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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV LICENCIATURA EM HISTÓRIA MÁRCIO CARNEIRO DE LIMA A atuação política da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira (ADECAR) entre 1987 e 2008: o desenvolvimento comunitário nos trilhos do clientelismo e do partidarismo. Conceição do Coité – BA Fevereiro 2010

A atuação política da associação do desenvolvimento comunitário de aroeira (adecar) entre 1987 e 2008 o desenvolvimento comunitário nos trilhos do clientelismo e do partidarismo

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

MÁRCIO CARNEIRO DE LIMA

A atuação política da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira

(ADECAR) entre 1987 e 2008: o desenvolvimento comunitário nos trilhos do

clientelismo e do partidarismo.

Conceição do Coité – BA

Fevereiro 2010

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MÁRCIO CARNEIRO DE LIMA

A atuação política da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira

(ADECAR) entre 1987 e 2008: o desenvolvimento comunitário nos trilhos do

clientelismo e do partidarismo.

Monografia apresentada à Universidade do Estado

da Bahia como requisito parcial para conclusão do

curso em Licenciatura Plena em História, sob

orientação do Prof. Ms. Rogério Souza Silva

Conceição do Coité – BA

Fevereiro 2010

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À minha mãe, Rosalina, que me ensinou a andar.

Ao meu pai, Matias, que me ensinou a pensar.

A todos aqueles que têm coragem de falar.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, por acompanhar-me pelos trilhos da Justiça e da Luta

constantes.

À UNEB e seus funcionários, pelo apoio irrestrito durante o Curso.

À família, Renata, Vivaldo, Laércia e sobrinhos, pelo apoio

entusiasmado ao longo da minha vida.

Aos professores, pela desconstrução das verdades e por inspirarem o

gosto pela reflexão.

Ao orientador Rogério, pelas sábias leituras e ponderações à pesquisa

e pelo apoio incondicional.

Ao companheiro Assis, pelas suas insubstituíveis considerações.

Aos entrevistados, pelas contribuições vitais à pesquisa e pelo

entusiasmo ao se pronunciarem.

Aos colegas de turma, pelos bons e inesquecíveis momentos de nossa

caminhada juntos.

À professora Edite Maria, pelo compreensivo apoio ao longo da

experiência escrita com a EJA.

À todos que compartilharam espaços e diálogos comigo durante o

Curso.

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RESUMO

Este trabalho apresenta a análise da experiência de associativismo comunitário e desenvolvimento local no Distrito de Aroeira, município de Conceição do Coité-BA. Destaca-se a atuação da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira (ADECAR) como instituição integrante de um controle político, de uma relação clientelística e como mecanismo estratégico na comunicação entre a sociedade civil organizada de Aroeira e a permanência da situação política em Conceição do Coité entre 1987 e 2008. A reflexão é parte de uma temática relativamente recente dentro das investigações historiográfica, já só o próprio movimento comunitário e a participação popular local ganharam força somente com a redemocratização dos anos 1980. A pesquisa defender a inexistência da neutralidade partidária no movimento comunitário da ADECAR, além da manipulação que o poder público municipal tem sobre a instituição, sobre suas diretrizes de atuação e sobre a propaganda partidária direcionada tanto para os sócios quanto para a comunidade de maneira geral. Palavras-chave: Associativismo; Clientelismo; Desenvolvimento; ADECAR; Cultura Política.

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SUMÁRIO

INRODUÇÃO ____________________________________________________________ 06

CAPÍTULO I – Coronel, Um Conceito _________________________________________ 11

CAPÍTULO II – A Política Recente de Coité e a Questão do Desenvolvimento _________ 27

A Questão do Desenvolvimento _______________________________________ 38

Os Anos 80 e o Novo Paradigma Nacional para o Desenvolvimento _________ 40

A intervenção federal no Nordeste: concentração de renda e problemas

regionais não esgotados. ______________________________________________ 43

O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Estadual _____________________ 49

O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Municipal ____________________ 50

CAPÍTULO III – O Distrito de Aroeira e a ADECAR _____________________________ 54

A questão do desenvolvimento comunitário _____________________________ 60

A ADECAR _______________________________________________________ 62

CAPÍTULO IV – O Comportamento e as Práticas Clientelistas da ADECAR __________ 67

CONCLUSÃO ____________________________________________________________ 81

REFERÊNCIAS __________________________________________________________ 85

ANEXOS ________________________________________________________________ 90

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INTRODUÇÃO

No começo só avistei a sua sombra. Afastei-me pra poder ver-lhe por inteiro. Muitos

falavam seu nome; alguns com intimidade, outros com repulsa. Eu não entendia muito bem,

mas percebia que ele era o centro das atenções. Vagarosamente fui vislumbrando seus traços,

seu comportamento, sua mentalidade. Pensei que era fantasia da minha mente, mas não, era

verdade. Ele estava vivo, mas era diferente. A fala era eloqüente e não mais arrastada; seu

rosto não era introspectivo, era simpático. Finalmente, pude encarar o metamorfoseado e

desprezível protagonista do meu formidável pesadelo: o coronel.

Falar em práticas coronelistas no comportamento político que vivenciamos, tanto do

ponto de vista espacial como temporal, é uma questão que suscita discussões marcadas por

interesses, análises e critérios de avaliação extremamente divergentes. Para muitos, os

Códigos Eleitorais do século XX, a criação da Justiça Eleitoral, o voto secreto, o voto

feminino e o direito de votar devolvido aos analfabetos em 1985 são exemplos de que as

mudanças têm transformado o eleitor no único dono do seu voto, de sua escolha autônoma. A

perspectiva desse trabalho é, contrariamente, defender que o comportamento eleitoral convive

com práticas que sobreviveram às mudanças listadas acima, comunicando-se com uma

política-eleitoral marcada pela pessoalidade, pelos interesses econômicos, pela identificação

grupal e pelas marcas do clientelismo e mandonismo.

Na visão de José Murilo de Carvalho, em Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo:

Uma Discussão Conceitual, o mandonismo seria uma das principais características da política

tradicional, nascida desde a colonização e resistente, sobretudo, em regiões isoladas do país.

O poder caberia ao mandão, ao chefe local que, por meio de estruturas oligárquicas e do

controle de recursos e estratégias, abriria espaço para sua influência e domínio. Não se trata

de um tipo de sistema (como o coronelismo), mas de um comportamento mantidos pelos

interesses dos mandões que tem decrescido – segundo o autor – ao longo do tempo. O

mandonismo seria combatido (até desaparecer) na medida em que os direitos políticos e civis

(a cidadania) fossem disseminados completamente.

O clientelismo é outro conceito que chega a ser confundido com o de coronelismo.

Para José Murilo, tanto o clientelismo quanto o mandonismo são mais amplos que o

coronelismo, que, como estrutura, foi superada no século XX. A relação clientelística envolve

uma troca de favores entre dois lados, podendo ser mudados tanto os objetos de barganha

como seus atores; também não seria um sistema, mas uma rede de práticas variável no tempo.

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As relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá entre o governo, ou políticos, e setores pobres da população. Deputados trocam votos por empregos e serviços públicos que conseguem graças à sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo. Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida que os chefes políticos locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar com os eleitores, transferindo para estes a relação clientelística. (CARVALHO, 1997, p. 4-5)

Acredito ser oportuno entendermos como a teoria política contemporânea tem sido

costurada pelas principais matrizes explicativas do voto: a psicológica, a sociológica e a

econômica. No livro A decisão do voto, Marcus Figueiredo analisa a decisão eleitoral a partir

dessas três correntes. Destaca também a existência de uma forte base racional nas escolhas

políticas, contrapondo-se ao que defende o Paradoxo da Participação1.

A teoria psicológica do comportamento eleitoral – chamada de Modelo Michigan, por

ter nascido na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos – defende que indivíduos com

afinidade social e de atitudes costumam desenvolver comportamentos políticos semelhantes e

votarem no mesmo sentido, independentemente das condições históricas. As atitudes políticas

seriam amadurecidas pela psicologia humana e, posteriormente, socializadas de forma mais

ampla. As ações e interações políticas e sociais do indivíduo seriam fundamentadas num

alicerce psicológico estável e normalizado, com reações e articulações iguais em todos os

contextos.

A alienação política segundo os teóricos da explicação psicológica significa o

desinteresse e a rejeição consciente e completa do sistema político, como uma apatia, já que

os indivíduos acreditam não ser possível mudá-lo através de seus esforços. A alienação

constitui um sentimento de impotência política e, portanto, desinteresse. Na teoria Michigan,

a identificação partidária é determinante e os partidos antecedem os candidatos nas escolhas

eleitorais.

A corrente sociológica se preocupa com o contexto, com as condições sociais onde as

instituições, as ideologias e as práticas políticas se formam. Compreender o voto, como ato

1 A teoria política chama de Paradoxo da Participação o dilema vivido nas urnas pelos eleitores: cada um sabe que, isoladamente, o valor do voto não é potencialmente insignificante, o que lhe incentiva a não participar das eleições; por outro lado, o valor do seu voto aumenta na medida em que os demais eleitores desistem de participar, o que é um incentivo à participação. O paradoxo questiona-se, então, se o ato de votar é somente uma ilusão ou existe um fundo racional que dá ao eleitor a possibilidade de decidir as eleições. A solução do paradoxo estaria na sobreposição da motivação racional para a participação eleitoral.

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final de um processo, exige consideração sobre onde e como vive o eleitor; um ato individual,

mas resultante da interação social. Ao acreditar que o voto não pode alterar o status quo, o

eleitor opta pela saída; ao contrário da explicação psicológica, a impotência para mudança não

reside nos indivíduos, mas sim no voto. Segundo a matriz sociológica, as atitudes políticas

não surgem do nada, e a manutenção da coesão de um grupo requer enorme esforço e até

mesmo penalidades contra os desvios de comportamentos. As campanhas políticas procuram

justamente interagir os indivíduos, instituições e idéias em torno das atitudes grupais.

Para explicar a decisão do voto, a sociologia política prevê a existência de identidades

culturais ou da consciência de classe entre os indivíduos. Estas identidades surgem da

interação social a partir do regionalismo, do bairrismo, das semelhanças étnicas ou da

convergência de interesses.

Aqui todo tipo de organização social tem um papel fundamental, pois seus porta-vozes são interlocutores privilegiados. No processo de formação de identidades sociais, os partidos políticos, as organizações religiosas, sindicais, de bairro ou de defesa de qualquer coisa, concorrem entre si ou fazem alianças e acordos, para representar e promover os interesses das comunidades ou de segmentos específicos delas. (FIGUEIREDO, 2008, p. 61)

Para a tradição marxista da linha sociológica, a identificação política entre os

indivíduos nasce do posicionamento de classe (voto classista), na medida em que eles

socializam interesses fundamentais comuns. Mas a classe social só existe se houver

consciência de classe, e seu peso político-eleitoral depende essencialmente da proporção de

seus membros.

A última teoria, a econômica, acredita que o comportamento eleitoral é condicionado

por considerável racionalidade e por interesses econômicos. O voto passa a ter uma

funcionalidade estratégica e os indivíduos votam ao saber que seu ato lhe garantirá algum

benefício econômico ou social (individual ou coletivo). Para essa interpretação – que nega a

tradição psicológica – os valores cívicos, as ideologias e identidades são substituídas por

sistemas de interesses, e a economia determina se os votos são pros governantes ou para

oposição.

A decisão do voto estaria, então, sustentada num comportamento político-racional, já

que o eleitor opta pela alternativa satisfatória aos seus objetivos. Os eleitores votam pelos seus

bolsos, mas dividem-se em grupos diferentes: os que pretendem atingir apenas seus interesses

e os que se preocupam com a vida social e econômica de toda sociedade. Há, finalmente, os

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que votam com base nos interesses de um simples grupo. Segundo os economistas, votar no

candidato é diferente de votar no partido. A relação entre eleitor e candidato (especialmente

para as camadas mais pobres) é mais direta e imediata, e ele vota naquele que pode trazer, por

exemplo, luz, calçamento ou água pra sua vizinhança, independentemente do partido. A

escolha do partido, ao contrário, privilegia as mudanças de longo prazo e menos

individualizadas.

A análise deste trabalho apropria-se em maior grau das explicações sociológicas e

economicistas, notadamente por identificarem-se como teorias históricos-contextuais em suas

considerações sobre o comportamento eleitoral. Uma não exclui, necessariamente, a outra,

mas admitem, até certo ponto, a complementação dialógica em muitos de seus fundamentos.

Cabe aqui justificar a escolha do meu tema, resultado de condicionantes vários que

tecem e acompanham nossa vontade de “fazer História”. Escolha solitária, de uma experiência

complexa, de uma inspiração moldada pelos anos, de uma consciência necessária. Acredito

não ser possível fazer, em política, algo melhor que a liberdade mental e aguçar o sentimento

de desconfiança e incompletude do aparente. Pensado na solidão, mas possibilitado por várias

mãos, o trabalho foi engrenado na contramão do visível, na desbanalização das aparências,

mas também pelo desejo do enfrentamento (o quanto mais) racional.

O capítulo I apresenta uma discussão conceitual de questões como o coronelismo, o

clientelismo e suas modificações e heranças históricas; destaca como as relações políticas,

econômicas e sociais do Brasil foram acompanhadas por uma hierarquização que é

personalista e patrimonialista. O capítulo II compreende, inicialmente, uma análise do

panorama político de Conceição do Coité nas últimas décadas (concentrada, sobretudo, na

figura Hamilton Rios). A seguir, o capítulo apresenta as várias propostas de desenvolvimento

nacional emergidas no século XX; analisa as formas, perspectivas e problemas de intervenção

federal no Nordeste, bem como as estratégias de desenvolvimento comunitário construídas na

Bahia e em Coité. O capítulo III procurou-se com a análise (especialmente política) do

Distrito de Aroeira, lócus maior da pesquisa aqui realizada. Coube ainda refletir a questão do

desenvolvimento comunitário e apresentar considerações sobre a ADECAR, seu processo de

organização e consolidação históricas. O Capítulo IV é dedicado ao exame do comportamento

partidário da instituição, suas formas de atuação, seus objetivos implícitos, seu

posicionamento conservador e os resultados afirmados ao longo de 20 anos de existência.

Estudar o posicionamento político-partidário da ADECAR é, para além da

obrigatoriedade, um esforço visceral para apresentar uma nova possibilidade interpretativa,

uma leitura reconstruída ceticamente. A crítica (e sem limitar-se à militância) é componente

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primordial da interpretação realizada, podendo haver – e sempre há – caminhos ainda abertos

para outras perspectivas de análises. São justamente as incertezas que nos movem nos trilhos

das leituras e das escritas, e devem estar latentes igualmente para com o comportamento da

ADECAR. As certezas são sempre acompanhadas pelo perigo.

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CAPÍTULO I

Coronel, Um Conceito

Certa vez, ao conversar com um senhor de Aroeira, ele me contava as dificuldades que

o acompanhava em sua vida de agricultor. Embora possuísse uma roça particular para cultivar

os alimentos básicos de sua mesa, ele resmungava que mesmo na época da plantação os

obstáculos não cessavam. Ele reclamou dos excessivos gastos adquiridos na plantação,

preservação, extração e armazenamento dos grãos obtidos em sua propriedade, desconfiando

inclusive se os malefícios não superavam os benefícios da agricultura. Então retruquei,

alertando-o de que a Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira (ADECAR) é

um mecanismo competente que poderia minimizar os seus gastos durante a colheita, por meio

das máquinas que beneficiam todos os seus sócios. O senhor reclamou irritado, proclamando

que, apesar de ser um sócio da ADECAR, não usufruía democraticamente dos seus serviços,

destinados preferencialmente para os associados que bajulam os representantes políticos

locais que dão apoio ao presidente da entidade. Ficava tarde da noite e o senhor despediu-se.

Ele partiu, mas suas palavras permaneceram.

Casualidade a parte, este relato suscita um emaranhado de reflexões acerca do

posicionamento da ADECAR. Compreendê-lo exige a identificação das suas origens

históricas, dos seus sentidos pragmáticos e do seu jogo de interesses. Perceber a relação de

poder entre ADECAR e seus sócios requer detalhada análise dos seus fatores constituintes.

Nesse sentido, é necessário remontar aos comportamentos de mando e controle que sempre

definiram no Brasil a regra dos contatos sociais, políticos e econômicos de ricos e pobres,

administradores e administrados. Metaforicamente, o papel da ADECAR no relato descrito

guarda similitudes e nos recorda as ações dos antigos coronéis, poderosos e prestigiosos

senhores que eventualmente encontramos em nossa literatura, na televisão e na historiografia.

Em resumo, o presente trabalho intenciona basicamente compreender e discutir a

atuação política mantida pela Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira entre

1987 e 2008, realçando sua relação com a sociedade de Aroeira mediante a conjunção de

práticas coronelistas em defesa do situacionismo municipal no mesmo período. O marco

temporal escolhido para pesquisa refere-se ao ano em que a ADECAR foi fundada (1987) e ao

ano em que finalizou o terceiro governo municipal de Éwerton Rios d’Araújo Filho (2008).

Visto isso, torna-se fundamental a apresentação do conceito de coronel/coronelismo,

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pontuando sua origem e características históricas, seus mecanismos de atuação e as diversas

representações e interpretações que o fenômeno gestou ao longo da História.

Nos estudos de muitos historiadores, a gênese do coronelismo remete-nos ao século

XIX e, mais precisamente, aos anos iniciais do Império do Brasil. Embora o país

experimentasse, no período, uma complexa rede de transformações em suas estruturas

políticas, econômicas, sociais e culturais, convivia igualmente com um cenário de

permanências impiedosas. As elites protagonizaram a Independência em 1822 e mantiveram-

se atentas para não entregar o poder às classes populares em 1831. O discurso liberal das

elites confortou-se em práticas conservadoras. Uma permanência que, ao lado do latifúndio e

da escravidão, pode explicar a eterna instabilidade característica do Período Regencial.

As agitações de julho de 1831 no Rio de Janeiro provaram a ineficácia da Guarda

Municipal. A Câmara aprovou em 18 de Agosto do mesmo ano a proposta referente à criação

da Guarda Nacional. Substituindo as Guardas Municipais, esta consistia numa força

paramilitar, subordinada ao Juiz de Paz na esfera local, ao Presidente da Província e ao

Ministério da Justiça em última instância, posto comandado na época pelo padre Diogo

Antonio Feijó. Era composta de acordo com critérios censitários entre os brasileiros de 21 a

60 anos.

A partir de então a figura do coronel ganhou popularidade, com título derivado da

busca por policiamento regional e local sob controle da Guarda Nacional. Como chefe

político local que possuía uma alta patente militar logo se tornou o grande líder promotor dos

melhoramentos. A sua intercessão com as esferas governamentais apresenta-se como esforço

heróico aos olhos da população local, que será beneficiária com a implantação da escola, do

hospital, da igreja ou da estrada, por exemplo.

Em sua obra Coronelismo, Enxada e Voto, Nunes Leal conclui que o coronelismo é

um fenômeno complexo, com particularidades temporais e espaciais, mas que se caracteriza

por um recíproco compromisso (iniciado ainda no Império e consolidado na Primeira

República) entre chefes municipais denominados de coronéis e a situação política em nível

estadual. Nesse acordo, os primeiros conseguem angariar eleitores para o situacionismo do

Estado em troca de erário, empregos, favores e força política. De acordo com Nunes Leal, o

coronel era comumente um possuidor de terras e a extensão do sufrágio aos trabalhadores

rurais (em 1891, desde que alfabetizados) entra como ingrediente substancial na ampliação do

poder dos coronéis. Visto como rico, é o grande referencial para seus dependentes,

concedendo-lhes pequenos benefícios ou empréstimos.

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Especialmente nos municípios do interior, com predominância do rural e do

isolamento, os coronéis encontraram terrenos propícios, auxiliados pela imensa pobreza que

acompanham os trabalhadores rurais. Aos aliados (ou simplesmente obedientes aos seus

mandos) concede favores como pagamento de um sistema de compromisso pelo voto de

cabresto. Aos inimigos sobrava a perseguição, o mandonismo, a hostil e humilhante recusa

em prestar-lhes favores. O coronelismo, no entanto, passou a perder expressão a partir da

década de 1930. De acordo Nunes Leal, a crise ocorrida no sistema coronelista deve-se a um

conjunto de mudanças que se conjugaram fortemente. Destaca-se o código eleitoral de 1932, o

aumento populacional, a urbanização, a incipiente industrialização, a expansão dos meios de

comunicação e transporte. Estas mudanças minimizaram o poder da estrutura agrária de então,

que significava segundo Leal, a base do coronelismo. Com relação a esta questão, Leal

destaca que:

Todos estes fatores vêm de longa data corroendo a estrutura econômica e social em que arrima o “coronelismo”, mas foi preciso uma Revolução para transpor para o plano político as modificações de base que surdamente se vinham processando. O quadro político da República Velha refreou, quanto pôde, esse ajustamento, e finalmente rompeu-se por falta de flexibilidade. Mas o ajustamento aludido foi incompleto e superficial, porque não atingiu a base de sustentação do “coronelismo”, que é a estrutura agrária. Essa estrutura continua em decadência pela ação corrosiva de fatores diversos, mas nenhuma providência política de maior envergadura procurou modificá-la profundamente, como se vê, de modo sintomático, na legislação trabalhista, que se detém, com cautela, na porteira das fazendas. O resultado é a subsistência do “coronelismo”, que se adapta, aqui e ali, para sobreviver, abandonando os anéis para conservar os dedos. (LEAL, 1997, p. 283-84.)

Segundo Leal, o coronelismo foi se metamorfoseando de acordo as mudanças

ocorridas no campo político, econômico e social. Cedeu lugar a novas lideranças, mas o

fenômeno prossegue avante com novas veias de controle, de organização e de liderança,

alimentado pela dependência de novas classes, que muito lembram a pobreza dos

trabalhadores rurais do início do século XX. Assim, Leal conclui:

Continua, pois, o “coronelismo”, sobre novas bases, numa evolução natural, condicionada pelos diversos fatores que determinam o seu poder ou a sua autoridade. (LEAL, 1997, p. 19)

Para o autor, somente com o arruinamento da estrutura agrária haverá ponto final no

coronelismo. Do mesmo modo, a expansão da indústria, a mobilização da mão-de-obra, a

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urbanização, o aumento das vias de comércio e de transporte e a legalização dos direitos

trabalhistas conseguiam estabelecer novas perspectivas e referências para nossa realidade

política e, conseqüentemente, social, econômica e cultural.

Maria Isaura Pereira de Queiroz destaca em O coronelismo numa interpretação

sociológica que os coronéis contavam com inúmeras formas de concentrar poder, havendo

tanto uma relação de dependência econômica dos eleitores (dominantes e dominados) como a

troca de benefícios e favores, a distribuição de presentes em período eleitoral. A violência e a

opressão também estavam em uso quando o objetivo era angariar votos.

Paralelamente, os eleitores não concebiam valiosos créditos à importância do seu voto,

apelando para a usual prática de pedir. Seu voto, nessas condições, passou a representar

unicamente um bem de troca, um favor em retribuição aos benefícios recebidos. Ambas as

partes mantinham um diálogo de dependência mútua, mesmo que o coronel mantivesse um

clássico paternalismo.

Assim como Leal, Maria Isaura defende que a extensão do voto feita pela Constituição

de 1891 a todos brasileiros alfabetizados somente fez aumentar o número de eleitores rurais e

o poder dos coronéis. Ao invés de possibilitar a escolha do candidato mais capacitado, os

eleitores permaneceram votando naquele indicado pelo líder local, o coronel. Uma célebre

obediência reitera o compromisso:

A exigência de um coronel para que seus apaniguados votem em determinado candidato – imposição muitas vezes sem apelo – tem como contrapartida o dever moral que o coronel assume de auxiliar e defender quem lhe deu o voto. (QUEIROZ, 2004, p. 163)

A autora também aponta fatores que danificaram o coronelismo. A urbanização e o

crescimento demográfico são fatores que, ao lado da posterior industrialização implicaram em

crise na ordem coronelista, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. A cidade foge ao seu

controle, com uma multiplicidade de novos grupos, sujeitos a novas formas de organização,

trabalhos e serviços que tiravam os coronéis do centro dos acontecimentos. Por isso, Isaura

relata que:

Quando o desenvolvimento do país propiciou o aparecimento de uma sociedade cujos caracteres foram opostos àqueles, e que se apresentava como cada vez mais complexa na interdependência dos ramos de atividades perfeitamente distintas, então o princípio mesmo que permitira o aparecimento e a existência dos coronéis estava comprometido, e seu

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desaparecimento, num futuro mais ou menos próximo, estava selado. (QUEIROZ, 2004, p. 184)

Assim, a especialização do trabalho e a forte exigência de instrução num contexto que

já experimentava a industrialização acabaram transformando a própria sociedade. Mas o

fenômeno coronelista, segundo ela, ainda conheceu prolongamentos, sobretudo porque a

parentela (grupo de indivíduos com laços familiares) dos coronéis investia não somente na

atividade agrária, mas em diversos setores econômicos. Daí que seu poder passou a repousar

em novas diretrizes:

Dominando em parte a grande indústria, o grande comércio, as grandes organizações de serviços públicos ou privados; com membros seus exercendo as profissões liberais, os coronéis e seus parentes, possuidores além do mais de grandes propriedades rurais, se mantiveram nas camadas superiores da estrutura sócio-econômica e política do país, numa continuidade de mando que persiste, em alguns casos, até os nossos dias. (QUEIROZ, 2004, p. 185)

Em Os donos do poder, Raimundo Faoro aponta que antes de ser líder político, o

coronel era um líder econômico. O poder político exercido traduz-se como a extensão do seu

poder privado. Mas a capacidade de mandar não está exclusivamente na sua riqueza, sendo

possível haver coronéis que não possuem terras. Para Faoro “o coronel não manda porque tem

riqueza, mas manda porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito”.

