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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais Maio/2013 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 PROCESSOS AVALIATIVOS EM DANÇA BÁRBARA CONCEIÇÃO SANTOS DA SILVA (UFPB) RESUMO Este estudo se refere à problemática dos processos avaliativos em dança. Para essa discussão, recorta-se um olhar para aulas de Dança Moderna no contexto do curso Técnico Profissional em Nível Médio em Dança da FUNCEB. O ensino de técnicas de movimento ocorre pautado no modelo “cópia e repetição”: o professor demonstra o exercício e o aluno, concomitante ou em seguida, repete o que o professor fez, tentando o máximo possível se aproximar daquilo que foi demonstrado. Desta forma, aquilo que o professor faz passa ser parâmetro de desempenho e o foco deixa de ser o próprio aluno. Assim, suscitamos discussões que perpassam os campos da educação (Freire), da formação em dança (Iannitelli, Marques) e da avaliação (Vasconcellos). PALAVRAS-CHAVE: Dança, Ensino, Técnica, Avaliação. EVALUATIVE PROCESSES IN DANCE ABSTRACT This study concerns the problem of evaluation processes in dance. For this discussion, we focus on modern dance lessons in the context of the Technical Vocational School Dance Course at FUNCEB. The teaching of movement techniques is guided by a “copy and repetition” model: the teacher demonstrates the exercise, and the student simultaneously repeats what the teacher did, trying as much as possible to approach that which has been demonstrated. In this way, whatever the teacher does is the parameter for performance, and the focus is no longer on the student himself. Thus, we have raised discussions that pervade the fields of education (Freire), dance formation (Iannitelli, Marques) and evaluation (Vasconcellos). KEYWORDS: Dance, Education, Technique, Evaluation.

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PROCESSOS AVALIATIVOS EM DANÇA

BÁRBARA CONCEIÇÃO SANTOS DA SILVA (UFPB)

RESUMO Este estudo se refere à problemática dos processos avaliativos em dança. Para essa discussão, recorta-se um olhar para aulas de Dança Moderna no contexto do curso Técnico Profissional em Nível Médio em Dança da FUNCEB. O ensino de técnicas de movimento ocorre pautado no modelo “cópia e repetição”: o professor demonstra o exercício e o aluno, concomitante ou em seguida, repete o que o professor fez, tentando o máximo possível se aproximar daquilo que foi demonstrado. Desta forma, aquilo que o professor faz passa ser parâmetro de desempenho e o foco deixa de ser o próprio aluno. Assim, suscitamos discussões que perpassam os campos da educação (Freire), da formação em dança (Iannitelli, Marques) e da avaliação (Vasconcellos). PALAVRAS-CHAVE: Dança, Ensino, Técnica, Avaliação.

EVALUATIVE PROCESSES IN DANCE

ABSTRACT This study concerns the problem of evaluation processes in dance. For this discussion, we focus on modern dance lessons in the context of the Technical Vocational School Dance Course at FUNCEB. The teaching of movement techniques is guided by a “copy and repetition” model: the teacher demonstrates the exercise, and the student simultaneously repeats what the teacher did, trying as much as possible to approach that which has been demonstrated. In this way, whatever the teacher does is the parameter for performance, and the focus is no longer on the student himself. Thus, we have raised discussions that pervade the fields of education (Freire), dance formation (Iannitelli, Marques) and evaluation (Vasconcellos). KEYWORDS: Dance, Education, Technique, Evaluation.

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As técnicas de Dança Moderna, apesar de terem surgido no início do

século XX como ruptura em relação à estética do balé clássico e de ampliar o

campo de ação motora e expressiva do dançarino, resguardam um modelo de

desempenho técnico e operam de forma similar ao balé quanto ao seu ensino e

resultados pretendidos: o professor demonstra o exercício ou passo de dança e

o aluno, concomitante ou em seguida, repete o que o professor fez, tentando o

máximo possível aproximar-se daquilo que foi demonstrado. Há um padrão de

desempenho que se almeja atingir. Valoriza-se a memorização de passos e

aquisição de habilidades físicas específicas, dentre outros aspectos. Desta

forma destacamos que aquilo que o professor faz passa ser parâmetro de

desempenho e o foco, na avaliação, deixa de ser o próprio aluno já que no ato

de ensinar e aprender o professor passa ser parâmetro de desempenho.

