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38 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2015 n S A B E D O R I A I ntegrar plenamente o valor, o significado e a pertinência de uma palavra significa antes de tudo ter o tempo de acolhê-la para medir seu impacto. É deixá-la nos invadir a ponto de interpretar seu sentido pelos nossos sentidos e de vibrar inteiramente no coração de suas profundezas até entrar em ressonância com sua razão de ser. É deixá-la nos submer- gir a ponto de comungar em consciência com sua essência até viver, por fim, a dimensão que ela veicula. Uma única palavra pode, pois, ser finalmente portadora de toda uma mensagem, de uma emoção ou de seu oposto. A pena, por exemplo, é traduzida como um sentimento de Por DOMINIQUE DUBOIS, SRC mágoa e de prostração, de onde a expressão errar como uma alma cheia de pena! A com- paixão, por sua vez, é no mais das vezes defi- nida como uma sensibilidade aos sofrimentos de outrem a ponto de incitar a reagir. Pena e compaixão – eis aqui duas palavras que não são sinônimos, mas complementares em suas acepções. Pela atração que exercem uma sobre a outra, elas determinam a mescla de respostas intuitivas, emotivas e afetivas próprias aos seres vivos e à sua necessidade inata de bem-estar, de amor e de contenta- mento, a ponto de projetar esses seres no seio de uma mesma realidade. © THINKSTOCK.COM

A O I A - amorc.org.br£o.pdf · na seguinte frase, ... Somos cada qual um ele-mento, uma célula do corpo desse universo, ... Meu próprio corpo é o corpo do uni-

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Integrar plenamente o valor, o significado e a pertinência de uma palavra significa antes de tudo ter o tempo de acolhê-la para medir seu impacto. É deixá-la nos invadir a

ponto de interpretar seu sentido pelos nossos sentidos e de vibrar inteiramente no coração de suas profundezas até entrar em ressonância com sua razão de ser. É deixá-la nos submer-gir a ponto de comungar em consciência com sua essência até viver, por fim, a dimensão que ela veicula. Uma única palavra pode, pois, ser finalmente portadora de toda uma mensagem, de uma emoção ou de seu oposto. A pena, por exemplo, é traduzida como um sentimento de

Por DOMINIQUE DUBOIS, SRC

mágoa e de prostração, de onde a expressão errar como uma alma cheia de pena! A com-paixão, por sua vez, é no mais das vezes defi-nida como uma sensibilidade aos sofrimentos de outrem a ponto de incitar a reagir.

Pena e compaixão – eis aqui duas palavras que não são sinônimos, mas complementares em suas acepções. Pela atração que exercem uma sobre a outra, elas determinam a mescla de respostas intuitivas, emotivas e afetivas próprias aos seres vivos e à sua necessidade inata de bem-estar, de amor e de contenta-mento, a ponto de projetar esses seres no seio de uma mesma realidade.

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O gesto de compaixãoJean-Jacques Rousseau (1712-1778) enunciou perfeitamente essa fusão íntima das psiques na seguinte frase, dedicada ao sofrimento animal: Como é que deixamo-nos emocionar por piedade senão pelo ato de nos transpor-tarmos para fora de nós e nos identificando com o animal que sofre – deixando, por assim dizer, o nosso ser para assumir o dele?

Tudo se passa no tempo de um sorriso, de um gesto ou de uma prece, mas também às vezes simplesmente de um silêncio, onde a em-patia espontânea e o eclipse total de um para o outro confundem momentaneamente duas personalidades-almas distintas, ou mesmo dois seres vivos de naturezas ou de reinos distintos.

