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A MULHER QUE DANÇA NA PRAIA

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A MULHER

DE VESTIDO VERMELHO

QUE DANÇA NA PRAIA

PEDRO RUI SOUSA

Dedico este livro à memória de quem eu era quando o comecei a escrever, a todas as pessoas

que tentam encontrar respostas para os mistérios da existência e à mulher que de facto encontrei de vestido vermelho e a dançar na praia: Vlada.

Agradeço a todos os que de alguma forma participaram no processo, ou como parceiros de vida

ou como leitores críticos. Precisamos uns dos outros no caminho.

Tentar de tudo. É nossa obrigação tentar de tudo.

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A almofada que procuro

Toco no lugar oposto da cama, mas ela não está. Acendo a luz do candeeiro, vou à casa de banho

e visto uma camisola de alças. Saio do quarto e entro na sala. A mulher está

sentada na poltrona, a beber chá — aguarda a alvorada pela parede de vidro. Abraço-a por trás e dou-lhe um

beijo na nuca. Ela não mexe a cabeça, comunica com os olhos. Sorri. Eu sorrio.

Preparo um café e sento-me no chão, encostado ao joelho dela. Em silêncio,

vemos o Sol nascer por entre as montanhas, numa paisagem verde, branca, azul e laranja.

A vida numa tela que se deixa borratar.

Levanto-me e atiro a caneca. Parto o momento, o vidro e o sentimento. A corrente de ar entra:

eu tenho frio e calor, calma e desespero. Muito desespero. Ela desaparece, como o sonho que é,

e eu sento-me. Aguardo, resta-me aguardar.

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P E D R O R U I S O U S A

Tenho trabalhado neste texto nos últimos meses, mas há semanas que não o altero e os dias vão desapare-cendo sem rastro. Hoje tenho um encontro com alguém que nunca conheci, num bar de um hotel na cidade onde vivo. Talvez esta noite fique registada.

À hora marcada, espero junto da recepção. Ela cami-nha com a cabeça inclinada, a olhar para o telemóvel. Tem calçado uns sapatos vermelhos de salto afiado e vestido uns collants que mudam de transparência a meio da perna. Os lábios estão pintados e eu percebo que vou querer. Ainda não falou, mas sei que a quero despir. Não disse uma palavra, apenas caminha na minha direcção, e suspeito que não a vou amar. Tem demasiada maqui-lhagem e obrigou-me a ir até à porta do hotel para a receber, em vez de perguntar onde é o bar.

Olha para mim e sorri, creio, mas há algo de descon-certante na situação. Ela acabou uma relação de dois anos há pouco tempo, explica. Gosta de homens mais novos e eu sou mais velho. Assume que tem medo de envelhecer e conta-me que fez uma operação plástica ao nariz porque bateu numa porta. Finjo que acredito, eu sei que ela é de um país onde a juventude é uma obri-gação. Quero penetrá-la, mas antes quero acariciar este desespero de envelhecer.

Acompanho-a até casa pelas ruas sem trânsito e por entre as mesas das pessoas que comem no passeio, depois dos mercados de rua terem fechado. Lojas com néons que nunca se apagam, candeeiros de tecto verme-lhos e paredes brancas repletas de caracteres chineses. Caminhamos em silêncio. Ainda não percebi se ela está

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interessada, mas tento dar-lhe um beijo na despedida. Tento, mas não consigo. Ela abraça-me e clarifica que hoje não.

No percurso até casa, recebo uma mensagem: propõe um jantar na próxima semana. Afinal está mais interessada do que eu imaginei. Sentado na carruagem do metro, vou seleccionando mulheres na aplicação para encontros e percebo o que não entendi antes: as operações plásticas esconderam o quão interessada ela estava. A mente emite, mas as feições não reagem. Nas mensagens de texto, é mais fácil, os símbolos animados clarificam. Chego a casa, como cereais num prato de sopa e procuro uma alternativa.

Lembro-me de conversas inacabadas, de desejos por satisfazer, e convido uma miúda com metade da minha idade para beber um copo de vinho em minha casa. A noite não tem de terminar. Talvez não faça sentido, mas o sexo pode ser bom ou agradável, pelo menos é legal. Um amigo, que é músico e toca baixo, recomendou-me que pedisse o cartão de identificação, para confirmar a maioridade. Ela aceita o convite — não trabalha amanhã.