Nesta forma de organização e transmissão de conhecimentos está

impregnado um entendimento de corpo que é pautado no modelo ‘corpo-

máquina’. Tal modelo considera o corpo como entidade que opera de forma

isolada e independente da mente, que se inspira no modelo computacional:

input, como entrada de dados e output como saída de informações. O corpo,

nesse caso, é apenas o meio e está associado à ideia de processador.

Podemos, pois, aproximar essa noção do ‘corpo-máquina’ do problema corpo-

mente. Trata-se de um produto exclusivo de premissas dualistas que, de

acordo com Denise Najmanovich (2001):

{...} se originam nos processos de padronização sociais e tecnológicos, que permite a geração de fenômenos estáveis, normatizados, repetitivos e previsíveis, que parecem ser independentes dos sujeitos que os realizam (NAJMANOVICH 2001: 20).

Junto a esse dualismo (corpo-mente), outros pares se formam: teoria-

prática, técnico-criativo, ensino-aprendizagem, dentro-fora, etc. Esse

paradigma denominado de mecanicista se constituiu como a base da

sociedade ocidental e foi fundado a partir do pensamento do filósofo francês

René Descartes (1596-1650). Najmanovich (2001) argumenta:

A mentalidade moderna não é um sistema homogêneo. Ao contrário, é o nome genérico de uma rede complexa de ideias, conceitos, modos de abordagem, perspectivas intelectuais, estilos cognitivos,

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modalidades de intelecto-ação e atitudes valorativas, sensíveis e perceptivas que caracterizaram uma época ampla. Portanto, deve ser incluída em uma categoria facetada, multidimensional, com limites difusos, com infiltrações de outros modos de pensar e de ser no mundo (NAJMANOVICH, 2001: 11)

O Curso de Educação Profissional Técnico de Nível Médio em Dança da

Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia - Funceb, unidade

do Centro de Formação em Artes, ambiente no qual atuei como docente no

período de 2008 a 2012, localizado no Pelourinho em Salvador/Ba, é público,

mantido pelo Governo do estado através da Secretaria de Cultura por meio da

Fundação Cultural, vinculada à Secretaria de Educação do estado da Bahia e

se constitui um grande centro de referência na formação de jovens. O perfil de

entrada é caracterizado pelo ingresso de jovens que se submetem ao processo

seletivo, que já concluíram ou são concluintes do 3º ano do ensino médio, que,

na sua grande maioria, é egresso de escolas públicas, de famílias de baixa

renda, oriundos de bairros periféricos de Salvador, assim como da sua região

metropolitana e cidades do interior. Esses jovens chegam à instituição com

experiências corporais de níveis diversos, tanto no aspecto relacionado ao

aprofundamento quanto à variedade de modalidades - capoeira, forró, dança

de salão, dança do ventre, dança afro, pagode, axé etc.

Os candidatos que possuem conhecimento prévio em dança moderna

e/ou balé não são tão expressivos (em termos quantitativos), de forma que o

nivelamento técnico faz-se necessário tanto para a prática de um quanto de

outro. No entanto, apesar dessa prevalência, observamos, através dos dados

fornecidos pela coordenação do curso profissional, que, nos últimos dois anos,

uma clientela diferenciada tem integrado o corpo discente do curso: graduados

e graduandos em diversas áreas, inclusive de dança e de teatro, com maior

experiência de vida e acadêmica.