Esse élan sincero e instintivo, marcado simultaneamente por discernimento e benevo-lência, prodigalizará um imenso reconforto ao ser náufrago ao inflamá-lo com o facho de luz e de calor próprio do amor desinteressado, são e inequívoco. Esse sentimento, ao mesmo tem-po fortificante e apaziguador de ser compreen-dido, aceito tal e qual em toda a sua fragilida-de, é um bálsamo oferecido à dor, um esboço de cura, uma clareira no precipício da solidão e do aprisionamento, o hino à vida que res-suscita com um fermento de fé. Esse parêntese roubado ao espaço-tempo é também a carícia e o sopro abençoados da providência que já talvez não sejam esperados e que, pelo fato de se ter sabido resistir e sobreviver à falibilidade – às vezes reduzido ao nada em plena fortaleza em ruína – e existir ao menos pela esperança, pelo bem ou pela utopia, repentinamente nos recompensa pela certeza sem ilusões de uma saída acessível e pela santificação da espera de uma mão estendida para a salvação.

Durante a efusão física, mental, psíquica e espiritual que acompanha a realização de tal ato de compaixão, aquele que recebe, embe-

bendo-se na fonte de afeição do ser miseri-cordioso, se liberta incontestavelmente de um fragmento de seu sofrimento em benefício de um novo ganho de energia e de confiança, ao passo que aquele que oferece, abraçando por sua devoção a aflição do primeiro, alivia seu próprio coração, liberta um pouco mais a sua alma do domínio do ego e se enriquece, acima de tudo, da história e da vivência do primeiro. Tal é a principal característica das semeaduras e das colheitas da compaixão: uma simbiose e um duplo benefício.

Assim que a intensidade da conexão des-ses dois seres por um instante fusionados se abranda – que o enlace é suavizado e que a projeção sem mescla de um para o outro é interrompida –, o vazio perturbador da se-paração e o espectro igualmente insuportável de um novo abandono são instantaneamen-te suprimidos e anulados sob os auspícios da compaixão pela poderosa evocação dos laços indissolúveis do ato de partilha e de compromisso sem dependência que acaba de acontecer. Eles doravante têm consciência de que todos os reinos são atravessados por uma mesma cor-rente vital – uma mesma sinergia –, que nenhuma vida está isolada das outras e que a miríade dos seres forma uma mesma família motivada por um mesmo destino. Depois da coincidência dos contrários, do sofrimento e da felicidade, se manifesta agora um doce sentimento de universalidade. A via transfor-madora e humanista da compaixão operou pela fraternidade e para a fraternidade.

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A compaixão universalAgora sabemos que uma mesma energia impregna todas as coisas e que somos todos oriundos da mesma fonte, posto que somos todos compostos de átomos – eles próprios provenientes de minúsculas partículas origi-nárias do universo. Somos cada qual um ele-mento, uma célula do corpo desse universo, um ser vivo e sensível, e estamos de acordo quanto ao fato de evoluirmos para uma pers-pectiva universal enquanto irmãos e irmãs de uma entidade global. Graças à nossa natureza dupla, material e imaterial, corpo e alma, eu e Eu, isso se cumpre sob a égide de um elo im-palpável, porém inalterável entre o visível e o invisível – entre a terra e os céus.

Ora, geralmente, nas sociedades moder-nas e desenvolvidas, a maioria das pessoas permanece preocupada apenas com o au-mento de seus bens e de suas futuras aquisi-ções, com a preservação de seus privilégios, daqueles de sua família e eventualmente de seus amigos, sem se dar conta de que os sentimentos que nutrem por esse círculo ín-timo dizem também respeito muitas vezes ao apego, ao preconceito e à possessão. Por essa obsessão pelo desenvolvimento material, o homem destrói tudo em sua passagem, até os mais fracos dentre os seus semelhantes. Ten-do se tornado paralelamente impermeável às necessidades existenciais e fundamentais da vida mineral, vegetal, animal e ambiental, às quais, entretanto, tudo deve e das quais seu futuro depende integralmente, ele se com-praz em suas falibilidades e negligencia deli-beradamente a maior e mais fascinante parte de si mesmo: a de sua própria vida interior.

Quanto à compaixão, o problema não está no fato de se acumular riquezas e querer fazer seus próximos felizes, pois o bem-estar, a felicidade e a alegria são ideais vitais ao

redor dos quais todos nós gravitamos. Trata--se antes de ter consciência de que os mais desfavorecidos e os mais aflitos aspiram ao mesmo estado de leveza e de liberdade, ou mesmo de impermanente frivolidade. Sentir necessidade e encontrar o impulso de par-tilhar essa felicidade com eles oferece uma nova perspectiva, qual seja, a de vencer o caráter agora infundado de um sistema es-tabelecido sobre a base da lei do mais forte, da ignorância e da inconsciência absolutas. É definitivamente reconhecer que a felicidade de uns não deve acarretar o infortúnio dos outros, mas que – exatamente ao contrário – deve contribuir para a plenitude deles.