Empenhado nas atividades políticas e na administração local, os coronéis elaboram

uma enorme interação com o governador, e deste para o âmbito da União. Numa relação

vertical, são os intermediários entre eles e os grupos que mantém contato:

O coronelismo se manifesta num “compromisso”, uma troca de “proveitos” entre o chefe político e o governo estadual, com o atendimento, por parte daqueles, dos interesses e reivindicações do eleitorado rural. (FAORO, 2004, p. 631)

O autor também aborda o domínio pessoal executado pelo coronel sobre seus eleitores.

Segundo ele, o fato de os eleitores acreditarem que estão vivendo socialmente livres acaba

eliminando a possibilidade de uma autoconsciência, de uma reflexão elaborada. Também

porque os coronéis não deixam transparecer um domínio, um controle de suas vontades. Eles

buscam meios “brandos” e “equilibrados” de relacionar-se com os eleitores, camuflando

diferenças indesejáveis e fazendo o eleitor votar por causa de um dever, de uma tradição.

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Em estudo feito sobre a política baiana, o coreano Eul Soo Pang analisa questões

inéditas de como o comportamento coronelista protagonizou a história política da sociedade

brasileira. Sua obra Coronelismo e Oligarquias 1889-1943 defende, ao contrário de todos os

outros autores revistos, que o coronelismo brasileiro tem sua raiz fixada no período colonial,

apesar de sua culminância situar-se entre 1850-1950.

Para Pang, a origem do coronelismo brasileiro tem como base o poder patriarcal e

privado exercido pelos senhores de engenho e fazendeiros de gado do século XVI. A

inexistência de um poder formal e forte dos portugueses possibilitou que essas classes

monopolizassem a política no Brasil. O poder privado foi estendido à esfera pública.

Imediatamente abaixo dos donos de engenho e fazendeiros encontrava-se um grupo

incalculável de dependentes. Essa dependência, que variava desde os feitores aos escravos,

legalizava o poder do senhor.

A dependência de uma força de trabalho de tantas camadas promoveu a elevação do patriarca-plantador a uma proeminência sócio-econômica em seu domínio ou em sua região; surgiu, entre os ricos e os pobres, um relacionamento patrão-dependente baseado num relacionamento de um superior com um inferior. Esse laço reforçou o paternalismo social, que o fazendeiro explorava habitualmente com finalidades políticas, e usava rotineiramente para justificar o exercício de poder no domínio público. Esse sistema de supremacia política de um só homem, cujo poder se baseava num status social e econômico privilegiado, é o antecedente colonial do coronelismo dos séculos XIX e XX. (PANG, 1979, p. 22)

Por outro lado, a estrutura agrária e a monocultura reprimiam até a maior parte do

século XVIII as tentativas de ascensão empreendidas por setores não-agrários. A aristocracia

rural, ao contrário, era a única beneficiária, na medida em que os interesses de sua classe

habitualmente se confundiam com as preocupações dos municípios.

Durante a monarquia e a república, o município continuou a servir de reduto do coronel-fazendeiro, que usava e abusava da região como se fosse seu domínio privado. A ausência de um Estado forte e centralizado, de 1850 a 1930, favoreceu o florescimento do coronelismo como sendo a única instituição viável de poder. (PANG, 1979, p. 23)

Para Pang, o posto de coronel surge ainda no século XVIII a partir das milícias

coloniais e não através da Guarda Nacional. Normalmente, o coronel era um dono de terras,

mas não era inédito encontrar esse posto entre membros de outros grupos, como comerciantes,

médicos, burocratas, professores, advogados e até padres (o caso célebre é o do padre Cícero,

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supercoronel cearense na República Velha).

De forma sumária, o coronelismo é a monopolização do poder, cuja fundamentação e

legitimidade advêm da aceitação do seu status como senhor absoluto, e do papel dominante

que exerce nas instituições sociais, econômicas e políticas. O período áureo desse

comportamento é, na visão de Pang, entre 1850 e 1950, exatamente a época de transição da

nação rural e agrária para a nação industrial. O Brasil vivia mudanças fundamentais em sua

economia e sua política, e o coronelismo emerge precisamente nessa época de crise e

instabilidade, funcionando em muitos casos como um estado informal no sertão.

Entre os clãs (que no caso brasileiro representa família extensa com influência sobre

membros consanguíneos e não-consanguíneos, incorporando dependentes sócio-econômicos

ou por motivos políticos) era comum a manutenção de grupos armados. Conhecidos como

jagunços ou capangas, esses homens comumente eram recrutados entre os dependentes do clã

e tinha participações cruciais em disputas de terras, de águas ou embates eleitorais.

Como os exércitos coloniais e imperiais eram pequenos e litorâneos, os clãs obtinham

a legitimidade da violência, especialmente no interior. Grupos armados sob controle dos

fazendeiros preenchiam o vazio deixado pela ineficácia da justiça e das leis reais ou imperiais.

A violência do coronel tinha status de legitima; seu poder privado era transposto para a

dimensão pública com aspecto de legalidade.

Nas palavras de Pang, a origem do título de coronel não é concomitante ao da Guarda

Nacional. No início do século XIX, o título já era familiar de certas categorias de nobreza

(duque, marquês, conde, visconde e barão), embora em número inexpressivo. O que a

fundação da Guarda Nacional provocou, na verdade, foi sua proliferação e até vulgarização.

Organizada a partir do modelo francês, a nova instituição assumiu (dentro do contexto de

alterações de 1831) a responsabilidade da polícia local, supervisionada pelo ministro da

Justiça e o governo provincial, na missão de garantir o cumprimento da lei; em pouco tempo

tornou-se instituição de prestígio tanto no sertão quanto no litoral. Laços familiares ou de

negócio com elites políticas de outros estados exacerbava o poder dos clãs coronelistas,

grupos dominantes formavam “estados dentro do estado”.

Durante o Império, a Guarda Nacional foi, paulatinamente, experimentando um

processo de partidarização. A concessão de honras militares ou cargos tornou-se

procedimento estratégico entre os partidos. Distribuídas para os que haviam prestado alguma

forma de apoio, a permanência dos beneficiários nesses cargos requeria a manutenção do

partido no poder.

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Não só a concessão de títulos tornou-se uma preocupação partidária, mas também a designação de um posto de comando tornou-se um importante trunfo políticos do partido dominante. Ao menos no papel, o controle das unidades da Guarda local assegurava ao partido o uso da força policial, um fator crucial nas eleições do império e da república. (PANG, 1979, p. 28-9)

Na sociedade da Primeira República, o título e o poder de comando do coronel

simbolizava uma invejável condição e potencialidade. Era preferível ser chamado pelo título

de coronel do que de “senhor”. Mais do que um delimitador de funções ou de suas atividades,

ele definia sua pessoa, sua influência e seu status num meio social onde se transformou em

referencial e centro.

Como artifícios, além da emblemática dependência eleitoral, os coronéis contavam

com a manipulação e as fraudes eleitorais no propósito de adquirir controle político local.

Funcionando como mais uma carta em suas mangas, as fraudes eleitorais talvez foram, ao

lado da violência dos capangas, a mais impressionante característica da República em suas

primeiras décadas. Não era estranho o coronel registrar na lista de votantes eleitores não-

qualificados; a exigência da alfabetização não era respeitada e muitos votos eram de

analfabetos, ou de pessoas de outros municípios. Distribuir roupas, sapatos, chapéus, dinheiro

e outros itens era costumeiro entre as oligarquias e seus eleitores.

Eleitores pagos e eleitores-fantasmas também “participavam” da eleição. A compra de votos era decididamente um subproduto do sistema capitalista, e daí derivou-se que o dinheiro tornou-se o principal instrumento para a permuta de bens e de serviços. […] Os fazendeiros e comerciantes precisavam de um relacionamento contratual para segurar os serviços de trabalhadores, e esse hábito de comprar serviços estendeu-se, sem dúvida alguma, à política eleitoral. (PANG, 1979, p. 35-36)

Encerada a votação, o resultado era analisado pelo legislativo estadual e federal.

Encontrar equívocos não representava ineditismo; por vezes o número de votos ultrapassava o

de eleitores. Desse modo, o resultado das eleições era o quociente entre as atividades dos que

controlavam o município (os coronéis) e as correções – normalmente tendenciosas – dos

mandatários do legislativo (presidentes e governadores).

A partir das fileiras de coronéis emergiam as oligarquias2. Embora haja larga

diversidade de definições sobre o termo (entendido, simplesmente, como o governo de

poucos), Pang considera que a maioria dos coronéis brasileiros pertencia ao que ele chama de

2 Ver os tipos de oligarquias da República Velha no Anexo 1.

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oligarquia familiocrática. Nessa categoria enxergamos quase que um protótipo da estruturação

coronelista: o chefe de uma família ou clã exerce influência dentro do município, dispensa

favores aos dependentes e conquista legitimidade no âmbito social e político. O chefe

estabelecia relações e servia de arbitro entre governo e população municipal, num período em

que as funções de um Estado desorganizado eram atribuídas aos coronéis.

Ao contrário da interpretação de Leal, Pang discorda da intrínseca relação entre o

coronelismo e a estrutura agrária. Segundo ele, a composição de classe no Brasil conviveu

com marcante diversificação de 1850 a 1950, o que significou maior participação de

advogados, comerciantes, médicos, funcionários e outras classes auxiliares na vida política

em todo o país.

Em suma, a afirmação de que a propriedade da terra é condição sine qua non para aquisição e exercício de poder político constitui-se num exagero. Na realidade, durante a Primeira República, a posse de terras e os padrões de distribuição, ou títulos de posse, tiveram pouca influência no florescimento do coronelismo. (PANG, 1979, p. 47)

A força do coronel baseava-se, para Pang, em sua habilidade de fornecer favores

sociais, políticos ou econômicos em troca de votos. Seu poder no interior estava regido por

um sistema de relacionamento aberto, e com maior nível de participação política dos seus

dependentes. Nas regiões litorâneas, e especialmente no centro-sul, surgiu um sistema social

fechado e autocrático. No Norte, Nordeste e Centro-Oeste o coronelismo simbolizada a

rejeição da autoridade do Estado, sendo a lealdade das massas canalizadas para os coronéis.

No centro-sul, os coronéis foram incorporados ao poder público; houve, na verdade, a

institucionalização do coronelismo.

Analisando a organização e o funcionamento da burocracia do Império do Brasil, a

obra A Construção da Ordem de José Murilo de Carvalho mostra a existência de relações e

pessoalidade mesmo entre os mais altos cargos do funcionalismo do país. A seu ver, a

burocracia era, antes de tudo, uma elite política não estamental, cujo segredo do sucesso

residia na sua não rigidez organizacional e na ilusão de acessibilidade que aparentava, a ponto

de conseguir cooptar forças inimigas.

A acumulação de poder provocada pela construção do Estado nacional (entre a

independência e em torno de 1850) colocava em evidência a necessidade de expandir para a

periferia do sistema a atuação estatal, de dispersar o funcionalismo público concentrado na

administração central (somente 11,61% dos empregados públicos eram da esfera municipal)

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Na ausência de suficiente capacidade controladora própria, os governos recorriam ao serviço gratuito de indivíduos ou grupos, em geral proprietários rurais, em troca da firmação de concessão de privilégios. (CARVALHO, 2003, p. 158)

Nesse intento, o Estado utilizava os serviços da Guarda Nacional, de delegados ou

subdelegados de polícias e inspetores de quarteirão. A burocracia imperial não transparecia,

segundo Carvalho, a implantação do modelo moderno pensado por Weber. Ao invés de buscar

a eficácia, a impessoalidade, a regularidade e a precisão, nossa burocracia sofria os males do

apadrinhamento, do patronato e da manipulação dentro do Estado.

A troca de favores não abrangia apenas nomeações e promoções. Os funcionários envolviam-se em práticas que hoje seriam consideradas corruptas, embora continuem freqüentes. Calógeras, por exemplo, comenta candidamente em suas cartas o fato de seus filho ter ganho alguns milhares de francos de comissão do governo por ter agenciado a compra de algumas canhoneiras para o Ministério da Marinha, cujo ministro era seu amigo. (CARVALHO, 2003, p. 160)

Logo, o funcionalismo também atendia as necessidades de natureza política e social.

Até o final do século XIX, o Brasil possuía, mesmo com uma burocracia menos instrumental

e complexa, um funcionalismo geral e federal maior do que os Estados Unidos.

A burocracia era importante para prover ocupações para os setores médios urbanos e mesmo para setores proletários; era também poderoso elemento de cooptação dos potenciais opositores, oriundos dos setores médios urbanos e das alas decadentes da grande propriedade rural. (CARVALHO, 2003, p. 164)

Era justamente essa inclinação para a dependência o sustentáculo do que Pang

denomina como coronéis burocratas. A política mantida por Juraci Magalhães após 1933,

como interventor na Bahia, é exemplo marcante. A centralização administrativa de Vargas

não apagou as marcas de uma ordem social que, inclusive, compactuava com o banditismo no

interior do Brasil e cooptava suas forças em vinganças pessoais ou apoio nas eleições.

Escrevendo num período bem posterior à Leal, Pang reitera que o coronelismo conseguiu

sobreviver após a década de 30, evoluindo para novas formas de administração oligárquica.

Portanto a modificação, e não o declínio do coronelismo, deveria ser o tema

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da história política depois de 1930. O impacto da explosão demográfica, a industrialização substituindo a importação e a conseqüente urbanização, a ascensão de um sistema multipartidário em 1945, e as crescentes tendências centrípetas da presidência federal, contribuíram para a modificação do coronelismo. Os coronéis tornaram-se os intermediários do poder dos diversos partidos, nas décadas de 1960 e 1970, ressurgindo, assim, como uma “nova elite partidária modificada”. (PANG, 1979, p. 62)

Forças públicas estaduais e o exército nacional retiraram, de acordo com Pang, a

importância militar dos coronéis e dissolveu as possíveis contendas entre seu poder particular

e o estado. No entanto, a Revolução de 1930 integrou o coronelismo oligárquico à política

nacional. O coronel personalista prendeu-se ao partido de modo disciplinado.

Nos alicerces do sistema político, os coronéis não só sobreviveram à revolução de outubro de 1930, mas também mantiveram mais uma vez seu direito de dominar o sertão como oligarquias familiocráticas. O sistema de clientela política continuou, com clientes antigos e novos patrões. Os novos patrões eram Juraci Magalhães, Juarez Távora e Getúlio Vargas. A revolução não derrotou os coronéis: os coronéis venceram. (PANG, 1979, p. 231)

Dentre as mudanças substanciais de 1945, Pang apresenta fatores modificadores do

coronelismo. O sistema de voto secreto reduziu a intervenção dos mandatários nas eleições. O

desenvolvimento econômico, a industrialização e a urbanização oportunizaram mobilidade

social e relativa independência das massas. A expansão das redes de estrada ligando o interior

e o litoral colocava fim no isolamento geográfico do sertão. A proliferação dos partidos de

inúmeras tendências e ideologias dividiu as facções e tribos de coronéis. Os governos

estaduais e federal em expansão após 1945 minaram o poder dos coronéis, tornando-se árbitro

e gerenciador das questões no interior. O Estado e os partidos deixaram, segundo Pang, de

dever favores ao coronel, e este passa a perder prestígio entre os eleitores; os favores políticos

não eram mais viabilizados pelos mandos locais. Por fim, a morte dos principais coronéis da

República Velha minimizava a capacidade de sobrevivência da estrutura coronelista. Ou seja,

o coronelismo perdeu seu papel de protagonista frente a uma nova elite social, vinculada ao

desenvolvimento e à modernização.

Em suma, o coronelismo chegou ao ocaso. Não desapareceu de todo, mas parece caminhar para o fim. Em certa época a violência e os favores políticos serviam aos coronéis como meios complementares de expandirem seu poder e obterem votos. O Estado, e às vezes o governo federal, recorriam a táticas igualmente nefastas para controlar os coronéis, mas esse

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tempo acabou. (PANG, 1979, p. 235)

Em estudo inédito acerca da região cafeeira do Vale da Paraíba no século XIX, Maria

Sylvia de Carvalho Franco analisa, em Homens Livres na Ordem Escravocrata, como eram

estabelecidas as relações entre os membros dirigentes da sociedade (normalmente os

fazendeiros) e os homens livres, como os sitiantes, os tropeiros, os pequenos proprietários e

os vendeiros.

Para a autora, tratava-se de uma sociedade onde a posição ocupada pelo indivíduo

dependia do seu grau de riqueza. E como havia a possibilidade do enriquecimento, estes

homens livres buscaram favores, serviços ou auxílio econômico dos fazendeiros. Dessa

relação nascia uma notável interdependência e uma fidelidade. O fazendeiro buscava não

demonstrar superioridade sobre o dependente, e este (num jogo harmônico e sem imposições)

garantia-lhe o apoio político em troca dos benefícios recebidos. Assim, a dominação pessoal

acabava eliminando a existência autônoma e o voto simbolizava a ratificação da lealdade, já

que:

Para aquele que se encontra submetido ao domínio pessoal, inexistem marcas objetivas do sistema de constrições a que sua existência está confinada: seu mundo é formalmente livre. Não é possível a descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem lugar como se fosse natural e espontâneo. Anulam-se as possibilidades de autoconsciência, visto como se dissolvem na vida social todas as referências a partir das quais ela poderia se constituir. Plenamente desenvolvida, a dominação pessoal transforma aquele que a sofre numa criatura domesticada: proteção e benevolência lhe são concedidas em troca de fidelidade e serviços reflexos. (FRANCO, 1997, p. 95)

Certamente, o comportamento político atual não demonstra as mesmas características

da República Velha. O coronelismo como sistema deve ter, como afirma Pang, cedido espaço

para novos paradigmas. Mas as práticas de mando e controle pessoal, social, político e

econômico estão tão vivas quanto antes. Basta observar como a nossa realidade política ainda

faz confusão entre o público e o privado. Basta analisar as práticas de hierarquias e

clientelismo com as quais convivemos.

Ao estudar o sistema social brasileiro, em Carnavais, Malandros e Heróis, Roberto

Damatta discute diversos temas, mas elege o rito “sabe com quem está falando?” como

alicerce para sua análise da conduta estabelecida no Brasil entre dominadores e dominados.

Defende a existência de uma estrutura social na qual a hierarquia dialoga com a intimidade.

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Relações pessoais entre os diversos grupos sociais constroem uma mediação vertical entre si,

a ponto de encontrarmos casos em que um subalterno utiliza esse rito contra outra pessoa

tendo em vista a identificação social estabelecida com seu chefe ou patrão. Para Damatta, a

expressão constitui-se numa revelação da identidade social, já que a seu uso não é privilégio

de uma categoria, grupo, classe ou segmento. Assim, tanto o empresário pode empregá-la para

evidenciar sua identidade, como seu funcionário pode integrá-la ao seu vocabulário como

mecanismo de projeção social. Nesse sentido, ser “motorista do Ministro”, “esposa do

delegado” ou “afilhado do prefeito” permite utilizar o “sabe com quem está falando?” como

um reforço de sua posição de superioridade frente ao receptor da mensagem. Num cenário

onde as relações de trabalho fogem da dimensão estritamente econômica e impessoal, valores

como a intimidade, a consideração e os favores definem as relações hierárquicas entre as

pessoas. O empregado torna-se membro de um sistema que o iguala horizontalmente com o

patrão e o impõe uma hierarquia vertical para com este. O sentimento de identidade e

compensação escondem e substituem um eventual confronto ou violência entre dominante e

dominado.

Quem usa a expressão “sabe com quem está falando?” é geralmente aquele que se

sente agredido. Após revelar sua identidade, ele torna-se o agressor, aquele que impõe seu

status, que consegue impregnar hierarquia numa relação entre iguais, pelo menos em termos

legal e jurídico.

O ritual de reforço analisado por Damatta camufla outra dimensão elementar para se

compreender a hierarquização dos iguais: as diferentes formas de cumprir a lei. Não é tão

revelador que, no Brasil, o sistema oscila entre cumprir a lei ou respeitar a pessoa. O “sabe

com quem está falando?” é sempre prosseguido por uma identidade que pode – e

normalmente consegue – desrespeitar as leis; o emprego da lei é guiado pelo jogo de

conveniências e pela latente distinção entre os superiores e os inferiores.

Para os adversários, basta o tratamento generalizante e impessoal da lei, a eles aplicada sem nenhuma distinção e consideração, isto é, sem atenuantes. Mas, para os amigos, tudo, inclusive a possibilidade de tornar a lei irracional por não se aplicar evidentemente a eles. A lógica de uma sociedade formada de “panelinhas”, de “cabides” e de busca de projeção social jaz na possibilidade de se ter um código duplo relacionado aos valores da igualdade e da hierarquia. (DAMATTA, 1997, p. 217)

Diante das leis, e de todo o universo de impessoalidade que a marca, nasce um

tratamento diferenciado e pessoalizante. No Brasil é evidente a dicotomia entre o indivíduo e

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a pessoa; dessa diferença decorre duas formas distintas de observar a sociedade e de fazer a

lei nela agir. Em frente às leis universalizantes, as pessoas voltam aos seus respectivos

lugares.

É como se tivéssemos duas bases por meio das quais pensássemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da repressão, seguimos sempre o código burocrático ou a vertente impessoal e universalizante, igualitária, do sistema. Mas, no caso das situações concretas, daquelas que a “vida” nos apresenta seguimos sempre o código das relações e da moralidade pessoal, tomando a vertente do “jeitinho” e da “malandragem” e da solidariedade como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a repressão foram feitas. (DAMATTA, 1997, p. 218)

Em um sistema pessoas que se conhecem, e que se complementam socialmente pela

bondade e pelos favores é mais interessante ser pessoa do que ser indivíduo. Nesse contexto

surgem as pessoas-instituições, reunindo aos seus pés uma clientela imensa. O mundo é

distribuído hierarquicamente, e nesse jogo repete-se a falácia de que o superior sabe o que é

bom para o inferior, para o povo. O inferior deve demonstrar generosidade, confiando

naquelas pessoas que o representa. Sempre manipulável, o povo (inferior) é englobado pelo

superior; o perigo de ser enganado ou ludibriado nos seus direitos é constante. A opinião e

ideologias do inferior não merece atenção, pois o povo é ingênuo e inocente.

Temos a caridade, nunca a filantropia (que é um sistema de ajuda ao próximo, voltado muito mais para a construção social), e assim reforçamos as “éticas verticais” que, ligando um superior a um inferior pelos sagrados laços da patronagem e da moralidade, permitem muito mais a perspectiva complementar das relações hierárquicas do que as antagônicas. O mundo é visto como composto de fortes e fracos, ricos e pobres, patrões e clientes, uns fornecendo aos outros aquilo de que eles não dispõem. (DAMATTA, 1997, p. 234)

Mas existe uma tendência dual até mesmo no nosso universo legal, pois as leis criadas

com a premissa da igualdade passam por reavaliações na sua prática, construindo uma

tendência individualizante e outra pessoal. As leis só devem ser aplicadas para os indivíduos

(aqueles que são indigentes e não possuem família, padrinho ou intermediário capaz de

conseguir um tratamento diferenciado) e nunca para as pessoas.

Desenvolvemos ao longo dos anos essa maneira de hierarquizar e manter as

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hierarquias do mundo social, criamos os despachantes ou padrinhos para baixo, esses mediadores que fazem as intermediações entre a pessoa e o aparelho de Estado quando se deseja obter um documento como o passaporte ou a nova placa do automóvel. (DAMATTA, 1997, p. 236)

É por conta disso que a lei não é vista como regra imparcial. Legislar é mais fácil do

que cumprir o que está no papel. O sistema legal tem sua aparência de universalidade

desmascarada pela moralidade pessoal, por aplicações vazias e pela manipulação de valores e

ideologias.

O trabalho de Chacon é plausível para percebermos como as práticas coronelistas não

estão muito distantes no tempo. Segundo ela, quando a modernidade alcança as regiões

interioranas, e mais especificamente o Sertão, os coronéis são forçados a rever seus métodos

clientelistas, passando a defender agora um discurso modernizador. O movimento não foi

unânime em todas as regiões, mas os coronéis se adequaram ao próprio projeto de

urbanização e produção capitalista.

Ou seja, surge um novo tipo de coronel em diversas regiões do país, embasado em

novos discursos, novas formas e novos instrumentos de poder. Para Chacon, a urbanização, ao

invés do que pensa Leal, não significou o fim dos coronéis; eles se adaptaram às novas

conjunturas, mudaram-se para a cidade, organização novas dominações e tornaram-se os

coronéis urbanos (constituídos principalmente pelos empresários). Embora com uma

roupagem de modernidade, estes coronéis conservaram muitas práticas eleitoreiras e a idéia

de mediação com o poder público.

O surgimento de novos atores políticos e também de novos conflitos, vindos a reboque da modernidade, vai mudar esse quadro de forças políticas, e o velho coronel é substituído aos poucos por funcionários públicos, tecnocratas que passam a deter certo poder, que se baseia em um suposto saber que decide onde é empregado o recurso para o desenvolvimento. E o novo coronel é o administrador de conflitos gerados a partir dessa nova configuração de forças, que limita seu poder e exige um esforço político e intelectual muito maior para manter o poder. (CHACON, 2007, p. 94)

Com base nas diversas análises sobre o fenômeno coronelista (seus termos correlatos e

subprodutos), creio ser o trabalho de Roberto Damatta o mais adequado e oportuno para o

estudo sobre a atuação da Associação do Desenvolvimento Comunitário de Aroeira

(ADECAR). As práticas do coronelismo da Primeira República sobreviveram ao tempo

(embora o sistema possa ter chegado ao fim) e construíram novas regras de relações sociais

hierárquicas e de mando, entre superiores e inferiores. Vemos, pois, comportamentos

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clientelistas triunfarem na política de Conceição do Coité no limiar do século XXI tendo

como sustentáculo o mesmo combustível do Império ou da Primeira República: a

dependência.

