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A Electra de Eurípedes e a intertextualidade bakhtiniana
Stanis David Lacowicz (UFPR/CAPES)
Resumo: Em Electra, Eurípedes se volta ao ciclo dos atridas, recontando a história de Orestes
e de sua irmã, que dá nome à peça, ou, especificamente, o retorno daquele para vingar a morte
de seu pai, Agamêmnon. A base da qual os poetas dramáticos partem é o mito grego, de onde
é selecionado um fragmento de história a ser modelado segundo a estrutura da tragédia, uma
(re)organização do mito que o torna trágico, a fim de provocar no espectador temor e piedade.
Conforme Burian (2010, p. 190-191), a forma como a tragédia se relaciona com o mito se
apresenta no entrecruzamento de um relativamente pequeno número de conteúdos lendários
(daí a recorrências de determinados ciclos e histórias de certas famílias gregas míticas) e do
repertório de formas narrativas (padrões de enredos). Pode-se dizer, então, que essas obras
dramáticas não se constituiriam isoladas entre si, fechadas, mas abrem-se umas para as outras,
compartilhando temas, códigos, narrativas, em um jogo dialógico de contato e tensão,
aproximação e repulsa. Partindo, então, da noção de intertextualidade, conforme apresentada
por Kristeva (1974), a partir do dialogismo bakhtiniano, buscaremos apresentar uma leitura da
peça Electra, de Eurípedes, em que se vislumbre essa abertura do texto dramático.
Palavras-chave: Electra; Eurípedes; Sófocles; Ésquilo; intertextualidade.
Abstract: In Electra, Euripides turns to the cycle of the Atreids, retelling the story of Orestes
and his sister, which names the play; specifically, it tells his return home to revenge the death
of his father, Agamemnon. The greek myth is the foundation from which the tragedians
compose, from which they select a piece of story to be shaped according to the structure of
tragedy. This comprises a reorganization of the myth that turns it tragical, in order to cause fear
and pity. According to Burian (2010, p. 190-191), the tragedy relates to the myth through the
intersection of a relatively small number of legendary subjects (which explains the recurrence
of certain cycles and stories of mythical Greek families) and the limited repertoire of narrative
forms (plot patterns). It is possible to state, thus, that this dramatic works were not constituted
isolated, or closed, from themselves; on the contrary, they would open one to another,
sharing themes, codes, narratives, in a dialogical play of contact and tension, approaching and
refusal. Based on the notion of intertextuality, as it is elaborated by Kristeva (1974), from the
Bakhtinian dialogism, we aim to propose in this article a reading of the euripidean Electra, in
order to perceive the openness of the dramatic text.
Keywords: Electra; Euripides; Sophocles; Aeschylus; intertextuality.
A produção dramática grega do século V a.C se caracteriza pela padronização e rigidez
dos modelos, com os poetas dramáticos buscando em fontes comuns os enredos, as formas
narrativas, vinculando-se a uma maneira específica de arquitetar e desenvolver suas peças.
Entretanto, em meio a estruturas pré-estabelecidas, os dramaturgos dispunham de um espaço
para criação, de manejo do material que lhes era legado, sendo perceptível a variabilidade com
que eles atualizavam mitos, histórias lendárias e procedimentos composicionais ao moldarem
as suas obras: “the plots of Greek tragedies are articulated through a limited but highly flexible
repertoire of formal units [...]”1 (BURIAN, 2010, p. 179); essa limitação, por sua vez, auxiliava
na criação de expectativas e possibilitava um direcionamento para as interpretações.