Para se opor ao individualismo que pre-valece e aspirar abertamente à autêntica compaixão, a filosofia budista preconiza que se medite sobre a igualdade de direitos a fim de suplantar o apego ao seu próprio círculo racional, seja ele familiar, social ou profissio-nal, para abri-lo progressivamente aos outros até expandir-se à infinidade dos seres vivos e ao conjunto dos reinos. Os inimigos também são considerados tendo direito à felicidade e ao não-sofrimento; em outras palavras, à paz, independentemente da atitude que tenham para com o ser misericordioso.

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Por sua vez, a filosofia rosacruz se apoia sobre a alquimia espiritual, utilizada princi-palmente para a transmutação dos defeitos da natureza humana em suas qualidades opos-tas. O essencial da prática rosacruz consiste, portanto, em se trabalhar para o aprimora-mento individual a fim de se tornar melhor, a ponto de manifestar um verdadeiro ideal de comportamento para com todos. Trata-se, pois, de melhorar o mundo reformando-se a si mesmo até se atingir um estado de espírito propício a cada vez mais humanismo e frater-nidade, colocando, dessa forma, a cultura da compaixão e do auxílio mútuo no centro de suas preocupações maiores.

Dessas duas concepções, evidencia-se que a compaixão solicita mais do desen-volvimento das qualidades humanas e da prática de um comportamento virtuoso para com todos aqueles que sofrem do que da fé ou da crença propriamente ditas, o que lhe confere, in-contestavelmente, uma conotação mais filosófi-ca do que religiosa. É o que levou o Dalai Lama a dizer, em seu livro intitulado O Poder da Com-paixão: Não preci-samos nos tornar religiosos. Não pre-cisamos de ideologia. O que nos é necessário é o desenvolvimento das qualidades humanas. Da mesma forma, Serge Toussaint, Grande Mestre da AMORC, destaca em seu blog na internet: Não é necessário de forma al-guma ter fé para se compadecer do sofri-mento de outrem e para agir na tentativa de aliviá-lo ou fazer com que desapareça. Basta – se ouso dizê-lo – ser humanista.

De tudo o que precede, vemos bem que a compaixão exige um esforço particular: o de estender seus sentimentos de benevolência e de altruísmo para todo o planeta, ou seja, bem além do seu círculo íntimo de relações. Trata-se verdadeiramente de um engajamen-to – de uma suplantação de si pela inteligên-cia e pelo movimento do coração. Enquanto ser sensível, aquilo que o outro sente todo mundo é passível de sentir um dia, pois nos-sa natureza é fundamentalmente a mesma. Conscientemente ou não, somos todos en-sombrados e desacelerados pela infelicidade dos outros, ao passo que a verdadeira felici-dade só pode ser engrandecida na proporção da felicidade deles. Em seu livro intitulado A Montanha no Oceano, Jean-Yves Leloup declara: Meu próprio corpo é o corpo do uni-verso e se, nesse universo, um único membro

estiver sofrendo, não posso conhecer a pleni-tude ou, em termos cristãos, a bea-

titude... Fazer o bem a um ele-mento do universo é fazer o

bem ao universo inteiro.Por essa malha de

almas e sua ressonân-cia suprassensível de uma entidade à ou-tra, toda experiência tem um sentido e serve ao conjunto. Se alguém sofre e se

restabelece de uma provação com a ajuda

de outrem, qualquer que seja o grau de dificul-

dade dessa provação, juntos abrem um rastro luminoso. Essa

via redentora acelerará o processo de cura e de transformação daqueles que, um dia, serão levados a viver a mesma coisa e aju-dará a suplantar o obstáculo mais facilmente até abolir definitivamente a necessidade dessa experiência. É a razão pela qual todo sofri-

“ a felicidade de uns não

deve acarretar o infortúnio dos

outros…

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mento abrandado e superado é um presente para si mesmo e uma oferenda para outrem.