O diálogo com outros autores será fundamental, mas insistirei na análise de práticas

políticas da ADECAR que apresentam sutileza e aparente casualidade em sua performance,

mas que são crias conscientes, objetivas e potenciais de um comportamento mandonista e

clientelista dos interesses políticos-partidários. O coronelismo enquanto estrutura política foi

carregado pelo crepúsculo, mas suas práticas, suas estratégias e suas fundamentações ganham

novo colorido para sobreviver aos novos ambientes de adaptação. Um exímio coronel do

passado reconheceria no comportamento mantido pela ADECAR um teatro bastante

equivalente ao qual ele atuava – do ponto de vista da estruturação e dos ensaios de bastidores.

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CAPÍTULO II

A Política Recente de Coité e a Questão do Desenvolvimento

"História e poder são como irmãos siameses - separá-los é difícil; olhar para um sem

perceber a presença do outro é quase impossível". A frase de Francisco Falcon é cabalística

para o presente trabalho. A História da cidade de Conceição do Coité tem sido desenhada sob

a égide das ações políticas de "grandes" homens. Localizado na zona fisiográfica do Nordeste,

ao leste da Bahia, distante 210 km da capital baiana, Conceição do Coité possui uma área de

1.086,244 km² e uma população de aproximadamente 63 mil. Conhecida rotineiramente como

"A Capital do Sisal", a cidade produz e exporta admirável quantidade da referida fibra. A

agricultura e a pecuária do município são igualmente importantes para o seu dinamismo

econômico. Mas além dessas atividades, sua economia apresenta uma das maiores taxas de

crescimento dentro do Território do Sisal (seu PIB é inferior apenas ao de Serrinha3) por conta

da pujança comercial e dos crescentes investimentos industriais (notoriamente nos ramos de

calçados, de confecções, de beneficiamento do sisal e da produção de gêneros alimentícios).

Nesse capítulo farei uma breve análise da política recente de Conceição do Coité, entre

a década de 1970 e o início do século XXI, ressaltando, sobretudo, questões referentes ao

processo de construção das bases políticas, econômicas e sociais do período. Ainda neste

capítulo serão analisados os variados caminhos propostos pelo governo federal para o

desenvolvimento do Nordeste, além de propostas de intervenção realizadas pelo governo

estadual e o municipal no campo do desenvolvimento (principalmente comunitário).

No livro Conceição do Coité: a capital do sisal, Vanilson Lopes de Oliveira sinaliza

que sua obra representa o "primeiro livro histórico-cultural do nosso município", tendo em

vista a "autenticidade" e o "desprendimento" que julga caracterizar o seu discurso:

É como se fosse uma radiografia de uma localidade mostrando sua gente, seus usos e costumes, suas tradições e realizações. É uma radiografia em perfil de uma comunidade sertaneja pequena e simples, destemida e forte, por enfrentar as dificuldades do revés da natureza no sertão semi-árido. (OLIVEIRA, 1993, p.10)

Obviamente que não é possível esconder ou ignorar a importância dos trabalhos de

3 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas.

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Vanilson de Oliveira acerca de Conceição do Coité, apesar de apresentar carências em suas

reflexões. Segundo o autor, a cidade foi sendo modelada a partir de memoráveis feitos. O

povoamento do sertão por meio das Entradas e Bandeiras provocara o domínio e a expulsão

dos "perigosos índios" da região; a posição geográfica estratégica de Conceição do Coité era

utilizada como ponto de apoio para atividades comerciais, criação de gado ou passagem de

viajantes no interior da Bahia; e a existência da cuitizeira ou cuité (árvore de pequena

dimensão que inspirou o nome da cidade), utilizada para descanso das boiadas que passavam

e para estocagem de água em seus frutos (cabaças) para o uso nas distantes caminhadas pelo

interior, são registrados com realce na obra de Vanilson de Oliveira.

Em sua dissertação de mestrado Nossa Senhora da Conceição do Coité: Poder e

Política no Século XIX, Iara Nancy Araújo Rios aponta que, desse modo, Conceição do Coité

foi, do ponto de vista historiográfico, construído como local de dinamismo comercial,

proteção divina, cosmopolitismo e progresso. Segundo a historiadora, a memória do

município consolidou-se sobre os pilares mitológicos de sua fundação, de um passado

harmônico e predestinado ao desenvolvimento; idéia reiterada pela própria literatura regional.

O processo de construção da memória da cidade de Conceição do Coité se fez pelo silêncio de elementos do passado e pelo não-dito. Não porque não fosse importante, nem tivesse significado, mas porque se precisava construir um passado que justificasse a idéia de modernização e desenvolvimento, sem informações que contradissessem o mito de fundação. (RIOS, 2003, p. 39)

A autora pontua que o passado, não somente de Conceição do Coité, mas de toda

trajetória dos Sertões dos Tocós, revela-se nos estudos históricos sem a presença de conflitos,

de problematizações. O progresso da cidade é justificado pela evolução linear dos

acontecimentos, reafirmando a intencional balela de que Coité surgiu sem desigualdades

sociais e sem contendas.

Esta imagem de harmonia esconde os conflitos e tensões existentes em todas as sociedades, afinal, as relações sociais são permeadas pelas relações de poder, e onde há lutas pelo poder, há conflitos. (RIOS, 2003, p. 45)

Ou ainda, no plano da memória, podemos concordar que:

Confeccionou-se uma memória apenas com grandes homens e grandes eventos políticos, sem índios, sem negros e sem a participação do povo nas

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decisões e no processo social da cidade seguindo o caminho traçado pela história tradicional e, depois, positivista. (RIOS, 2003, p. 39)

Recupero essas idéias no desígnio de apontar a importância que elas podem

apresentar, numa perspectiva positivista, dentro da consolidação de uma mentalidade coletiva

positivada - e deturpada - a fim de reverenciar grandes líderes e de eleger determinadas

referências (políticas, sociais e culturais) a serem cultuados pelos vários grupos da sociedade

de Conceição do Coité. A construção de líderes, de discursos e de marcos norteadores dentro

do espaço social permite a massificação, a sobreposição dos interesses de um grupo sobre o

outro, e a consequente cooptação dos eventuais dissidentes.

No seu livro Conceição do Coité e os Sertões dos Tocós, Vanilson de Oliveira afirma

que o desenvolvimento sócio-político-administrativo do município compreende dois grandes

períodos. O primeiro deles foi liderado pelo líder político Wercelêncio Calixto da Mota,

construtor da “era de seu Mota” que:

Começou em 1928, quando foi intendente municipal, (cargo hoje correspondente a prefeito) e terminou em 1972, no governo de Dr. Manoel Antônio Pinheiro. Foram quarenta e quatro anos de administração, divididos em dezesseis prefeitos, tendo alguns exercito o poder por mais de uma vez, como é o caso do próprio Wercelêncio, e de Teócrito Calixto, seu sobrinho. Nesse período, o município cresceu, superando as cidades mais antigas da região: Riachão e Queimadas. (OLIVEIRA, 2002, p.88)

Nesse período, a autoridade política de Wercelêncio prevalecia como referência nas

sucessões de prefeitos, na ocupação de cargos públicos e na construção das regras

personalistas e carismáticas para a política oligárquica municipal. Como destaca Vanilson,

sob o controle de Wercelêncio assistiu-se um processo de modernização da cidade, com o

calçamento de ruas, a construção de estradas, tanques, açudes e imprimindo “à administração

um caráter de honestidade ilibada, digna de exemplo”. Todavia, apesar de modernizadora, a

política de Wercelêncio camuflava tendências coronelistas e conservadoras. A expressão

“Coité de seu Mota” ratifica uma mentalidade que vincula o município aos mandos e

desmandos de um administrador, de um chefe e seus correligionários, uma vez que “o poder

político de Mota era tanto que bastava indicar qualquer candidato postulante ao cargo de

vereador, ou a prefeito, independente do partido, ou do índice de rejeição, para que a pessoa

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fosse eleita”4.

O segundo período de desenvolvimento sócio-político-administrativo de Conceição do

Coité compreende-se entre os anos de 1973 até os dias atuais. Nessa nova etapa, o teatro

político de Coité também ganhou um novo dono, Hamilton Rios de Araújo (Mitinho). Mesmo

com raízes familiares vinculadas à posse da grande propriedade, Mitinho nunca se prendeu às

atividades agrárias; sua relação com a política, no entanto, certamente tenha decorrido de uma

herança familiar.

O seu avô, Antonio Felix de Araújo, por parte do pai, possuía uma patente de coronel da Guarda Nacional e, para ser adquirida uma patente daquela, tinha que ter recursos financeiros e prestígio político na Província da Bahia. Talvez tivesse sido do seu avô que lhe veio no sangue o gosto pela política. (OLIVEIRA, 2003, p. 75)

Uma análise atenta da política recente de Conceição do Coité pode, nessa finalidade,

demonstrar a permanência da mentalidade coronelista. A vitória de Hamilton Rios de Araújo

para prefeito permite uma leitura ambígua. Por um lado, assinala o término do período

político liderado por Wercelêncio Calixto da Mota e das vitórias conquistadas pela sua

equipe. Por outro, inaugura uma nova página na história política do município, marcada por

uma conjunção de práticas e tendências que relembram e ressuscitam o comportamento

coronelista do início do século passado.

Dessa vez, não mais a estrutura agrária servirá como esteio para seu poder. Hamilton

Rios já não usava o longo bigode dos coronéis da Primeira República, como o que José

Candido de Carvalho apresenta em O Coronel e o Lobisomem5. Era um homem de negócios,

bem-sucedido no comércio do sisal, mas que soube habilmente utilizar os favores e benefícios

em troca apoio político, poder e votos.

Para conseguir seus objetivos, montou um carro pipa e, interessado em votos, aproveitando o flagelo da seca de 1970, saiu distribuindo água nas roças e povoados, pregando que o prefeito, juntamente com seus aliados, não dava assistência ao povo. Durante dois anos, fez isso e muito mais: doou cestas básicas, materiais de construção: (cimento, tijolos, blocos, telhas…), passagem de ônibus e outros benefícios, a ponto das pessoas denominá-lo de “pai da pobreza”. (OLIVEIRA, 2002, p. 79)

4 OLIVEIRA, Vanilson Lopes de. Conceição do Coité e os Sertões dos Tocos. Conceição do Coité: Clip Serviços Gráficos, 2002. p. 76 5 Romance brasileiro da década de 60, que inspirou filmes e minisséries com o mesmo nome desde os anos 1980.

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De modo irônico, poderíamos dizer que, caso não existisse o voto, estas seriam ações

dignas da glória eterna. No entanto, esse comportamento é um remanescente óbvio da

Primeira República, um dos inumeráveis meios pelos quais um autêntico coronel procuraria

concentrar poder. Como bem pontua Pereira de Queiroz, a sutileza presente na relação de

dependência econômica dos eleitores (dominantes e dominados), na troca de benefícios e

favores e na distribuição de presentes em período eleitoral fazia do voto um bem de troca;

uma permuta em retribuição aos benefícios recebidos. Uma informação que chama atenção é

que as práticas clientelistas de Hamilton Rios já ocorriam entes mesmo de 1973; o

clientelismo é posto como um facilitador para cativar os eleitores.

A expressão “pai da pobreza” atribuída a Hamilton Rios alude fielmente a este

paternalismo coronelista. Um exímio coronel que busca aproximar-se dos seus subordinados,

a fim de eliminar os traços divisórios e contrastantes entre os dois. Sua postura objetiva

demonstrar identificação com o eleitor, como alguém que conhece suas dificuldades

cotidianas e que, inclusive, encara o pobre como um filho a ser cuidado.

A chegada de Hamilton Rios ao executivo de Coité ocorreu em pleno governo do

general Médice. Os Anos de Chumbo instituíram no pós-64 as novas diretrizes para as regras

políticas em todo o país. Em tempos de centralização político-administrativa, de Atos

Institucionais, de perseguições políticas, de censura e controle das oposições, o Estado

brasileiro mantinha grandes interesses nas esferas municipais de poder. Por conta da

importância de garantir legitimidade no âmbito municipal, o Estado procurou dialogar e

formular laços de intimidade com as elites locais. Tendo em vista a nova atmosfera política,

coube aos coronéis locais se adequarem, como nos lembra Chacon6, ao discurso de

modernização, de crescimento capitalista e de urbanização.

Em Conceição do Coité, no entanto, os bastidores políticos não estavam totalmente

delimitados pelos mandamentos do Regime Militar. As posturas racionalistas e moralizantes

emanadas verticalmente estiveram presentes (entenda-se esquecidas) mais em gabinetes que

nas práticas político-eleitorais, e Hamilton Rios abraçou o carisma, o populismo, as práticas

coronelistas e a dependência econômica como artifícios principais para ascensão.

Burocratização do poder e personalidade não se contradiziam localmente, completavam-se e

geraram uma coexistência estabilizada e profícua. Os juízos ditatoriais não tiveram

reprodução ipsis litteris pelas políticas municipais, o que não desfazia o vínculo servil.

Parecia, bem mais, uma harmonização vantajosa do que parecia incompatível; as lideranças

6 Ver Suely Salgueiro Chacon, O sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido, pp. 87-105.

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políticas de Coité vincularam-se à ARENA enquanto sobreviviam de práticas políticas como a

intimidade, a manipulação e o apadrinhamento.

A consideração anterior é análoga à visão de Roberto Schwarz sobre a presença de

idéias européias incorporadas impropriamente no Brasil. Para o autor, a ideologia liberal que

ancorou as lutas nacionais de independência permaneceu sendo contemporânea da escravidão.

Dessa forma, as idéias liberais inspiradas pelas revoluções francesa, inglesas e americana

estiveram, em nosso país, fora do seu ambiente previsível, se comparadas às experiências

precedentes. A escravidão deveria desmentir e tornar impróprio o liberalismo, mas nada disso

aconteceu. O Brasil burocrático, que queria se modernizar e se moralizar era o mesmo que,

especialmente no campo municipal, não desprendia sua política dos veículos clientelistas e

individualistas.

A política nacional posterior ao golpe militar estava repartida por duas facções, a

Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – reduto dos militares – e o Movimento

Democrático Brasileiro (MDB), que conjugava as oposições, e cada um com a possibilidade

de originar sublegendas. No município de Coité, tanto a situação como a oposição abraçou a

facção dos militares, definindo-se como Arena 1 a coligação do situacionismo e Arena 2 o

grupo da oposição. As investidas da Arena 2 contra os remanescentes do grupo de

Wercelêncio Calixto (Arena 1) era, no período, comandado por Evódio Ducas Resedá. Ainda

pelo Partido Republicano, Evódio perdeu as eleições de 1963 para Antonio Ferreira de

Oliveira, do Partido Social Democrático (PSD). Segundo Vanilson de Oliveira, em 1967, após

um pacto com a situação, Evódio apóia Teógenes Antônio Calixto como candidato único para

prefeito, a fim de receber semelhante apoio nas eleições seguintes. O acordo acaba em

desafeto e na eleição posterior (1970), Evódio perde novamente para o último herdeiro do

trono de seu Mota, Dr. Manoel Antonio Pinheiro.

A partir daquele ano, Hamilton Rios passa a contestar a permanência dos discípulos de

Wercelêncio Calixto na direção da prefeitura por mais de quatro décadas. Os sucessivos

insucessos de Evódio contribuíram também para facilitar a adesão a uma liderança da

“esquerda” (que também era ARENA). De qualquer modo, Hamilton transformou-se

paulatinamente no mais cogitado nome à candidatura pela oposição, “apoiado pelo grupo de

Evódio e por alguns dissidentes da situação, como foi o caso de Antonio Nunes, seu cunhado,

ex-vereador e ex-prefeito interino de Coité”7. O interessante é que o discurso de aversão à

longa continuação do grupo de Wercelêncio no poder feito por Hamilton foi imediatamente

7 OLIVEIRA, Vanilson Lopes de. Sisal, Suor e Poder: crônica de uma região. Conceição do Coité: Editora Clip. 2003. p. 76

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esquecido a partir de 1973. Antes da vitória, o discurso era conveniente e inspirava mudança;

depois dela, tornou-se obsoleto e a era Mitinho só precisa contar os dias para poder

comemorar o 40º aniversário de controle sobre a máquina pública de Conceição do Coité.

Nas eleições, Hamilton tinha do lado oposto Misael Ferreira Oliveira, apoiado por Dr.

Pinheiro, vinculado igualmente ao comércio do sisal, vereador e um expoente representante

do distrito de Salgadália. Com perfis político-ideológicos e bases econômicas parecidas,

ambos lançaram-se numa campanha eleitoral desenfreada. Segundo Vanilson Oliveira, a partir

dos anos 70 surgiram os estrondosos comícios, com passeatas de carros e multidões pela

cidade. Mas um grande diferencial do período foi, irrefutavelmente, o emprego desinibido das

práticas clientelistas. Os dois adversários passaram a escancarar a premissa de que “é dando

que se recebe” como estratégia política clientelista do imediatismo.

Foi a partir dessa campanha, que se deliberou em definito o clientelismo e o assistencialismo: “o toma-lá-dá-cá”. Muito antes, esse clientelismo era feito disfarçadamente pela política dos “coronéis”: João Amâncio, Wercelêncio, Eustórgio Resedá e muitos outros, e, também pelo comerciante Teócrito Calixto que doava uma gravata, um sapato, ou uma meia, para quem votasse nele. (OLIVEIRA, 2002, p. 78)

Visto assim, não podemos dizer que Hamilton Rios e Misael Ferreira montaram em

1972 uma nova rede de relações eleitoreiras; houve apenas um aprimoramento, uma

adaptação às demandas da urgência. Assim como na Velha República, é perceptível a pouca

importância que o voto, quase um século depois, representa para muitos eleitores. Seja pela

inconsciência política, por um compromisso tradicional ou pela apaixonante sedução que a

representatividade simbólica de um candidato ou facção constrói, muitos ainda acreditavam

que trocar seu voto não implicaria no resultado das eleições (isso relembra o paradoxo da

participação eleitoral discutido por Marcus Figueiredo).

Na monografia de especialização, Francisco de Assis Alves dos Santos (Assis da

Caixa ou Assis do PT) sinaliza que na história política de Coité os homens sobrepõem o

campo das idéias, onde os discursos são arquitetados para a personalidade e a desmoralização

das regras. No que tange à disputa entre Hamilton e Misael (1972), Assis é lacônico ao

defender que:

Desde 1972 os empresários do ramo do sisal Hamilton Rios de Araújo e Misael Ferreira de Oliveira, cada um de seu lado, têm tocado seus projetos políticos pessoais, desprovidos de quaisquer propostas de interesse público, e, em torno deles, reunido muitos defensores fiéis, alguns fanáticos. Ambos

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se notabilizaram pela prática do clientelismo e fisiologismo políticos (compram eleitores e aliados, distribuem e/ou prometem empregos públicos etc.). (SANTOS, 2000, p. 34)

A estes defensores fiéis mencionados por Assis foi direcionada uma sistemática

sedução simbólica. Doravante, uma visão maniqueísta foi estabelecida para o campo político

de Coité, buscando construir simbologias onde cada grupo procurava direcionar seus

interesses para o eleitorado em sua totalidade. A utilização de músicas em carros de som tinha

– para além da função conotativa da linguagem – o desígnio de apontar que um grupo era

melhor do que o outro. Pelos exemplos encontrados no livro de Vanilson Oliveira8, podemos

dizer que o sucesso simbólico de um grupo era definido mais pela difamação do adversário do

que pela apresentação de propostas, medidas e tendências necessárias à solução dos

problemas que afligiam a população coiteense. Nas últimas décadas, a política municipal tem

reservado enorme espaço à divergência entre a simbologia dos Azuis (representando todas e

quaisquer oposições) e dos Vermelhos (deturpação da coloração comunista que, em Coité,

passou a identificar os grupos da direita), independentemente dos problemas, significados,

inutilidades ou objetivos que essa cisão possa ter.9

Em entrevista de 06 de janeiro 2010, Assis destaca que, ideologicamente, a chegada de

Hamilton Rios ao poder em Conceição do Coité não representa uma mudança. Sua

singularidade política foi o comportamento personalista e mandonista adotado a partir da

década de 1970.

A personalidade de Hamilton Rios, essa sim fez diferença, porque ele era populista, mais do que seu antecessor, por exemplo, que era um médico, um cidadão muito calmo, com estilo assim muito pacato, Dr. Pinheiro, e o Hamilton Rios um sujeito mais populista de comer farofa nos motores de sisal, de ir pra aquelas farras dançar com as mulheres dos compadres ou aquelas pessoas simples. Então ele era mais populista, mais perseguidor, você pode olhar que médicos, professores e demais servidores públicos estaduais que não comungavam com as idéias de Hamilton Rios, que não obedeciam politicamente Hamilton Rios eram expulsos de Conceição do Coité, eram transferidos pra municípios distantes, o mais distante possível e tinham uma alternativa de ou se submeter a isso ou sair do serviço público. (…) esse estilo pessoal de Hamilton Rios fez toda diferença, porque ideologicamente eles não tinham muita diferença não, uma vez que todos seguiam os poderosos de plantão, que eram os militares e o governador biônico indicado pelos militares, de maneira que o que houve de diferença

8 Ver o livro Conceição do Coité e os Sertões do Tocós. 9 Para maiores informações sobre prováveis possibilidades de origem, os problemas e imperfeições construídos pela divisão Vermelhos x Azuis, consultar Francisco de Assis Alves dos Santos, Na mira dos coronéis: Cartas a um Professor Coiteense, p. 39-45.

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foi a personalidade de Hamilton Rios, populista, mandão, perseguidor. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)

Hamilton venceu Misael Ferreira para o mandato de 1973-1976 e de 1983-1988,

embora ambos apoiassem a ARENA dos militares. Nesse intervalo o executivo foi governado

por Walter Ramos Guimarães (1977-1982), apoiado inicialmente pela facção de Hamilton

(seu sobrinho, Éwerton Rios, casara-se com a filha daquele) e beneficiado pela emenda do

deputado Anísio de Souza que a Câmara aprovou em setembro de 1980, adiando as eleições

municipais daquele ano pra 1982. Walter era, do mesmo modo, comerciante do sisal e no seu

governo de 6 anos privilegiou reforma de estradas e construção de represas na zona rural

(apesar de muitas serem ofertadas como propriedades privadas em todo município). Seu

governo destacou-se também pela pavimentação de ruas em Coité e em povoados, a

construção do Hospital Nossa Senhora da Conceição (hoje Almir Passos) na Sede e postos

médicos em alguns povoados, a implantação de uma torre repetidora de TV e a construção do

Centro de Abastecimento em Coité.

O apoio de Walter ao governador Antonio Carlos Magalhães era incondicional, até

porque sua administração dependia da bajulação ao coronel estadual. Hamilton, por outro

lado, não desejava perder o gosto pela política, e cobiçava manter-se como autoridade na

política municipal ainda na Gestão Walter. Sua interferência política causou um período de

embate entre os dois, e o prefeito passou a apoiar Misael Ferreira, candidato rival de

Hamilton, para sua sucessão em 1983.

A revista Estados e Municípios10 publicou o evento de 10 de junho 1982, na

Associação Cultural Castro Alves, no qual Walter Ramos foi premiado com o título de

“Prefeito Expressão Nacional 81/82” pelo jornal Correio de Recife (cuja tendência, expressa

pelo seu representante Viriato Rodrigues, sinaliza uma completa afinidade com a Ditadura).

Todas as autoridades presentes (municipais, estaduais e federais) reafirmaram a necessidade

de eleger Misael Ferreira como sucessor para o executivo, e o próprio Walter encerra seu

pronunciamento com um apelo aos fiéis eleitores: “A única retribuição que quero de todos

vocês é a escolha de Misael Ferreira, em 15 de novembro para prefeito da cidade. Assim

procedendo, vocês terão a minha eterna gratidão”. Como História não é Ciência Exata,

Hamilton venceu nas urnas e ficou no Executivo até 1988.

Nas eleições seguintes, Hamilton passou o trono para seu sobrinho, Éwerton Rios

D’Araújo Filho (Vertinho), que é o campeão de mandatos, 1989-1992, 1997-2000 e 2005-

10 Revista da Associação Brasileira de Municípios, Ano VII – Nº. 58 - 1982

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2008. Eleito nas duas primeiras pelo Partido da Frente Liberal (PFL) e na última pelo Partido

Progressista (PP), Vertinho migrou em 2009 para o Partido da República, liderado no Estado

por César Borges. Hamilton também treinou seu filho, Wellington Passos de Araújo (PFL), o

Tom, para uma gestão (2001-2004) que se misturou a escândalos, como o financiamento da

COTESE, fábrica do seu pai e do irmão Marcelo Passos, com recursos públicos do município

e do Estado (irregularidade constatada pelo Ministério Público) ou o fato do prefeito se

ausentar com freqüência da cidade. O fato é que Tom terminou seu governo com baixa

popularidade (problema indissolúvel até hoje) e a sucessão foi ocupada pelo terceiro mandato

de Éwerton Rios. Para o interstício entre 1993-1996, Coité elegeu Diovando Carneiro Cunha

como prefeito, um dissidente do grupo de Hamilton Rios que, mesmo vencendo “o grande

chefe”, sua gestão não pode ser entendida como uma ruptura feita pela esquerda, afinal sua

orientação política era uma reprodução da dos seus antecessores, e a relação de favores entre

sociedade e poder público se repetia – como se repete até hoje – de modo intacto.