O Curso Técnico em funcionamento desde 1984 é reconhecido pelo

MEC e foi criado com intuito de ampliar o espaço de formação artística

profissional em dança no Estado. Ele teve seu Projeto Político Pedagógico

revisto e, em 2008 a reforma foi implementada e seus componentes

curriculares atualizados. Desde então, o curso foi orientado a partir dos quatro

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pilares da educação contemporânea: aprender a conhecer, aprender a fazer,

aprender a conviver e aprender a ser. Estes alicerces colaboram na formulação

de princípios pedagógicos que norteiam o currículo. Durante cinco semestres

os jovens passam por disciplinas de técnicas do movimento (balé, dança

moderna, afro, danças populares), disciplinas de cunho mais teórico (história

da dança, cinesiologia, elaboração de projetos, ética e psicologia, etc.) e

disciplinas de caráter investigativo (improvisação, sistema Laban, dança

contemporânea, composição solística e coreográfica), além dos estágios

(observação, intérprete, multiplicador e montagem). No último semestre, cada

aluno concebe uma montagem coreográfica como requisito para conclusão do

curso. Desta forma, os egressos são habilitados para atuar como dançarinos,

coreógrafos, multiplicadores e gestores dos próprios projetos culturais.

Como na atualidade existe uma discussão sobre validação de métodos

de trabalho para o ensino da dança (IANNITELLI, 2004; MARQUES, 2010) em

especial do modelo ‘cópia e repetição’, parece-nos relevante, nesse estudo,

apresentar definição do que vem a ser técnica. Termo oriundo do grego teckné

que, de acordo com Houaiss (2009) significa: “conjunto de procedimentos

ligados a uma arte ou ciência; maneira de tratar detalhes técnicos (como faz

um escritor) ou de usar os movimentos do corpo (como faz um dançarino)”. Ou

seja, a técnica está relacionada ao saber fazer, ou melhor, a procedimentos

que orientem qualquer fazer com fins específicos.

Richard Sennett (2009), em seu livro O Artífice, afirma que a

aprendizagem de uma técnica envolve a prática da repetição, e esta, realizada

de forma lenta e reflexiva, pode propiciar a expansão do conhecimento e

despertar o prazer pela atividade na qual se está envolvido. O autor nos

convida a desconfiarmos dos pressupostos que endossam a ideia de que

“talentos” são inatos (discurso ainda vivo nos contextos formais e informais de

ensino da dança – “fulano de tal nasceu para a dança, sicrano tem um corpo

ideal para a dança”) e que, por isso, prescindem de métodos para se

desenvolver. Assim, Sennett adverte que ainda persiste o mito de que, para

desenvolver uma técnica em seu alto refinamento, é premissa básica que a

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pessoa tenha um corpo privilegiado. Ele considera que, para desenvolver

habilidades artesanais, a motivação é mais importante que o talento.

Aproximando o fazer artesanal do fazer na dança, parecem pertinentes

essas considerações para ajudar-nos a pensar a nossa prática. A repetição é

bem-vinda, em especial quando contextualizada, pois assim promove a

compreensão do que e como se faz e para qual fim. Como pondera

Vasconcellos (2007, p. 57), “o conhecimento não tem sentido em si mesmo:

deve ajudar a compreender o mundo, e a nele intervir”. Na mesma medida, a

pesquisadora Marques se coaduna com esse pensamento: “Educar é

impregnar de sentidos. Impregnar de sentidos implica criar, traçar, (re)

desenhar redes de relações” (MARQUES, 2010: 52).

Há uma tendência, na atualidade, em especial com a adesão cada vez

maior de práticas alternativas como parte do treinamento do artista da dança,

em tratar o corpo e a mente como dimensão orgânica íntegra (corpomente

junto) de um mesmo sistema funcional (IANNITELLI, 2004). Expresso de outro

modo, corpomente compartilhando da mesma natureza físico/biológica.