Eis a razão pela qual a história não precisa sempre se repetir, pois, enquanto se repete ela reflete a falta de despertar e de consciên-cia das mentalidades. Eis porque a filosofia, o misticismo e a espiritualidade têm todos o seu lugar e devem, ao contrário, se renovar, perdurar e brilhar para estimular as almas e impulsionar a regeneração de uma huma-nidade desgarrada e em busca. Eis porque é indispensável propor amplamente o acesso ao Conhecimento – para que os homens ces-sem, em todas as circunstâncias, de abusar uns dos outros, para que se motivem a se tornarem atores de um mundo melhor, os precursores de uma utopia e os instauradores de uma autêntica fraternidade mundial e de uma nova humanidade tão esperadas.

Existe em nós uma dimensão de doa-ção, acolhimento e receptividade tal que dissimulá-la ou ignorá-la é forçosamente prejudicial à saúde física, mental e psíqui-ca, e é tanto em nome do bem individual quanto do bem comum que ela merece ser descoberta, encarnada e fortificada. Não

utilizar essa força e renegá-la redunda em obscurecer a mente, impedir o movimento do coração, coagir o corpo e sacrificar a alma. Nesse mundo perturbado e brutali-zado sempre há uma ocasião para se mani-festar atenção, afeto e empatia, não apenas a alguém em particular, mas também a todos os seres vivos e a todas as formas de vida.

Nesse sentido, nossos pensamentos, nos-sas emoções, nossas preces e nossos élans, quando são marcados pela sinceridade e pela benevolência, podem ser destinados a uma pessoa particular, mas também dirigidos para todos os reinos e todos os elementos que compõem o nosso planeta. Nesse último caso, mesmo que não vejamos objetiva-mente o fruto de nossos atos de compaixão, eles jamais são vãos e permanecem sempre oportunos e legítimos. Confiados ao Cós-mico e guiados pelo sopro providencial da universalidade, são sempre garantidos pelo mais justo destino e pela maior eficácia.

No fio do processo de compaixão,uma alma vivaPara compreender bem a ligação entre o ato de compaixão e a participação do Cós-mico, é importante definir o processo de compaixão e depois tomar consciência da dupla natureza do homem e da interação entre a alma individual e as leis divinas.

O processo de compaixão se manifesta por uma série de sensações que vão da em-patia (faculdade intuitiva de se colocar no lugar de outrem e perceber aquilo que ele sente) à pena, depois da pena à simpatia (participação benévola na alegria ou na dor de outrem) e, por fim, da simpatia ao im-pulso de auxílio. Nesse estágio, não convém mais considerar a empatia e a compaixão

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como eventuais sinônimos, mas sim perceber que uma é apenas um componente da outra – sua forma passiva, seu esboço. Com efei-to, o fato de perceber intuitivamente aquilo que o outro sente não induz, forçosamente, a uma necessidade de agir. É quando ocorre a manifestação de um desejo de consolo, de uma vontade de compreensão, de acom-panhamento e de apoio que a compaixão assume todo o seu significado sob a forma ativa de auxílio. Para tomarmos um atalho, podemos considerar a compaixão como a resultante da empatia e do auxílio reunidos.

Elevada a esse nível, a compaixão revela todo o seu valor, pois traz em si o gérmen da nobreza e do domínio próprio às virtudes, no sentido do serviço e da ética; em outras pala-vras, próprio aos sentimentos de humanismo e de fraternidade tão caros à filosofia, à espiritu-alidade e ao misticismo. Esclarecida em todo o seu sentido, sua natureza benévola nos protege e nos distancia logo da armadilha opaca da piedade, da condescendência ou da indiferença para nos conduzir – munidos simbolicamente das chaves da consciência, do livre-arbítrio e da alma – ao umbral das leis divinas.