Após 40 anos de Era Mitinho, podemos constatar, entretanto, que o município está

longe de solucionar problemas graves administrativos. Além da enorme concentração de

renda (a cidade tem o segundo maior PIB do Território do Sisal e, ao mesmo tempo, 10 mil

famílias cadastradas no Programa Bolsa Família) há déficits em áreas fundamentais de uma

administração, como a educação básica, que ocupa a 357º posição dentre os 417 municípios

baianos11. Sobre os problemas municipais, Assis afirma que:

Se você for analisar um município com 63 mil habitantes que não tem um único hospital público, (…) os estudantes tem uma nota média 2.6 nos exames sérios que são realizados pelo Estado e pelo Governo Federal pra aferir a capacidades dos alunos, se você for olhar um município que detém uma Escola Agrícola há vinte e tantos anos e que nunca formou um técnico agrícola, que possui um CAIC que seria uma escola em tempo integral, em tese, que tem toda uma estrutura física, que tá depredada e que nunca funcionou como escola em tempo integral, enfim, se você for olhar como andam as estradas, como andam as aguadas do município, se você olhar como são estabelecidas, como são realizadas, como se dão as relações da sociedade civil organizada, da população em geral com o poder público, aí você vai concluir que é um desastre administrativo. Agora, o grupo teve competência, entre aspas, pra se manter no poder por quatro décadas porque trafica influência nos órgãos públicos, manipula empregos públicos, adotou um esquema administrativo patrimonialista, enriqueceu-se, fortaleceu suas empresas, conquistou empresas à custa do erário e com isso tem muitos empregos, muito dinheiro, usa… usa arbitrariamente os órgãos e o dinheiro

11 Disponível em http://www.inep.gov.br/download/Ideb/Resultado/republicacao/Divulgacao_4serie_Municipios.xls, acesso em 8 de janeiro 2009.

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público, públicos no caso, e com isso se perpetua no poder, comprando votos, comprando apoiamentos e fidelizando os eleitores mais carentes através duma ambulância, da oferta de um emprego público. Enfim, é dessa maneira, com o desastre coletivo, mas com o sucesso grupal daqueles que detém o poder que eles tem se mantido durante quarenta anos. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)

Segundo Assis, até o final da década de 1990, a oposição ao grupo de Hamilton Rios,

feita pelo grupo dos Azuis (especialmente por Misael Ferreira), não fazia oposição

sistemática, fiscalizando abusos de poder, do dinheiro público e desvios de recursos pelos

Vermelhos, nem mesmo uma oposição efetiva na Câmara. Ao invés de uma regularidade, a

esquerda só se organizava às vésperas das eleições, favorecendo novas vitórias da facção de

Hamilton. A histórica oposição de Misael caiu por terra nas eleições 2000, quando apoiou

Tom, filho do seu principal adversário, Hamilton Rios. Por um lado, esse fato recrudesceu o

poder da direita (PFL e o Partido Progressista Brasileiro), mas por outro foi o momento em

que o PT aproveitou para delimitar o espaço de uma nova – e diferente – esquerda.

Foi um vácuo muito bem aproveitado pelo PT, foi ali que o PT teve candidato próprio, e a partir dali o PT, em 2004, veio como vice e em 2008 já veio com candidatura própria obtendo mais de 42%, de maneira que eu acredito que pela primeira vez os Vermelhos estão tendo uma oposição que faz política o tempo inteiro, os quatro anos, que faz oposição, que vai à Justiça, que denuncia abusos e que visita a população. Enfim, uma oposição que de fato e de direito atua. Isso tem deixado os Vermelhos preocupados, olha que eles estão começando a se dividir. A gente vai assistir essa divisão nas próximas eleições agora em 2010, (…) uma característica, talvez a principal, do grupo dos Vermelhos é que eles são monolíticos, eles nunca se dividiram numa eleição municipal, a gente não sabe se eles vão conseguir levar adiante isso na eleição de 2012. Mas que eles estão tendo, pela primeira vez, uma oposição atuante, que é o PT, isso estão, eles estão tendo o PT nos calcanhares deles e eles temem o PT em 2012. Agora não pense o PT que vai ser fácil derrubar alguém que tá há 40 anos no poder com todo no round, não vai ser fácil, mas vai ser uma campanha boa em 2012. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)

Historicamente, as grandes dificuldades das oposições têm sido justamente a

inexistência de uma liderança forte – excetua-se aí a organizada oposição pensada pelo Dr.

Yêdo, mas que veio a falecer antes das eleições de 1988 –, o enfrentamento da máquina

pública e do poder econômico, utilizados descabidamente pelo grupo de Hamilton Rios, e,

finalmente, o fato de que a oposição nunca repetiu seu candidato em duas corridas eleitorais

consecutivas. Segundo Assis, o PT de Conceição do Coité tem encontrado no passado as

lições para a construção de sua luta e de uma nova administração.

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A Questão do Desenvolvimento

As reorientações ocorridas nas esferas políticas e econômicas do Brasil a partir da

chegada de Getúlio Dornelles Vargas à presidência devem ser observadas, necessariamente,

como uma decorrência de influências internacionais. O recuo da estrutura agrário-exportadora

e a incentivo à proeminência urbano-industrial para o país a partir de 1930 explanava as

intenções de viabilizar um desenvolvimento autônomo e nacional, onde a industrialização

fosse capaz de substituir as importações e dinamizar a própria economia brasileira.

A crise de 29 obrigou os Estados cuja economia assentava-se fundamentalmente na

exportação de produtos primários (como o caso do Brasil) a tomar medidas de proteção de

suas economias. Mas além de uma política de valorização do café, o Estado brasileiro tornou-

se um participante altamente ativo na economia do país. Segundo Gil Célio de Castro

Cardoso, no livro A Atuação do Estado no Desenvolvimento Recente do Nordeste, fatores

como a fragilidade da nascente burguesia, a fragmentação cultural e a baixa coesão da

sociedade, a forte tradição paternalista/cartorial e a restringida consciência histórica dos

segmentos sociais foram fundamentais para a sobreposição do Estado nos rumos da economia

do Brasil.

O golpe de 1930 tinha colocado no poder um grupo bastante heterogêneo e com fortes

antagonismos de interesses, já que Vargas tivera que angariar apoio entre diversos setores da

política nacional, entre grupos de latifundiários e oligarquias regionais. Como solução para as

intranqüilidades e as pressões desse panorama, o Estado optou por uma intervenção

econômica centralizadora, autoritária e técnico-burocrática, como vemos no dizer de Gil

Célio:

Assim, sob a bandeira da defesa dos interesses das massas populares, mas efetivamente representando os interesses da burguesia, o Estado assume a condução do processo de industrialização nacional, pois a burguesia brasileira não dispunha de recursos suficientes para conduzi-lo de forma autônoma, dada sua baixa capacidade de investimento. Esse fato fará com que essa industrialização se torne dependente da ação do Estado, que naquele momento era o único que possuía meios de promover a captação e distribuição dos recursos necessários à dinamização do setor industrial, reforçando o caráter centralizador vivenciado na experiência brasileira. (CARDOSO, 2007, p. 86)

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Montar as bases para o desenvolvimento industrial não era tarefa fácil; requeria-se

aumento de capital, tecnologia sofisticada e comprometimento empresarial. O modelo de

industrialização proposto pelo Brasil foi até mesmo defendido, posteriormente, pela Comissão

Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) e serviu como referência para quase todos

os países latino-americanos, bem como para experiências em muitos países subdesenvolvidos

em todo o mundo.

Com o fim da Segunda Guerra ocorreu um recrudescimento da intervenção feita pelas

economias mundiais, tanto as desenvolvidas como as emergentes. A demanda por

rejuvenescimento fez com que o “estado mínimo” cedesse espaço para a progressiva

intervenção do Estado. A propósito, esta intervenção era também reflexo imediato do mundo

bipolar existente no segundo pós-guerra.

Durante esse período o Estado deixa de ser apenas um agente regulador do sistema econômico, conforme os ditames da teoria liberal, assumindo também os papéis de planejador, financiador e empresário no processo de desenvolvimento, situação que se manteve praticamente inalterada até a década de 1980. (CARDOSO, 2007, p. 23)

No entanto, Gil Célio destaca que o intervencionismo estatal sustentado no

planejamento, como veículo para promover a industrialização, só ocorreu no Brasil com o

Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. O país não possuía as condições industriais para

sustentar-se como Estado de Bem Estar Social e, portanto, optou pela intervenção

desenvolvimentista. Com JK, o governo gerenciava a entrada de capitais externos privados,

orientando as prioridades de investimento e a associação deste com o capital privado nacional.

Segundo o autor, o tempo determinou as regras para a intervenção estatal; ou seja, quanto

mais tardio foi o desenvolvimento de um país maior foi a presença do Estado atuando como

financiador, empresário e planejador.

Ao longo das décadas de 40 e 50 a industrialização planejada pelo Estado recebeu

novos incentivos. Os empreendimentos centralizadores eram tidos como requisito para o

crescimento econômico do Brasil e para garantir à sociedade melhores taxas de qualidade de

vida.

O Brasil da década de 60, no entanto, foi incapaz de sustentar o acelerado retornou das

políticas econômicas de até então. Muito pelo contrário, o que caracterizou esta década foi o

declínio dos crescimentos do produto interno e a incômoda pressão inflacionária, provocando

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redução da atuação do Estado e sua fraqueza perante às reivindicações dos diversos grupos

econômicos da sociedade.

Sob o comando dos militares, a política econômica do Brasil objetivou basicamente

reduzir os níveis de inflação, conter os déficits públicos e incentivar novos investimentos

estatais. Como resultado, podemos concordar que o chamado milagre econômico dos anos 70

consolidou um processo de industrialização iniciado nos anos 30 que, apesar de tardio e

priorizando a ordem quantitativa de crescimento, conquistou relativo êxito.

Entretanto, o desenvolvimento substitutivo das importações feito pelo Brasil provocou

uma série de problemas sem solução até hoje. Em primeiro lugar, privilegiou-se o crescimento

econômico na região Sudeste, ocasionando retardamento e estagnação dos campos

econômicos e políticos nas outras regiões (especialmente nas Regiões Norte e Nordeste). Os

lucros do desenvolvimento sob as ordens do Estado e como plano de integração nacional

foram repartidos basicamente por uma parcela minoritária da sociedade: as elites tradicionais

do agro-negócio e os industriais concentraram as riquezas do país à custa da pobreza da

maioria dos brasileiros.

Além disso, o Estado não permitiu que a participação social se fizesse presente nos

destinos do desenvolvimento. Era como se a participação da sociedade fosse nociva aos

propósitos tecnocráticos e quantitativos advogados pelo governo. Esse juízo favoreceu a um

crescimento com alarmantes desigualdades dentro de uma mesma Região e comprometeu o

próprio dinamismo econômico. Dentro do país, só uma reduzida parcela da sociedade possuía

condições de demandar os produtos oriundos da fabricação industrial em série. Com relação

às desigualdades provocadas por este desenvolvimento, Gil Célio aponta que:

Este crescimento não se mostrou capaz de alterar a realidade de desigualdades vivenciadas no País, que continuou a ser marcado pela injustiça social, sobretudo quando se trata de variáveis como distribuição de renda e desigualdade regional. (CARDOSO, 2007, p. 96)

Os Anos 80 e o Novo Paradigma Nacional para o Desenvolvimento

Os anos de 1980 foram marcados tanto pela redemocratização política do Brasil como

pela crítica ao modelo de intervenção tecnocrática cultivada pelo Estado. O

desenvolvimentismo estava condenado pela crise do autoritarismo, pela incapacidade de

manter o ritmo de expansão econômica, pelo endividamento do Estado, pela insuficiência do

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aparelho fiscal, pelo quase imobilismo dos recursos externos e pela incapacidade de abastecer

os interesses dos vários grupos sociais descontentes com a política econômica nacional.

Na perspectiva de solucionar os problemas, as promessas do neoliberalismo

(encabeçado pelos Estados Unidos e por organismos internacionais como o Banco Mundial e

o FMI) nortearam a retirada do Estado da economia e a adesão aos princípios do mercado

livre. A sociedade civil, por outro lado, também é convocada a protagonizar escolhas feitas na

economia e na política.

Nesse novo contexto, cabe à sociedade civil, um papel de destaque, cumprindo-lhe, entre outras coisas, a tarefa de macro-regular as estruturas do poder econômico e do poder político, acompanhando e interagindo com estes, num flagrante processo de complementariedade às ações do Estado e do mercado, ainda não observadas na história, materializadas a partir das seguintes ações: co-regulação, apresentação de propostas e soluções no nível local e, fundamentalmente, o desenvolvimento da cidadania com a criação de espaços éticos e políticos nas comunidades. (CARDOSO, 2007, p. 24)

A descentralização das políticas públicas estabelecida pela Constituição de 1988

favorecia esse cenário, já que os municípios passariam a desempenhar na esfera local funções

que até o momento era de responsabilidade exclusiva dos órgãos de planejamento do Estado.

A década de 1990 foi palco da materialização de inumeráveis canais de participação social,

substanciada na democratização do poder, no fortalecimento e na autonomia dos grupos

sociais, autorizados a opinar acerca dos deveres, dos limites, das prioridades do Estado. Nessa

nova conjuntura, as premissas democráticas garantiam que a sociedade teria o direito de:

Estabelecer as formas da ação do Estado em áreas essenciais para a estabilidade societária e o desenvolvimento; requerer eficiência na administração e prestação de serviços públicos; exigindo representatividade e participação no processo político, legitimado pela escolha democrática dos agentes dos poderes públicos, por sua submissão ao interesse coletivo e pelo controle sóciopolítico de suas decisões. (CARDOSO, 2007, p. 103)

A partir da redemocratização, os espaços de decisões políticas no Brasil integraram,

quase que como regra, as idéias de participação social e sustentabilidade às suas pautas de

discussões. Emergia, assim, uma nova página política na qual o Estado buscava dialogar com

os atores sociais (organizados), cujo intento maior seria proporcionar alternativas para

prosperidade, participação, transparência e imparcialidade (CARDOSO, 2007, p. 104).

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Assim, a estratégia de desenvolvimento local aparece como uma alternativa de se criar um entorno favorável à autogestão das comunidades, fortalecendo o movimento comunitário através da delegação de poderes, que ganham força e credibilidade na fiscalização do poder público, ao mesmo tempo em que contribuem para: a sustentabilidade (entendida nas suas mais diversas dimensões) do local definido; a construção de um novo padrão de gestão pública; e o surgimento de uma nova relação entre Estado e Sociedade. (CARDOSO, 2007, p. 24)

Como vimos, o movimento comunitário, como espaço para a participação democrática

da sociedade, ganha ênfase no novo paradigma de desenvolvimento. Certamente, as

influências dessa nova tendência política e social contribuíram para a experiência de

descentralização política e administrativa ocorrida no governo na Frente Popular, na gestão de

Jarbas Vasconcellos como prefeito da cidade de Recife, entre 1986 e 1988.

No livro Poder Local e Participação Popular, José Arlindo Soares e Salvador Soler

Lostao destacam que a experiência de Recife, com a proposta de Prefeitura nos Bairros, era

decorrência da necessidade de ruptura com o passado autoritário, tecnocrático e impopular

dos militares. Criaram-se canais institucionais de participação da sociedade, nos quais os

movimentos sociais organizados pudessem dialogar com os órgãos da Prefeitura de Recife,

interferindo nas decisões, na descentralização e na democratização da gestão municipal. A

cada região da cidade cabia definir as prioridades do governo e fiscalizar as ações municipais,

sem distinções de ordem política, como nos mostrar Arlindo Soares:

O poder municipal considerava necessário a criação de canais institucionais capazes de incorporar todos os segmentos organizados da população, respeitando a diversidade de interesses e a pluralidade política. (SOARES, 1992, p. 29)

Segundo Salvador Soler, o Brasil redemocratizado era resultado de uma “transição

hegemônica”, uma vez que as instituições provenientes das mudanças ainda espelhavam a

cobiça pelo status quo aspirado pelos grupos sociais hegemônicos ao longo da Ditadura.

Apesar disso fazia-se necessário mudar o olhar sobre o Estado após 1985. Ao contrário da

visão difundida nos anos anteriores, era preciso, nesse novo momento político, não perceber o

Estado como inimigo, insensível ao diálogo e adverso às propostas democráticas de

participação popular. Pelo contrário, a participação social prometia retribuir os seus agentes

com novos espaços políticos de confrontação, de diálogo e de ganhos concretos.

Assim como Recife, todo o Nordeste passou a incorporar, principalmente ao longo da

década de 1990, a estratégia da participação como condição necessária para edificar a

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sustentabilidade, para minorar os impactos excludentes da globalização, para gerar o

desenvolvimento local, a inclusão social, novos empregos ou mesmo melhorar a qualidade de

vida da população engajada nesse projeto que atrelava sociedade e poderes públicos.

Esta nova institucionalidade é construída pela formatação de parcerias entre os diversos atores sociais envolvidos no processo de desenvolvimento local, com destaque para o Estado, sobretudo o poder público local, que deve exercitar uma municipalidade aglutinadora, animando o desenvolvimento local no nível de atividades produtivas que visem a geração de emprego e renda, e não simplesmente atuar como um mero repassador de escassos recursos percebidos do poder central. A experiência demonstra que o engajamento do elemento público, legal e legítimo, na formatação de alianças concretas para problemas concretos, pode fazer a diferença no processo de desenvolvimento local. (CARDOSO, 2007, p. 115)

Desse modo, podemos dizer que o cidadão-participante desse processo não é um

simples coadjuvante. Mesmo com a presença do Estado, ou do poder público municipal, as

relações traçadas pelo desenvolvimento local garantiriam aos sujeitos o papel de protagonista

dentro de seu ambiente local, dentro das decisões relativas às demandas locais. A

institucionalização do desenvolvimento não deveria excluir o poder de expressão,

participação, decisão e usufruto democrático daquilo que pertencia aos sujeitos envolvidos.

As políticas governamentais têm incorporado, desde então, o tema da participação

popular. Contribui para isso não somente as pressões sociais, mas especialmente pela sua

compreensão enquanto uma facilitadora dos planos de desenvolvimento e da gestão

governamental (notadamente no nível local de poder). Entretanto, a larga participação em

canais institucionais acabou neutralizando a própria capacidade de enfrentamento e

reivindicação mais intensa dos segmentos sociais. As muitas promessas de incentivo à

participação acabaram colocando as inumeráveis exigências populares embaixo do tapete

político.

O entusiasmo inicial da participação, hoje, tem diminuído. Em parte porque, na compreensão do Estado como “ente” inimigo, a participação tem sido entendida como alternativa de luta que substitui as mobilizações de rua. Nesse sentido, revelam-se como ineficientes para obter melhores resultados concretos as reivindicações formuladas pelas associações de bairro. É como ter entrado na boca do leão e ter sido engolido por ele (SOLER, 1992, p. 78)

A intervenção federal no Nordeste: concentração de renda e problemas regionais não

esgotados.

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Segundo Gil Clécio, a intervenção do Estado no Nordeste do Brasil ocorreu a partir de

duas problemáticas: a seca e a carência de infra-estrutura econômica. Entre o último quarto do

século XIX e a primeira metade do século XX, a seca foi preocupação central (fase

hidráulica), cabendo à Inspetoria de Obras contra as Secas (IOCS) – transformada no

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas em 1945 – e à Companhia Hidrelétrica do

São Francisco (CHESF) solucionar os problemas das secas e do abastecimento de energia,

respectivamente. A partir da década de 1950 privilegiou-se as tentativas de impulsão para a

economia da região (fase econômica), sob comando das ações da Superintendência para o

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Banco do Nordeste do Brasil (BNB).

Mesmo sendo uma região historicamente importante na economia brasileira, o

Nordeste ainda é marcado por uma estrutura sócio-econômica de extrema concentração de

renda, consequente da monocultura, de grandes latifúndios e da produção vinculada à

exportação. Ao mesmo tempo a sua concentração de pobreza e de injustiças sociais é

assombrosa. As tentativas proclamadas pela fase hidráulica foram ineficiente de sanar o brutal

quadro dos problemas sociais e econômicos. O contexto sócio-político alimentava a

dependência, o trabalho exploratório e as desigualdades, e os senhores rurais, ou seja, os

coronéis, mantinham-se como modernos capitães donatários na defesa dos seus eleitores com

o apoio dos industriais da seca (oligarcas algodoeiros e pecuaristas nordestinos).

No Nordeste do segundo pós-guerra, o governo brasileiro estabeleceu novas diretrizes

para o desenvolvimento regional, devido especialmente ao reconhecimento de que os

problemas não solucionados pela fase hidráulica tinham razões bem mais profundas. A

experiência havia ensinado que a preocupação com as secas nordestinas não tinha sido capaz

de solucionar os amplos problemas econômicos e estruturais da Região. A seca, assim, era tão

somente um elemento agravante do atraso nordestino, fruto do próprio modelo de

desenvolvimento econômico instituído nacionalmente.

O surgimento do BNB (1952) e da SUDENE (1959) como organismos responsáveis

pelo desenvolvimento regional atendia, teoricamente, à preocupação com a geração de renda,

emprego, financiamentos e produção econômica no Nordeste. As duas instituições acabaram

dialogando seus objetivos e suas atuações, apesar de especificidades históricas que as

acompanharam. O BNB atravessou cinco períodos inteiramente distintos em sua organização

e desempenho desde sua fundação, mas conseguiu manter ou mesmo elevar as taxas de

financiamentos e investimentos até em momentos difíceis. Na década de 60, porém, a

extinção do Fundo das Secas (única fonte estável do BNB) e a negligencia para com o

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problema regional confirmada na Constituição de 1967 empurrou o BNB para sua fase mais

embaraçosa. A SUDENE, por outro lado, tinha a missão de planejar o desenvolvimento

regional, coordenar e acompanhar a realização desse planejamento, que era executado por

vários órgãos públicos da Região (como o Banco do Nordeste). A SUDENE privilegiou

inicialmente a realização de pesquisas sobre os recursos naturais do Nordeste e os

investimentos em áreas de infra-estrutura econômica, como energia elétrica e transporte. O

dinamismo proveniente dos investimentos do Estado incentivou inclusive o aumento das

atividades privadas, e o Nordeste apresentou nas décadas de 70 e 80 as mais elevadas taxas de

crescimento no PIB do Brasil, passando de 13,2% em 1960 para 17,1% em 1990 (salto de

US$ 8,6 bilhões para US$ 50 bilhões).

Apesar do avanço econômico e industrial do Nordeste, as mudanças daí decorrentes

foram quase que insensíveis aos problemas da maior parcela dos nordestinos. A própria

intervenção foi incapaz de esconder suas intenções heterogêneas para o desenvolvimento da

Região: nas áreas não-dinâmicas prevaleceu as relações assistencialistas, como a distribuição

de cestas básicas e as frentes de trabalho, enquanto que a política de financiamento, incentivos

fiscais e de créditos alimentavam os projetos industriais e a implantação de empresas nas

capitais litorâneas. Como resultado, o Nordeste aumentou sua participação industrial no país à

custa de um desenvolvimento para poucos. As desigualdades sociais aumentavam ao lado da

ampliação do setor industrial, já que as grandes empresas, além de sediadas basicamente nas

metrópoles, utilizam tecnologias modernas que dispensavam a abundante mão-de-obra da

Região. Assim, as elites nordestinas seguiram trocando benefícios com o Estado, enquanto

que o discurso do regionalismo realimentava a concentração de riqueza pelas escolhas

políticas, sociais e econômicas de uma minoria12, enquanto as medidas distributivas seguiam

com o caráter assistencialista.

Como cúmplice das elites e dos projetos industriais, a intervenção da SUDENE foi

criticada, em resumo, pela pouca atenção à agricultura, pelos incentivos fiscais sem geração

de empregos e pelos investimentos excessivos no litoral (especialmente em Recife, Salvador e

Fortaleza). Desde a década de 1970 a SUDENE começa a perder sua força de agência federal

para o desenvolvimento do Nordeste e, após longo período de marginalização, chega à

extinção em 2001. O BNB, após quatro décadas de mudanças em sua organização torna-se,

com a reestruturação de meados de 1990, a instituição financeira referencial para o

desenvolvimento do Nordeste, atuando como maior intermediário do governo federal na

12 Sobre os discursos regionalistas que contrapõe Nordeste e Sul-Sudeste, ver Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A invenção do nordeste e outras artes, especialmente a parte “Espaços da Saudade”.

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Região e preocupando-se – pelo menos no nível do discurso – mais com desenvolvimento

sócio-econômico do que com as atividades de banco.

O livro de Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista – O ornitorrinco13, traz

importantes contribuições para compreensão de questões como o dualismo entre

desenvolvimento e subdesenvolvimento e a relação dialética entre a concentração de renda e o

trabalho informal, perceptível em praticamente todos os espaços de convivência social. No

campo econômico, sua obra critica o dualismo da Cepal, que considerava os setores modernos

e tradicionais de uma sociedade como campos separados. A instituição entendia o

subdesenvolvimento das nações latino-americanas como resultado da dependência financeira

externa, do limitado mercado interno e da concentração fundiária. Como o desenvolvimento

econômico passaria por uma evolução, o planejamento e os investimentos industriais do

Estado permitiriam pular etapas rumo à condição de desenvolvido.

Francisco de Oliveira rompe radicalmente com essa interpretação e defende a tese da

simbiose, da coexistência de condições adversas, onde o que é considerado “moderno”

dialoga – ou mesmo se alimenta – do que é tido como “atrasado”. Para o autor, o conceito de

subdesenvolvimento não pode ser explicado somente pela incompatibilidade com um pólo

“moderno”, uma vez que ambos são fatores presentes em todos os sistemas. Opõe-se à noção

de que o subdesenvolvimento latino-americano (e a conseqüente dependência econômica) é

um estágio evolutivo para as condições mais avançadas do capitalismo, especialmente porque

essa visão reducionista esconde os conflitos, as desigualdades e os problemas internos desses

países ao apregoar o subdesenvolvimento como questão internacional.