Corroborando com essa compreensão e com as práticas alternativas de corpo,

há negação do modelo ‘cópia e repetição’ como modus operandi, não como

método único, mas como aquele largamente empregado para disseminação e

ensino da dança. Na sua análise sobre a mudança curricular do curso de

Licenciatura em Dança da UFBA, o professor e pesquisador Antrifo Neto (2012)

pondera:

[...] a repetição de movimento é um método eficaz de treinamento corporal e uma das características ontológicas da dança. Ela deve estar contemplada na formação do profissional, seja ele coreógrafo, dançarino ou professor. [...] As técnicas e o treinamento na dança não são vilões da nova pedagogia da dança. Parece que há uma tendência geral dos atuais pensadores da pedagogia da dança em criticar negativamente as técnicas e seus métodos de ensino-aprendizagem e talvez não seja este o caminho para se construir uma pedagogia melhor (SANCHES NETO, 2012: 149).

Entendemos que o aprendizado e aperfeiçoamento motor não

acontecem isoladamente do processo de repetição e que, portanto, as

atividades repetitivas aprimoram a técnica e esta tem um papel importante no

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processo formativo do dançarino-coreógrafo-multiplicador (perfil de saída do

curso técnico). “Quanto mais repetimos uma variação de movimento, estamos

aprimorando e definindo no corpo a qualidade que é importante para aquele

momento dado {...}” (SILVA, 2012: 18). Da mesma forma, sabemos que quanto

mais tempo o corpo mantém contato com uma informação, maior a

probabilidade de esta tornar-se corpo, modificando-o (KATZ & GREINER,

2005). A questão que merece reflexão é como que a repetição é posta e,

dentro disso, como o aluno é avaliado levando-se em conta suas

particularidades e seu processo de aprendizagem.

Mas, como ministrar uma disciplina como Dança Moderna com lentes de

paradigmas contemporâneos? É possível redimensionar os parâmetros

avaliativos sem redimensionar os pressupostos metodológicos?

Najmanovich (2001: 22), afirma: [...] “não é simples dar lugar a novas

metáforas para poder abrir nosso espaço cognitivo a novas narrações.”

Segundo a autora, para que a mudança da nossa paisagem cognitiva seja

possível, é necessário afirmar a corporalidade do sujeito.

A pesquisadora Lêda Iannitelli (2004), problematiza que a prática de

técnicas que são propostas e desenvolvidas por um único coreógrafo, ao

mesmo tempo em que contribui para a experiência plural do aluno, pode

também bloquear e camuflar a sua expressão pessoal. Utilizando-nos desse

mesmo argumento, numa perspectiva inversa, entendemos que a não prática

de técnicas de movimento tradicionais pelo educando (seja ele futuro dançarino

ou professor), pode constituir-se como uma “falha” no seu treinamento,

deixando este de desenvolver habilidades específicas que, como a autora

argumenta, é uma exigência da pós-modernidade, a interdisciplinaridade - “não

há qualquer preocupação em se negar absolutamente nada”.

Apesar do ensino de as técnicas de Dança Moderna estar alicerçada em

paradigmas dualistas (corpo-mente, técnico-criativo, dentro-fora, certo-errado),

é incongruente na contemporaneidade tratar essas substâncias como isoladas.

Nosso desafio é olhar para o corpo não mais como pertencente à modernidade,

mas pensar na multidimensionalidade da nossa experiência corporal

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(NAJMANOVICH, 2001), ou seja, considerá-lo, antes de tudo, como um corpo

vivo, que está em permanente transformação. Através de seus argumentos,

Najmanovich (2001) nos dá pistas de como essa compreensão nos foi sendo

absorvida:

A ciência da modernidade foi construída a partir do pressuposto de uma exterioridade e independência do objeto representado e do sujeito cognitivo. O objeto era uma abstração matemática, um conjunto de propriedades mensuráveis e depois moldáveis. [...] O sujeito era pensado como uma superfície que refletia, capaz de formar uma imagem da natureza externa, anterior e independente dele. Conhecer era descrever e predizer. O sujeito não entrava no quadro que ele mesmo pintava (NAJMANOVICH, 2001: 22).

Para compartilhar o que me motivou a disparar este estudo, é

necessário relatar minha experiência como docente no curso técnico em dança

durante o período de 2008- 2012. Abro, nesse momento, parênteses para

descrevê-la em primeira pessoa.