A base da qual os poetas dramáticos partem é o mito grego, de onde é selecionado um
fragmento de história a ser modelado segundo a estrutura da tragédia. O mito por si próprio
não é trágico, pois esse é um efeito que se consegue por meio de uma (re)organização do mito
que provocaria no espectador temor e piedade, conforme já colocado por Aristóteles. Conforme
Burian (2010, p. 191), a forma como a tragédia se relaciona com o mito se apresenta no
entrecruzamento de um relativamente pequeno número de conteúdos lendários (daí a
recorrências de determinados ciclos e histórias de certas famílias gregas míticas) e do repertório
de formas narrativas (padrões de enredos). Contudo, a produção tragediógrafa, ao utilizar-se
do mito, em retorno, o modifica, o transforma, atualizando-o em vista de questões culturais
contemporâneas ao poeta e aos espectadores, em vista de novas perspectivas sobre os assuntos
tratados. Desse modo, pode-se perceber como a instituição da tragédia não apenas deriva das
histórias míticas, mas participa, de maneira dialética, do que se chamaria o megatexto do mito
grego: “the repertoire of legendary subjects seen not as a corpus of discrete narratives, but as a
network of interconnections at every level, from overtly shared themes, codes, roles, and
sequences of events to the unconscious patterns or deep structures that generate them”2
(BURIAN, 2010, p. 191). As peças, então, não se constituiriam isoladas entre si, fechadas, mas
abrem-se umas para as outras, compartilhando temas, códigos, narrativas, em um jogo
dialógico de contato e tensão, aproximação e repulsa. Cada texto ou trilogia, entretanto, apesar
do constante diálogo que estabelecem entre si, diretamente ou por meio da recorrência ao
mesmo megatexto, constituiria um todo diegético (partindo da perspectiva de Genette sobre a
estrutura da narrativa literária), uma unidade, um universo ficcional que não seria o mesmo de
outros textos que reescreveriam o mesmo mito.
Nessa perspectiva, pode-se compreender a tragédia grega, em seu funcionamento, como
inerentemente intertextual, não apenas no sentido de influência entre autores, mas como
1 “Os enredos das tragédias Gregas se articulavam por meio de um repertório limitado, porém flexível, de unidades
formais [...]” (tradução nossa) 2 “O repertório de assuntos lendários visto não como um corpus de narrativas individuais, mas uma rede de
interconexões em todos os níveis, desde temas, códigos, personagens e sequências de eventos abertamente
compartilhados, até os padrões inconscientes e estruturas profundas que os geram” (tradução nossa)
diálogo, interpenetração e embate que permite superar uma visão linear do tempo, comum a
certas formas de abordar a relação entre textos na história. Partindo, então, da noção de
intertextualidade, conforme apresentada por Kristeva (1974), a partir do dialogismo
bakhtiniano, buscaremos apresentar uma leitura da peça Electra, de Eurípedes, em que se
vislumbre essa abertura do texto dramático. A intertextualidade na tragédia grega se explicita
nessa recorrência de temas formais e míticos, ensejando uma circularidade e repetição que, no
entanto, produz algo novo:
If, from the point of view of its plots, Greek tragedy constitutes a grandiose
set of variations on a relatively few legendary and formal themes, forever
repeating but never the same, it follows that tragedy is not casually or
occasionally intertextual, but always and inherently so. Tragic praxis can be
seen as a complex manipulation of legendary matter and generic convention,
constituting elaborate networks of similarities and differences at every level
of organization3 (BURIAN, 2010, p. 179).
Ressalta-se, desse modo, a forma como a tragédia manipula referências e explicita sua
tessitura aberta, formando redes das quais o público participa durante o jogo que se constitui
entre a encenação e a contemplação da tragédia.
Ressalta-se que, pela noção de intertextualidade aqui utilizada, todo texto é percebido
como essencialmente dialógico e, portanto, intertextual. O texto é concebido, desse modo, por
meio da noção de enunciado concreto, uma sequência linguística que não existe isolada do
processo pelo qual ela surge, ou seja, a enunciação, a qual, por sua vez, corresponde a uma
realização histórica e social (VOLOSHINOV apud BRAIT, 2005, p. 68). Segundo Kristeva,
pela teoria bakhtiniana, a palavra literária é vista como um entrecruzamento de superfícies
textuais, o texto é situado na história e na sociedade, percebidos também como textos nos quais
o autor se insere, para lê-los e reescrevê-los (KRISTEVA, 1974, p. 62). Por meio do
dialogismo, então, a palavra se definiria na relação entre três elementos, o sujeito da escritura
e seu destinatário, o texto e os textos anteriores ou contemporâneos. Desse modo, pode-se
afirmar que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto. (KRISTEVA, 1974, p. 64). Em nosso trabalho, focalizaremos
3 “Se, do ponto de vista de seus enredos, a tragédia grega constitui um grandioso conjunto de variações sobre um
relativamente poucos temas formais e lendários, eternamente se repetindo, mas nunca o mesmo, segue-se que a
tragédia não é intertextual casual ou ocasionalmente, mas sempre e inerentemente. A práxis trágica pode ser vista
como uma complexa manipulação de assuntos lendários e convenções de gênero, constituindo redes elaboradas
de similaridades e diferenças em cada nível de organização” (tradução nossa)
na Electra os pontos em que esse jogo intertextual se faz mais autoconsciente, reescrevendo a
tradição e textos anteriores ao modo de uma espécie de citação e que, possivelmente, eram
percebidos e tomados como uma base para a compreensão pelo seu público dos sentidos que a
peça buscaria veicular.
