A Morte Criativa - Henry Miller

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    A morle criat ioa *

    "Nao quero que 0 meu destino ou a Providencia me tratem bern.Sou essencialmente urn lutador." Lawrence escreveu isto nos ultimos anosde vida, mas dizia, no inicio de sua carreira: "Temos que odiar os nossosantecessores imediatos para nos livrar de sua autoridade".

    as homens a quem tudo devia, as grandes inteligencias em que senutrira e desenvolvera, e tinha que rejeitar para afirmar sua propria capa-cidade, sua propria visao, nao seriam como ele mesmo homens que busca-ram a origem? Nao seriam animados pela mesma ideia que Lawrence ex-pressou repetidas vezes - de que 0 sol em si nunca se tornara decadentenern a terra esteril? Nao estariam, todos eles, em busca de Deus, daquela"chave que falta 0 intimo dos homens", vitimas do Espirito Santo?

    Quem eram seus antecessores? A quem, de tempos em tempos,antes de ridicularizar e desmascarar, reconhecia gratidao? A Jesus, certa-mente, a Nietzsche, a Whitman e a Dostoievski. A todos os poetas da vida,*Este texto, bem como 0 ensaio "No Futuro", que 0 leitor encontrara ao finaldo livro, sao fragmentos da obra incompleta The World of Lawrence, queHenry Miller pretendia escrever analisando a vida e a obra doescritor .inglesD. H. Lawrence (1885-1930), autor, entre outros titulos, de Mulheres Apaixo-nadas e 0Amante de Lady Chatterley. (N. do E.)

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    aos mrsticos que, ao denunciarem a civiliza~o, contribuiram mais macica-mente para a mentira da civiliza~ao.

    Lawrence foi extraordinariamente influenciado por Dostoievski.De todos os seus antecessores, inclusive Jesus, foi de Dostoievski quesentiu maior dificuldade de se livrar, superar, "transcender". Lawrencesempre considerou 0 sol a fonte da vida, e a lua 0 sfmbolo do nao-ser,Vida e Morte - como urn marinheiro, sempre fixava esses dois polos ...Aquele que chegar mais proximo do sol", dizia, "sera Hder, 0 aristo-crata dos aristocratas. Ou entao aquele que, como Dostoievski, mais seaproximar da lua, do nosso nao-ser.' Com os que estavam de permeioele nao se ocupava. "Mas 0 ser mais poderoso", conclufa, "e aqueleque caminha em direcao a flor ainda desconhecida!" Ele imaginava 0homem como urn fenomeno sazonal, uma Iua que cresce e mfngua, umasemente que emerge da escuridao primordial para a ela retornar. De vidabreve, transitorio, eternamente fixo entre os dois poles do ser e do nao-ser.Sem a chave, sem a revelacao da vida, mas sacriftcado a existencia. A imor-talidade ele interpretava como 0 desejo vao de urna existencia sem fim.Para ele esta morte vivente era 0 Purgatorio no qual 0 homem se deba-te incessantemente.

    Estranho como possa hoje parecer, 0 objetivo da vida e viver, e vi-ver significa estar consciente - alegre, ebria, serena e divinamente cons-ciente. Nesse estado de consciencia sublime a pessoa canta; nessa esferao mundo existe como poema. Sem por que ou para que, sem direcao,. sem objetivo, sem esforco, sem evolucao. A exemplo do enigmaticochines a pessoa se extasia corn 0 espetaculo sempre mutante dos feno-menos momentaneos, Isto e a sublimidade, 0 estado amoral do artista,aquele que so vive 0 momento, 0 momenta visionario de pura e pros-pectiva lucidez. Uma sanidade tao clara e fria que se assemelha a lou-cura. Pela forca e capacidade de visao do artista, 0 todo estatico e sin-tetico a que chamamos mundo e destruf do. 0 artista nos devolve urnuniverso vital, vibrante, vivo em todas as suas partes.