Ao longo dos dez semestres de atuação como docente na FUNCEB,

meus questionamentos, dúvidas e inquietações diante das avaliações

realizadas foram se intensificando. Como primeira atuação como profissional

de dança numa instituição de ensino formal, fui buscando estabelecer

parâmetros para avaliar o desempenho técnico dos alunos, assim como

também fui me testando ‘pedagogicamente’. As indagações perpassaram tanto

os conteúdos (o que ensinar? devo organizar uma técnica de dança moderna

específica ou transitar por princípios de várias delas?), quanto os critérios de

avaliação (quanto vale um pé esticado, um centro desorganizado e um ouvido

musical?). Não foi e nem continua sendo uma tarefa fácil e me senti muitas

vezes impotente diante do desafio. Não apenas porque a avaliação envolve

muitas variáveis complexas, mas também, porque me enxergava como parte

integrante desse processo. Daí surgiu minha primeira constatação empírica:

não podia exclusivamente avaliar os alunos sem que desta forma avaliasse

minha atuação como educadora.

Anterior ao meu ingresso como docente na Funceb, soma-se à minha

experiência como educadora do movimento minha atuação como instrutora do

método Pilates durante oito anos. Considero esse dado importante de ser

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mencionado, pois essa experiência modificou significativamente meu olhar

sobre o corpo e o movimento. E talvez, deva-se a isso a minha preocupação,

traduzida em tentativas de propor metodologias através das quais o aluno

pudesse compreender os mecanismos que podiam levá-lo à aquisição de

habilidades físicas tão solicitadas nas aulas de técnica de dança.

Nesse percurso, muitas indagações atravessam este estudo: Será que

eu estava mediando o conhecimento? De que forma possibilitei de fato a

apresentação de um contexto prático-reflexivo para os alunos? Ou seja, ao

mesmo tempo em que a situação era de avaliar os alunos, eu estava a todo

tempo sendo avaliada, reconhecendo deslizes e incompreensões desse

processo. Mas, ainda assim, não estávamos, eu e os alunos, na mesma

posição - na condição de professora gozava de privilégios! Surge então a

segunda constatação: a avaliação silencia uma relação de poder; ela é,

portanto, um instrumento de controle. Ao professor cabe a autoridade de dizer

quem está apto ou não para prosseguir, e deste modo, a avaliação pode tornar-

se um instrumento de coerção, que é utilizado mais como um papel político do

que pedagógico (VASCONCELLOS, 2007).

A ‘prova’ tão temida é apenas uma das formas de se gerar nota e esta é

apenas uma das formas de se avaliar (VASCONCELLOS, 2007). Deste modo,

é possível gerar uma nota sem que uma prova seja aplicada, como

descreveremos a seguir.

Entre atitudes assertivas e equívocos, adotei, nos dois últimos

semestres (2012), critérios mais delineados para avaliar o desempenho técnico

e atitudinal dos alunos. Alinhamento postural, coordenação motora, noção de

espaço, percepção musical e transferência de peso como critérios

correspondentes a execução técnica. Frequência, assiduidade, qualidade da

presença, empenho na resolução de dificuldades, compromisso com o

componente curricular e cumprimento das tarefas para atender o que

denominei de ‘atitude’ em sala de aula, tanto para avaliar o processo como

para nortear uma autorreflexão do educando sobre aquilo que ele faz. Essas

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foram tentativas de descentralizar a avaliação e convocar o aluno como agente

corresponsável pelo aprendizado e rendimento na disciplina.

Outro formato testado foi dividir a turma em grupos menores (de 3 a 4

alunos) e deixá-los responsáveis pela reformulação dos exercícios que

compunham a aula, mantendo para isso os princípios que estavam sendo

abordados na unidade/semestre. Deixando-os aos poucos com o

direcionamento da aula, fomos percebendo que a estrutura da mesma tornou-

se caótica, tanto em relação às modificações que propunham quanto aos

procedimentos que adotaram para retransmissão (para os próprios colegas)

das modificações por eles propostas. Essa estratégia foi adotada para

favorecer o processo de criação do educando, diluindo o dualismo técnico-

criativo, para que assim ele pudesse se sentir mais contemplado, dentro de

uma corporeidade que partisse dele mesmo. Além dessa motivação, havia

também uma insatisfação por parte de alguns alunos, da rotina que os

exercícios previamente por mim pensados, estavam causando no andamento

das aulas.