Aqueço queijo no forno, fatio pão e abro uma gar-rafa de vinho para partilharmos. Vou jogar o jogo. Per-cebo durante a conversa que visitou muitos estranhos e nenhum deles preparou comida, apenas bebida. Todos quiseram mais. Abraça-me, segura-me as mãos e beija os meus dedos. Pensa que pode seduzir um homem com o dobro da sua idade. Talvez possa. Talvez tenha. Arran-jei forma de nos separarmos antes da hora de dormir, expliquei-lhe que não consigo dormir acompanhado.

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Enquanto visto o pijama, penso que teria optimizado o meu tempo se tivesse optado pela masturbação. Estou cansado, preciso de dormir e de acordar cedo, mas demoro a adormecer. As dores de costas fazem-me ficar pendurado ao dia que teima em não terminar. Ainda não encontrei a almofada que procuro.

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A manhã começa antes de o Sol nascer. Calço umas meias e escolho uma gravata da mesma cor, para combi-nar com o fato escuro e a camisa branca. A gravata tem a ponta esburacada e a cor desgastada, mas não consigo deixar de a usar. Comprei várias alternativas que acabam sempre abandonadas no fundo do armário. Aperto-a em forma de trela no escritório, antes de a voltar a tirar ao fim do dia, para a guardar na gaveta junto de documen-tos e canetas antes do regresso a casa.

Hoje é sexta-feira e às sextas bebo sozinho no bar ao lado de casa, troco a gravata esburacada por umas calças pretas rasgadas nos joelhos, que também não consigo dei-xar de usar. A banda toca. O saxofonista agarra o instru-mento, o baterista brinda com a audiência e o pianista é velho. Eles bebem a cada pausa e fumam a cada intervalo. O pianista compôs as músicas e agradece a visita do público no fim da sessão. A música ao vivo termina, mas o baixista fica. Eu e ele no bar. Ele fuma e eu continuo a beber, até beber o suficiente para não me lembrar de quanto bebi.

Colchão de melancolia

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Todos os sábados, o processo de recuperação é idêntico: disseco a noite e tento perceber em que momento o con-trolo se perdeu e ultrapassei a dose diária recomendada de álcool. No início de cada serão, evito fumar, até saborear o primeiro cigarro, apreciar o segundo e sugar os restantes: ontem fumei um maço em poucas horas. O dia é passado na cama a ruminar culpa, num colchão de melancolia.

Chego sempre à conclusão de que tenho de diluir este vinho pela semana: um copo de vinho por noite, em vez de sete em poucas horas. Imagino um bailado e o respeito do bailarino pela sequência coreografada. A vida talvez deva ser um bailado, não um baile. Mas há algo de familiar no baile, no caos. Eu entretenho-me no caos.

O baixista sugeriu que usasse a aplicação de encontros para conhecer mulheres no meu país. Precisas de voltar para casa, disse. Bebes demasiado, avisa. Aproveita para conhecer alguém na próxima semana quando lá estiveres — sugere, depois de eu ter comentado que tenho uma via-gem planeada. Explicou que tenho de subscrever o modelo avançado da aplicação para conseguir escolher a locali-zação, para poder estar em qualquer lado sem estar lá e conhecer mulheres portuguesas sentado do outro lado do mundo. Até a idade poderei alterar ou esconder. Procuro o meio de pagamento no bolso das calças que estão no chão e conceptualizo o mês de subscrição como um investimento.

Quando o amor se acaba, para onde vai?, pergunta a canção que ouço. Eu pergunto: onde está o amor antes de começar? Talvez no número do cartão de crédito. Dito os algarismos em voz alta, como uma prece, e confirmo. O mês de subscrição começa agora.

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Um padeiro faz pão. Um pianista toca piano. Eu tenho encontros.

A mulher que acabo de conhecer dança e solta lai-vos de uma liberdade conquistada com suor e lágrimas (imagino). Expele um amor-próprio que incendeia quem a rodeia. Imagino ou projecto, o mundo não é uma rea-lidade objectiva. É mais nova do que eu alguns anos, mas não é nova o suficiente. As rugas passariam a ser minhas, como se visse o meu ref lexo de cada vez que olhasse para ela. Talvez veja mais quem sou na mulher que dorme comigo do que no espelho. Nos últimos anos rejuvenesci.

Depois do anterior, vem o próximo, antes do encon-tro seguinte.

Esta gosta do que eu gosto. Eu gosto dela e ela poderá gostar de mim. Somos vizinhos e parecidos. Lemos os mesmos livros e temos amigos em comum, mas sei que nada vai acontecer. Ou melhor, vamos ficar amigos. Nada mais. E porquê? Não sei.