    De certa forma 0 artista esta sempre se opondo ao movimento dodestino-tempo. Ele e sempre a-historico, Ele aceita 0 Tempo no absoluto,como diz Whitman, no sentido de que, seja qual for a direcao em que role(como urna bola), esta sera a direcao ;no sentido de que qualquer rnomen-to, todo momento, talvez seja tudo; para 0 artista nada existe alem dopresente, 0 eterno aqui e agora, 0 momento infinito em expansao que echama e cancao. E quando ele consegue estabelecer esse criterio de experiencia apaixonada (que e 0 que Lawrence quis dizer com "obedecer

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    ao Espirito Santo"), entao, e somente entao, esta afirmando sua huma-nidade. Somente entao ele vive na inteireza 0 seu papel de Homem. Obe-diente a cada impulso - sem distincoes de moralidade, etica, lei, costume,etc. Abre-se a todas as influencias - tudo 0 alimenta. Tudo e vatido paraele, inclusive 0 que nao compreende - especialmente 0 que niio com-preende.

    Essa realidade final que 0 artista vem a reconhecer em sua matu-ridade e aquele parafso simb6lico do utero, aquela "China" que os psico-logos situam algures entre 0 consciente e 0 inconsciente, aquela segu-ranca, imortalidade e uniao pre-natais com a natureza da qual precisaarrebatar sua liberdade. Toda vez que nasce espiritualmente ele sonha como impossivel, 0 miraculoso, sonha que pode partir aroda da vida e da mor-te, evitar 0 conflito e 0 drama, a dor eo sofrimento da vida. Seu poema ea lenda em que se enterra, na qual narra os misterios do nascimento e damorte - a realidade dele, a experiencia dele. Enterra-se no poema-tumulopara alcancar aquela imortalidade que the e negada como ser fisico.A China e uma projecao na esfera espiritual da sua condicao bio-logica de nao-ser. Ser e possuir uma forma mortal, condicoes mortais, lu-tar, evoluir. 0 Paraiso e , como 0 sonho dos budistas, urn Nirvana ondeja nao existe personalidade e, logo, nao existe conflito. E a expressao dodesejo do homem de triunfar sobre a realidade, sobre a transformacao.o sonho artfstico do impossivel, do miraculoso, resulta simplesmentede sua inabilidade de se adaptar a realidade. Ele cria, assim, urna realidadepropria - no poema -, uma realidade que the convem, uma realidade emque pode viver integralmente os seus desejos, anseios, sonhos. 0 poema eo sonho feito carne, num duplo sentido: como obra de arte e como vida,que e uma obra de arte. Quando 0 homem se torna inteiramente conscien-te de sua capacidade, de seu papel, de seu destino, ele e urn artista e cessade lutar com a realidade. Torna-seum traidor da raca humana. Ele cria aguerra porque deixou para sempre de marchar na cadencia do resto dahumanidade. Senta-se no batente do utero da mae com suas lembrancasraciais e suas saudades incestuosas e se recusa a sair. Vive integralmenteo seu sonho do Parafso. Transmuta sua experiencia real de vida em equa-~6es espirituais. Despreza 0 alfabeto normal, que produz no maximo umagramatica do pensamento, e adota 0 sfmbolo, a metafora, 0 ideograma.Escreve chines. Cria um mundo impossfvel com uma linguagem incom-preensivel, uma mentira que encanta e escraviza os homens. Nao e queseja incapaz de viver. Pelo contrario, seu gosto pela vida e tao forte, taovoraz que 0 forca a se matar repetidamente. Morre muitas vezes para

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    poder viver imimeras vidas. Desta maneira sacia sua vinganca da vida eexerce 0 seu poder sobre homens. Cria a lenda dele mesmo, a mentira emque se aruma como heroi e deus, a mentira na qual triunfa sobre a vida.Talvez uma das principais dificuldades em lu tar com a personali-dade de urn individuo criativo resida na poderosa obscuridade em queconsciente ou inconscientemente ele se abriga. No caso de urn homemcomo Lawrence, estamos lidando com alguem que exaltava a obscurida-de, urn homem que levou ao apice a fonte e manifestacao de toda a vida,o corpo. Todos os esforcos para esc1arecer sua doutrina envolvem urn re-torno, uma luta renovada com os problemas eternos e fundamentaiscom que se defrontava. Ele esta sempre nos levando de volta as origens,ao proprio coracao do cosmo, atraves de urn labirinto mfstico. Toda asua obra e feita de simbolos e metaforas. A Fenix, a Coroa, 0 Arco-Iris,a Serpente Emplumada, todos esses sfmbolos revolvem em torno da mes-rna ideia obsessiva: a resolucdo de dois opostos sob a forma de um miste-rio. Apesar de sua progressao de urn plano de conflito para outro, de urnproblema da vida para outro, 0 carater simbolico de sua obra permanececonstante e inalterado. Ele e coerente em sua ideia: a vida tem um signifi-cado simbolico. 0 que vale dizer que a vida e a arte sao uma coisa so.