Ao enfatizar o aspecto da dependência – a conhecida relação centro-periferia –, os teóricos do “modo de produção subdesenvolvido” quase deixaram de tratar os aspectos internos das estruturas de dominação que conformam as estruturas de acumulação próprias de países como o Brasil: toda a questão do desenvolvimento foi vista pelo ângulo das relações externas, e o problema transformou-se assim em uma oposição entre nações, passando despercebido o fato de que, antes de oposição entre

13 A obra é composta de duas produções. A primeira, Crítica a razão dualista, foi escrita em 1972, e Francisco analisa a economia brasileira, seu processo de industrialização e a luta contra o subdesenvolvimento. Em O Ornitorrinco, publicado em 2003, o autor, ex-petista ativo, condena a configuração herdada da sociedade brasileira e aquilo que o Partido dos Trabalhadores veio a ser ao chegar ao poder. Francisco critica a formação de uma nova classe social no país, comandada, de um lado, por trabalhadores petistas como operadores previdenciários, e, de outro, pelo núcleo duro do PSDB nas funções técnicas e econômicas do setor bancário. Decepcionando os socialistas (e derrotando as apostas da sociedade), o governo de PT é comparado ao ornitorrinco, bicho disforme e de difícil descrição, que alimenta uma truncada acumulação de capital financeiro, o controle dos fundos públicos e não desfez as amarras do subdesenvolvimento. Francisco de Oliveira tem publicações recentes sobre o Governo Lula, mas seu pensamento tornou-se porta-voz das dissidências do PT, acreditando que deveria haver um Governo revolucionário. Recentemente contribuiu para fundação do Partido Socialismo e Liberal (PSOL) e é criticado pelo radicalismo que previa em Lula e pela sua oposição ao Governo.

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nações, o desenvolvimento ou o crescimento é um problema que diz respeito à oposição entre classes sociais internas. (OLIVEIRA, 2003, p. 33)

Francisco destaca a importância que os discursos de “integridade nacional”, “interesse

nacional”, “planejamento” e outros tiveram para reduzirem a ação política da luta de classes,

na medida em que marginalizava interrogações sobre as intenções reais do desenvolvimento.

Cabe aí lembrar que a intervenção do Estado na dimensão econômica sempre elegeu a

empresa industrial como centro dos investimentos, do sistema, e a concentração como

conseqüência inevitável.

A desigualdade oriunda da expansão industrial pós-30 encontrou uma originalidade

interessante no caso brasileiro, já que as novas relações produzidas a partir de então não

modificam integralmente a estrutura arcaica, e as relações de exclusão social e econômica são

assentadas como um plano de fundo imutável. Priorizando seu quinhão e seus interesses, o

governo – e a expansão capitalista – nunca cedeu às classes sociais mais pobres muitas

condições de compartilhamento da produção. Logo, a exclusão foi sendo naturalizada pelo

dinamismo capitalista.

O sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração de renda, da propriedade e do poder, em que as próprias medidas de intenção corretiva ou redistributivista – como querem alguns – transformaram-se no pesadelo prometeico da recriação ampliada das tendências que se queria corrigir. (OLIVEIRA, 2003, p. 60)

No entanto, o fosso abismal que separava economicamente as diferentes classes

sociais não delimitava as regras de contato e convivência entre elas. Ou seja, a chegada da

expansão capitalista e de uma nova estrutura econômica conviveu harmoniosamente com

relações não-capitalistas de reprodução do sistema e concentração de renda, incentivando, por

exemplo, a existência de uma excedente mão-de-obra não-especializada dedicada aos

trabalhos informais.

A “especificidade particular” de um tal modelo consistiria em reproduzir e criar um larga “periferia” onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma de meio de sustentação e alimentação do crescimento dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema. (OLIVEIRA, 2003, p. 69)

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O problema, portanto, não pode ser explicado pelo discurso do subdesenvolvimento;

as desigualdade socioeconômicas não são, obviamente, questões inerentes a um espaço de

adaptações darwinistas. Por outro lado, a pobreza não é somente herança colonial, longínqua,

mas componente irreversível do desenvolvimento moderno do país, que produziu, não por

ação, mas por intenções políticas, a dominação de elites que estavam atentas para forjar

explicações moralistas sobre as discrepâncias entre as classes. Não por acaso, há quem

acredite que a concentração de renda é premio daqueles que trabalham muito e honestamente.

Na balança capitalista não existe engano, nem mágica, nem misericórdia; há riqueza nas mãos

de poucos e carências nas mãos de muitos.

Assim, os meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforo não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização. Algo análogo vale para as escleroses regionais, cuja explicação não está no imobilismo dos tradicionalistas, mas na incapacidade paulista para forjar uma hegemonia modernizadora aceitável em âmbito nacional. (OLIVEIRA, 2003, p. 23)

Assim, segundo Francisco de Oliveira, o subdesenvolvimento representa “a forma de

exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia”; ou seja, eliminando as visões

dicotômicas, a condição subdesenvolvida são os espaços não-centrais do capitalismo

desenvolvido, isso tanto no plano internacional, nacional ou local. Para ser mais radical, pode-

se afirmar que o subdesenvolvimento não deve ser utilizado enquanto dimensão social,

geopolítica e histórica de interpretação e reflexão, mas como discurso legitimador para as

diferenças, como explicação ludibriosa a serviço dos dominadores ou como justificativa

deturpada, porém estratégica, para indicar às classe pobres as condições de exclusão

previamente definidas. Para o discurso das elites, o subdesenvolvimento serviu como óculos;

para as classes pobres, serviu como viseira.

Finalmente, não precisamos ir muito longe para entendermos que padrões de vida

desenvolvidos sempre dividem espaço com exclusões e privações tipicamente

subdesenvolvidas. No jogo dos interesses econômicos e políticos, a concentração de renda de

uma cúpula minoritária provoca proporcional pobreza aos outros setores sociais. Nesse

sentido, a riqueza dos grandes chefões de Conceição do Coité, como Alex da Piatã, Tom,

Hamilton Rios ou os demais membros do topo piramidal da economia, é resultado de uma

construção econômica e política desigual. Nessa mesma teia, mas no extremo oposto,

encontramos outros segmentos que são negligenciados ou ignorados; só como exemplo

podemos nos lembrar – embora sem desmerecer nenhum deles – os serventes de motores de

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sisal, os catadores de materiais recicláveis ou os vendedores de picolé de Coité. A diferença

entre ambos os grupos é que a concentração de renda os colocou em pólos antagônicos,

díspares e, por vezes, conflituosos. De um lado encontramos mansões luxuosas, Hillux e

renda excessiva, numa lógica excludente que camufla uma intencionalidade política e

econômica que procura justificativa numa espécie seleção natural vencida pelos ricos. O

outro lado da moeda é a dependência, a mendicância, o trabalho informal, a subserviência

política e a conseqüente escassez de perspectivas provocada pela igual carência de políticas

públicas abrangentes.

O resultado imediato dessa concentração de renda é, como já frisei, a impossibilidade

da comunicação entre os interesses das elites (do Brasil, do Nordeste ou de Coité) com os

grupos sociais historicamente segregados. Enquanto as intenções das elites normalmente têm

a cumplicidade dos interesses políticos, e vise-versa, as classes baixas não têm escolha senão

pegar carona no bonde das privações e das exclusões, ao mesmo tempo em que procura – ou

deveria procurar – caminhos que tragam mudanças favoráveis. Sobre esse ponto, Francisco de

Oliveira conclui que:

A luta pelo acesso aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas transforma-se necessariamente em contestação ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva da acumulação transforma-se necessariamente em repressão. Essa dialética penetra hoje os mais recônditos lugares da vida nacional, em todas as suas dimensões, em todos os seus níveis: qualquer lugar, qualquer atividade, é hoje um campo de batalha (…). (OLIVEIRA, 2003, p. 119)

O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Estadual

O Programa Produzir é uma proposta executada pelo governo da Bahia, desde a

década de 1990, com ações destinadas prioritariamente ao combate da pobreza rural. Iniciada

durante o primeiro governo de Paulo Ganem Souto, ele faz parte de uma política mais ampla,

desenvolvida pelos Estados do Nordeste, chamada de Programa de Combate à Pobreza Rural

(PCPR). O financiamento – sem reembolso – das atividades advém do Tesouro do Estado e de

empréstimos do Banco Mundial, enquanto que a parte técnica é desenvolvida pela Companhia

de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), uma empresa ligada à Secretaria do

Desenvolvimento e Integração Regional do Estado (Sedir).

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O Produzir desenvolveu três linhas de atuação. A primeira foi o Programa de Ação

Comunitária (PAC), que financiou, a partir de 1993, projetos comunitários pensados e

coordenados pelas associações de moradores, inicialmente no semi-árido. Esses projetos

enfatizam as áreas de infra-estrutura, produção e serviços sociais, e eram avaliados e

aprovados pela CAR. A segunda linha é o Programa Municipal de Apoio Comunitário

(FUMAC), que, desde 1996, analisa e financia projetos comunitários nas mesmas áreas, só

que, dessa vez, encaminhados e administrados pelos Conselhos Municipais espalhados pela

Bahia. Finalmente, o Programa Municipal de Apoio Comunitário Piloto (FUMAC-P),

implantado em 2002, trouxe basicamente a modernização das propostas do FUMAC. Nessa

nova etapa, chamada também de Produzir II, os Conselhos permaneceram responsáveis pelo

controle e administração dos recursos financiados.

Como objetivo, o Projeto pretendeu, teoricamente, construir melhores oportunidades

econômicas e sociais entre as famílias com baixa renda nas áreas rurais da Bahia. Atuando em

407 municípios, destaca-se a atenção reservada à infra-estrutura social (construção de pontes,

casa de farinha, cisternas, sistema de abastecimentos de água), equipamentos (energia,

telefonia), pequenas indústrias, apoio ao processo produtivo agrícola (como irrigação e

tratores, por exemplo) e, mais recentemente, a projetos de saneamento, saúde, educação e

cultura. A intenção primeira seria, então, gerar condições de sustentabilidade, melhoria da

qualidade de vida, emprego e renda para os pequenos produtores a partir de interesses comuns

declarados em cada projeto comunitário.

Atualmente, o Produzir III continua apoiando projetos de inclusão socioeconômica em

comunidades rurais, somando-se, nessa nova etapa, medidas integradas com outros programas

do governo estadual destinados ao desenvolvimento rural.

O Banco Mundial considera que o Produzir é referência para outros países com

problema no combate à pobreza, principalmente pela descentralização e participação

comunitária como medidas centrais para o desenvolvimento. Para a instituição, uma das

premissas é que os recursos aplicados pela CAR beneficiem diretamente (através de

convênios) às comunidades na solução das dificuldades.

O Desenvolvimento Comunitário na Esfera Municipal

Como mencionado acima, os projetos financiados pelo Programa Produzir

(especialmente o FUMAC e o FUMAC-P) são efetivados – a nível municipal – pelos

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conselhos municipais, que administram os recursos recebidos e encaminham-nos mediante os

projetos apresentados pelas associações comunitárias.

Em Conceição do Coité, o Conselho Municipal do Fundo Municipal de Apoio as

Comunidades nasceu em 199814, composto por lideranças do município (o Prefeito e um

representante da Câmara Municipal), representante das associações comunitárias, dos

segmentos sociais organizados, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e ONGs atuantes

no município, além de representante, caso possível, do Ministério Público15. Caberia ao

Conselho, entre outras coisas, difundir as ações do Programa Produzir/FUMAC, analisar,

aprovar e acompanhar projetos comunitários, contratar serviços especializados para a

implantação de projetos e realizar o pagamento com os recursos do próprio Programa. O

Conselho reuniu várias associações já existentes em Coité, animadas com o desenvolvimento

comunitário especialmente a partir dos anos 80.

Na criação do Conselho Municipal, o prefeito Éwerton Rios D’Araújo Filho

(PPB/PFL/PAN) foi escolhido (certamente pelo critério de fidelidade política entre os

participantes) como presidente do Conselho. Não permaneceu no cargo, mas indicou seu

Secretario de Agricultura, Renato Souza dos Santos, para a direção de uma instituição

extremamente estratégica para a manutenção da estrutura política de Coité. Além da

presidência, a Câmara Municipal – sempre governista – compactuava com o Conselho através

do seu representante, o vereador Francisco Apolônio Ferreira, também do PFL.

Segundo o Regimento Interno, o prefeito seria membro do Conselho durante seu

mandato, enquanto os demais membros terão mandato fixo de 02 (dois) anos, podendo

permanecer pôr igual período, se assim decidirem os órgãos e/ou entidades que

representam16. Todavia, tanto o presidente, Renato Souza, como significativa parcela dos

representantes comunitários ignorou o que previa o documento, permanecendo

ininterruptamente no Conselho até 2008. Após mandar por dez anos nas decisões do

Conselho, Renato Souza só abriu mão da presidência em maio de 2008 em virtude da sua

candidatura à prefeito.

Em 2002, a instituição foi renomeada como Conselho Municipal do Fundo de Apoio

Comunitário de Conceição do Coité, mas preservou sua organização, estratégias e pretensões

políticas. Nessa nova etapa, o Conselho reestruturou-se a fim de receber recursos do Governo

14 Há documentos oficiais, como a Ata de Criação do Conselho e o Regimento Interno que apresentam a data de 04 de junho de 1998; já na Ata da Assembléia Geral de Reforma Regimental do Conselho (junho de 2009) aponta-se o dia 03 de julho de 1998 como data da fundação. 15 Informações contidas no Regimento Interno do Conselho Municipal do Fundo Municipal de Apoio as Comunidades – FUMAC, de 04 de junho 1998. 16 Parágrafo Quarto, Art. 2º, Da Composição.

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do Estado e do Banco Mundial para atividades do Programa Produzir II – FUMAC e

FUMAC-P. Uma das especificidades do Produzir II era o atendimento prioritário às

comunidades carentes em infra-estrutura básica (abastecimento de água, energia, saneamento)

e nos serviços de educação e saúde que não tinham sido atendidas pelo Produzir I.

Novas modificações ocorreram no Conselho em 2003, que teve seu regimento

alterado, especialmente na atenção reservada aos critérios de aplicação de recursos, no

acompanhamento e orientação de subprojetos comunitários, na difusão de programas de

créditos. Foi renomeado como Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do

Coité (CDM), mas a Diretoria Executiva e muitos representantes dos segmentos conservaram

suas cadeiras na instituição.

Renato Souza continuou como presidente e representante da prefeitura de Coité, até

mesmo enquanto vice-prefeito na gestão 2005-2008, numa óbvia exclusão ao autocontrole do

associativismo; seu afastamento do Conselho só ocorreu nos três meses reservado às

campanhas eleitorais. Mas não era o único a segurar a bandeira do situacionismo político da

cidade. A prefeitura sempre esteve preocupada com os rumos do associativismo no município,

pelo menos com os rumos do controle político no entorno das experiências comunitárias. A

intromissão da prefeitura ocorria (e ocorre) na escolha de presidentes de associações (urbanas

e rurais) e na indicação de membros da sociedade organizada que tenham no Conselho um

posicionamento politicamente conveniente à máquina governista. Normalmente, muitos

investimentos do Governo Estadual nas comunidades (casa de farinha, moinho, aquisição de

máquinas etc.) são inaugurados pelos mandatários locais como se fossem investimentos da

Prefeitura.

Em entrevista, Francisco de Assis destacou o quanto a FUMAC tem desenvolvido uma

teoria e uma prática completamente díspares no associativismo de Conceição do Coité.

O FUMAC em tese… é você reunir grupo de associações e você, democraticamente, com pessoas que tem representatividade em suas comunidades é… poder interferir na destinação de recursos públicos. Em tese uma coisa interessantíssima, mas na prática funcionou o que? Uma manipulação brutal do dinheiro público a serviço de um grupo personificado pelo atual prefeito. Todas as reuniões do FUMAC são dirigidas, existe um grupo de dirigentes de associação inteiramente vinculados, manipulados pelos chamados Vermelhos politicamente, principalmente pelo atual prefeito, e essas pessoas dão uma áurea de legitimidade, de democracia, que não tem de democracia nada, diria democratismo, a um órgão que na prática é um instrumento que se presta, primeiro, a ter inserção social ou pelo menos um arremedo de inserção social; segundo, é uma fonte brutal, uma fonte gigantesca de corrupção, porque ali tem tesoureiros e presidentes de associação, ali tem comissões

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que assinam cheques em branco, que não sabem explicar quanto de recurso veio, como foi aplicado. (…) Então o FUMAC é uma fonte de corrupção brutal e é um engodo extraordinário, nunca funcionou democraticamente. O FUMAC é um aparelho do PFL, do DEM, do PP, dos Vermelhos pra usar dinheiro público, pra aumentar o patrimônio dos seus dirigentes, ganhar votos e deixar os bobos dirigentes de associação correndo altos riscos se houver uma denúncia formal e uma investigação séria. (SANTOS. Entrevista concedida em 06 jan. 2010)

Teoricamente, o CDM/FUMAC reunia as diversas experiências de desenvolvimento

de comunidade presentes no município de Coité, viabilizando o investimento de recursos

públicos e propondo diretrizes para soluções de problemas da população (rural e urbana) em

torno das perspectivas do associativismo. Mas a experiência analisada possibilita outro quadro

interpretativo, uma vez que a instituição foi, desde sempre, transformada em órgão da

administração municipal, seja como porta-voz dos interesses do PFL, PPB e, posteriormente,

PP, como reprodução da estrutura clientelista do executivo municipal ou como instrumento de

promoção da própria imagem de Renato Souza. Não é mera casualidade do destino vê-lo

concorrendo e vencendo as eleições de 2008. A presidência do CDM/FUMAC oportunizou-

lhe tornar visível e audível seu discurso, suas influências e sua imagem no cenário político.

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CAPÍTULO III

O Distrito de Aroeira17 e a ADECAR

HINO DE SÃO JOAQUIM

Uma aroeira na beira da estrada, Foi o descanso de um povo sofredor,

Que só partiu depois da invernada, Deixando uma alma, uma cruz e o clamor.

Daí nasceu uma Aroeira venerada, Purificada que Deus abençoou

E os teus filhos têm por ti, terra sagrada, Um grande orgulho, carinho e muito amor. Fostes a grandeza que os céus nos revelou,

És uma estrela que no peito encravou. Ô Aroeira, tua Bandeira, cobre o meu corpo feito o manto do Senhor.

Ô Aroeira, tuas fronteiras, Estão no meu sangue e no meu canto de Louvor. Mesmo morando a algumas léguas de distância,

Mesmo dormindo n’outro berço resplendor, A tua gente já não sai mais da lembrança,

A esperança tá na pedra que ficou São Joaquim, avô-nosso-Padroeiro,

Tens o remanso no braço protetor Que faz do vento o mais forte mensageiro, Ao mundo inteiro que esta terra tem amor. Fortes a proeza que o tempo nos reservou.

És uma princesa dos mil sonhos do candor. Ô Aroeira, tua Bandeira,

Cobre o meu corpo feito o manto do Senhor. Ô Aroeira, tuas fronteiras,

Estão no meu sangue e no meu canto de Louvor.

É com enorme entusiasmo e ufanismo que muitos aroeirenses guardam na memória e

reproduzem o hino em homenagem ao padroeiro da comunidade, São Joaquim. As bênçãos

divinas sobre Aroeira são, segundo o texto, responsável pela proteção e amor dos seus

habitantes; mas para além do conteúdo religioso, o passado apontado é louvável, predestinado

à veneração, à grandeza, à proeza e à esperança.

17 O Distrito de Aroeira foi criado em 28 de Dezembro de 2003, Lei Nº. 352, sancionada pelo prefeito interino Deraldo Ramos Guimarães. Está localizado 17 km a sudoeste do distrito sede.

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Até o momento, não existe nenhum trabalho de pesquisa histórica – com análise e

metodologia crítica – sobre o Distrito de Aroeira. A única produção encontrada trata-se de um

texto-resumo de três páginas que tenta esboçar a sucessão de alguns episódios do passado da

localidade, e que recebe o errôneo título de História de Aroeira18.

Este registro também inclui problemas de interpretação metodológica e histórica; o

passado é narrado a partir de grandes fatos e de grandes personagens, com uma linearidade

sem conflitos, sem contextualizações, sem discussões. As fontes de pesquisa escrita

praticamente inexistem e os relatos sobre as primeiras décadas, os moradores, as atividades e

as transformações da localidade foram adquiridos mais por conversas informais do que por

entrevistas metodologicamente corretas. Além do mais, é difícil acreditar que em apenas três

páginas seja possível discutir mais de cem anos do processo de organização social,

econômica, política, cultural e histórica da comunidade de Aroeira (a primeira data citada no

texto é 1880, ano da provável chegada de retirantes denominados Povo de Pernambuco; a

última data é o ano de 2007, ano do 13º Forró-Jegue19).

As fontes existentes sobre a História política de Conceição do Coité mostram-nos que

significativas mudanças aconteceram em Aroeira a partir do governo de Walter Ramos

Guimarães. Mesmo tendo ido morar no distrito sede do município há muitos anos, Walter

freqüentava sempre o povoado de Aroeira (normalmente aos domingos, dia da feira local).

Nos anos em que Walter esteve no Executivo, o então povoado de Aroeira (seu local de

origem) recebeu tratamento atencioso do prefeito. É do seu tempo as restaurações realizadas

em 4 salas de aula de Aroeira, a eletrificação via o Governo do Estado (antes disso, Aroeira só

possuía a luz gerada por um motor diesel trazido pelo vereador Enéas Araújo Ramos, ainda no

governo de Dr. Pinheiro), a pavimentação completa, a instalação de um matadouro público e

da completa recuperação do açougue público, a construção de um posto médico, de 3 prédios

escolares na região de Aroeira (Morro, Martins e Tapororo)20 e de aguadas em toda a região

de Aroeira para amenizar o problema de abastecimento de água da zona rural durante a

estiagem.

Por receber um tratamento privilegiado, chegando até a despertar críticas de outras

localidades, Aroeira e região passaram a ver na política do seu prefeito e conterrâneo a

materialização do desenvolvimento local. O grupo de Walter Ramos, em contrapartida,

18 Anexo 2. 19 Manifestação cultural local iniciada no ano de 1994 e apresentada anualmente no período dos festejos juninos. 20 Informação extraída da Revista da Associação Brasileira de Municípios, Ano VII – Nº. 58 – 1982. p. 29.

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logicamente não deixou de utilizar-se dos meios políticos para aproximar às paixões políticas

da comunidade de Aroeira aos planos de controle e disputa pelo apoio eleitoral.

Mais recentemente, a presença de representantes aroeirenses nos palcos da política de

Conceição do Coité está resumida às figuras de Deraldo Ramos Guimarães e Edevaldo

Santiago Ramos (irmão e sobrinho de Walter Ramos, respectivamente). O primeiro tornou-se

Vice-Prefeito no mandato de Wellington Passos de Araújo (2001-2004), Secretário de

Esportes no terceiro mandato de Éwerton Rios D’Araújo Filho (2005 – 2008), e novamente

Vice-Prefeito na atual administração de Renato Souza Santos (de 2009 até 2012). Edevaldo

Santiago como um bom discípulo da escola política familiar, chegou à vereança de Coité em

1992, e completará, em 2012, seu 5º mandato.

O distrito de Aroeira amadureceu um tipo de mito da representatividade política. A

figura de líderes como Walter Ramos, Deraldo Ramos e Edevaldo Santiago Ramos construiu

um imaginário e uma cultura política de fidelidade e temor. Comumente conhecido como

reduto do situacionismo municipal, Aroeira – ou melhor, uma significante parcela dos

aroeirenses – construiu laços de dependência sutis com as práticas do apadrinhamento, do

favorecimento político imediato e individualizante. Na imensa maioria dos contatos prevalece

um pacto político, ideológico, psicológico e social entre eleitores e o poder político de

Conceição do Coité por meio da representatividade dos seus conterrâneos.

Mas essa representatividade não tem um fim em si mesma. Ao longo das décadas

reiterou-se a positividade do executivo municipal (sob domínio do grupo liderado por

Hamilton Rios), contrastando-o com um conjunto de estereótipos atribuídos aos adversários.

A partir de 1988, quando o PT disputou as primeiras eleições municipais em Coité, coube ao

executivo municipal (e toda sua clientela e operários) difundir uma imagem pejorativa do seu

novo rival. A presença de uma oposição política era combatida com a mesma tenacidade

empregada em defesa da bandeira da direita. Partindo dessa premissa, torna-se possível

analisar os meandros do posicionamento conversador e dependente entre o eleitorado de

Aroeira e o poder político de Coité. Transpondo a atmosfera política do Brasil

redemocratizado para o nosso município podemos entender um dos aspectos que influenciam

na relutância do eleitorado coiteense com relação a uma mudança política. A imagem do PT,

por exemplo, era associada à desestruturação, à desordem, à intranqüilidade tanto para a vida

nacional (talvez por isso a resistência contra Luis Inácio Lula da Silva em 1989, 1994 e 1998),

quanto para a política de Coité. Obviamente que os interesses no jogo político não limitou seu

discurso a está idéia, mas esta foi também pertinente para a aversão à mudança.

