiros relatos sobre a colonizao portuguesa e os indgenas passaram a ter bastante importncia no sculo XIX, no qual podemos perceber, de fato, de que forma tais vises iniciais influenciaram e permaneceram no iderio que o intelectual daquele sculo e do incio do sculo XX tiveram acerca dos ndios. Monteiro (2001, p. 13), ao analisar a obra do portugus Gabriel Soares de Sousa tanto no contexto do sculo XVI, quanto quando revisitado no sculo XIX pelos intelectuais, percebe que historiadores acabaram formando uma imagem esttica do indgena colonial, ignorando suas transformaes aps a chegada do europeu na Amrica, aparecendo como povos originais, atemporais e imutveis.

    O historiador John Monteiro tambm aponta para o tom memorialista com que foram tratados os ndios Tupinamb, ao mesmo tempo em que Soares de Sousa buscou justificar a conquista portuguesa. Paralelamente, os Tapuia pareciam-lhe o oposto dos Tupi, castas pensadas em suas diferenas e cada qual unificando aspectos culturais e lingusticos de grupos indgenas que possuam especificidades que iam alm da diviso por castas que buscou abranger os ndios. Porm, Soares de Sousa ficaria por duzentos anos sem suscitar nenhum interesse, este resgatado em princpios do sculo XIX, tendo Francisco Adolfo de Varnhagen dispendido bastante ateno para os escritos, principalmente por ser

  • 23

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    um intelectual ligado ao IHGB e empenhado numa tradio histrica nacional, resgatando e recuperando textos importantes na constituio das origens do Brasil.

    Monteiro (2001, p. 27) ainda ressalta que na obra de Varnhagen, o papel que os ndios desempenhariam nesse projeto estava claramente delimitado desde o incio, uma vez que este autor assimilava explicitamente a postura pessimista que Carl Friedrich von Martius propagava. Este venceu o concurso lanado pela revista do IHGB em 1847 e sobre os indgenas brasileiros escreveu como sendo certo no futuro que estes completamente desapareceriam. Reconfigurando a dicotomia Tupi-Tapuia, os historiadores do imprio acrescentaram um novo eixo temporal anlise. Como se pode perceber:

    [...] Os Tupi foram relegados a um passado remoto, quando contriburam de maneira heroica consolidao da presena portuguesa atravs das alianas polticas e matrimoniais. Mas as geraes subsequentes cederam o lugar para a civilizao superior, deixando algumas marcas para a posteridade, inscritas nos topnimos, nos descendentes mestios e na persistncia da lngua geral que, no sculo XIX, ainda vigorava entre algumas populaes regionais e era cultivada por setores das elites imperiais como a autntica lngua nacional. [...] Os Tapuia, por seu turno, situavam-se no plo oposto, apesar das abundantes evidncias histricas que mostravam uma realidade mais ambgua. Retratados no mais das vezes como inimigos e no como aliados dos portugueses, bem entendido representavam o traioeiro selvagem, obstculo no caminho da civilizao, muito distinto do nobre guerreiro que acabou se submetendo ao domnio colonial [...] (MONTEIRO, 2001, p. 29-30).

    Nesse sentido, O IHGB surge aps um momento de independncia do Brasil e o

    IHG-RN em um contexto ps-proclamao da Repblica. Mas ambos se constituram como lugares cientficos, onde novos modelos e necessidades estavam em curso, novas conjunturas e o saber ali produzido estava indissociavelmente ligado a esses institutos. O IHG-RN estava inserido em um campo fechado onde uma intelectualidade trabalhava a partir de uma prtica histrica e distinta da sociedade. Nesse campo, as ideias adquiriam uma relatividade que resistia, devido ao isolamento do grupo, privilegiado e munido de determinada autonomia ideolgica. Ou seja, o discurso cientfico da poca ignorava uma funo social da histria, no pensada pelas leis e o grupo de intelectuais, nem de examinar o poder que havia em suas decises pessoais perante o pblico leitor.

    Como coloca Certeau (2008, p. 66), a operao histrica se refere combinao de um lugar social, de prticas cientficas e de uma escrita. Desse modo, o IHG-RN no incio do sculo XX esteve inserido em um contexto que o denotava como um dos principais lugares de produo de conhecimento no Estado. Sendo um espao com suas imposies e privilgios, composto, sobretudo, por uma categoria de letrados, os documentos e ensaios publicados na Revista foram organizados seguindo uma linha de particularidades, funcionando a partir de um mtodo historiogrfico que frisava um sentido linear em suas questes: resolver a princpio quem constituiu o rol de personalidades importantes e os heris potiguares na gnese de uma histria potiguar.