    Na sua escolha do Arco-Iris, por exemplo, percebe-se como procu-rou exaltar a esperanca eterna do homem, a ilusao em que repousa suajustificacao como artista. Em todos os seus simbolos, especialmente aFenix e a Coroa, pois foram os sfmbolos primeiros e mais fortes, obser-vamos que estava apenas dando forma concreta a sua verdadeira natureza,. ao seu ser artistico. Pois 0 artista que existe no homem e 0 simbolo pere-ne da uniao entre os eus conflitantes. E preciso dar urn sentido a vida pelarazao 6bvia de que ela nao tern sentido. Tem-se que criar algo que rnedeiede forma curativa e estimulante a vida e a morte porque a conclusao para aqual a vida aponta e a morte, e 0 homem, instintiva e persistentemente,fecha os olhos para este fato conclusivo. 0 sentido de misterio que existeno fundo de toda arte e 0 amalgama de todos os terrores indiziveis que arealidade cruel da morte inspira. A morte entao tern que ser vencida - oudisfarcada, ou transfigurada. Mas na tentativade veneer a morte 0homem einevitavelmente obrigado a veneer a vida, pois as duas estdo inextricavel-mente ligadas.A vida caminha para a morte, e negar uma e negar a outra.o sentido inexoravel de destino que todo individuo criativo revela residenessa consciencia do objetivo, nessa aceitacao do objetivo, nessa marchapara a fatalidade, que forma uma unidade com as forcas inescrutaveis queo animam e 0 impelem.

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    Toda a hist6ria e 0 registro do memonivel fracasso do homem emcontrariar 0 destino - 0 registro, em outras palavras, dos poucos ho-mens predestinados que, pelo reconhecimento do seu papel simbolico,fizeram ahist6ria. Toda as mentiras e evasivas de que 0homem se nutriu-em uma palavra, a civiiizQftio - sao os frutos do artista criativo. E a na-tureza criativa do homem que tern se recusado a deixa-lo recair naquelaunidade inconsciente com a vida que caracteriza 0mundo animal do qualse libertou. Da mesma forma que 0 homem traea as etapas da evolucaofisica na vida embrionaria, ao ser expelido do utero, repete a evolucaoespiritual do homem durante 0 seu desenvolvimento da infancia a ve-lhice . Na pessoa do art is ta resume-se toda a evolucao histor ica do ho-memo Sua obra e uma grande metafora, que revela atraves da imagem edo sfmbolo todo 0 cicIo do desenvolvimento cultural em que 0homempassou de ser primitivo a ser civilizado e entediado.

    Quando pesquisamos as rafzes da evolucao do artista, redescobrimosno seu ser as varias encarnacoes, ou aspectos her6icos pelos quais 0 ho-mem sempre se fez representar - rei, guerreiro, santo, magico, sacerdo-te, etc. 0 processo e longo e tortuoso. E toda uma conquista do medo.A pergunta por que leva a pergunta para que e a seguir a como. A evasaoe 0 desejo mais profundo. Evasao da morte, do terror indivizivel. E a ma-neira de escapar da morte e escapar da vida. Isto 0 artist a sempre expres-sou por meio de suas criacoes. Vivendo a arte ele adota como mundo umaesfera intermediaria na qual e todo-poderoso, urn mundo que domina egoverna. Essa esfera interrnediaria da arte, esse mundo onde ele caminhacomo heroi, so se tornou realizavel devido ao profundo sentimento defrustracao que nasce paradoxalmente da impotencia, da percepcao dainabilidade de contrariar 0destino.