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O que quero apontar com isso é que para além dos seus interesses particulares, muitos

eleitores aroeirenses encontraram segurança e entusiasmo nos discursos moralizante pró-

situação, em defesa da “ordem”, da permanência da facção de Hamilton Rios no poder nas

últimas quatro décadas. E são inumeráveis os casos em que a inconsciência ou paixões

políticas desses eleitores germina o estímulo à defesa do grupo da situação; no entanto,

quando questionados, a esmagadora maioria é incapaz de apontar justificativas aceitáveis

sobre o seu posicionamento político de simpatia aos interesses do grupo hegemônico.

A histórica relação dos representantes políticos aroeirenses com seu eleitorado

também foi caracterizada pelo desrespeito ao princípio da isonomia. Na verdade, ainda

subsiste a confusão entre o público e o privado. É como um círculo vicioso, onde eleitores e

representantes compartilham de uma mesma mentalidade paternalista, com relações de

dependência mútua; a pouca indistinção entre público e privado foi sendo naturalizada pelos

eleitores e respaldada pelas práticas dos representantes. Como as idéias são menos

importantes do que os homens, as ações e as mudanças são atribuídas à competência

particular; os benefícios adquiridos pela comunidade são mais entendidos como uma bondade

e um favor da administração municipal do que uma decisão coerente amparada em códigos

políticos legais. Visto assim, os representantes não são entendidos como funcionários

públicos (com direitos e deveres relativos à vida pública), e sim como super-homens, que

gastam o tempo lutando pelos seus eleitores porque são filantrópicos, e não por obrigação.

A enorme legião de defensores do situacionismo presente no Distrito de Aroeira

favorece essas idéias. Pelo medo de sofrerem punições políticas ou por deverem favores

particulares (como, por exemplo, entrar no serviço público municipal sem concurso); por

obediência à tradição familiar e por simples paixões, muitos aroeirenses, funcionários

públicos municipais ou não, transformam as disputas políticas em um campo de conflitos,

onde o anti-situacionismo é uma afronta das mais inaceitáveis. E o voto, nesse sentido, é

compreendido como uma obrigação, e nunca como um direito (facultativo à escolha exclusiva

de cada eleitor). Segundo Figueiredo, quando agimos pela tradição, e não pela eficácia dos

procedimentos, nosso comportamento torna-se tradicionalista, e perde sua racionalidade.

Pela fidelidade ao situacionismo, a grande maioria (ou talvez a totalidade) dos

aroeirenses convivem com e sob uma espécie de Lei do Silêncio, que restringe – ou proíbe – a

livre manifestação das intencionalidades políticas. A cultura política local enraizou na

mentalidade da comunidade que fazer política é apoiar o situacionismo dos “vermelhos”; caso

contrário, não é política. Um exemplo evidente disso foi o comportamento retraído de muitos

dos entrevistados quando o assunto envolvia questões políticas. Manter-se calado é cumprir o

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figurino político, é demonstrar que, mesmo sendo personagem de uma experiência

mandonista, existem vantagens em silenciar sua opinião particular em troca da conformidade

e/ou do apoio à estrutura política local.

Na verdade, a apologia à oposição é episódio digno de perseguição política

(normalmente implícita), de restrição das oportunidades para acesso aos serviços públicos, de

constrangimentos públicos e de indiferença irrestrita como ato punitivo à falha de não haver

votado na situação municipal. Simpatizar-se com a oposição é quase que um crime político,

cujas repercussões e conseqüências marcam a vida do eleitor também na sua dimensão social,

moral, econômica, psicológica e cultural.

Um outro episódio curioso que ratifica o enlace entre a cultura política aroeirense e o

situacionismo municipal é o comportamento do principal meio de comunicação local: era

comum encontrar a Aroeira Publicidade (antiga Rádio Comunitária Flor de Aroeira)

veiculando músicas da campanha de Renato Souza Santos logo após a sua chegada ao

Executivo municipal, em outubro de 2008. Assim como quase tudo em Aroeira, a Rádio

também nasceu e permaneceu com a proteção e a participação de pessoas subservientes à

prefeitura. Dessa forma, é forçoso concordar que, mesmo sendo um veículo de comunicação

comunitário, ele não conseguiu abandonar o manto das práticas coronelistas e dos interesses

políticos favoráveis ao Partido Progressista.

Cabe aqui relembrar como a relação mídia/política é extremamente perigosa no campo

político. O império midiático criado e difundido por Antonio Carlos Magalhães (ACM),

ministro das Comunicações do Governo Sarney, é célebre exemplo das relações clientelistas

mantidas pela política baiana recente. Em retribuição por apoiar o presidente – e Sarney

utilizou sabiamente a concessão de emissoras aos que apoiavam seu governo –, ACM montou

uma espécie de partido eletrônico na Bahia, distribuindo cerca de 90 emissoras de rádio e TV

(cobrindo 80% do território) entre seus aliados e familiares. Uma política mercadológica,

onde o controle das informações tornou-se munição estratégica.

Em seu trabalho Rádio e TV na Bahia: o partido eletrônico de ACM, Jane Márcia

Lemos Luz destaca que a “rede ACM” de comunicação estava composta pelo jornal Correio

da Bahia, de 1978, por uma coleção de rádios na capital e no interior e pela TV Bahia, filiada

à Rede Globo e principal arma do PFL (e de ACM) no Estado. No Ministério da

Comunicação, ACM destinou à Bahia cerca de 30% do total de rádios e canais de TV vindos

para o Nordeste.

Precisamente sobre as rádios interioranas, Lemos concorda que a ingerência e controle

de políticos locais é determinante:

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Quanto às rádios, essas têm desempenhado um papel fundamental no interior da Bahia, por constituírem a principal mídia de políticos locais, isto é, dos políticos donos das rádios. Disso emerge uma questão importante para se compreender o fenômeno no interior da Bahia: a questão da propriedade do rádio como forma de manutenção/ sobrevivência de elites dominantes tradicionais. (LUZ, 1997, p. 17-18)

Em Conceição do Coité, a rede de ACM também alcançou sucesso, com a concessão

da Rádio Sisal ao prefeito Hamilton Rios de Araújo (PFL) em 1986. Chefiada pelo ex-prefeito

Éwerton Rios d’Araújo Filho, sobrinho de Hamilton, a Rádio Sisal sempre foi palanque

incondicional a serviço dos lideres políticos de Coité, e defende tenazmente seu desejo – não

neutro – de permanecer como referência na comunicação local. A materialização do

comportamento mandonista presentes na Sisal FM é denunciado por Assis, haja vista que o

então prefeito Éwerton Rios assumiu ter autorizado o “arrombamento das instalações e roubo

dos transmissores da TV Cultura do Sertão (…) ocorridos no dia 29 de maio de 1998.”. A TV

Cultura tem posicionamento político de oposição e, por isso, sofreu uma medida repressiva

que, embora inaceitável legalmente, é reflexo de que na nossa cultura política as pessoas

podem subjugar as leis com naturalidade. A memória do eleitorado está relativamente treinada

para não estranhar episódios de evidente desrespeito à democracia dentro dos bastidores

políticos e do universo das comunicações.

Em pesquisa sobre as eleições de 1996, Lemos nos apresenta o seguinte retrato do

interior infestado pela mídia coronelista:

Dos 415 municípios do estado, já foi demonstrado que cerca de 90 possuem rádios sob influência de ACM (a maioria em cidades onde a coligação ganhou). Dessas 90 emissoras já foram checadas 31, em municípios governistas, verificando-se que os prefeitos eleitos tiveram espaço aberto para campanha, sendo alguns deles sócios ou parentes dos donos. Isso aponta para a máxima de que, hoje, político que tem mídia já está a meio caminho da eleição. (LUZ, 1997, p. 51)

Sabemos que o império das comunicações na Bahia não explica todo o carlismo, assim

como o controle da Radio Sisal em Coité não “fabricaram” o Hamilton Rios ou o Éwerton

Rios. Mas como a ação política contemporânea tem desenvolvido importantes ramificações e

relações com a mídia, não devemos menosprezar seus resultados. A construção do carlismo

foi viabilizada, entre outras coisas, pela pulverização midiática no interior do Estado. A mídia

construiu e ratificou imagens, sentimentos e marcas políticas. Tanto na Bahia como em Coité,

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aquilo que é denominado como coronelismo eletrônico cria novas formas de práticas políticas

rumo à elegibilidade; de um lado os interesses políticos das minorias, do outro a recepção

tendenciosa de informações a favor da continuidade. Na Bahia ou em Coité, o papel da mídia

foi o de transformar o continuísmo numa questão bem mais de desejo ou necessidade do que

numa política oriunda do clientelismo. O sucesso do PFL foi viabilizado, do mesmo modo,

pela sua predisposição em formar coligações e negociações longes das câmaras, nos

bastidores, e pela personificação autocrática de ACM dentro do partido e de seus acordos.

A questão do desenvolvimento comunitário

A preocupação com o desenvolvimento de comunidade (DC) é questão marcante no

Brasil e na América Latina desde o final da década de 50 e início da de 60. A partir dos

movimentos sociais ou da política social, as áreas de moradia foram historicamente instigando

a mobilização e cooperação dos diversos campos interessados com a superação das

dificuldades – via de regra – das populações carentes. Originariamente pensado para o rural

(pelas suas características e objetivos), o DC tornou-se também urbano; no Brasil a

especificidade histórica de cada região determinou a roupagem predominante para sua

experiência de DC. No Nordeste, por exemplo, o desenvolvimento de comunidade está

relacionado especialmente aos problemas do meio rural.

A noção de desenvolvimento é polissêmica, mas no caso analisado pressupõe

fundamentalmente a superação das dificuldades existentes na comunidade, dos problemas que

afetam coletivamente seus moradores, viabilizado pelo crescimento econômico, pelo

aperfeiçoamento tecnológico e/ou pelo apoio político.

Com relação ao desenvolvimento, em sua obra Desenvolvimento de Comunidade e

Participação, Maria Luiza de Souza menciona:

No desenvolvimento comunitário, desenvolvimento é crescimento econômico e progresso tecnológico, no entanto, controlado e dirigido pela população e em função dessa comunidade. Nesse sentido, o desenvolvimento é, sobretudo, ideal a ser alcançado. O nível de realidade em que ele se encontra é definido a partir de condições históricas próprias às populações de cada país, região ou localidade e é a partir daí que ele se amplia. À medida que o crescimento econômico e o desenvolvimento tecnológico são pensados, e geridos por grupos sociais cada vez mais numerosos e abrangentes, o processo do desenvolvimento avança e se aproxima do ideal. (SOUZA, 2000, p. 76)

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Não é possível identificar uma situação onde o desenvolvimento esteja prontamente

alcançado, já que ele é processo contínuo e dinamizado pelas condições vivenciadas ao longo

do tempo. É uma busca pela dissolução dos problemas sociais, econômicos e humanos

característicos de cada momento particular da comunidade.

Cada país, cada região, cada área específica encontra-se numa situação própria de desenvolvimento. É a partir desta situação que o processo precisa avançar. Compreender a situação própria de desenvolvimento em que se encontra um determinado contexto supõe compreendê-lo historicamente, dialeticamente e estruturalmente. Não existem modelos prefixados para o avançar do processo de desenvolvimento, uma vez que as condições próprias de cada contexto supõem também condições próprias para o seu avançar. Em toda e qualquer situação, entretanto, o desenvolvimento supõe que todo e qualquer cidadão se encontra em condições de pensar, decidir e agir sobre a sua realidade social, sobre o seu destino. (SOUZA, 2000, p. 77)

Mas para que haja esse desenvolvimento, faz-se essencial a participação da

comunidade interessada, por meio da conscientização, organização e capacitação a fim de

melhorar sua realidade social, suas condições materiais de existência e sociabilidade. Esta

participação deve ser acompanhada pela ampliação das condições de decisão e enfrentamento

dos atores do desenvolvimento comunitário.

Exigindo que a sociedade elabore uma postura socialmente organizada e com eficiente

representatividade no intento de buscar soluções para as suas dificuldades, surgem as

associações de moradores (ou associações comunitárias) em todo o município (urbano e

rural). Grupos sociais com interesses e preocupações comuns, vizinhos do ponto de vista das

suas moradias, com condições de vida semelhantes, passam a organizar-se para o

enfrentamento conjunto de problemas que são de interesses coletivos.

A ação comunitária é uma forma de cooperação que tem como objeto e objetivo a superação das barreiras que, a nível da comunidade, impedem o desenvolvimento do homem enquanto ser coletivo. Ela se revela um instrumental que se caracteriza pela identificação de problemas, interesses ou preocupações de ordem comum, pela organização para pensar em comum as decisões sobre os mesmos e pelo desempenho das ações decididas. (SOUZA, 2000, p. 22)

A identificação dos moradores com sua comunidade significa componente básico no

desenvolvimento comunitário, uma vez que, segundo a autora, caso isso não ocorra, pode

haver mais de uma comunidade num mesmo ambiente de moradia. Assim, no processo do

desenvolvimento comunitário deve existir tanto um acordo de interesses como um acordo de

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identidade. A comunidade não é limitada por questões unicamente físicas ou administrativas,

mas igualmente pela presença de interesses e preocupações comuns aos grupos ou sub-grupos

em suas inter-relações cotidianas dentro da sociedade. Parafraseando Teresa Porzecanski, o

desenvolvimento comunitário tem o papel de ampliar as fronteiras da comunidade,

favorecendo a construção de lutas e elementos que traduzam os objetivos comuns dos

moradores envolvidos e estabeleça ferramentas amplas de identificação e participação.

Outro ponto importante do desenvolvimento comunitário é a cooperação entre seus

agentes. As hierarquias são extremamente nocivas ao destino de qualquer associação. Aos

participantes deve ser reservado o direito individual de defender, participar e pensar dentro da

associação. Nenhuma individualidade pode anular as demais individualidades, e menos ainda

se sobrepor aos projetos coletivos; a cooperação é requisito para conservar os interesses e

enfrentamentos comuns. Não é raridade, no entanto, haver divergências internas, e os

interesses da associação serem apropriados pelo grupo mais forte internamente.

A ADECAR

A ADECAR surgiu como uma vitória imensurável. Fruto da coletividade e do desejo

pelo bem comum (pelo menos no papel), a nova instituição deveria ser o divisor de águas

para o desenvolvimento local, afinal de contas era consensual que a participação popular e a

descentralização seriam os grandes pilares do Brasil democrático. O Art. 1º do seu estatuto

afirma, com nitidez, que se tratava de uma “associação de desenvolvimento comunitário de

Aroeira, originário de movimento expontâneo entre os habitantes da comunidade”.

Escrito anteriormente, seu Estatuto foi lido, explicado e aprovado por unanimidade na

Assembléia Geral de Constituição da ADECAR, reunida na Escola Duque de Caxias, em 03

de Maio de 1987, data da fundação da instituição. E os objetivos trazidos pelo mesmo estatuto

não são menos sensatos e plausíveis. Pelo Art. 3º a Associação, enquanto “uma entidade civil,

sem fins lucrativos, de duração indeterminada, com sede e foro em Conceição do Coité,

Estado da Bahia”, seria regida pelos seguintes objetivos: I – promover o desenvolvimento

comunitário através de obras de melhoramentos, com recursos próprios ou obtidos por doação

ou empréstimo; II – proporcionar a melhora do convívio entre os habitantes do lugar e de

localidades circunvizinhas, através de integração de seus moradores; III – proporcionar aos

associados e seus dependentes, atividades econômicas, culturais e desportivas; IV – promover

atividades assistenciais, diretamente ou através de instituições filantrópicas; V – promover

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atividades assistenciais e proporcionar melhoria do convívio através de atividades

econômicas, culturais e desportivas aos trabalhadores rurais e aos pequenos agricultores e

seus dependentes.

Assim, a ADECAR passaria a atuar como instituição que congregaria não somente as

demandas, as reivindicações e as necessidades dos seus sócios e da comunidade, como

também apresentar propostas para o melhoramento do convívio, das condições de vida e da

organização comunitária. No entanto, além desses elementos, talvez a maior justificativa para

sua fundação e existência é a idéia de que o desenvolvimento de uma comunidade é facilitado

pela presença de uma Associação. Ou seja, os benefícios chegariam mais rapidamente à

Aroeira se a “cobrança” partisse de uma agremiação social democrática e organizada.

Apesar da fundação ocorrer em meados de 1987, a ADECAR teve que esperar até o

ano de 1994 para começar as suas atividades. O seu primeiro Presidente – e talvez seu maior

idealizador –, Deraldo Ramos Guimarães, permaneceu pouco tempo em exercício. Nos meses

imediatamente após a fundação, a única ação do Presidente que merece destaque foi o

encaminhamento ao Cartório de Títulos e Documentos de Conceição do Coité, em 30 de

setembro de 1987, dos documentos necessários para fazer da ADECAR uma pessoa jurídica.

No mais, a maior parcela dos sócios e dos dirigentes parece ter sido vencida pela inércia,

deixando de realizar as atividades, as reuniões e os propósitos da Associação por um longo

período.

Segundo entrevistas realizadas, a inatividade da ADECAR nos anos posteriores à sua

fundação suscitou na comunidade um novo movimento, notadamente liderado por mulheres,

com objetivo de organizar uma Associação de Mulheres, especialmente entre 1989 e 1992.

Houve uma forte mobilização interna, esperançosa pelas contribuições que o associativismo

poderia apresentar frente às demandas da própria comunidade. Participante ativa do

movimento das mulheres, uma das entrevistadas nos diz o seguinte:

(…) A gente vendo a coisa assim sem andamento, a gente procurou umas mulheres, um grupo de mulheres para fazer uma associação de mulheres. Nesse período que a gente tava mesmo empenhada pra fazer outra associação… como é que diz?… a associação a andar que tava parada eu fui lá em Coité pegar a ata na mão de Maisa, Maisa Santiago Ramos21, lá na Prefeitura e no momento que eu fui pegar essa ata ela me negou a ata, que diz que ia reviver esse, reviver no caso a associação… (GONÇALVES. Entrevista concedida em 28 jun. 2009)

21 Sobrinha de Deraldo Ramos Guimarães e irmã de Edevaldo Santiago Ramos.

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O ano de 1994 foi recheado de alterações para os novos rumos da ADECAR. Logo no

dia 2 de Janeiro, a sua Assembléia Geral reuniu-se, conforme Ata, para reativação da

instituição. Como consta no mesmo documento, a última Ata anterior àquela que teria sido

lavrada na data de 02 de agosto de 1988, uma vez que as páginas 5, 6 e 7 desapareceram do

Livro de Atas nº. 01. Incumbido de dirigir a reunião, o senhor Raimundo Carneiro Cedraz

(representante da Igreja Católica) fez a leitura do Estatuto e os associados acordaram novas

eleições para os membros da Diretoria. A eleição ocorreu no dia 15 de janeiro de 1994, e o já

vereador Edevaldo Santiago Ramos foi “aclamado (…) para coordenar os trabalhos”, que

resultou na eleição de Antonio Carlos Gordiano Lima para presidência da ADECAR. Como

havia somente uma chapa inscrita o resultado foi previsível.

O Banco do Nordeste do Brasil também marcou presença neste ano da ADECAR. A

Assembléia Geral de 30 de agosto tinha como pauta a discussão da importância que o BNB

poderia representar na abertura de crédito e empréstimos aos pequenos agricultores e

pecuaristas de Aroeira. Estreitados os laços com a ADECAR, o Banco do Nordeste conseguiu

realizar uma política de crédito com parcela significante dos associados, embora,

posteriormente, muitos sócios tenham adquirido problemas com as altas taxas de juros

decorrentes da inadimplência aos prazos acordados.

Em 11 de novembro de 1994, a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional

(CAR), empresa pública ligada à Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia, a

Prefeitura Municipal de Conceição do Coité e ADECAR firmaram um Convênio entre si com

o objetivo de realizar a “instalação de 01 (um) projeto produtivo, compreendendo obras civis,

aquisição e instalação de equipamentos para 01 (uma) unidade de fabrico de farinha de

mandioca (trifásica), na comunidade de Aroeira, no município de Conceição do Coité, através

do PAC/PRODUZIR, no âmbito do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural – PAPP,

beneficiando diretamente 60 famílias”22. O Convênio contaria com a participação da

Prefeitura de Coité em 5% de um total de R$ 10.064,00 e os demais recursos partiriam do

PAPP, tendo como fonte o BIRD e/ou Tesouro do Estado.

Logo em seguida, em 02 de Dezembro de 1994, a ADECAR conseguiu por meio de

Termo de Doação um terreno de Carlos Ferreira Lima e Estelita Gordiano Lima para

construção de um moinho de milho (fábrica de fubá), através do Programa Produzir em

Convênio firmado novamente entre a CAR, a Prefeitura de Conceição do Coité e a ADECAR.

Na Assembléia de 31 de dezembro o presidente Antonio Carlos informa que o recurso do

22 Trecho relativo ao item Do Objeto do CV Nº. 525/94 – Assessoria Jurídica – CAR.

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referido Convênio, um montante de R$ 4.336,00, já havia sido depositado Banco do Estado da

Bahia (BANEB). As obras do moinho de milho começaram a seguir.

No início de 1996 a presidência da ADECAR experimentou uma urgente substituição

de ocupante. A ausência do presidente em atuação, Antônio Carlos Gordiano Lima, foi

emergencialmente substituída por eleição provisória, ocorrida em 21 de janeiro. Igualmente

previsível, o resultado dessa eleição com chapa única culminou na escolha de José Aldo

Gordiano Lima para presidência provisória, numa reunião que registrou em Ata a presença de

94 pessoas.

Mas o posto que era provisório logo se tornou efetivo, e na eleição – de chapa única –

para a Diretoria Executiva e o Conselho Fiscal, em 16 de Abril de 1996, José Aldo foi

aclamado como presidente da ADECAR. Doravante, não haverá mais surpresas em termos de

direção; a permanente presidência de José Aldo iniciada em 21 de janeiro de 1996 resistirá

firme até, pelo menos, 30 de maio de 2010.

No ano de 1997 deve-se destacar o Convênio Nº. 219/1997 estabelecido entre a CAR e

a ADECAR que resultou na perfuração de um poço tubular em Aroeira. O financiamento das

obras (R$ 7.897,05) estaria sob responsabilidade do Programa de Apoio às Comunidades

Rurais – PRODUZIR, com recursos provenientes do BIRD ou do Tesouro do Estado.

Em 2008 foram inaugurados pela ADECAR o Clube Social de Aroeira e o Estádio

Manoel Lourenço de Santana, obras que contaram, mais uma vez, com a participação da

Prefeitura Municipal de Conceição do Coité. No caso do Clube Social, sede da ADECAR, a

Prefeitura Municipal firmou com esta o Convênio Nº 11/2008, em 16 de junho, concedendo-

lhe apoio financeiro no valor de R$ 25.557,60 para a construção da cobertura.

Um dado importante que as atas evidenciam é que, mesmo com a cobrança da

Direção, os sócios pouco auxiliavam nas lutas coletivas e nas tentativas de encontrar soluções

para os problemas da comunidade aroeirense. Tal comportamento nos remete ao que Souza

aponta como sendo as principais características dos moradores dentro do associativismo.

Geralmente os sócios não são envolvidos – ou se envolvem – nas decisões da associação,

interpretando-a como simples reprodução das instituições públicas fornecedoras de

benefícios; outras vezes os sócios associam política à politicagem e se afastam das

associações que, em muitos casos, são transformadas em bandeira político-partidária; ou

então, por fim, os sócios podem enxergar a associação mais como espaço de assistência, de

lazer e de recreação do que como campo de luta e enfrentamento organizado, crítico e com

autonomia em suas pretensões de intervenção na comunidade.

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Para pesquisa foram realizadas entrevistas com membros da Diretoria Executiva (de

diferentes períodos), com sócios participantes e com ex-sócios da ADECAR. Além dessas,

analisamos, também por meio da fonte oral, outras experiências de associativismo

desenvolvidas na sede do município de Conceição do Coité. Para a análise dos depoimentos

foram identificados os pontos convergentes, sem ignorar, no entanto, as contribuições das

experiências individuais sobre o associativismo da ADECAR.

Questionados sobre a idéia do associativismo e sobre a importância que a ADECAR

tem na vida da comunidade, os entrevistados apresentaram respostas bem similares. No geral,

o associativismo é visto como aquilo que separa, com grande distinção, os que devem ou não

receber os benefícios imediatos e individuais da associação. Visto desse modo, fazer parte da

ADECAR é importante, em primeiro plano, pela possibilidade de usufruir, como todo sócio,

dos lucros conquistados e repartidos pela associação.

Ao lado dos benefícios individuais existem os coletivos. Os entrevistados destacaram a

importância que o Moinho Comunitário, a Casa de Farinha, a água encanada, o Clube Social,

o Estádio Manoel Lourenço e o Trator representam para o desenvolvimento local, facilitando

as condições de trabalho de muitos sócios e problemas vivenciados pela coletividade dos

moradores. Foi sinalizado o quanto importante foi o empréstimo financiado pelo Banco do

Nordeste para as atividades do campo de alguns sócios (plantações, manutenção da

propriedade e aquisição de rebanhos). Ainda no plano coletivo, alguns entrevistados

pontuaram que a associação, apesar da extrema dependência aos subsídios externos, é espaço

de debate coletivo sobre os problemas internos que requerem simples soluções.

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CAPÍTULO IV

O Comportamento e as Práticas Clientelistas da ADECAR

Enquanto instituição referencial no que diz respeito à problematização das demandas

do distrito de Aroeira, a ADECAR cultivou historicamente uma organização e um

funcionamento que são, no mínimo, maquiavélicos. Para ela, os fins podem indubitavelmente

justificar os meios. E são justamente esses meios que, por sua marca sutil, implícita e

mascarada, pouco permite que sejam notados e contestados.