Após essa tentativa de modificação da rotina de aula pelos alunos, eles

solicitaram que os exercícios anteriores conduzidos por mim no início do

semestre voltassem a integrar a aula, o que considerei um retorno positivo do

trabalho que havia planejado. A um só tempo que foi deflagrado que uma aula

necessita tecer propósitos e objetivos claros, a situação também evidenciou a

necessidade de flexibilizar o planejamento e seguir pesquisando e indagando

sobre a eficácia de nossos objetivos e condutas. Como muitos dos nossos

alunos atuam em projetos sociais como multiplicadores, tal experiência

problematizou o lugar do professor na situação de ensino. À luz de Freire

(1996),

Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 1996: 32).

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Ao compartilhar sua pesquisa sobre avaliação em dança no contexto das

escolas municipais de Salvador, em horário de reunião pedagógica com os

docentes do curso técnico, o pesquisador e também docente do referido curso,

Thiago Assis (2012), afirma: “entra em questão na formação em dança não

apenas o que o professor, o currículo ou o curso delimita para o aluno, mas

também, o que o aluno delimita para si mesmo na dança”. Tal reflexão foi

alimentada pelas vozes que não o deixaram silenciar durante sua experiência

como dançarino no início de sua formação, quando ouviu de um professor algo

similar a “seu corpo não é para a dança!”. Ora, quem faz aulas de dança, não

significa que se tornará um dançarino profissional, mesmo que o sujeito esteja

num curso técnico profissional!

Deste relato apreende-se que não podemos desconsiderar os propósitos

do aluno diante do curso e/ou disciplina. O fracasso ou sucesso no

desempenho depende de muitas variáveis - currículo, professor, metodologia,

conteúdos, condições de ensino, recursos, instalações- mas, também, do

próprio sujeito cognoscente.

O pesquisador Assis (2012), como qualquer um de nós, educadores, não

dispõe de recursos para apagar a sua própria experiência/vivência como aluno

do seu processo formativo. A partir disso, ou você se reposiciona e exerce

uma criticidade (como ele o fez) diante do vivido, ou você replica/reproduz o

que vivenciou, nos processos pedagógicos futuros.

Assim, me questiono de que forma venho procedendo com meus alunos:

reproduzindo as injustiças de como fui avaliada ou estou refletindo e me

reposicionando diante desse desafio? Difícil é admitir não já ter cometido

injustiças.... Percebo que, quando nos deparamos com o perfil de aluno que

não se interessa pelos conteúdos que você propõe, é muito complicado manter

o empenho de trazê-lo para perto, despertando-lhe o interesse.

Considerar como o educando inicia e como ele finaliza o semestre,

bimestre ou unidade, o quanto ele se modificou no processo de aprendizagem

e o quanto ainda pode modificar-se (potência, possibilidade de mudança)

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parece ser um dos aspectos que diferencia o ato de avaliar do de examinar

(Luckesi, 2011). A avaliação se interessa pelo diagnóstico daquilo que o aluno

já aprendeu, mas também, o que ele necessita aprender ainda. Nesse sentido,

à procura de uma saída, que mesmo ainda sem saber que estaria teoricamente

resguardada, propus aos alunos da turma de dança Moderna nível

Intermediário (2012.1), que escrevessem em casa um parágrafo autoavaliativo

sobre seu desenvolvimento na disciplina a partir de indicadores previamente

sugeridos (assiduidade, frequência, qualidade da presença, superação de

dificuldades, engajamento e interesse). Após reflexão e argumentos deveriam

dar-se nota (de 0 a 10). Antes que lesse publicamente entre os colegas sua

defesa do quanto seu aprendizado valia, apreciamos a aula, objeto de

avaliação, que fora videografada na semana anterior.