    Isto, entao, e 0 Arco-lris - a ponte que 0 artista lanca sobre 0 abis-mo escancarado da realidade. 0 resplendor do arco-fris, a promessa queanuncia, e 0 reflexo de sua crenca na vida eterna, a crenca na primaveraperpetua, na juventude, na virilidade, no poder, infindos. Todos os seusfracassos sao apenas 0 reflexo dos seus frageis confrontos humanos com arealidade inexoravel, A mola-mestra e 0 impacto dinamico de uma vonta-de que leva a destruicao, Porque a cada fracasso real ista ele se refugia aindamais nas suas ilusoes criativas. Toda a sua arte e 0 esforco patetico e,heroi-co de negar sua derrota humana. EIe alcanca, em sua arte, urn triunfo ir-real - urna vez que nem e urn triunfo sobre a vida nem sobre a morte. Eurn triunfo sobre urn mundo imaginario que ele proprio criou. 0 dramase passa inteiramente na esfera das ideias. Sua guerra com a realidade eurn reflexo da guerra dentro dele mesmo.

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    Assim como 0 individuo, quando chega Ii maturidade, evidenciasua maturidade pela aceit~ da responsabilidade, tambem 0 artista,quando reconhece sua verdadeira natureza, 0 papel a que e sta des tin ado,6 foreado a aceitar a responsabilidade da lideranea, Ele se investiu de po-der e autoridade e deve agir coerentemente. Nio pode tolerar nada senioos ditames de sua consciencia. Assim, ao aceitar seu destino, aceita aresponsabilidade de perfilhar suas ideias, E da mesma forma que os pro-blemas que cada individuo encontra sao unicos para ele, e precisam servividos integralmente,' as ideias que germinam no artista sao Unicas eprecisam ser vividas. Ele e 0 proprio sinal da sorte, 0 sfmbolo do destino.Pois ao viver integralmente a sua logica de sonho, e se realizar atraves dadestruicao do proprio ego, ele esta encarnando para a humanidade 0dra-ma da vida individual que, para ser provada e experimentada, precisa in-cluir a destruicao. A fun de realizar 0 seu proposito, porem; artista eobrigado a se recolher, a se retirar da vida. utilizando apenas a experien-cia necessaria para aparentar 0 sabor da luta real. Se escolher vtver elefrustra a propria natureza Precisa viversubstitutivamente. Assim, se tomacapaz de desempenhar 0 monstruoso papel de viver e morrer inumerasvezes,na medida de sua capacidade para a vida.Em cada nova obra ele reapresenta 0espetaculo do sacriffcio dodeus. Porque por tras da ideia do sacriffcio esta a ideia muito funda-mental do sacramento: a pessoa que encarna 0 poder e morta, a funde que seu corpo possa ser consumido e os poderes magicos redistri-buidos. 0 Odio ao deus e 0 motivo subjacente ao culto do deus: baseia-se no desejo primitivo de _adquirir0 misterioso poder do deus-homem.Nesse sentido, entao, 0 artista e sempre crucificado - a fun de ser con-sumido, a fim de ser despojado do misterio, a fim de ser roubado do seupoder e magia. A necessidade de deus e essa fome de uma vida maior: euma e a mesma que afome da morte.Podemos imaginar 0 homem como urna more sagrada da vidaeda morte e se formos alem, pensarmos nesta more representando naos O urn indivfduo, mas todo um povo, toda uma Cultura, talvez come-cemos a perceber a rela~o intima entre a emergencia do tipo dionisfa-co de artistae a no~o do corpo sagrado.Expandindo a imagem do homem como more da vida e da morte,podemos bern conceber de que maneira os instintos da vida, estimulandoo homem a uma expressao cada vezmaior atraves do seuMundo de formae sfmbolo, sua ideologia, fazem com que fmalmente ele descuide de as-pectos puramente humanos, relativos, fundamentais de seu ser - sua

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    natureza animal, seu corpo muito humano. 0 homem aflui pelo troncoda vivencia para desabrochar numa florada espiritual. De urn insignifi-cante microcosmo, apenas recentemente isolado do Mundo animal, ele seespalha pelos ceus sob a forma do grande anthropos , 0 homem miticodo zodfaco. 0 proprio processo de se diferenciar do Mundo animal aoqual ainda pertence faz com que perea cada vez mais de vista a sua purahumanidade. E somente nos limites extremos de sua criatividade, quandoo seu mundo de formas ja nao pode assumir outras dimensoes arquitetu-rais, que ele repentinamente comeca a perceber suas "limitaeoes". E entioque 0 medo 0 assalta. 1 3 entao que ele prova verdadeiramente da morte -como numa prel iba fao .