É precisamente nesse momento que nos é dado perceber em nós outra dimensão – um espaço virgem ao mesmo tempo subjacente e incriado, uma energia emergente até então insuspeita e, no entanto, onipresente, oni-potente e onisciente. Além dos limites do racional e do espaço-tempo, sentimos logo, em todo o nosso ser, a presença vibratória de uma essência ao mesmo tempo íntima, inten-sa, sutil e sublime a que chamamos “alma”.

Certamente, penetramos o seio de um território desconhecido do qual nunca nos falaram no mais das vezes – uma atmosfera algo abstrata para a qual não fomos prepara-dos. Todavia, a despeito de certo problema passageiro, uma janela acaba de se abrir inexoravelmente para a evidência da duali-dade da natureza humana e, por conseguinte,

para a existência de um princípio divino no homem, o qual o religa infalivelmente ao Cósmico. Afirmando-se, assim, em sua dupla natureza, o homem percebe que não é apenas um ser vivo, mas também, e, sobretudo, uma alma viva. Tal como um guia espiritual inte-rior, ela o convida então a se engajar na via da prece e da meditação a fim de sentir, de captar a corrente divina em movimento e em ação em toda a Criação e de se associar a ela para melhor restituí-la em seu cotidiano.

O desenvolvimento das virtudes e o despertar do euTendo sua busca pelo bem sido confortada, seu poder de auxílio metafísico ampliado consideravelmente, sua capacidade de doação aprimorada e seu amor pela humanidade e pela vida reforçado, o homem pode então re-fletir, em seu comportamento, a luz brilhante da obra à qual sua consciência, seu livre--arbítrio e sua alma se consagram, ou seja, o advento de um mundo melhor.

Ao longo de toda essa progressão, é pre-ciso constatar que uma única virtude mani-festada pode bastar para iniciar o homem ao objetivo ontológico da vida – da sua vida –, contribuindo, assim, para o despertar, a rea-lização e a perfeição de seu ser interior. Sem essa fusão cósmica entre a alma individual e a Alma Universal, o eu, ainda muito sequioso de amor, permaneceria prisioneiro de seu próprio ego e inibiria qualquer veleidade de compaixão a longo prazo, ao passo que o eu estagnaria sufocado, não podendo revelar sua natureza essencial feita de consciência e altruísmo universais. Eis em que o desenvol-vimento das virtudes é o suporte evolutivo da alma e a alma a inspiradora espiritual do desenvolvimento das virtudes.

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“ …a pobreza

grassa nos países em que o nível de vida é, todavia,

considerado confortável…

”Dessa simbiose até então incriada surge

uma chama viva, nascida do despertar do eu e suscetível de abrir uma eclusa de luz propícia a deter o ciclo das repetições, a curar todos os males e a agir de modo que, a despeito de circunstâncias desesperadas e de situações abomináveis, o mundo ain-da se mantenha de pé, se equilibre bem ou mal e se eleve apesar de tudo em espírito.

Evidentemente, cada qual tem a escolha de contribuir ou não com essa alquimia for-midável que se opera entre o eu e o Eu. Em função de seu próprio livre-arbítrio, cada qual pode permanecer surdo às aspirações de sua alma ou a satisfazer suas exortações abrindo-se à sua divindade. É precisamen-te sondando a imensidade de seu coração que ele se torna o artesão individual de seu próprio despertar, livre para escolher a obra que vai servir e as ferramentas de contribuição que vai desenvolver para a sua consecução. Agindo assim, ele dá uma orientação resolutamente espiritualista à sua existência, considera o mundo inteiro como seu único filho, se beneficia dos auspícios

do Cósmico e oficia doravante com Ele a serviço da Compaixão e do Bem universais.