Nos últimos anos rejuvenesci

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O karma dos tempos modernos é rápido. Segue a pegada tecnológica. Hoje desmarquei um jantar, dor-mida, filme e sexo com a mulher com quem tenho estado nos últimos meses. Desmarquei à última hora para ir conhecer uma inglesa que não vive cá e salva animais marinhos como profissão. Saí do banho e, antes de me vestir, vi uma notificação. Não consegue vir, avisa por mensagem. Acabei por ficar em casa sozinho a ver tele-visão, acompanhado por uma garrafa de vinho que abri durante a semana e não terminei.

Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, ouvi nalgum lado. Pensei e devorei o ditado. Não gosto. Não devemos ter os pássaros na mão, devemos escolher os que queremos que voem perto de nós. A escolha é importante. Os pássaros voam se quiserem e nunca os teremos na mão. Aliás, nem teremos mãos, porque sere-mos também nós um pássaro a voar ao redor de alguém que nos escolhe. Dois pássaros que voam em órbitas sem gravidade, apenas ligados pela vontade de partilha. Uma dança ao ritmo dos dois corações. Vomito quando ter-mino de escrever o parágrafo — o vinho talvez estivesse estragado.

Na busca diária de oportunidades de escolha, encon-trei uma mulher que conheci numa noite por intermédio de amigas. Agora sei que gostas de mim, disse-me, em tom de brincadeira, em referência à validação por inter-médio da aplicação. Combinamos um encontro.

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Pudesse eu dar-lhe um banho, um prato de sopa quente e um beijo na testa, enquanto a cobria com um cobertor, para fazer que quando ela acordasse encon-trasse o grande luxo de viver. Leio a frase, que parece o verso de uma canção, num livro.

O desrespeito é generalizado e aceite. Eu faço várias marcações para o mesmo dia, elas farão o mesmo. Eu desmarco e muitas fazem o mesmo. De vários encon-tros planeados, fica um mísero número de momentos. Passamos mais tempo a combinar do que a viver. Hoje perguntei a uma se queria fazer amor, a outra se queria casar e a uma outra se queria ir à merda. Testo fórmulas.

O labirinto do foco que se perde, sem nunca se encon-trar. Estou sozinho, mas a qualquer momento uma mulher, a minha futura, pode dizer algo através da aplicação. Hoje podemos ser contactados pelo amanhã. O telemóvel. Talvez nunca tenha existido um objecto onde tanto de quem somos esteja enclausurado. O nó do cordão umbilical desfaz-se e conecta-se ao primeiro órgão exterior, ao organismo.

Os desengonçados também têm coração

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Uma geração corcunda e sem contacto visual arrasta-se em decomposição. Imagino um dia sem rede. Imagino. A população continua curvada.

A aplicação é uma caderneta de perfis com fotos, com um texto de apresentação opcional e, em alguns casos, uma selecção de música. Num instante, decidimos se gostamos ou não e quando duas pessoas gostam uma da outra ficam autorizadas a conversar.

Leio um texto de apresentação: Sou uma mulher criativa, aventureira, com sentido de humor apurado e apreciadora de arte. Procuro homem educado, culto, bem estabelecido, com bom sentido estético, em grande forma física e que saiba tomar conta de uma mulher. Dançar é fundamental. Tem de ter muita energia para aguentar comigo.

Imagino um homem que cumpra todos os requisi-tos e com o qual ela venha a ter vários orgasmos, até ao momento em que pela primeira vez chegam a uma pista de dança e ele fraqueja. O fim da relação ao som de ritmos de salsa e merengue.

Os desengonçados também têm coração.

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A maioria das coisas que dizemos, ou todas, ouvimo-la a alguém dizer, depois de a ouvir de alguém que ouviu de outro, que também a ouviu em algum lado. Somos um algoritmo com reduzida capacidade de processa-mento. A maioria das coisas de que nos orgulhamos não é importante, apenas nos diferencia. Os dias con-tinuam indiferenciados e ainda não encontrei a almo-fada adequada para o meu colchão. Ainda assumo que o problema não está na minha coluna.

Leio um artigo sobre avanços tecnológicos e espe-culo. A morte vai ser uma doença crónica. O homem mais rico do mundo vai ser o primeiro a viver por tempo indeterminado. O capitalismo vai chegar aonde ainda não chegou — concluo. Todos vivemos mais ou menos o mesmo tempo, não será assim no futuro. Penso na morte e decido não procrastinar: escolho Portugal na aplicação e activo o plano. Vou tentar conhecer alguém que me faça voltar. Penso na morte e decido não procrastinar: pesquiso e encomendo uma almofada na rede.