Dos três principais tragediógrafos gregos, do século V a.C., Eurípedes era o mais novo
e considerado o mais ousado na maneira e nas escolhas que efetuava em sua reconstrução das
histórias míticas, buscando (re)moldá-las segundo a visão que possuía sobre o trágico. Em
Electra, ele se volta ao ciclo dos atridas, recontando a história de Orestes e de sua irmã, que dá
nome à peça, ou, especificamente, o retorno daquele para vingar a morte de seu pai,
Agamêmnon; como é frequentemente lembrado, tem-se nessa peça a encenação de um ciclo
mítico já tratado em peças de outros dois autores gregos: a Electra, de Sófocles, e Coéforas, de
Ésquilo (segunda parte da trilogia Oresteia). A versão de Ésquilo é tida como a mais antiga e,
desse modo, acaba servindo a Eurípedes, de maneira mais explícita, como um texto com o qual
se estabelece um diálogo paródico e que, conforme apontaremos, marca não apenas uma
possível crítica, mas a maneira diferente pela qual as personagens são construídas segundo
diferentes visões sobre o mito. As três tragédias, por sua vez, estabelecem um diálogo com
aquele megatexto do mito grego e, desse modo, também entre si, não ao modo da influência,
mas por um viés interacional que se consolida, por outro lado, na perspectiva do leitor moderno.
Assim, no caso de Sófocles e Eurípedes, dos quais não há certeza sobre a qual Electra teria sido
encenada antes, essa noção de intertextualidade permite um olhar que confronte os dois textos
sem a necessidade de se procurar uma referência explícita que um faça ao outro, pois a relação
é garantida pela própria concepção de texto, sem contar o contato indireto por meio do mito.
Um dos primeiros pontos que se pode ressaltar acerca da abertura intertextual da Electra
euripediana, mas também da relação entre as peças, está na construção da personagem de
Orestes. Logo após a introdução da peça de Eurípedes, a cena com Electra e seu marido (um
trabalhador comum, plebeu), o filho de Agamemnon aparece em cena, o dia ainda por
amanhecer, escondido com seu amigo Pílades, comentando que ainda não havia ultrapassado
os muros da cidade. Recém-chegado de seu exílio, sua única ação havia sido, na noite anterior,
visitar o túmulo de seu pai e lhe render homenagens; busca, então, por Electra, que viveria
longe do palácio, expressando também que fugiria rápido caso fosse reconhecido. Nas
Coéforas, de Ésquilo, a oferenda da mecha de cabelos abre a peça; podemos ver Orestes os
cortando e ofertando em memória de seu pai:
Desejo consagrar a Ínaco esta mecha/ de meus cabelos, pois ele cuidou de
mim/em minha infância; está segunda mecha, pai,/ deponho aqui como
demonstração de luto.../ Não estive presente para lamentar/ a tua morte; não
ergui as minhas mãos/ na hora em que teu corpo foi posto no túmulo...
(ÉSQUILO, 1991, p. 91: 8-14).
Esse texto focaliza, desde o princípio, a determinação de Orestes frente ao seu dever de
vingar a morte de seu pai, matando sua mãe e Egisto, conforme exigido pelo deus Apolo, mas
em consonância com a própria vontade da personagem. Em Eurípedes a peça se inicia
focalizando a situação de Electra, forçada a se casar com um camponês pobre, ressaltando a
sua desventura; seu irmão, por outro lado, aparece escondido, contrastando com a imagem do
herói destemido. Aqui, ele apenas relata a homenagem no túmulo de seu pai, explicitando seu
desejo de encontrar com a irmã para dar seguimento à vingança. Se por um lado a excessiva
cautela e prorrogação da vingança (de modo semelhante ao que viria a ser feito com o Hamlet,
de Shakespeare) poderiam significar uma personagem covarde, sobretudo em contraste com a
versões de Sófocles e de Ésquilo, é possível também atribuir essa postura da personagem à
precaução, vinculada a certa racionalização que a obra apresenta sobre as dificuldades de se
entrar no Palácio e matar Egisto (em tensão com as outras versões), mas também alinhando-se
ao modo como Eurípedes pretendia focalizar o mito. Conforme se pode perceber pela cena de
reconhecimento entre Orestes e Electra, que analisaremos no decorrer do texto, o modelo de
herói ao qual Orestes retoma, nessa peça, estaria mais para um Ulisses, cuidadoso, astuto mas
ardiloso, ocultando sua identidade quando preciso.