Se o despertar das qualidades inerentes ao desenvolvimento da compaixão se mos-tra primordial, isto se deve ao fato de que a compaixão contribui incontestavelmente para o estabelecimento de um mundo melhor. Ora, em seu livro intitulado A Utopia Rosacruz, Serge Toussaint lembra que, de acordo com a UNESCO, 70% da população são pobres, 95 países do planeta são igualmente pobres e 80 outros estão

em vias de desenvolvimento. Ele confirma também que a pobreza grassa nos países em que o nível de vida é, todavia, considerado confortável e atesta que tal situação não pode satisfazer a quem aspira à felicidade de todos os homens. Paradoxalmente, na introdução do livro de Steve Melanson, Jung e a Mística, é dito que o homem ocidental sofre no interior: Como se todas as graças materiais que ele concedeu a si mesmo em menos de um século não pudessem jamais bastar para preencher sua alma, ele traz o vazio e muitas vezes, escondendo-o de si mesmo, permanece ignorante de sua lacuna.

Contudo, essa vacuidade poderia ser proporcionalmente coberta por todo o bem que deixamos de fazer. O bom e o justo se apoiam sempre sobre uma ou várias qualidades superiores particulares

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que todos possuímos no fundo de nós mesmos. Além disso, é bem sabido que ninguém é jamais totalmente mau. Disso decorre que toda personalidade dispõe de uma aptidão particular que já contém em si a quintessência do despertar do eu. Trata-se de uma sólida fundação para a construção de outra ideia do homem e de outro olhar sobre o mundo. Se esse não fosse o caso, como explicar o fato de que, depois de mais de cem mil anos de existência e persistência de nossa espécie humana, tenha ela atingido um nível de consciência sem precedente e ainda esteja apta a prosseguir com sua evolução? Sem a multiplicação de atos de compaixão, simplesmente não estaríamos mais aqui.

Porém, se por um lado a compaixão é uma virtude que o homem deve se esforçar para despertar no decurso de seu percurso interior, por outro o desejo e a vontade de ajudar os outros, as qualidades comporta-mentais e a prática mística ainda não são absolutamente suficientes para a sua justa aplicação. Ela pressupõe um perfil psico-lógico equilibrado e uma estrutura mental clara, capazes de suplantar o sentimentalis-mo excessivo, a boa consciência, a piedade ou a indiferença. A esse respeito, o Dalai Lama escreveu: A compaixão não é apenas uma resposta emocional, mas um sólido en-gajamento construído sobre a razão... Nossa definição de compaixão deve ser clara.

Nossa presença na Terra por si só dá testemunho de nossa imperfeição. A toma-da de consciência das distorções de toda espécie que perturbam nossa ascensão para a expressão de sentimentos puros, simples e desinteressados, ao invés de nos levar à desconsideração de nós mesmos ou mesmo à culpabilidade, deve, ao contrário, nos incitar a trabalhar incessantemente para pôr fim a isso. É esse trabalho sobre nós mesmos que nos fará por fim descobrir nossa verdadeira

natureza e nos aproximar dela com uma consciência muito mais justa. Nesse sentido, a alquimia espiritual se associa maravilho-samente bem com a psicologia, assim como a toda iniciativa de desenvolvimento pessoal que contribua para a revelação de si mesmo. Concretizar essa resolução redunda em assi-nar um pacto de paz com sua personalidade--alma e revelá-la ao mundo inteiro outor-gando-se simplesmente a liberdade de amar o seu próximo cada dia um pouco mais.

De tudo isso que precede, não é em vão dizer que o progresso na senda mística, e, portanto, na via do amor, não pode ser reali-zado sem esforços consideráveis. Esse cami-nho convoca incontestavelmente a determi-nação, a constância e, sobretudo, o desapego.

A profundidade de cada palavra se en-volve logo em solenidade e os textos que lhes servem de suporte realçam o sagrado. Manter-se de pé, estender a mão, abrir seus braços e oferecer seu coração estão longe de não significar nada: significam aceitar libertar a alma do amor que até então estava aprisionada. Essa libertação pelo amor, sím-bolo de um coração sem limites, é o brilho da rosa no centro da cruz que, assim como os círculos inundados de sol na água, se de-sabrocha e brilha pela graça e pelo sopro do Espírito Santo. É a unificação dos contrários, a pacificação das oposições e a transcendên-cia das diferenças, pois a inteligência que ama e o Verbo Divino que iluminam essa rosa eterna – essa alma do amor – espalham por toda parte a mesma mensagem universal de misericórdia e, sobretudo, de verdade. 4

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