    Tomando as primeiras pginas de alguns volumes publicados da Revista do IHG-RN em sua primeira dcada, verificar-se frases que indicam o norteamento da concepo de histria dos intelectuais scios do instituto. Por exemplo, frase de J. de Maistre, um filsofo francs: Nada do que grande, comeou grande; Alexandre de Gusmo, diplomata brasileiro: Procura ressuscitar tambm as memrias da ptria da indigna obscuridade em que jaziam at agora; Alexandre Herculano, historiador e poltico portugus:

  • 24

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    Reimprimamos os nossos cronistas; revolvamos os arquivos; estudemos os monumentos, as leis, os usos, as crenas, os livros, herdados de avoengos; e o filsofo romano Ccero: Historia magistral vitae, lux veritates.

    Destas frases podemos analisar o teor cientfico e patritico que o instituto deveria assumir, valorizando aqueles que os antecederam na escrita de uma histria da ptria, apesar dela ainda no possuir essa objetividade de se constituir uma nao brasileira, mas so importantes na medida em que do base para se partir de um comeo que deve dar orgulho para o brasileiro. Sobre a clebre frase de Ccero aplicada ao Rio Grande do Norte, vemos que:

    O axioma historia magistral vitae, no caso da escrita da histria do Rio Grande do Norte, era tomado com um exemplo cuja repetio se deveria evitar a todo custo. Seu espao de experincia indicava a necessidade de encetar um horizonte distinto de expectativa. Era preciso tomar outro curso, promover a mudana, buscar um novo norte. assim que o projeto de uma identidade atrelada ao sonho, ao desejo de modernidade vai sendo construdo para o potiguar (GOMES NETO, 2011, p. 142).

    O papel dos estudiosos no incio do sculo XX seria, portanto, dar continuidade

    aos registros de acontecimentos e vidas que meream [ser] lembrados na crnica do mundo (RIHG-RN, 1903, p. 3). Para se realizar a pesquisa j eram conhecidas instituies que serviriam de base para iniciar os estudos: as associaes e os institutos de arqueologia, histria, geografia e etnografia, estes, possuidores de amplo material e velhos documentos. Ainda evidenciado a importncia e o orgulho que se tem da presena portuguesa na colonizao brasileira, onde a histria seria escrita a partir do legado da dinastia de Aviz, em que Oliveira Martins imortalizou, em livros que ficaram, a invicta gerao dos portugueses (idem, p. 4).

    Lus Manuel Fernandes Sobrinho, um homem tpico da intelectualidade potiguar na poca, poeta, jornalista, desembargador e ensasta, ao publicar seu ensaio na Revista do IHG-RN e apresenta-lo em uma sesso do instituto, o faz com base em critrios que buscam justificar o seu trabalho, para queles interessados e preocupados com a formao poltica e social do Estado e tambm para outros ncleos intelectuais, mas inseridos no mesmo mbito institucional, onde se apreciar essa produo e considerar vlida perante seus pares. O mesmo se encontrava em um contexto onde eram comuns produes voltadas para uma histria da nao, dentro de um ncleo intelectualizado, mas com diversas formaes sendo os mais recorrentes os ligados rea jurdica que na sua escrita protegia interesses ou ideias para blindar-se uma causa importante como a nacionalidade e a ligao do ndio Camaro com a histria do Rio Grande do Norte. Associava-se assim a produes de abrangncia local ou regional.

    pela percepo da omisso em um discurso que podemos perceber e interpretar o funcionamento da histria que se pretendia escrever nos ensaios publicados por Lus Fernandes. Partindo de um lugar, este assume um discurso individual que representar o seu local de fala. Portanto, o negativismo colocado sob o ndio que no contribuiu com o portugus, d lugar a um tipo de ndio privilegiado como um exemplo determinado do que se queria para a instituio de um heri indgena encontrado em Felipe Camaro. Porm, tal homenagem pstuma polissmica:

    Afinal, os ndios potiguar antes referenciados como canibais, selvagens, brbaros, foram depois convertidos f crist. Vitimados pelo aparato repressivo de que

  • 25

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    dispunha o colonizador, foram convidados a sair de cena, ou nas palavras de Cascudo (1999), consentiram em desaparecer, para que a obra da colonizao seguisse seu curso. Antnio Felipe Camaro representava a vitria da operao civilizatria encetada pelo homem branco e a aposta de que, no futuro, seria possvel se construir nesta espacialidade, uma civilizao nos moldes europeus. (GOMES NETO, 2011, p. 108).