Como objetivo elementar deste trabalho, a análise das práticas e comportamento

clientelistas e coronelistas existentes na ADECAR ultrapassa os limites da mera especulação,

mas serve, sobretudo, como perspectiva para leituras e reflexões acerca de uma experiência

local e particular, mas que é reflexo de posturas políticas parciais e instrumento para o próprio

prolongamento do status quo no âmago da cultura política do Distrito de Aroeira e, por

extensão, do município de Conceição do Coité.

Como prolongamento óbvio do poder da máquina pública e do situacionismo de

Conceição do Coité, a Associação de Desenvolvimento Comunitário de Aroeira cumpriu entre

1987 e 2008 uma tarefa não exposta em seu Regimento Interno ou no seu Estatuto. Suas

práticas clientelistas constituíram-se num ingrediente capaz de ditar as ordens entre os seus

sócios.

A ADECAR nasceu sob o signo da situação, materializando uma relação de fidelidade

e sociabilidade que atravessava também os campos do favorecimento político municipal.

Enquanto movimento comunitário que exigia mobilização popular, a instituição só possuía

duas opções: desenvolver na Aroeira um trabalho livre das trocas de favores políticos ou optar

pela conivência com os interesses político-partidários. Entre a cruz e a espada, a ADECAR

escolheu o que julgo ser mais fácil: sobreviver à custa da clientela, da generosidade e da

pessoalidade com os mandatários da política.

Na opinião de Souza, a política social abre condições de participação às populações

para lutar em suas áreas de moradia. Mas este trabalho discute como política empreendida

pela ADECAR (e sua ampliada rede de controle social) criou bases para atuação de agentes

políticos camuflados em discursos, concessões e favorecimentos que, à primeira vista, são

imperceptíveis. Assim, o povo cria a ilusão de que está ampliando suas condições de

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cidadania onde, na verdade, sempre esteve submisso à propagandas e interesses estranhos ao

grupo. Desta forma:

Cada vez mais a política social do Estado e os mandatários das políticas partidárias chegam às áreas de moradia. O Estado realiza os seus objetivos de controle nessas áreas não só através de ações definidas a partir da política social, mas sobretudo através dos objetivos personalistas dos seus agentes políticos. Muitas vezes a população se organiza para reivindicar, apenas obedecendo às orientações de mando de um ou outro político, sem atentar para a significação de sua força social. (SOUZA, 2000, p. 17)

Pensada também para o enfrentamento de dificuldades no Distrito de Aroeira, a

ADECAR – e o fardo discursivo da impossibilidade de executar mudanças com autonomia –

corroborava com a manutenção de uma estrutura social e econômica dependente, cativa e

limitada aos eventuais benefícios de doações. A dependência realimentava a imagem da

ADECAR como centro, como referência, enquanto os sócios esperavam com ansiedade e

passividade receber seu quinhão, ou a comunidade “ganhar” algum benefício. A postura

assumida pela ADECAR – de direita com clientelismo explícito – limitava as possibilidades

de luta e enfrentamento da organização social, restringindo o horizonte da mobilização e

politização dos sócios.

O conservadorismo da ADECAR restringiu igualmente as chances da própria prática

democrática e do exercício da cidadania, do questionamento propriamente dito. A política era

necessariamente acompanhada pela marca partidária (do PFL, PPB e, depois, PP). Com a

ADECAR, a estrada política só possuía uma via, a de apoio à situação. Os direitos populares

adquiridos pela participação direta e institucionalizada foram sendo reproduzidos como

concessões caridosas do poder público. Não é desconsiderar o caráter político, mas entendê-lo

como campo de direito, de responsabilidade e de impessoalidade.

Os espaços institucionais de participação têm em si mesmos um significado político. Pois na medida em que são normatizados expressam tanto o nível da força da organização popular quanto a força política dos movimentos sociais em relação com outras forças sociais. Contudo, não é suficiente ter garantidos em lei determinados instrumentos; é necessário verificar até que ponto eles possibilitam uma intervenção efetiva na esfera do real. (SOLER, 1992, p. 79)

Essa idéia nos mostra a necessidade da constante reavaliação dos objetivos, práticas e

da participação popular institucional, já que a lei nem sempre é exercida. Cabe lembrar que as

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atividades da ADECAR – e do Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do

Coité (CDM) – qualifica-a como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, por

conta da atenção ao desenvolvimento econômico e social e pelo combate à pobreza previsto

em lei23. O próprio estatuto do CDM, reformado e aprovado em junho de 2009, reproduziu

normas consonantes com a referida lei, como o destaque à legalidade, impessoalidade e

moralidade de suas atividades, sem haver discriminação de raça, cor, gênero ou religião,

estando a entidade desobrigada de distribuir quaisquer excedentes ou bonificações aos seus

sócios, membros ou parceiros.

A lei Nº. 9.790 também dispõe sobre as prováveis relações entre as Organizações da

Sociedade Civil e os interesses político-partidários. O texto é compreensível ao estabelecer

que Art. 16. É vedada às entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de

Interesse Público a participação em campanhas de interesse político-partidário ou eleitorais,

sob quaisquer meios ou formas. Podem ser feitas parcerias com o poder público, mas não

significa trilhar um caminho de trocas partidárias, eleitoreiras e clientelistas.

Entre 1987 e 2008 a ADECAR manteve com o poder público de Conceição do Coité

uma afinidade que além de política, é partidária, tem lado. Esta relação não é resultante de

uma pressão externa, mas uma construção realizada pelo interesse duplo. De um lado, o

governo municipal conseguiu, na aliança com a ADECAR, difundir sua face política e

desenvolver controle e/ou influência sobre um grupo organizado. Por outro lado, a instituição

reconheceu que era necessário estabelecer alianças, encontrar um terreno político firme,

mesmo que isso custasse a sua pretensa autonomia e espontaneidade.

O desenvolvimento pode – e deve – ser político, mas nunca partidário. A organização,

a participação, o questionamento e a cobrança populares passa necessariamente pelo viés

político, pelo reconhecimento de direitos e deveres. No entanto, prender o desenvolvimento

comunitário de Aroeira ao controle do executivo municipal (PFL, PP e sublegendas) excluiu

seu conteúdo espontâneo e o próprio papel de protagonista de seus atores, já que o

desenvolvimento ficou a cargo essencialmente nas mãos da Direção e dos políticos que ela

apoiava. Os sócios, sempre pedintes, pouco faziam, além de assinarem abaixo-assinados

solicitando obras, benefícios ou participarem de reuniões.

Mas a aliança com partidos políticos não é exclusividade do desenvolvimento

comunitário de Coité, conforme Soler em análise da relação entre agentes do governo de

Recife e os mecanismos de participação popular:

23 Maiores detalhes consultar o Artigo 3º da lei federal Nº. 9.790, acessada em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9790.htm em 6 de dezembro de 2009.

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O tema da realização de alianças com partidos políticos é posto para os movimentos populares. Na verdade, escolher um ou outro prefeito pode significar um reforço ou uma retaliação aos interesses populares. Essa situação sugere às entidades populares a conveniência de estabelecer algum tipo de aliança com determinados partidos políticos, pelo menos em época de campanhas eleitorais. (SOLER, 1992, p. 82)

A Presidência ou Direção da ADECAR é um dos principais elementos que evidenciam

a subserviência dos objetivos da instituição aos interesses da manutenção política de Coité. O

principal fundador da ADECAR, Deraldo Ramos Guimarães, tornou-se, anos mais tarde,

membro destacado na política de Conceição do Coité, sendo vice-prefeito em dois mandatos

(2001-2004 e 2009-2012) e Secretario de Esportes (2005–2008), sempre com apoio irrestrito

ao PFL, PPB e ao segundo PP (da Convenção Nacional de 2003).

Com a reativação de 1994, a ADECAR continuou com sua marca e composição

conservadora, presidida por Antônio Carlos Gordiano Lima. Este presidente não se

transformou em ícone político, mas sempre compactuou com a direita de Coité. Tornou-se,

posteriormente, beneficiário do funcionalismo municipal e dono da Aroeira Publicidade, a

mesma que veiculava músicas da campanha de Renato Souza.

Apesar das experiências pró-direita dos anos anteriores, a Direção de José Aldo

Gordiano Lima, irmão de Antonio Carlos, foi a que mais claramente serviu aos mandatários

da política de Coité. O seu mandato, consolidado no início de 1996, defendeu as mesmas

preocupações e perspectivas das direções anteriores, mas trouxe singularidades que merecem

análise minuciosa. O primeiro ponto que devemos destacar é que José Aldo é também

funcionário municipal (professor) e há anos é Diretor da rede municipal de educação nas

escolas da região de Aroeira e, portanto, cargo de confiança nos governos de Éwerton Rios

D’Araújo Filho, Wellington Passos de Araújo e, atualmente, de Renato Souza Santos.

Outro aspecto é de como a presidência da ADECAR tem se prolongado de forma

intencional, sem grandes mudanças nos discursos e na estratégica composição de seus

membros. Embora o estatuto estabeleça que a Diretoria Executiva tenha mandato de dois

anos, com a possibilidade de reeleição, José Aldo já está há 14 anos a frente das decisões da

ADECAR, numa clara demonstração de que o controle da instituição é politicamente

importante dentro do Distrito de Aroeira.

A extensão da presidência de José Aldo faz parte, nesse sentido, de um apoio político

implícito, naturalizado pelo não dito, pelo silêncio, por justificativas incoerentes e ludibriosas

como “é assim mesmo…”. Mas a parceria ADECAR–Prefeitura não ocorre apenas nos jogos

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de bastidores; nas últimas eleições municipais, o apoio da presidência de José Aldo ao

candidato Renato Souza foi escancarado em alto-falantes por toda Aroeira e região. Na tarde

de 23 de setembro de 2008, por exemplo, o presidente da ADECAR anunciava a realização de

reuniões nos povoados de Açude e Boa Vista de Aroeira, além do comício na sede do Distrito

“com toda a família do 11”. Segundo ele, no dia 5 de outubro, todos deveriam votar no 1124,

sinal de continuidade no progresso de aroeira. Frases como “O 11 é o continuísmo do

progresso de Coité.” e “Nunca vi o 11 trabalhar tanto” foram reiteradas continuamente na

mesma ocasião. Os períodos de eleições são, por excelência, os momentos de mais

agressividade partidária da ADECAR, seja internamente ou pela propaganda noticiada

abertamente em Aroeira e adjacências.

É impossível menosprezar a dimensão política das associações comunitárias, já que

seu enfrentamento também exige diálogo com mecanismos de poder em busca de êxito para

suas opções de luta. A ação comunitária, como esforço coletivo e consciente, precisa

igualmente de ajuda externa, ao passo que a comunidade estar ligada aos níveis de poder

centralizados e não consegue resolver isoladamente os problemas nas suas diversas áreas e

setores. No entanto, o desenvolvimento comunitário, seja com apoio público ou privado,

nunca deve abdicar de sua autonomia, de seu poder democrático de participação, protesto e

luta.

As estruturas de apoio ao DC não devem ser confundidas com as estruturas técnico-burocráticas das instituições públicas e privadas que interferem nas comunidades por força da política social e mesmo daquelas que interferem por força de alianças conscientes com as camadas populares. (SOUZA, 2000, p. 207)

Precisamente sobre a questão política, Souza continua afirmando que:

A associação é órgão basicamente político embora não deva ser partidário. Nesse sentido, precisa ter clareza quanto aos princípios políticos que devem orientar suas ações, a fim de poder confrontá-los e avaliá-los. (SOUZA, 2000, p. 218)

Na medida em que o desenvolvimento comunitário veste a camisa partidária

transforma-se não somente numa estrutura técnico-burocrática de cooptação partidária, como

também desrespeita e afasta-se dos reais interesses da população que representa. Ao aliar-se

24 Número referente à coligação formada pelo PP, PTN, PRB, DEM, PHS, PSDB.

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partidariamente, a associação reformula seus objetivos, suas estratégias de mobilização e

força, sua função e seus resultados sociais, políticos e econômicos. Seus líderes e membros

aderem, então, a novos caminhos de arregimentação e de atuação. Com a partidarização da

associação, as premissas da autonomia, democracia e espontaneidade são substituídas pela

cooptação partidária, alimentada pelos objetivos individuais e a curto prazo, pela rede de

dependência e pelas relações de clientelismo e de mando.

Além do mais – e não é um traço exclusivo da ADECAR – a participação na política

social se caracteriza muito normalmente pela aceitação de programas-pacotes anteriormente

estabelecidos. Participar não mais é do que executar ações padronizadas e engolir

instintivamente os valores e os planos que lhes acompanham. Nessa relação automática, as

decisões são basicamente hierarquizadas, e o público-alvo não participa do planejamento, das

decisões e nem consegue realizar o protagonismo inerente à participação popular.

Muito embora Souza defenda que “a participação social é processo contrário à

dominação, à concentração do poder”, nem sempre a participação está desprendida de um

exercício de poder:

O jogo das forças de cooptação dos grupos dominantes atua nos mais diversos níveis. As próprias instituições sociais muitas vezes atuam nesse sentido. Além dessa ação, há ainda níveis mais simples de cooptação, como o apadrinhamento pessoal e a troca de favores, que resultam em compromissos e alianças estranhas aos interesses e preocupações fundamentais de muitos agentes sociais, que passam a agir contrariamente ao seu próprio grupo social. (SOUZA, 2000, p. 128-29)

Os discursos políticos têm utilizado com freqüência a questão do desenvolvimento

local e a participação popular como estratégia para uma nova proposta de crescimento e

sustentabilidade, aproveitando-se das condições territoriais, econômicas e sociais do próprio

local. No caso da ADECAR, entretanto, o setor público transformou a associação em órgão

formal, burocrático, responsável por formalidades e interesses político-partidários em troca de

recursos assistenciais que são distribuídos como forma de intermediação. Sua ação

transformou-se em fiel canal de comunicação e trocas entre a agremiação social e o poder

público municipal. Trazendo mais um exemplo, o presidente em exercício declarou, segundo

Ata de 24/01/1997, que “foi procurado pelo prefeito para unir associação a Prefeitura para

fornecer empregos para os sócios para chegar com mais facilidade o desenvolvimento, de

cada povoado e o melhoramento da população e do nosso município”. Através da ADECAR

os mecanismos de controle social são praticados sem grandes dificuldades, facilitados pela

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compreensão de que ela é referência comunitária no desenvolvimento e resolução de

dificuldades.

Há também episódios interessantes sobre a ADECAR que merecem registro.

Lembremos que o antigo clube social (usado como sede da Associação por mais de uma

década), construído com mão-de-obra de muitos dos sócios, foi vendida para prefeitura e

transformada na sede da escola municipal. A Prefeitura, em contrapartida, presenteou a

ADECAR com a área pública onde funcionava anteriormente a referida escola; a instituição e

o vereador local lotearam o terreno e transferiram os recursos para construção de uma nova

sede. Na mesma época, entre 2007 e 2008, o Açougue Municipal foi anexado como

patrimônio da ADECAR, que comandou a venda do imóvel (tornando-se propriedade

privada) e a utilização dos recursos adquirido na construção de obras como o Estádio e o

Clube Social, ambos inaugurados pelo próprio prefeito Éwerton Rios d’Araújo Filho. Ou seja,

a prefeitura entende a ADECAR como um órgão administrativo, sempre disposto a

negociação.

Por meio das entrevistas com sócios e ex-sócios é possível analisar a teia de relações

compartilhadas dentro da ADECAR. Uma das questões-chave dos depoimentos referia-se ao

tratamento que a instituição oferece individualmente aos sócios. Há, nesse ponto, diversos

problemas que exigem análises pontuais. O primeiro problema exposto pelos entrevistados é

de que, em muitos casos, a ADECAR beneficia individualmente não-sócios ao invés de seus

sócios. Ou seja, muitos sócios (particularmente os que mantinham posicionamento político

adverso ao do Diretor) acabavam sendo “esquecidos”, e alguns benefícios recebidos e

distribuídos pela Associação eram desviados para satisfação de pessoas que não a

freqüentavam em sacrifício daqueles. Questionada se haveria tratamentos diferenciados para

com os sócios, em entrevista de 27 de junho 2009, uma das sócias destacou que:

Às vezes vinha pros sócios e os sócios às vezes ficava lá esquecido; escolhia assim aqueles lá, não sei nem como e a gente só ficava sabendo, “olha, veio coisa, pra associação”. Mentira, a gente nunca participou de nada. Como mesmo, às vezes vinha na Semana Santa, vinha peixe, outra hora teve uma vez também num sei se foi, teve uns bujões aí que veio, a gente não, não participou. Numa comparação, a gente só teve direito de pegar dois, como eu e meu esposo era sócio, a gente cada um pegou um, pegou um assim, de uma parte, pagando uma parte. E aqueles que não era sócio comprava os bujões todinho, podia querer 4, 5 tinha direito mais que a gente, aí fiquei chateada. Sempre existia, sempre se chateava desse por esse entendimento, esse modo de ver assim a associação. Eu achava que o sócio tinha mais direito de que o não-sócio e a gente não tinha, não tinha o direito que os outros tinham. Ou achava que o dinheiro dos outros era maior do que

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a gente que pagava só a metade. (GUIMARÃES. Entrevista concedida em 27 jun. 2009)

Outra entrevistada respondeu a mesma questão, em 14 de agosto 2009, apontando

novamente o desrespeito que a ADECAR comete para com alguns de seus sócios ao tratá-los

distintamente, ou ignorando-os em benefícios de não-sócios:

É, naquele existia, porque vinha, vinha, vinha cisterna; eu como uma sócia nunca fui beneficiada quando eu morava na roça. Veio, disviava as cisternas dos sócios pra dar a quem não era sócios. Tinha os problemas dos peixes na Semana Santa também; a gente, alguns que era beneficiado não era… pertencia a Associação, e nós como sócios, nós não tinha direito nisso aí, não era beneficiado nessas coisas aí. E a diferença é nessas coisas, porque as cisternas que vinha pra dar aos sócios era dos sócios, não tinha nada que desviar pra outras pessoas que não era sócio. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)

Embora os depoimentos coletados, resultantes da História Oral, não possam ser

encarados, como qualquer fonte, como retrato absoluto e objetivo ou como reveladores do que

realmente aconteceu, é impossível ignorá-los ao se analisar os comportamentos e a relação

entre ADECAR e seus sócios. As experiências dos entrevistados reafirmaram muitas das

hipóteses e problemáticas suscitadas pelo projeto, ao mesmo tempo em que trouxeram

contribuições inúmeras de novas leituras e releituras acerca da referida instituição. Os relatos

acima apontam o quando deficiente é a concepção de associativismo cultivada pela Direção,

já que além de desrespeitar todas as regras consensuais de relacionamento com os sócios, a

ADECAR não os privilegia em suas atividades. Bem mais importante é notar que, desse

modo, a instituição adere a uma medida suicida e coopera para sua própria crise, já que a

adesão ao associativismo não constitui beneficiamento real ou critério de prioridade.

O segundo problema confirmado pelas entrevistas é o comportamento clientelista

promovido internamente pela ADECAR através de formas diferenciadas de tratamentos para

com seus sócios. Seu comportamento pode ser representado com a célebre frase “para os

amigos pão, para os inimigos pau”, sendo a subserviência política (pró-situação) o principal

pré-requisito para tornar-se amigo da Direção. Postos lado a lado, a lealdade partidária dos

sócios foi muitas vezes fator definidor do acesso aos benefícios individuais repartidos pela

Associação. Surgida para coletividade e para defesa genérica de seus sócios, a ADECAR

petrificou-se como órgão de pressão político-partidária e protagonista na relação eleitor-voto-

candidato. Seu comportamento de incentivo à bajulação e à subserviência pretende definir o

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situacionismo como único caminho favorável, classificando as oposições como desvios

condenáveis e improdutivos. Uma entrevistada que acompanha a ADECAR desde sua

fundação e não simpatiza com os candidatos políticos da atual direção declarou que sempre

sofreu sansões da instituição, já que os tratamentos diferenciados recebidos pelos sócios são

definidos politicamente:

Eu acho é porque… um jogo político. Porque uns vota pro lado deles era bem tratado, os outros que não votava eles tinham uma diferença terrível. Até as coisas que vinha mesmo, através da Associação, quem não votava com eles não achava, e quem votava eles levava até na porta, é. Eu mesmo nunca ganhei nada através da Associação. Nada, nada, nada, nada. Nunca fui beneficiada com nada da Associação. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)

Só podemos entender esse comportamento se lembrarmos das adaptações que as

práticas clientelistas e coronelistas passaram ao longo do século XX para sobreviver. Como já

destaquei no primeiro capítulo, os coronéis remanescentes foram obrigados a utilizar novas

bandeiras, novas formas de concentração de poder e de controle eleitoral. O desenvolvimento

comunitário da ADECAR expressa como o clientelismo foi institucionalizado e apropriado

como tática de manutenção de uma elite política em Conceição do Coité. Em outra entrevista

de 28 de junho 2009, o depoimento de um sócio que foi inclusive membro do Conselho Fiscal

da ADECAR falou da relação política entre a instituição e a situação municipal (PFL, PPB e o

atual PP). Questionado se haveria algum tido de propaganda política em defesa de grupo,

candidato ou partido de forma específica, declarou que:

Continua com o grupo do atual prefeito que é Renato. Sempre continua com o mesmo grupo. Eles ajudam e eles apóiam também, com certeza. Não é nada escondido, é tudo claro, às claras, entendeu?… Geralmente a ADECAR tem muito o apoio deles lá e eles também… e a associação que apóia eles também. (GONÇALVES. Entrevista concedida em 28 jun. 2009)

As duas faixas a seguir são exemplos da identificação entre a ADECAR e a prefeitura

de Coité. Além da relação de intimidade, a instituição faz propaganda e apologia do poder

público.

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Em outra entrevista de 20 de outubro, o depoimento de uma participante da fundação

respondia à questão: seria a ADECAR é uma entidade autônoma e independente ou sua

existência ligava-se a algum tipo de controle ou de certa manipulação política? Sua responda

mostra como a Associação tem se sustentado nos braços da política dependente.

Na verdade, a ADECAR ou uma associação ela é uma instituição autônoma, mas funciona mesmo é ligado ao controle político, e também pela manipulação política, porque sem a… o político como… meio de comunicação com o poder público você não consegue nada com essas associações. (ALMEIDA. Entrevista concedida em 20 out. 2009)

O terceiro grande problema apontado pelos entrevistados diz respeito ao mandato de

Direção da ADECAR, notavelmente o comando de 14 anos de José Aldo Gordiano Lima.

Sempre governista, ela nunca conseguiu esconder sua intencionalidade mais profunda, seu

prolongamento politicamente influenciado, independente dos meios necessários para tal. Ao

ignorar o Estatuto de forma escancarada, a Direção ratificou um controle sobre a possibilidade

de pressão política na comunidade. A participação popular esteve, assim, condicionada pelo

que Bottomore denomina como controle social do republicanismo:

Todo grupo social, na realidade pode ser estudado do ponto de vista do controle social que exerce sobre seus membros, e a contribuição que faz à regularização do comportamento na sociedade em geral. (BOTTOMORE, 1987, p. 199)

Segundo Azambuja, em comunidades muito pequenas comumente a regulação

comportamental dos indivíduos é empreendida pelos valores e normas de condutas

compartilhadas pelo grupo. O contato entre membros é sempre notável, ao mesmo tempo em

Figuras 1 e 2 - Faixas utilizadas na inauguração do Estádio Manoel Lourenço de Santana, em Agosto 2008.

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que eles podem ter aproximação com os seus próprios representantes políticos. Mas a opinião

pública também sofre interferências e habitualmente é consolidada por meios poderosos e

sutis de propaganda. Com relação à este ponto, Azambuja menciona:

A propaganda utiliza todos os modos de comunicação do pensamento e de sugestão, e é modernamente um formidável instrumento usado pelos governos, partidos políticos e corporações de toda espécie para criar correntes de opinião, suscitar desejos coletivos, distrair, captar e dirigir a atenção do povo. (AZAMBUJA, 1989, p. 266)

E continua destacando que:

A propaganda política visa valorizar e exaltar um candidato, um partido, um regime de governo, e quase sempre menosprezar, criticar e ridicularizar o adversário. Exagera ou inventa as qualidades daqueles e silencia ou nega as qualidades deste, se porventura as tem. (AZAMBUJA, 1989, p. 340)

No entanto, se o controle da Direção pelos interesses políticos é naturalizado por

alguns, outros sócios apontam insatisfação não apenas sobre o prolongamento, como também

suas formas de escolha. Numa outra entrevista, de 29 de junho 2009, o depoimento de um ex-

integrante da Diretoria concorda que é preciso mudar:

Ele (José Aldo) pode dar vaga pra outro, se não vai virar o que, Monarquia, vai virar ditadura. Não pode… tem gente mais capacitado do que outro. Não tô acusando o senhor presidente, mas ele pode ceder a vaga. Como o próprio vereador está dizendo que ele está deixando o cargo de vereador aqui em Aroeira. Se não vira monarquia, vira dinastia, vira tudo. (CEDRAZ. Entrevista concedida em 29 jun. 2009)

O problema não seria mudar somente o presidente, mas o comportamento

historicamente cultuado e a rede de relações esdrúxulas, as trocas de favores rasteiros e o jogo

de pressão clientelista e partidária de incentivo ao situacionismo municipal. Outra

entrevistada, participante desde 1987, apontou como costuma ocorrer o preenchimento da

Diretoria Executiva da ADECAR.