O trecho final dessa primeira fala do Orestes, de Eurípedes, também serve para reforçar
a construção da imagem de Electra; ele propõe ao seu amigo que busquem se informar sobre a
situação de sua irmã: “Vejo ali uma criatura que conduz à cabeça uma vasilha d´água. Sentemo-
nos por aqui mesmo, Pílades, e tratemos de saber, por esta escrava, se é possível apurar alguma
notícia concernente aos fins que me trouxeram a esta terra” (EURÍPEDES, 2005, p. 9-10). Os
espectadores sabem que, possivelmente, trata-se de Electra, pois no início da peça ela havia
discutido com o camponês com quem se casara sobre os deveres dela enquanto sua esposa;
resignada, ela afirmava que deveria ir buscar água para cumprir o seu papel, embora aquele se
esforçasse para protege-la em sua nobreza. Se a afirmação de que se deteria em tarefas da vida
mais simples não tivesse tido impacto suficiente no público para perceber a caída social que a
personagem havia sofrido, a fala de Orestes serve para selar o rebaixamento ao qual Electra
fora submetida por sua mãe e Egisto, comparando-a uma jovem escrava. Há certa ironia
também nesse não reconhecimento, reforçando essa distância entre a aparência e quem a
personagem realmente é, o que se aplicaria também ao próprio Orestes na sequência do texto.
A Electra sofocleana apresenta uma persistência heroica no lamento, em chorar de
modo incessante a morte de seu pai, a traição de sua mãe, contrariando continuamente os ditos
do Coro para que observe a justa medida. Como apresenta Vieira (2009) as personagens de
Sófocles são marcadas pela intensidade das emoções, mais do que a complexidade,
pressupondo uma visão heroica do mundo e, desse modo, recorrendo ao modelo de herói
homérico (VIEIRA, 2009, p. 10). Em Eurípedes, por sua vez, há o lamento, mas ele parece
pender mais entre a tristeza pela morte do pai e a aflição pela condição a que foi submetida:
“Pobre de mim! A que triste condição me reduziu a sorte!” (EURÍPEDES, p. 10); ressaltando
sua aparência decadente, “Vede o estado de meus cabelos e de minhas vestes. Por acaso
condizem com a situação de uma princesa? Ou se assemelham aos de uma troiana escrava que
na guerra tenha caído prisioneira de meu pai?” (EURÍPEDES, 2005, p. 12), uma possível
referência ao que ocorre com a personagem Cassandra, profetiza e filha do rei Priamo de Tróia
e que, como é encenado em Agamemnon, de Ésquilo (primeira parte da Oresteia), aparece
como escrava troiana de quem o rei havia se apoderado. Nisso também se ressalta a ideia de
trágico de Eurípedes, de que a sina dos ganhadores não é mais feliz que a dos perdedores: “It
is part of his tragic idea that the lot of the victors is no happier and much less glorious than that
of the conquered; that Troy not only has more honour than Greece, but also less suffering”4
(KITTO, 2003, p. 256). Em todo caso, a Electra euripediana, ainda que se aproxime da
sofocleana no objeto de suas lamentações, parece trocar a intensidade daquela por uma
sobreposição de preocupações, uma certa desarmonia e hesitação entre o drama mais individual
(a condição de princesa decaída) e aquele que a conecta à história de sua família e da cidade (a
traição de sua mãe e a necessidade de vingar a morte do pai, o rei, restituindo o trono a quem
ele é de direito).