Para a surpresa de muitos, havia uma incompatibilidade para a grande

maioria, entre aquilo que achavam que faziam com a imagem que viram de si

próprios realizando a aula. Uma das alunas mencionou a distância entre o que

ela sentia que fazia, como se percebia na ação e aquilo que ela pôde verificar,

assistindo a si mesma no vídeo. E com isso reconheceu minhas falas de

correção quanto à falta de tônus muscular adequado à realização de

determinados exercícios. Essa discrepância entre o que aluna diz que faz e o

que ela posteriormente pode observar do que se dá a ver quando se move é

um dado muito importante nesse estudo.

Para a formação de jovens, interessa-nos salientar a importância da

convivência entre modelos tradicionais e novas abordagens de ensino da

dança, proporcionando-lhes um trânsito maleável, flexível, entre os

pressupostos consolidados e os paradigmas contemporâneos.

Uma lente possível para se entender o corpo e abordá-lo no contexto

das técnicas de movimento (incluindo aqui as Danças Modernas), na

contemporaneidade, é a teoria do Corpomídia (KATZ & GREINER, 2005) que

compreende o corpo como mídia de si mesmo. Essa teoria assimila o conceito

biológico de membrana, e prevê que o corpo não recusa a informação com a

qual entra em contato no ambiente, modificando-o e a si mesmo em tempo real.

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Nesse sentido, o corpo não é algo pronto, ele está num constante fluxo de

transformações apesar de às vezes não ser perceptível. Desta forma,

considerando o corpo maleável e em constante transformação, pode ser uma

lente útil para diluir o certo-errado e entender a avaliação como um processo

paulatino e não pontual.

Para ser coerente com os pressupostos dessa teoria, faz-se necessário

um redimensionamento metodológico. Uma possibilidade é trazer para as aulas

de técnica tarefas investigativas a partir dos princípios organizativos do

movimento (contração/release, espirais, rolamentos, balanço e suspensão,

etc.), sem que isso exclua o aprendizado de um código de movimento

(sequências previamente elaboradas), tendo a repetição como um recurso de

aprendizagem e aprimoramento motor. Abordar como parâmetro a

compreensão do princípio diante de uma tarefa criativa pode ser uma

estratégia eficaz para facilitar a identificação da defasagem do aluno e auxiliar

o professor a orientá-lo a traçar objetivos claros para melhoria da sua

performance. Aproximando-se da particularidade de cada aluno, o professor

terá mais ferramentas para avaliá-lo de forma mais individualizada atenuando o

nível de generalizações nos procedimentos corretivos.

Propor que o aluno possa refletir sobre o próprio desenvolvimento,

através do mecanismo de autoavaliação, coloca-o como corresponsável pelo

seu aprendizado e rendimento. A reflexão consiste em uma fala em primeira

pessoa, centrado no aluno (há sempre uma tendência a apontar fatores

externos que comprometem o nosso desempenho), dando foco na

processualidade do seu aprendizado, no como ele iniciou o semestre, o quanto

caminhou, e ainda, aquilo que ainda lhe falta percorrer.

Este primeiro estudo não tem a pretensão de encontrar respostas para

todas as indagações levantadas, mas convocar professores e pesquisadores

para uma reflexão sobre um tema complexo e tão pouco investigado no

universo da prática da dança. A avaliação em dança ainda é um tema

negligenciado, pode gerar discussões profícuas e apontar caminhos no intuito

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de dirimir equívocos e deslocar o olhar da dança dos paradigmas que ainda

remontam aos séculos XVIII e XIX.

Referências

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Bárbara Conceição Santos da Silva Mestre em Dança (2011), Especialista em coreografia (1994) e Bacharel em Dança pela Universidade Federal da Bahia (1993). Atua como artista e educadora, ministrando aulas de improvisação, composição coreográfica, dança moderna e Pilates. Foi docente do curso Técnico Profissional em Dança da FUNCEB (2008-2012) e atualmente integra o quadro de professores do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba- UFPB. [email protected]