Quando quer fazer eleição não tem eleição; é… o candidato é nomeado de boca. Isso não existe, tem que ter eleição, de urna, de chapa, de tudo, porque tem que ter dois concorrentes, né… dois concorrentes numa eleição, um Chapa 1 e Chapa 2 que nem faz os candidatos, os candidatos é assim. Agora não, muitas vezes é só de boca, é por isso que tem gente aqui que diz

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que se ele sair de ser presidente que sai também da Associação. (SILVA. Entrevista concedida em 14 ago. 2009)

Não estamos falando da Primeira República, mas a escolha da Diretoria nos lembra as

fraudes cometidas pelos velhos coronéis. Para conservar o raio de ingerência na ADECAR foi

preciso controlar seus passos, sua diretoria e seus discursos; a Direção criou laços fortes de

fidelidade com seus sócios e destes com seus representantes políticos. Uma ilusão

democrática que camufla a propaganda partidária disfarçada pelo tempo e pelas ações sutis

dos presidentes entre 1987 e 2008.

Em 2008, a Associação conquistou uma vitória dupla: a chegada de Renato Souza ao

executivo e a nova manutenção de José Aldo em sua presidência. Em Aroeira, o apoio ao PP

foi, mais uma vez, maciço, como expresso na tabela abaixo, e a comunidade-eleitoral

participou com raras chances de escolhas. O próprio Figueiredo afirma que nos currais

eleitorais, as decisões eleitorais são profundamente desprovidas de opções.

Nos chamados “currais eleitorais”, os eleitores estão na situação de falsa oportunidade de escolha. Os benefícios ou retaliações a que estão sujeitos não dependem de suas opções, mas das chances de vitória do candidato, as quais não são definidas dentro das “cercas” desse “curral”. Se o candidato ganhar, tudo bem; se ele perder, de nada adianta dizer que votou nele; neste caso, a única opção é votar, independente das vontades individuais, na “esperança vazia” de que ele seja eleito. (FIGUEIREDO, 2008, p. 135)

No caso de Aroeira, mesmo não havendo proeminência da racionalidade nas escolhas,

segundo a definição supra mencionada, o apoio ao PP também foi direcionado pelos desejos

da utilidade do voto e pelos incentivos (e compromissos) econômicos compensatórios, como

os ganhos individuais ou coletivos. Com isso, não podemos dizer que a racionalidade foi

completamente negada, mas somente minimizada e trocada pelas relações de clientelismo,

onde eleitores justificaram o apoio à situação pela utilidade do voto. Esta racionalidade

econômica, por outro lado, foi geralmente limitada pela inexistência de uma justificativa

coletiva, havendo especificamente incentivos individuais (distribuição de objetos, recursos,

viagens ou dinheiro).

Mas o ato de votar apresenta uma dimensão bilateral, e se o voto adquire um valor

(uma chuteira, um emprego, um contato com o governo) nascido das condições sociais do

próprio eleitor, os políticos fazem suas ofertas com base nessas mesmas condições. Ou seja,

as demandas de curto prazo dos eleitores são utilizadas pelos políticos como plataformas

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eleitorais, como estratégia de manutenção da dependência e apoio enquanto existirem. Os

incentivos econômicos devem estar contextualizados para seu entendimento.

Na entrevista concedida por Edvando Santos de Oliveira, presidente da Associação

Comunitária do Bairro da Jaqueira (ACOMAN), em 14 de novembro 2009, pode-se inferir

que o associativismo pode ser executado conforme uma nova acepção e funcionalidade, mais

democrática, consciente e sem os mecanismos da troca de favores, da submissão partidária e

clientelista. O entrevistado afirma que a Associação está disposta a dialogar com todas as

perspectivas políticas, tanto a situação (Executivo e Legislativo municipal) quanto a oposição,

“desde que não venha usar a comunidade pra nada, venha com a verdade”. Os trabalhos

realizados pela ACOMAN demonstram a disposição para acordos livres de partidarismos,

livre dos interesses de manipular a Associação em favor de promoção política de sua

Diretoria, de alguma liderança local ou dos seus eventuais parceiros que ela adquire. Na

relação que pode haver com o poder público da cidade, Edvaldo pontua que “a Diretoria tá aí

pra isso, não pra puxar pra um nem pra outro, eu falo isso como Presidente. A entidade ta aí

pra abraçar uma causa, mas que venha de uma forma limpa, transparente e justa, é essa a

finalidade da gente em relação ao Executivo e ao Legislativo aqui de Coité”. Isso significa

que a Associação não deseja ser submissa à Prefeitura, mas sim comunicar-se para o

atendimento das dificuldades comunitárias. Enfim, em uma estrutura política que sempre

penetrou nos ambientes das experiências comunitárias, é essencial não trocar o enfrentamento

e a cobrança como direito pela paralisia benevolente, dependente e perseguidora da política

partidária.

Hoje em dia o que se vê aí é grupos e mais grupos brigando pelas associações pra em meio delas ganhar o poder, implantar várias alienação na mente do povo, entendeu?… quando na verdade, que a gente vê muito isso no… no… no município da gente, é associações, associados sendo maltratados porque vota no grupo tal, no grupo tal, e não é do meu grupo, entendeu… não é do grupo do presidente, então por isso não merece um tratamento, não merece receber alguns projetos, não merece participar de algumas coisas. Então no momento que isso começa a acontecer, que a política entra dentro do associativismo ele deixa de ser associativismo e passa pra ser político. (OLIVEIRA. Entrevista concedida em 14 nov. 2009)

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Dados das seções do Distrito de Aroeira nas Eleições municipais de 200825.

Cargo – Prefeito Quantidade de votos nominais26 % em relação ao total de votos

nominais (aproximadamente).

Renato (PP) 752 68,73%

Assis (PT) 304 27,78%

Alex (PMDB) 38 3,47%

25 Informações extraídas do Boletim de Urna das eleições 2008, acessado em http://www.eleicoeslimpas.tv.br/bu.pdf, em 03 de dezembro 2009. 26 Exclui-se, portanto, os votos brancos ou nulos. 27 Não contabilizados os votos de legenda.

Cargo – Vereador Quantidade de votos nominais27 % em relação ao total de

eleitores com votos nominais.

Edevaldo da Aroeira (PP) 780 66,66%

Demais candidatos 390 33,33%

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CONCLUSÃO

A liberdade é a capacidade do homem de assumir seu próprio desenvolvimento. É nossa capacidade de moldar a nós mesmos. (Rollo May)

As desigualdades sociais herdadas do desenvolvimento nacional do Brasil exigiram

das elites um processo estratégico de dominação dos excluídos. A participação política de

imensa parcela dos brasileiros vincula-se normalmente às necessidades mais elementares da

existência humana, como a luta pelo direito de comer, beber, vestir e ter uma moradia. A

preocupação com os problemas das camadas populares foi sendo acompanhada pelo discurso

da benevolência e compreensão, mas escondendo a intenção real de reproduzi-los. Os grupos

favorecidos mantêm-se fortemente instrumentalizados, e vigilantes, captando as dificuldades

da maioria da população de utilizando-as como justificativa para sua dominação.

Pelos mecanismos políticos e econômicos, as elites coletivizaram seus interesses e

tentaram converter suas preocupações em interesse nacional. As disparidades sociais e as

explorações, contudo, evidenciaram a necessidade da reação dos não-privilegiados e a

participação nos espaços públicos de reivindicação e enfrentamento político. Mas a

participação não deve ser observada como exclusividade dos pobres e miseráveis;

participação é ação frente aos desafios e é processo de todos os segmentos sociais impedidos

de decidir as questões referentes às suas condições.

Essa mesma participação entusiasma interesses de agentes externos pelo controle da

população e é indispensável entender que, ao invés de reprodução da ordem, a participação é,

como nos lembra Souza, questão social. É possível que os ambientes de moradia sejam

espaços de transformação social, de ampliação democrática das condições de luta dos não-

privilegiados.

Em Desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen versa sobre a imprescindibilidade

das várias formas de liberdade no processo de desenvolvimento e superação dos problemas,

privações e mazelas que ainda afligem o mundo. Nessa luta, a liberdade é entendida como

“um comprometimento social”, e não seria somente o fim, mas o principal meio pelo qual se

busca o desenvolvimento. Liberdade é não somente independência para as ações, mas a

existência de oportunidades reais para as pessoas atenderem às suas demandas.

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O desenvolvimento seria a possibilidade de as pessoas usufruírem de oportunidades

que efetivem sua condição de agente. A eliminação das privações é fator constituinte do

desenvolvimento, e isso depende fundamentalmente da condição de agente dos indivíduos

que, por sua vez, pode ser podada pela baixa oportunidade em termos sociais, econômicos,

políticos que acompanham milhões de pessoas. Muitas vezes a pobreza econômica limita a

liberdade, já que as pessoas não possuem liberdade para ter boa alimentação, adquirir

remédios, ter acesso à moradia, roupas e água tratada de qualidade. No entanto,

desenvolvimento não se resume ao crescimento econômico, tecnológico e do capital privado,

mas compreende também fatores como as disponibilidades sociais e econômicas (saúde,

educação, por exemplo) e civis (como a permissão para participar de discussões públicas).

Segundo a autora, as liberdades de diferentes tipos (políticas, facilidades econômicas,

sociais, segurança protetora e a garantia de transparência) podem vincular-se mutuamente,

reforçando-se. Se uma liberdade pode ajudar na promoção das demais, as privações podem

ter, do mesmo modo, um efeito dominó; as exclusões ou falta de liberdades econômicas,

sociais e políticas podem interligar-se densamente.

Como o desenvolvimento pressupõe a liberdade, as pessoas envolvidas devem ter

funções ativas nesse processo, o que significa que não cabe ao poder público (e os possíveis

agentes externos) fazer simplesmente o serviço de entrega de encomenda, mas o de

fortalecimento e proteção das capacidades e liberdades humanas. Ao invés de beneficiários

passivos dos programas de desenvolvimento, os indivíduos devem almejar a condição de

agente livre e sustentável.

Comparando o desenvolvimento apregoado por Amartya Sen ao que tem sido

experimentado pela ADECAR percebe-se discrepâncias importantes entre as duas

perspectivas. Creio que temos dois desenvolvimentos: um ideal e um real. O primeiro é o de

liberdades e autonomias individuais, como campo de direito, de conscientização e

protagonismo de seus agentes. O segundo, presente na experiência da ADECAR, é um

desenvolvimento de dependência extrema, como campo de mendicância (e não de direito) e

de subserviência aos interesses partidários do governo municipal de Coité. Um espaço de

clientelismos, propagandas e pressões em favor de uma estrutura de privilégios e à custa dos

sócios (e toda comunidade).

O desenvolvimento real da ADECAR não é menos repugnante que os interesses

políticos que ele serve. Ambos compartilham das curtas práticas, dos objetivos

individualizados e da lógica clientelista de dependência. Isto certamente prejudica a própria

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instituição, já que não havendo objetivos longos inexistem perspectivas de conquistas,

desenvolvimento e, portanto, liberdade.

Uma associação, para ter vida longa, precisa ter claros objetivos que pretende atingir. Quanto mais esses objetivos têm uma perspectiva a longo prazo, mais a associação tem condições de crescer e se desenvolver. Os objetivos imediatos devem ser uma maneira de realização dos objetivos a longo prazo. (SOUZA, 2000, p. 219)

É importante lembrar esse ponto porque a ADECAR convive atualmente com a evasão

e desinteresse de muitos sócios. A instituição já não exprime atração, motivação ou consegue

atender às aspirações de muitos deles, que resolvem simplesmente sair. A medida mais

coerente não deveria ser a evasão, mas a resolução das insatisfações convivida pelos sócios. O

problema é que, em contrapartida, há um jogo interessado na reprodução das práticas, do

controle, do discurso e da conveniência partidária impregnada na ADECAR.

A institucionalização de mecanismos de participação direta somente pode ser considerada uma conquista na medida em que se torne espaço de decisão e não só espaço de confronto de idéias. Pois, no último caso, o espaço institucional configura-se como uma concessão das classes hegemônicas. Resulta ser apenas um espaço formal e inócuo, sem poder real. Pelo contrário, um espaço institucional de participação é uma conquista quando não se torna o final de uma luta, mas expressão real da relação de forças existentes na sociedade, quando a negociação configura um método e um meio das classes não hegemônicas para fazer valerem seus interesses específicos. (SOLER, 1992, p. 88)

A ADECAR buscou vestir nos seus sócios o “véu da ignorância” ou a “camisa-de-

força”, trocando os possíveis ganhos pela lealdade partidária e pelo apresso à situação política

municipal (PFL, PPB e, finalmente, PP). A instituição pretendeu – e de certo modo conseguiu

– direcionar a participação eleitoral dos sócios, fazendo com que muitos acreditem que sua

honra contraiu uma dívida com o pacto partidário. Aos que resistem (tidos como desvios de

comportamento) sobra a indiferença e o descaso diante dos benefícios coletivos. Aos sócios

relutantes, opositores à situação – que estão munidos somente com a possibilidade

democrática da escolha – só restam duas opções: permanecer na ADECAR recebendo

tratamento especialmente rebaixado ou optarem pela saída. Há, enfim, a esperança (e sempre

existe uma) de que as coisas um dia mudem, e que não seja necessário haver tanta confusão e

promiscuidade entre o desejo desses sócios de participar, reivindicar e melhorar as condições

de uma vida já calejada pelas exclusões e os rigorosos interesses partidários de uma elite

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política, social e econômica. A esperança dos sócios rechaçados é que, na democracia

eleitoral, nenhuma derrota ou vitória é definitiva; sempre haverá uma nova chance.

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SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do

romance brasileiro. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000. (Coleção Espírito Crítico)

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.

São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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88

SOARES, José Arlindo; LOSTÃO, Salvador Soler. Poder Local e Participação Popular. Rio

de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992.

SOUZA, Maria Luiza de. Desenvolvimento de Comunidade e Participação. 7 ed. São Paulo:

Cortez, 2000.

Fontes

Sobre a ADECAR

Atas de Assembléias Gerais da ADECAR

Termo de Doação de 02 de Dezembro 1994.

Convênio Nº. 525/94 – Assessoria Jurídica – CAR.

Convênio Nº. 219/1997 entre a CAR e a ADECAR.

Estatuto da ADECAR – 03/05/1987

Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 22/05/1998

Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 05/06/2005

Relação dos Membros da Diretoria da ADECAR – 30/09/1987

DVD de Inauguração do Estádio Manoel Lourenço de Santana – 09 de Agosto 2008.

Sobre o FUMAC/CDM

Ata de Reunião Ordinária do Conselho do FUMAC-P – 05/02/2002

Relação dos Membros do Conselho do FUMAC-P – 05/02/2002

Regimento Interno do FUMAC – 04/06/1998

Ata de Criação do Conselho Municipal do FUMAC – 04/06/1998

Regimento Interno do Conselho Municipal do FUMAC-P – 05/02/2002

Regimento Interno do Conselho de Desenvolvimento Comunitário de Conceição do Coité –

14/10/2003

Ata de Reunião Extraordinária do CDM-FUMAC – 23/05/2008

Estatuto Social do CDM-FUMAC de Conceição do Coité – 01/06/2009

Ata de Reforma Regimental do CDM-FUMAC – 02/06/2009

ENTREVISTAS

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89

ALMEIDA, D. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 20 out.

2009.

CEDRAZ, V. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 29 jun. 2009.

GONÇALVES, D. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 28 jun.

2009.

GUIMARÃES, V. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 27 jun.

2009.

OLIVEIRA, E. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 14 nov.

2009.

RODRIGUES, L. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 15 ago.

2009.

SANTOS, F. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 06 jan. 2010.

SILVA, M. Entrevista concedida a Márcio Carneiro de Lima. Conc. do Coité, 14 ago. 2009.

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ANEXOS

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ANEXO 1

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS QUATRO TIPOS DE OLIGARQUIAS BRASILEIRAS, 1889-1930

Familiocrática Tribal Colegiada Personalista

Forma de

Associação

Membros consanguíneos

Membros não-

consanguíneos

Dependentes sócio-

econômicos confinados

numa região menor, uma

comarca ou um

município rigorosamente

organizado/centralizado.

Grupos de famílias

relacionadas, vindas

do setor rural do

estado, organizado

por aliança ou

quadro compacto e

descentralizado.

Famílias e clãs,

grupos de interesse

econômico

seguidores

individuais vindos

das áreas urbanas e

rurais

descentralizadas com

chefes definidos dos

subgrupos.

Grupos de famílias

relacionadas ou não,

clãs, seguidores

individuais de um líder

carismático, vindos de

todos os setores urbanos

do estado, altamente

centralizada organizada

e mantida pelo carisma

do líder.

Objetivos

Preservação dos

interesses econômicos

familiares, monopólio

do poder político, desejo

de dominar o respeito

social.

Perpetuação do

status quo ou do

grupo dominante,

monopólio dos

cargos políticos:

municipais,

estaduais e federais.

Expansão dos

interesses

econômicos dos

membros colegiados,

preservação pelo

grupo do monopólio

da política estadual e

federal, controle da

presidência federal.

Preservação do status

quo dos membros,

controle pessoal da

política estadual ou

federal pelo líder, uso

arbitrário dos recursos

públicos pelo líder, para

o grupo.

Meios de

Controle

Supremacia econômica,

laços de dependência,

capacidade de dispersar

favores, uso de forças

armadas privadas.

Promoção do

nepotismo/favores

políticos, usurpação

dos recursos

públicos para os

interesses tribais,

uso das forças

armadas tribais e

milícias do estado.

Exercícios pessoais,

estaduais, federais,

organização de

partido ou colegiado

de interesses do

grupo, divisão

eqüitativa dos

“favores” dos

governos estadual e

federal.

Promoção do nepotismo

e dos favores políticos,

uso da milícia do

estado, partido de

membros pessoalmente

leais, alianças eleitorais,

acordos.

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Lealdade

Dirigida ao chefe da

família, permanente,

inalienável.

Dirigida ao chefe

tribal eleito ou

reconhecido,

temporária ou por

toda a vida do

chefe.

Dirigida ao líder da

facção (tribal) do PR.

Dirigida ao líder

carismático por toda a

vida do líder.

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ANEXO 2

HISTÓRIA DE AROEIRA

Segundo depoimentos de antigos moradores do povoado de Aroeira, existiam algumas

famílias que exploravam terras em algumas regiões e que, depois de um determinado tempo,

se retiravam a procura de outros lugares com terras mais férteis, para que pudessem

continuar seus trabalhos.

Por volta de 1880, uma família que fazia esse tipo de retirada, conhecida como “o

Povo de Pernambuco”, provavelmente tendo sua origem no estado de Pernambuco, fugindo

de um surto de febre amarela e em busca de novas terras, dentro de seu percurso acabaram

se alojando embaixo de uma árvore chamada aroeira, que ficava situada na Fazenda Lagoa

da Pedra, próxima à estrada que ligava o então povoado de Ichu à freguesia de Nossa

Senhora da Conceição do Coité.

O patriarca que não vinha bem de saúde sofreu uma recaída da doença conhecida

como febre amarela, ainda em com muitas dificuldades e em virtude da mesma, passaram a

residir nessa região por mais de uma década, onde o qual veio a falecer por volta de 1900.

Seus familiares o enterraram próximo ao pé de aroeira; em seguida, colocaram uma

cruz no local e permaneceram por mais alguns dias. No final da década de 1901 partiram

rumo à região da Fazenda Porção, esta bem próxima à freguesia de Nossa Senhora da

Conceição do Coité. Daí por diante alguns missionários começaram a pregar cultos

religiosos junto à cruz, local este onde foi enterrado o patriarca do povo conhecido como

“Povo de Pernambuco”. Mais tarde, um certo padre chamado Marculino começou a

freqüentar o local, celebrando missas e o mesmo era recepcionado pela família de Francisco

do morro, que chegaram a construir a casa do padre (hoje o comércio do jovem José

Ronaldo).

Surgiram grandes movimentos comerciais, a exemplo de barracas e outros,

principalmente nos dias em que aconteciam as missas, atraindo novos povos, se tornando

moradores. Um novo povo ia surgindo de maneira gradativa, próximo ao pé de aroeira; eram

formadas grandes missões, onde os fiéis louvavam com ofertas materiais para a construção

da primeira e atual capela, que foi construída toda de pedra bruta, tendo como primeiro

padre Marculino e em seguida Magalhães e tantos outros. Atuaram também nessa construção

as famílias dos senhores Joaquim do Morro, Francisco do Morro e outros, isto aconteceu

entre 1924 e 1930.

Moradores ilustres como Argemiro Ramos, Aureliano Sampaio, Gustavo Pinto,

Durval Nunes, Ermínio Braga, seu Justino, Daniel Ramos, seu Zé Grande, Gildágio Lopes

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(primeiro comerciante), dona Leopoldina (primeira professora), João Ramos, contribuíram

para o desenvolvimento do então povoado de Aroeira.

Hoje, já distrito do município de Conceição do Coité – Bahia, conta com uma grande

área territorial, contendo em sua sede 348 casas, com 410 famílias, 812 habitantes, com uma

população geral do distrito de 2.773 habitantes. Tendo como eleitores 1.876, tem como

pertencente em seus territórios quatros povoados: Lagoa do Meio, Açude de Aroeira, Novo

Horizonte e Cruzeiro.

Um distrito que vem a cada dia se desenvolvendo, conta hoje em sua sede distrital

com: praças (uma matriz e outra para eventos culturais e públicos), várias ruas

pavimentadas, há paralelepípedos, quatro igrejas, farmácia, posto de correio, centro de

saúde (totalmente equipado com consultório médico, sala de curativo, sala de circulação,

gabinete ginecológico, gabinete odontológico, sala de espera e com atendimento médico e

odontológico três dias na semana), duas padarias, quatro oficinas mecânicas, uma

mercearia, dois mercadinhos, duas oficinas para bicicleta, duas casas de materiais de

construção, um cyber, livraria, comércio de peças para motocicletas com serviços

especializado, vários pontos comerciais, uma associação de moradores (Associação do

Desenvolvimento Comunitário de Aroeira) com mais de vinte anos de existência, que também

vem contribuindo para o crescimento local e região, bem como a luta e conquista da

implantação do sistema simplificado da água do povoado de Novo Horizonte e sede do

distrito (31 de dezembro 2000), uma patrulha agrícola mecanizada para o desenvolvimento e

crescimento do trabalhador rural. Há uma fábrica comunitária de fubá de milho, unidade

produtora de farinha de mandioca, serviço de telefonia residência e pública contendo 8

orelhões.

Um distrito que tem sua festas locais e culturais bem como: festejo juninos, lavagens,

padroeiro, reveillon com uma queima de fogos considerada como uma das melhores da

região, atraindo milhares de pessoas. Uma festa que também se tornou cultural em nosso

distrito há mais de 13 anos é conhecida como Forró-Jegue, que acontece aos dias 24 de

Junho de cada ano. Festa esta que surgiu a partir da visita de um empresário chamado

Valmir Del Rio, filho da cidade de Osasco – São Paulo, que veio conhecer o então povoado

de Aroeira época de São João, a convite dos moradores José Aldo Gordiano Lima e Antonio

Dias.

Logo de cara se apaixonou por essa terra e pelo seu povo alegre e acolhedor que

botava “fogo” nas festas juninas.

Durante o dia, o povo não fazia nada a não ser tomar umas e outras e bater aquele

gostoso papo, onde outros dormiam a fim de se manterem preparados para a noitada que

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vinha pela frente. Inconformado com aquela monotonia, este ilustre visitante teve uma

brilhante idéia de formar uma festa de forma que ficasse tradicional dos tempos juninos.

Preparou de forma simples, com o apoio da comunidade um jegue com uma cangalha,

um toca fitas e duas caixas de som tocando músicas juninas e os foliões acompanhando,

soltando tiros ao ar, bebendo licor, batidas, cervejas em copos, garrafas e até penicos.

A essa maravilhosa criação deram o nome de Forró-Jegue, que pela sua primeira vez

aconteceu nos dias 23 e 24 de Junho de 1995, tornando-se uma das maiores e melhores festas

juninas da região sisaleira, hoje atraindo milhares de foliões em nossa comunidade.

A Lavagem do Beijo e a Lavagem do Beco são atrações que também já se tornaram

tradicionais no nosso distrito. Elas atraem milhares de pessoas a todo final de ano e

contribuem para o crescimento do comércio local.

Ainda na área de lazer, contamos com uma quadra poliesportiva, um estádio de

futebol em fase de construção, um time de futebol amador chamado “Botafogo de Aroeira”, o

qual tem suas tradições desde o ano de 1984, onde o mesmo tem alcançado alguns títulos em

competições como: vários torneios, campeonatos rurais e coiteenses, sendo campeão rural de

1995/1996, campeão coiteense em 2003/2004, contando com mais de vinte troféus entre

campeão e vice em sua galeria. E para melhor desenvolvimento e o crescimento desta

comunidade “aroeirense” contamos com a existência de quatro escolas: Escola Municipal

Duque de Caxias (com ensino infantil e fundamental de 1ª e 4ª série), Escolinha Tio Patinhas,

Centro Educacional Argemiro Ramos (ambos de ensino infantil e fundamental de 1ª a 4ª

série), Colégio Estadual Duque de Caxias com fundamental de 5ª a 8ª série e Ensino Médio

em formação geral. Conta também com um clube social, o qual tem sido muito útil para a

comunidade, não só para festas dançantes e sim como outros eventos, bem como religiosos,

cerimoniais de casamentos, aniversários, reuniões políticas, colação de grau e outros.

Diante de tudo isso, pode-se chagar a uma conclusão: Aroeira é um dos maiores

distritos do município de Conceição do Coité e que sempre se destacou com sua beleza e

desde tempos remotos tem acolhido pessoas com seu jeito humilde de ser. É por esta razão

que hoje recebe por mérito o título de distrito do município de Conceição do Coité-BA.

“Aroeira sempre Aroeira, que nome certo lhe deram, representa a natureza e tudo de belo que nela há. Terra de gente bonita e de bom coração, que sabe fazer caridade, acolhendo o irmão. Fazes das nossas crianças os frutos cidadãos, que juntos lutarão por uma justa nação.”.