    Agora os instintos da vida se convertem em instintos da morte. Aqui-10 que antes parecera ser s O libido, infinito impulso criador, verifica-seagora que encerra um outro principio - a inclusao dos instintcs da morte.Somente no apice da expansao criativa ele se torna verdadeiramente huma-nizado . Agora ele sente as rafzes profundas do seu ser na terra. Firmes. Asupremacia, a gloria e a magnificencia do corpo finalmente se afirmamem todo vigor. SO agora 0 corpo assume seu carater sagrado , seu verda-deiro papel. A triplice divisao em corpo, mente e alma se torna uma uni-dade, uma trindade sagrada. E com ela percebe-se que urn aspecto de nossanatureza nio pode ser exaltado acima do outro, exceto as expensas de umou de outro.Aquilo a que chamamos sabedoria de vida atinge aqui 0 seu apo-geu - quando se descobre 0 carater fundamental, arraigado, sagrado docorpo.

    Nos ramos mais altos da arvore da vida 0 pensamento definha. Agrande inflorescencia espiritual, gracas a qual 0homem se elevara a proper-~s sublimes ate perder 0 contato com a realidade - porque ele proprioera a realidade -, esse grande florescimento espiritual da Ideia converte-seagora numa ignorancia que se expressa como 0misterio do Soma. 0 pen-samento torna a percorrer 0 tronco religioso que 0 sustentava e, penetran-do nas pr6prias rafzes do ser, redescobre 0 enigma, 0misterio do corpo.Redescobre a analogia entre a estrela, 0 animal, 0 oceano, 0 homem, aflor, 0 ceu, Mais uma vez se percebe que 0 tronco da arvore, a propriacoluna da vida, e a fe religiosa, a aceitacao da natureza arborea do indi-viduo - nio 0 anseio por uma outra forma de ser. E esta aceitacao dasleis do nosso ser que preserva os instintos fundamentais da vida, mesmona morte. Nesse afluxo para 0 alto 0 aspecto "individual" do nosso ser erao imperativo, a unica obsessio. Mas, no topo, quando ja percebemos e

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    sentimos os lirnites, descortinamos a magnifica perspectiva e reconhe-cemos a semelhanca dos seres circundantes, a inter-relacao de todas asformas e leis do ser - a afmidade orgdn ica , a inteireza, a unicidade davida. E assim 0 tipo mais criativo - 0 tipo artistico - que chegou maisalto e com a maior variedade de expressao, a ponto de parecer "divino",este tipo criativo de homem precisa agora, a fim de preservar os proprioselementos da cria~ao que existem nele, converter a doutrina, ou a obses-sio da individualidade, numa ideologia comum, coletiva. Este eo verdadei-ro significado do Mestre-Exemplar, das grandes figuras religiosas que domi-naram a vida human a desde 0 infcio. No ponto mais alto da florada elasapenas enfatizaram sua humanidade comum, a humanidade inata, arraiga-da, inescapavel. 0 seu isolamento, nos ceus do pensamento, e 0que desen-cadeia sua morte.