Paciente zero identificada

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A primeira conversa com portuguesas. Uma mulher que trabalha no Ministério dos Negócios Estrangeiros e gosta de parmesão. É bonita, assim parece nas fotos. Pergunta porque estamos tão longe, não escondi a minha localização nem a idade. A transparência como princí-pio. Estou em Hong Kong, a onze mil quilómetros, vinte horas se agregarmos os dois voos e a escala. Ela deixa de responder.

Continuo a busca. As mulheres portuguesas são bonitas, já não me lembrava. A aplicação é viciante, vou perder muito tempo. Investir. Tenho de definir regras: uma hora por dia. Meia hora de manhã e a outra meia ao fim da tarde. De manhã, no emprego, recebo dinheiro para procurar parceira. Ao fim da tarde, invisto tempo não remunerado.

Reparo num texto de apresentação, sem foto:Queres ver o meu rosto? Que tal mais tarde, e desta vez

fazermos algo diferente?! Não procuro nada casual. Não procuro sexo. Não procuro fazer amigos. Procuro alguém por quem me possa fascinar… algo sério. Adoro um bom vinho, passear sozinha e o som do silêncio faz-me crescer. Arrisca, sê livre, sê feliz, faz do esporádico algo único. Se apenas te interessa o meu grau de beleza, fica para uma próxima.

Estou curioso, mas não o suficiente. Ela pode ser feia. Estou interessado numa outra, uma mulher de olhos claros e nariz fino que acompanha o desenho do cabelo longo que cai sobre os ombros. Não tem texto de apre-sentação, mas ouve as mesmas canções que eu.

— Qual é o nosso futuro? — pergunto de imediato.

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— Já? Ahahah, não faço ideia.— Vou aí buscar-te daqui a uns dias. Muito bom

gosto musical!— Onde andas agora? — pergunta.— Vivo em Hong Kong há seis anos, mas vou estar

por Portugal algumas vezes este ano para perceber se quero voltar. Tu?

— Adorava conhecer Hong Kong, f ico sempre curiosa com o Oriente. O que te faz pensar em voltar? Eu vivo em Lisboa.

— Falta alma e arte à cidade. Então anda, ahahah.— Um dia hei-de ir, sim. E o que fazes?— Por dinheiro, trabalho. Por paixão, escrevo. Por

luxúria, muitas coisas. Tu?— Pois, percebo! Eu sou artista digital e pinto.— Interessante! Vamos beber um copo quando esti-

ver aí.— Boa! Quando vieres, combinamos, sim.

Partilhei o meu número de telefone e trocámos a plataforma de comunicação. O primeiro encontro está alinhavado e a paciente zero identificada.

Descobri o nome do alvo e pesquisei no motor de busca toda a informação disponível. Ela fez o mesmo, percebi mais tarde. Ficamos a conhecer-nos melhor sem sequer conversarmos. Fotos, comentários, menções, cur-rículo, gostos e preferências. Tudo. Ela tem paixão pelo que faz, concluo.

Eu quis ser astrónomo e ela astronauta. Tive-mos relações vividas com a voracidade de quem come

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a própria fome. O amor pode evoluir e deixar de ser romântico, continuando amor — concordamos por men-sagem. Somos amigos de amantes de um passado que não existe mais.

Gostamos de perceber o que nos rodeia em documen-tários e descobrir novos mundos em ficção. Recomenda- mos canções durante a primeira semana e envio uma foto da minha sala com livros organizados em torres. Gosto dos existencialistas e respeito os livros religio-sos: tenho a Bíblia ao lado do Corão e de um Buda que comprei numa das muitas viagens que faço. Preciso de viajar, de suspender a vida e acalmar a ansiedade ao caminhar em lugares de circulação: somos todos iguais num comboio ou num aeroporto. Somos passageiros com um sentido clarificado pela cidade escrita no bilhete ou no cartão de embarque.

Imaginei uma viagem com ela e partilhei a intenção. Falamos de praias e montanhas. É preciso haver duas pessoas e duas pessoas com personalidade e ideias pró-prias para haver um par — comenta. Fazemos anos quase no mesmo dia.

Sugeriu um concerto na noite do dia em que vou chegar. Talvez seja ela quem eu procuro.

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Na véspera de partir, tenho o encontro com a mulher que conheci numa noite por intermédio de amigas e depois reencontrei na aplicação que promove encontros. No primeiro momento que a vi, soube que a queria e em meia hora tentei beijá-la (na carne não há procrastina-ção). Ela passou o nariz nos meus lábios e beijou-me o pescoço. Vamos para minha casa, disse. Insisti, mas fomos a outro bar. Ela escolheu não parar de dançar e eu decidi dormir. Fui para casa sozinho.