O Orestes de Eurípedes, como colocado, apresenta-se de maneira mais furtiva que o das
outras versões, mantendo oculta a sua identidade ainda quando aborda Electra, já sabendo se
tratar de sua irmã por tê-la ouvido lamentar-se de sua situação (em cena que também serve para
4 “É parte da ideia trágica de Eurípedes que a sina dos vitoriosos não é mais feliz e é muito menos gloriosa do que
a dos conquistados; que Tróia não apenas é mais honrosa que Grécia, mas também menos desafortunada”
(tradução nossa)
retomar a sua história). Ao se aproximar de sua irmã, provoca grande receio nela, por se
tratarem de estranhos que, estando escondidos, surgem repentinamente para falar com ela,
possivelmente mal-intencionados: “Aproximam-se de nós vultos suspeitos, que parecem sair
de algum esconderijo. Fujamos; vós, por este atalho e eu, no rumo de minha casa, para evitar
estes malfeitores”; Orestes, por sua vez, a interpela, “Não fujas, criatura; nada temas de mim”,
ao que é respondido por Electra, “Ó Apolo! eu te peço! Faze com que eu não morra!”. A opinião
de Orestes sobre a irmã, na cena em que a compara a uma escrava é espelhada na forma como
Electra percebe Orestes, como um possível malfeitor; a ironia daquela cena tem continuidade
aqui, com um toque de humor que se verifica na forma como Eurípedes busca construir a reação
das personagens em determinadas situações. Nesse sentido, a própria frase “nada temas de
mim!”, vinda de alguém suspeito, carregaria um tom de humor ao ressaltar o temor de Electra,
expresso no apelo ao deus. Para o leitor moderno, isso poderia se resumir a uma abordagem
mais realista da maneira como os personagens agiriam frente ao que encontram; contudo, no
conjunto da peça, isso serve a um propósito mais amplo, quer seja ressaltar o prosaísmo da
condição atual de Electra, seus receios frente a ausência de quem a protegesse; a postura de
Orestes, mais esquivo e hesitante, prorrogando a sua ação vingativa; a visão do trágico de
Eurípedes, por meio da qual os protagonistas não concentram em si a tragicidade da peça, mas
em sua incompletude, em seus níveis sobrepostos (um princípio de visão do humano com uma
maior complexidade), participam de algo que vai além de suas histórias, de suas trajetórias.
Com relação ao reconhecimento, a anagnórisis, temos em Eurípedes uma referência
clara a Ésquilo. Segundo Burian, as três peças que envolvem Electra se constroem em torno do
padrão de história chamado “Retribution pattern”, a punição por ofensas passadas (BURIAN,
2010, p. 187), bem como apresenta uma variante do padrão de enredos “return-recognition”,
no caso, o reconhecimento do outro (BURIAN, 2010, p. 189); nesse sentido, os três textos
retomam um motivo comum na tradição grega. Nas Coéforas, o reconhecimento de Electra
acerca da identidade de seu irmão, provocando-lhe alívio porque o vingador dos atridas teria
retornado do exílio, ocorre em três partes. O nome da peça situa o momento em que se inicia o
processo da anagnórisis: as coéforas seriam as que levam libações, ou oferendas, derramando
líquidos sobre o túmulo do morto, em sua memória e honrando a um deus.
Na peça, o Coro das coéforas é acompanhado por Electra, na cena em que efetuarão o
ritual. Finalizado o rito, Electra percebe os cabelos deixados por Orestes sobre o túmulo,
conforme a cena inicial da peça. Surpresa, começa a discutir com o Coro sobre a possível
identidade de quem realizara tal oferenda: ela só poderia ter sido realizada pela própria Electra,
já que os outros, sendo inimigos, não haveriam de fazê-lo; sendo semelhantes aos cabelos dela,
deduz-se, então, que seriam de Orestes. O coro questiona como ele teria ousado vir ao local,
levando Electra a conjecturar que ele apenas havia enviado a oferta por meio de outra pessoa,
sendo talvez um sinal de que ele de fato jamais voltaria àqueles sítios. Lamentando a dúvida,
encontra outro vestígio a dar-lhe maior certeza sobre o que havia se passado: eram pegadas,
passos que considera iguais aos seus:
Eis aqui um segundo indício: estas pegadas/ parecidas com as minhas! Sim,
aqui estão/ duas marcas de pés! As dele, com certeza,/ e as outras de algum
companheiro de viagem!/ Os calcanhares e os contornos de seus pés/ se
assemelham aos meus em suas proporções! /Domina-me a aflição e me
perturba a mente! (ÉSQUILO, 1994, p.101: 270-273).
É perceptível nessa cena a forma como o tragediógrafo constrói a personagem de
Electra como marcada pelo sofrimento: ela não consegue acreditar nos sinais que lhe são
concedidos acerca da chegada de seu irmão, visto como o seu salvador; ela está aflita com os
sinais, pois teme que a sua delicada esperança, na beira do precipício, possa novamente ser
rompida. Na sequência, Orestes entra em cena e se apresenta a Electra, que desconfia, não
apenas ser alguém a enganando, como da própria possibilidade de terem sido atendidas as suas
preces. A isso, Orestes dá o terceiro sinal para que ela pudesse reconhecê-lo:
Embora me contemples não me reconheces, /mas há bem pouco tempo à vista
dessa mecha/ de meus cabelos, cortados como um sinal/ do luto que me pesa
sobre o coração,/ e quando ponderavas sobre essas pegadas,/ teu pensamento
criou asas e julgaste/ que me tinhas à tua frente! Põe a mecha/ de meus cabelos
no lugar de onde a cortei/e – de teu irmão e parecida com as tuas – e vê como
elas coincidem com as minhas!/ Observa este bordado, obra de tuas mãos,/ os
pontos das agulhas, as cenas de caça/ que ainda podes ver perfeitamente,
irmã!”(ÉSQUILO, 1994, p. 102: 290-299).