    Quando contemplamos uma figura olimpica como Goethe, vemosuma gigantesca arvore humana que Dio anunciou "meta" alguma excetorevelar 0 proprio ser, "meta" alguma exceto obedecer as profundas leisorganicas da natureza. Isso e sabedoria, a sabedoria de uma mente madu-ra no apice de uma grande Cultura. E 0 que Nietzsche descreveu como afusao de duas correntes divergentes em urn unico ser - 0 tipo sonhadorapolineo e 0 tipo extatico dionisiaco. Em Goethe temos a imagem dohomem encarnado, a cabeea nas nuvens e os pes firmemente enraizadosno solo da raca, da cultura, da historia, 0 passado, representado pelosolo historico e cultural; e 0 presente, representado pelas condicoes va-riadas de tempo que compoem seu clima mental, tan to 0 pa ssa do q ua n-to 0 presen te 0 nu t r iam . Era profundamente religioso sem a necessidadede cultuar urn deus. Ele se fizera deus. Nessa imagem de urn Homem janao se coloca a questso do conflito. Nem ele se sacrifica it arte, nem sa-crifica a arte a vida. A obra de Goethe, que foi urna grande confissao -ele a chamava "vestigios da vida" -, e a expressio poetica de sua sabe-doria, e se desprendia dele como urn fruto maduro de urna arvore. Ne-nhuma condicao social era demasiado nobre para suas aspiracoes, nenhumdetalhe, demasiado insignificante para sua atencao. Sua vida e sua obraassumiram proporcoes grandiosas, urna amplitude e uma majestade ar-quitetonicas, pois tanto na vida quanto no trabalho havia 0mesmo prin-cipio orginico. A excecso de Leonardo da Vinci ele equem mais se aproxi-rna do ideal deus-homem dos gregos. Nele 0 solo e 0 clima eram os maisfavoniveis. Tinha sangue, raca, cultura, tempo - tudo a seu favor. Tudoo nutrial

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    ;'N esse ponte alto em que G oethe aparece, em que tanto 0 homemquanto a cultura se encontravam no topo, todo 0 p assa do e 0 futuro seesp raiam . 0 fim esta ag ora a v ista , d ora va nte a e stra da e u rna des ci da .D epois .do olfmpico G oethe surge a raca dionisfaca de artistas, os ho-mens da "era tragica" que N ietzsche profetizou e da qual ele proprioera urn exemplo soberbo. A era tragica, em que tudo que sempre nos en eg ad o se m an ifesta com fo rca n ostalg ica. M a is urna vez 0 culto do m is-terio e re viv id o. M a is u rn a v ez 0 homem p re cisa re ap re senta r 0misteriodo deus, 0 deus cuja m orte fertilizante deve redim ir e p urificar 0 ho -mem da culpa e do pecado, liberta-lo da roda do nascer e vir a ser. Peca-do, culpa, neurose - sao urn e 0 mesmo, 0 fruto d a arv ore d o con heci-m ento. A arvore d a vida agora se torna a arvore da morte. M a s e semprea mesma arvore. E e desta arvore da m orte que a vida p recisa rebrotar,que a vida precisa renascer. 0 que, como todos os mitos da more tes-temunham, e precisamente 0 que aco ntece. "N o momen ta da destruicaod o mun do", diz Jun g, referin do-se a Y gd rasil, a cinz a-m un do , "esta arv o-re se torna a m ae p rotetora, a arvore da m orte e da vida, 'fecunda'."

    E neste ponto do ciclo cultural da historia que a "transposicaod e to do s o s v alo re s" p re cisa c omec ar. E a in ve rsa o d os v alo re s espiri tuais,de todo urn com plexo de valores ideologicos reinantes. A arvore d a v id aagora conhece a m orte. A arte dionisiaca dos e xta se s ag ora re afirm a su asp retensoes. 0 dram a intervem , 0 tragico reap arece. P or m eio da loucurae do extase 0 m isterio do deus e reencenado e os folioes ebrios ad qui-rem a vontade de morrer - d e mo rr er c ri ati vament e. E a con versao d a-quele m esm o instinto de vida que im peliu a arvore do hom em a sua ma io rexpressao. D eve sa lva r 0 homem do medo da morte, pa ra q ue 'seia capazd e m o rr er tAvancar p ara a m orte! N ao recuar para 0 utero. S air d as areias m o-v ed ic as, d o flu xo e sta gn ad o! E ste e 0 inv erno d a V ida, e 0 nos so d rama enos firm ar p ara que a vida p ossa novam ente p rosseguir. M a s essa firm e-z a so p o de ser co nquistad a p isan do sob re o s cadav eres daqueles que estaodispostos a mor rer. *

    *Fragmento de urn livro inacabado: The World of Lawrence.

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