Hoje a história continua. Aguardo sentado numa poltrona num bar que podia ser a sala de convívio de um navio cruzeiro com casais que procuram intimidade, uma banda que prepara o concerto e empregados fartos de cá estar. Ela chega e flui por entre os obstáculos, ela flui como a água. Está vestida de preto, como eu, e com um casaco de cabedal, como eu. Perguntamos se agora será de vez, se o encontro proporcionado pela plataforma digital proporcionará maior intimidade do que o primeiro encon-tro em que nos conhecemos por intermédio de amigas.

Na carne não há procrastinação

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A brisa é acelerada pela primeira rodada de vinho. Ela bebe tinto e eu branco. Falamos de relações e brin-camos com o destino que nos uniu de volta. As mãos vão tocando em joelhos e os olhos sorriem. O tempo passa e a segunda rodada une-nos ainda mais. A con-versa emaranha-se: ela conhece o que eu admiro e eu conheço o que ela admira. Falo de mim. Ela de si, assume que a novidade é um vício. É mais nova do que eu oito anos. Fica entusiasmada quando eu descrevo o último retiro de meditação que fiz, deixa-se escorregar pelo sofá a insinuar que é minha. Decidimos ir a minha casa beber uma garrafa de vinho — fica a caminho de casa dela.

Antes de sairmos, vou à casa de banho e a pintura de um marinheiro com uma âncora tatuada, uma camisola às riscas e um lenço vermelho no pescoço sugere que posso navegar. Saio do bar e encontro-a a fumar na rua. Um marinheiro em terra precisa de mar, penso. Repito o pensamento e percebo que ela é quem eu preciso, baptizo-a como Mar.

Verifico as horas no relógio de pulso com mostrador de ouro que pertenceu ao meu avô, está sempre comigo, retiro-o apenas quando preciso de privacidade e cami-nhamos com o passo acelerado.

Entramos em minha casa e guardo o relógio na mesinha-de-cabeceira. Escolho música e aprecio o corpo dela que dança. Podia ser uma personagem de um filme qualquer de época medieval pela beleza em traços exage-rados. Ela dança, nós bebemos e fumamos. Ambos sabe-mos que a noite é especial, mesmo que não signifique nada. Ela beija os meus lábios. Eu agarro o momento.

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Ela mostra mais. Dançamos, beijamos e sorrimos. Aca-ricio-lhe as nádegas antes de percorrer o pescoço com a ponta dos meus dedos. Ela beija os meus lábios e eu coloco a mão dela no meu pénis duro. Ela dança até pedir que a leve a casa — a cinco minutos da minha.

Vamos e no caminho aviso de que, na próxima vez que nos encontrarmos, ela se vai apaixonar. Como sabes que não me apaixonei na primeira vez que te vi?, per-gunta.

No dia seguinte, regressei a Portugal por uma semana.

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Portugal ou o eterno regresso, pelo menos por uma semana.

A falta de emoção ao caminhar na calçada faz-me confusão. Nos primeiros anos de emigrante, quase cho-rava ao aterrar, sentia o peso de um momento que tinha antecipado durante meses. Agora, hoje e nas últimas vezes, pouco ou nada. Estou preocupado com o impacto da diferença horária na noite de sono e ansioso por um momento de magia que me faça regressar.

Ao ver mulheres bonitas, reacendo a esperança de uma paixão que me possa arrebatar sem escolha. Não quero ter de racionalizar, quero não ter opção: quero o regresso como destino. Logo tenho o concerto com a paciente zero. Talvez seja ela quem eu procuro.

Leio o jornal na esplanada do largo. Reparo nas cores das casas e nas pessoas enquanto saboreio o sol. O dia vai passando e a cidade vai ganhando vida, ao mesmo tempo que recupero do cansaço — ainda estamos conectados, penso. «Ontem tivemos de chamar a ambulância», diz

Não é ela quem eu procuro

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a empregada, apontando para a mesa onde uma senhora desfaleceu enquanto tomava café. Pedi meia torrada de pão saloio e um abatanado.

O dia passou e a paciente zero cancelou, sem expli-cação. Não nos encontrámos. Não é ela quem eu procuro.

A semana passou e não tive encontros. Visitei ami-gos, a família e o país. Sentei-me numa igreja vazia numa manhã de um dia útil e meditei sobre nada, li a frase escrita no tecto: «Amai-vos uns aos outros.» A semana passou.