Orestes apela para a memória afetiva de Eléctra, retomando e reforçando a própria
euforia dela ao ver as mechas de cabelo e, na sequência, apresentando o presente que ela havia
lhe dado. Tratava-se de um pequeno véu, bordado por Electra e dado por ela ao seu irmão
bebê, algo que ele trazia sempre consigo, possivelmente como a única lembrança de sua
família, e também da vingança que precisaria ser consumada.
Em Euripedes, após Orestes interpelar Electra, ele se apresenta como alguém que traz
notícias do irmão dela (justificando estar com uma espada desembainhada). Conta-lhe, então,
que ele está vivo, alimentado, mas o desterro lhe havia aproximado da indigência. Busca, desse
maneira, conseguir com a sua irmã mais detalhes sobre a condição dela: fica sabendo de seu
casamento com o camponês, mas que ele jamais a tocara (em respeito à sua nobreza e ao fato
de ela ter sido forçada ao casamento), bem como que a união havia sido obrigada por Egisto
para que, caso ela tivesse filhos, não fossem nobres e, dessa maneira, segundo é colocado, não
viessem a se tornar potenciais vingadores da morte de Agamêmnon. Orestes ainda questiona
Electra sobre o que ela esperaria fosse feito quando seu irmão voltasse: a morte dos assassinos
de seu pai, tarefa na qual ela auxiliaria o irmão. Na sequência, ela ressalta que não reconheceria
o seu Orestes, caso o visse, pois haviam sido separados quando eram ambos ainda infantes;
apenas o mestre do pai deles, que havia salvado o bebê e o levado consigo para outro sítio,
seria capaz de reconhecer o filho de Agamêmnon.
A revelação só se dará na parte posterior do texto, após o canto coral, com a chegada
do referido velho, que passa a analisar pistas de uma possível presença de Orestes na região.
Além de trazer alguns produtos para Electra, estaria com os olhos úmidos de lágrimas,
conforme comenta (uma vez que as máscaras utilizadas na tragédia não permitiriam perceber
essas nuances de expressão). Revela o motivo das lágrimas: tendo passado pelo túmulo
abandonado de Agamemnon, fez uma rápida libação e, em seguida, percebeu resquícios de
uma ovelha sacrificada e madeixas de cabelo. Sem possuir dúvidas, afirma a Electra que não
poderiam ser cabelos de ninguém mais que Orestes: “que teria vindo secretamente honrar o
jazigo de teu infeliz genitor. Vê estes cabelos; compara-os aos teus, e notarás que tuas madeixas
têm a mesma cor. Com efeito, por via de regra se assemelham aqueles que receberam o sangue
do mesmo pai” (EURÍPEDES, 2005, p. 34). A esse primeiro sinal, igual ao que aparece em
Ésquilo, a Eléctra euripediana responde com descrença e sarcasmo, afirmando que o que era
dito pelo velho não era digno de um homem prudente; primeiro porque, na sua visão, Orestes
não andaria escondido pela região, com medo de Egisto; segundo, porque os cabelos que o
velho mostrava eram de um homem “exercitado na palestra”, enquanto os dela eram finos e
lisos (além de que cabelos semelhantes poderiam ser vistos entre não parentes).