    Nesse sentido interditada a influencia daquele ndio que causou problemas e

    no se adequa ao perfil de um heri indgena pretendido pelos intelectuais do IHG-RN. Escrevendo a partir deste, objetivando contribuir na discusso sobre a histria indgena potiguar, o ensaio de Lus Fernandes acerca do ndio Camaro nos mostra uma anlise do ndio Tupi e a ausncia do ndio Tapuia como constituinte de uma histria para o Rio Grande do Norte. Os Tapuia seriam personagens de outra histria, figurando na crnica daqueles a quem eles se aliaram. Assim, o ensaio tomado em seu aspecto geral, teve como recorte a trajetria de Camaro em paralelo com a crtica aos argumentos de Francisco Augusto Pereira da Costa.

    Os propsitos de se escrever e publicar tal ensaio na primeira edio da Revista do IHG-RN adveio, sobretudo, por meio de uma discusso da poca entre alguns intelectuais acerca da naturalidade do ndio Felipe Camaro, visto que Rio Grande do Norte, Pernambuco, Cear e Paraba eram os principais interessados. Dessa forma, era um dever das autoridades literrias ou intelectuais defenderem tal naturalidade para o Rio Grande do Norte, visto que de Pernambuco havia quem defendesse para o Estado a origem do aclamado indgena, assim como haviam aparecido trabalhos sobre o Cear nesse sentido. Portanto, era uma questo de defender para o Rio Grande do Norte a origem de um heri que viria honrar a histria do Estado potiguar e ser o bero de um dos grandes aliados da Conquista portuguesa.

    Tal investida seria feita contra o Dr. Francisco Augusto Pereira da Costa, membro do Instituto Arqueolgico e Geogrfico Pernambucano, a partir de um trabalho publicado no Jornal do Recife em novembro de 1903. Logicamente, o tom utilizado por Lus Fernandes ao critic-lo em seu ensaio, esteve repleto de ironia, mas o mesmo faz questo de demonstrar, previamente, respeito pelas argumentaes do seu ilustrado colega. No obstante, Lus Fernandes deixa bem claro com quais mtodos realizaria seu trabalho e refutaria as questes postas por Pereira da Costa:

    [...] porque nesses estudos vamos beber a verdade nas fontes brumosas dos primitivos tempos de nossa histria, e a muitas vezes ela nos escapa falta absoluta de dados certos e positivos que nos guiem o esprito em suas investigaes. Ento, s um procedimento deve ter o historiador ou cronista imparcial e desapaixonado: estudar os fatos luz da razo e descobrir neles a verdade conforme os princpios da verdadeira crtica histrica (FERNANDES, 1904, p. 141).

    Lus Fernandes (1904, p. 144) possuiu como base para a escrita do seu ensaio

    livros de cronistas como Cndido Mendes, Porto Seguro, Gabriel Soares de Souza, Southey, escritos de padres jesutas como o Pe. Jos de Moraes, alm de ter tido acesso a documentos da Coleo de Notcias publicadas pela Academia Real das Cincias de Lisboa e fontes publicadas na Revista do Instituto Arqueolgico e Geogrfico Pernambucano. A estes, toma-os como historiadores, e o Visconde de Porto Seguro como incontestavelmente o prncipe dos historiadores brasileiros, devido a sua concluso de que Camaro era do Rio

  • 26

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    Grande, demonstrando elevao de esprito e alto critrio. Mas o autor demonstra tambm ter conscincia da histria que intencionou fazer acerca do Camaro:

    J longe vo, felizmente, os tempos em que as asseres escritas eram aceitas sem exame, hoje estudam-se os fatos, confrontam-se os documentos e nenhuma afirmativa, por mais respeitvel e acatado que seja o seu autor, tida como verdadeira seno depois de inteligentemente depurada no cadinho da crtica histrica (FERNANDES, 1904, p. 218).