O velho, contudo, não desiste de sua posição e chama Electra para verificar supostas
marcas de sandálias, para comparar com as delas. Em resposta, ela apenas questiona como tais
pegadas poderiam ficar em um chão pedregoso, sem contar que os pés masculinos seriam
maiores. Como a pista anterior, é estabelecido um paralelismo com as Coéforas, retomando o
mesmo sinal que aquela Electra havia percebido para reconhecer a presença de Orestes, mas
aqui sendo parodiado e ironizado. Por fim, o velho, ainda firme em sua opinião, questiona
Electra se ela não teria como reconhecer o irmão, por exemplo, “pela túnica que teceste, e na
qual eu o salvei da morte?” (EURÍPEDES, 2005, p. 35), o que seria, em Ésquilo, a terceira
pista, utilizada por aquele Orestes para revelar-se àquela Electra. O jogo intertextual nesse
trecho é de tal modo explícito que parece romper o tecido ficcional da peça. Conforme assevera
Kitto, o excessivo cuidado de Orestes em não ser reconhecido possibilita a eficiência do efeito
de ironia dessa cena: “Electra’s tirades against the murderers, the skit on Aeschylus, and the
clever variant on recognition-scenes, whereby one of the parties, trying to avoid recognition,
is unwillingly detected by a third”5 (KITTO, 2003, p. 339-340). Desse modo, no jogo com a
variação da cena de reconhecimento, no trecho satírico a partir de Ésquilo, há uma preocupação
sobretudo com os efeitos de cena, ao qual se subordinariam as caracterizações (ainda que
fossem próximas, vividas e consistentes); ao ter o efeito como um fim em si mesmo, expressaria
uma postura dramática que aproximaria o texto das tragicomédias (KITTO, 2003, p. 340). Essa
postura sinaliza a própria abertura do texto euripediano, em que a encenação se torna objeto da
outra encenação, espelhamento que rompe as fronteiras do universo da peça e da representação
mimética em sua feição tradicional. Por meio desse recurso ao metateatro, a peça também
explora, de modo intertextual, a referência, a ser ativada pela audiência, de experiências teatrais
anteriores (BURIAN, 2010, p. 195).
Electra, em resposta ao velho, apenas o lembra que ela e o irmão eram muito pequenos
quando foram separados, não podendo ela ter-lhe entregue tal presente, muito menos ele o ter
mantido enquanto homem adulto. O velho, por sua vez, redireciona a conversa para os hospedes
de Electra (Orestes e Pílades), aos quais gostaria de fazer perguntas sobre o pai dela. Ao
chegarem, Electra apresenta o velho a Orestes; aquele, entretanto, não para de mirá-lo,
causando estranheza nos presentes. Então, ele afirma que Electra deveria dar graças aos deuses,
por que ela havia recebido um dádiva, a frente de ambos estaria “o mais querido dos homens!”
(EURÍPEDES, 2005, p. 38). Electra, sem motivos para crer, lamenta que o velho
provavelmente não estaria bem com a mente, ele insiste e ela pede por um indício para tal
reconhecimento, que o velho revela: “Pela pequenina cicatriz na pálpebra, que ele fez, um dia,
em casa de teu pai, quando perseguido contigo um veadinho, caiu e machucou-se”
5 As diatribes de Electra contra os assassinos, a sátira sobre Ésquilo e a habilidosa variante das cenas de
reconhecimento, pela qual uma das partes, tentando evitar o reconhecimento, é relutantemente detectada por um
terceiro” (tradução nossa)
(EURÍPEDES, 2005, p. 39). Por fim, eles se reconhecem e ela, já convencida, lhe faz a
derradeira pergunta, “És tu, meu Orestes?”, sendo respondida, “Sim... o teu vingador... se
consegui recolher os laços que atirarei... Mas, tenhamos esperança: seria preciso admitir que
não existem deuses, se o crime suplantar sempre a justiça” (EURÍPEDES, 2005, p. 40).
Conforme Kitto coloca, a ironia deve ser vista como parte da atitude de Eurípedes acerca de
sua forma de construir as personagens (2003, p. 254), que se aproximaria do que chamaríamos
realismo, mas também de uma certa indiferença para com eles. Nesse sentido, não apenas a
celebração do reencontro se mostra, de maneira irônica, sem a exaltação que exigiria, mas
também a personagem de Orestes é novamente mostrada em sua hesitação, inclusive sugerindo
uma dúvida acerca dos deuses (que é retomada depois quando ele, devendo se preparar para
matar sua mãe, se questiona se não teria sido guiado por um falso deus).
De certo modo, conforme mencionamos anteriormente, a personagem de Orestes parece
retomar o comportamento de Ulisses, no que diz respeito à atitude furtiva e à questão do
disfarce, utilizado pelo herói da guerra de Tróia tanto para espionar a cidade que seria atacada,
quanto quando volta a sua terra natal, disfarçando-se de mendigo. Também Ulisses é
reconhecido por uma cicatriz, no caso em sua perna, ao ter os pés lavados pela governanta da
casa de Penélope, em sinal de hospitalidade. Cabe mencionar que a questão da identidade e do
disfarce é também um recurso utilizado nas duas outras peças, valendo nelas também esse
possível diálogo com o Odisseu; nelas, entretanto, Orestes revela sua identidade mais
prontamente a sua irmã, além de mostra-se decidido frente a seu destino, mais firme em seguir
os desígnios do deus Apolo.
Conforme buscamos demarcar em nossa análise, o texto de Eurípedes se constrói de
modo intensamente intertextual, inclusive manipulando o roteiro de modo a explicitar o diálogo
com outros textos, promovendo uma espécie de autoreferência metaficcional, fazendo emerso
o seu caráter textual. Hall comenta que a tragédia estaria embebida em polifonia, em uma
conjunção de vozes: “Tragedy consists of polyphony and antiphony. No genre is so definitively
dialogic, nor conceals the authorial persona to such an extreme degree” (HALL, 2010, p. 119)6.
A forma multivocal da tragédia, permitindo vários personagens a falarem e a discordarem uns
dos outros pode ser vista como um reflexo do desenvolvimento da retórica na Atenas
democrática (HALL, 2010, p. 118). Essa multiplicidade de vozes, essa polifonia, também pode
6 “A Tragédia consiste em polifonia e antifonia. Nenhum gênero é tão definitivamente dialógico, nem oculta a
persona autoral a tal extremo” (tradução nossa)
ser percebida nessa abertura que o texto realiza frente a outros textos, não apenas os textos
literários anteriores, mas também aos modos de produção dramática, aos textos não-literários,
de ampla circulação social, como o próprio discurso filosófico, que se enleia na forma como se
constrói o discurso da obra, a materialidade de sua linguagem.
Sobre tais questões, Eco comenta que “os livros falam sempre de outros livros e toda
história conta uma história já contada” (1985, p. 20), ou seja, há um diálogo incessante entre
textos, que se estabelece pela própria natureza da linguagem (dentro da biblioteca os livros
conversam entre si, comenta a personagem Adso em O nome da Rosa, de Eco). Ainda que não
falemos de livros, mas de peças teatrais (cuja materialidade plena existia apenas na encenação,
associada à Tragédia como uma instituição), o resquício textual que nos foi legado, quase uma
relíquia do que um dia fora essa arte, permite-nos perceber esse diálogo incessante entre os
textos, evocando essa tensão, esse embate, mas também certa solidariedade. Além disso, eles
participam da grande tessitura do megatexto do mito grego,
A Electra, de Eurípedes, promove uma releitura e atualização do mito, conforme as
especificidades do pensamento de seu autor, e resgata de modo irônico e paródico a versão de
Ésquilo. Promove conscientemente, então, um:
trabalho de assimilação e de transformação que caracteriza todo o e qualquer
processo intertextual. As obras literárias nunca são simples memórias –
reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus precursores, como diria
Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define.
(JENNY, 1979, p. 10).
O texto anterior é assimilado e transformado, sobre ele se projeta um olhar crítico,
demolidor. Mas essa retomada, contudo, não encontra jamais um terreno passivo, há uma
tensão e a ironia, de certo modo, possui um teor de consagração, de reescritura de uma memória
e de sua, por isso mesmo, manutenção. O velho pode ter parecido tolo e senil em suas
considerações a partir dos três sinais, mas no final, como afirma Kitto (2003, p. 340) e como o
próprio Eurípedes parece ter consciência, ele não deixava de, ironicamente, estar certo.
Referências bibliográficas
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Cambridge companion to Greek Tragedy. 12. impressão. Cambridge University Press,
2010.
ECO, U. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ÉSQUILO. Oréstia. trad. do grego, introdução e notas Mário da Gama Kury. 6. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor: 1993.
EURÍPEDES. Electra. trad. J. B. de Mello e Souza. Clássicos Jackson, Vol. XXII, 2005.
HALL, E. The sociology of Athenian tragedy. In.: EASTERLING, P. E. (edit.) The
Cambridge companion to Greek Tragedy. 12. impressão. Cambridge University Press,
2010.
JENNY, L. A estratégia da forma. In: Intertextualidades - Poétique: revista de teoria e análise
literárias. n. 27 Trad. Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979. p. 5-49.
KITTO, H.D.F. Greek Tragedy: a literary study. London: Routhledge, 2003.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lucia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
SÓFOCLES. EURÍPEDES. Eléctra(s). trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
VIEIRA, T. Sófocles ou Eurípedes. In: SÓFOCLES. EURÍPEDES. Eléctra(s). trad. Trajano
Vieira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.