    Dessa forma, os holandeses foram traioeiros, e nesse mesmo grupo estariam os

    Tapuias, a quem Camaro tambm teve de lutar em favor da causa lusitana. Um dos acontecimentos mais disseminados sobre os indgenas no Rio Grande do Norte, o massacre de Cunha e Uruac para Lus Fernandes um momento em que Camaro demonstra a coragem e disciplina de seus ndios frente aqueles ndios brbaros guiados pelos holandeses, to brbaros quanto, apesar dos nomes cristos. Em nenhum momento o autor considera que Camaro teria desistido da aliana com os portugueses, onde uma carta mandada por Camaro ao Conde de Nassau no teria abalado sua lealdade.

    A ideia que passa, afinal, que Camaro seria incorruptvel. Discutindo a idade do Camaro e reforando sua naturalidade do Rio Grande, o autor quebra a oposio das opinies ao considerar Camaro um ndio pernambucano devido aos seus anseios de ajudar a ptria por uma causa em comum, e isso poderia ser tomado como verdade, j que um heri nacional no dispensa o seu sentimento por nenhum lugar no qual tenha lutado. Sendo irrefutvel a concluso de que Camaro era filho da capitania do Rio Grande e concludo que no existiram ndios Petiguares em Pernambuco antes de 1620, percebe-se o sentimento de patriotismo e defesa de um heri para o Estado do Rio Grande do Norte.

    Em todos os trs tpicos do qual Lus Fernandes subdivide seu trabalho no ensaio publicado na Revista em 1904, atribuiu a Camaro um adjetivo: selvagem, catecmeno e heri, em paralelo tambm s mudanas do seu nome, adquirindo uma acepo crist. Demonstrao de uma diviso pautada no progresso da biografia desse indgena, onde de um ndio selvagem e volvel, Camaro passa a um aprendiz que consegue desenvolver e atrair o interesse do europeu para o que ele possua de melhor: sua lealdade como vassalo do poder colonial portugus na Amrica, o que fez com que o heri nacional que tanto o europeu precisou em suas batalhas, estivesse presente, incondicionalmente.

    Por fim, em 1908 publicado um dos ltimos textos escritos por Lus Fernandes da srie de ensaios sobre o ndio Camaro ser natural do Rio Grande do Norte, antiga capitania do Rio Grande. O texto, titulado ltima verba j fora publicado no final de 1907 no jornal A Repblica. Trata de refutar, mais uma vez, argumentos publicados no Dirio de Pernambuco (n. 224) sobre Camaro ter nascido em Pernambuco. Retorna ao documento em que Capistrano de Abreu e o Baro de Studart encontraram onde diz Camaro ter nascido no ano de 1601. Fernandes (1908) compreende que ao Capistrano de Abreu utilizar o termo infere-se para chegar a sua concluso, possvel que ns, e conosco muita gente, no infiramos; porque as inferncias no se impem, dependem do modo de encarar o trecho submetido nossa apreciao (p. 144).

    A preocupao de Fernandes (1908), todavia, gira em torno da crtica ao opinar que um homem da estatura literria de Capistrano de Abreu estaria errado, e para se justificar escreve o ensaio com vistas a retificar sua opinio, mas tambm demonstrar seu respeito pela autoridade dos estudos de Capistrano de Abreu. J que Fernandes (1908) no teve contato com o referido documento quando de sua crtica, lamenta ter lhe faltado a

  • 27

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    devida pacincia, onde estando em sua obscuridade de provinciano atrasado no esperou que fosse publicado antes de sua crtica.

    Chega ento concluso de que Capistrano de Abreu estava certo, e que Camaro nascera realmente em 1601, e o parabeniza, por ter dado o tiro de morte neste ponto de nossa controvrsia com os pernambucanos. Recusando assim, a afirmao de Porto Seguro de que teria nascido em 1580, Fernandes (1908) tem como dada a ltima palavra. Porm sua concordata no seria geral, j que se nascera em 1601 no fora em Pernambuco. Segundo a rabulice literria de sua terra, Fernandes (1908) insiste em discordar dessa questo, analisando a passagem transcrita no Dirio de Pernambuco quando Camaro interpelado sobre o padre Manoel de Moraes. Explica-se:

    No, no somos usurpadores, nem para servir-me da expresso de ilustre pernambucano, infelizmente j falecido ambicionamos para nossa terra glrias que lhe no pertencem; cedemos, como acabamos de fazer com toda a lealdade. Mas convena-se o articulista pernambucano sofismas e afirmaes inanes no passaro sem reparo e s cederemos evidncia (FERNANDES, 1908, p. 148).

    Verifica-se que o autor faz questo de demonstrar a subalternidade do

    conhecimento potiguar, ou seja, tratando aqueles que escrevem no Rio Grande do Norte ironicamente como usurpadores, exercendo um provincianismo atrasado e realizando rabulice literria. E como ltimo argumento de flego, irredutvel, o autor complementa:

    Camaro entra para o cenrio histrico, indo apresentar-se a Mathias de Albuquerque para servir a Sua Majestade na guerra contra os holandeses, em 1630, com 29 anos de idade e j principal e capito de sua aldeia e de outras que lhe eram subordinadas, segundo o testemunho do contemporneo frei Manuel Calado. Ora, se era, como afirma seu companheiro darmas Duarte de Albuquerque, sobrinho de Jaguarary, o famoso chefe potyguar que durante muitos anos estivera preso nos crceres da fortaleza dos Reis Magos, donde sara por ocasio da conquista da Capitania pelos holandeses; se era filho do velho Potyguass, o poderoso chefe da aldeia de Ygap, no Rio Grande do Norte, como conjeturava Cndido Mendes e afirma agora Rocha Pombo em sua excelente Histria do Brasil, Potyguass, o mesmo que a benevolncia pernambucana nos concede e faz desaparecer no Cear em 1614; - como despresarem-se todas estas provas circunstanciais, de eloquncia esmagadora em nosso favor, e outras mais constantes de nossas publicaes anteriores, para afirmar que Camaro natural de Pernambuco, simplesmente porque est hoje provado que nasceu em 1601 e com 28 anos de idade ali residia? (FERNANDES, 1908, p. 150-51).

    Percebe-se com essas passagens que o autor s se deixou convencer por um

    argumento contrrio ao seu devido evidncia. No tanto pela influencia que Capistrano de Abreu possua entre os intelectuais e por quem escrevia histria, mas pela comprovao do documento que encontrara. Quanto s evidncias do local de seu nascimento ele parte da prpria famlia de Camaro que reconhecidamente vivia em aldeias situadas na capitania do Rio Grande. Outro ponto interessante que o cenrio histrico a que Fernandes (1908) se refere justamente ao da historiografia europeia feita na Amrica, onde os cronistas, como ele prprio observou, iro tomar a sua ajuda na guerra contra os batavos como o momento em que adquire visibilidade. Tambm no toa que Fernandes se refere a Rocha Pombo, sendo que ele, posteriormente, seria um dos primeiros a publicar um livro objetivando totalizar a histria do Rio Grande do Norte desde as suas origens at aquele momento. Esta visibilidade ainda possui um teor demarcado pelas escolhas do autor em

  • 28

    Revista Sertes, ISSN: 2179-9040, Mossor-RN, v.2, n. 2, p. 21-28, jul./dez. 2012.

    tambm o escolhe-lo como heri indgena do Estado. O ndio que originou o cidado potiguar deveria conter toda a carga de virtudes, coragem e liderana, o que explicaria posteriormente a manuteno de tais virtudes em quem nascesse em solo potiguar. Fontes:

    Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte, Natal Typographia dO SECULO, 1903. Vol. I. N. 1. p. 3-23.

    FERNANDES, Lus. ndios Clebres do Rio Grande do Norte D. Antonio Philippe Camaro. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte. Natal Typographia dO SECULO, 1904. Vol. II. N. 2. p. 139-238.

    FERNANDES, Lus. D. Antonio Felippe Camaro ltima verba. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Norte. Natal Typographia dO SECULO, 1908. Vol. VI. N. 1. p. 143-152.

    Referncias:

    CERTEAU, Michel de. A operao historiogrfica. In: A escrita da histria. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008. p. 65-109.

    GOMES NETO, Joo Maurcio. Entre a ausncia declarada e a presena reclamada: a identidade potiguar em questo. Natal: EdUFRN, 2011. 178p. (Coleo Dissertaes e Teses do CCHLA-UFRN).

    GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nao no Brasil: 1838-1857 / trad. Paulo Knauss e Ina de Mendona Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. Edies Anpuh. 284 p.

    KNAUSS, Paulo. CEZAR, Temstocles. Prefcio: o historiador e o viajante itinerrio do Rio de Janeiro a Jerusalm. In: Historiografia e Nao no Brasil: 1838-1857 / Manuel Luiz Salgado Guimares, trad. Paulo Knauss e Ina de Mendona Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. p. 7-21.

    MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH-Unicamp. Tese apresentada para o Concurso de Livre Docncia, 2001. 234 p.