A Pele Que Habito Desnuda o Melodrama (2)

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Este artigo pretende explorar os pontos de encontro e desencontro entre a obra de Almodóvar, A pele que habito, e o lenitivo do melodrama canônico, em contraponto com a tragédia clássica. A análise do filme será atravessada por bases teóricas que se ancoram, principalmente, no livro de Ismail Xavier, O Olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, a partir de uma discussão acerca do estatuto do melodrama e sua eficácia na sociedade do espetáculo; e no livro de Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: Tragédia e Comédia, no qual explora a mitologia do teatro no contexto político da polis grega.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS FACULDADE DE COMUNICAO E BIBLIOTECONOMIA

    Mestrado em Comunicao Disciplina Mdia e Cultura Prof.: Lisandro Nogueira Aluna: Maysa Puccinelli

    A Pele que Habito desnuda o melodrama

    Resumo

    Este artigo pretende explorar os pontos de encontro e desencontro entre

    a obra de Almodvar, A pele que habito, e o lenitivo do melodrama

    cannico, em contraponto com a tragdia clssica. A anlise do filme ser

    atravessada por bases tericas que se ancoram, principalmente, no livro

    de Ismail Xavier, O Olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo,

    a partir de uma discusso acerca do estatuto do melodrama e sua eficcia

    na sociedade do espetculo; e no livro de Junito de Souza Brando, Teatro

    Grego: Tragdia e Comdia, no qual explora a mitologia do teatro no

    contexto poltico da polis grega.

    Palavras-chave: melodrama, heri, tragdia, Almodvar.

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    A mais bela tragdia aquela cuja composio deve ser, no simples, mas complexa; aquela cujos fatos, por ela imitados, so capazes de excitar o temor e a compaixo [...] nela cabe o homem que, mesmo no se distinguindo por sua superioridade e justia, no mau nem perverso, mas cai no infortnio em conseqncia de algum erro que cometeu. (Aristteles, Potica)

    As origens do melodrama, enquanto gnero esttico, remontam ao sculo

    XVIII e apontam para a sistematizao de um certo iderio mimtico embutido na

    tenso histrica entre burguesia e aristocracia. Os reflexos destas tenses so

    materializados nas expresses culturais, sobretudo, na cena teatral (arte mimtica, por

    excelncia) que assume os traos destes conflitos e passa representar os costumes da

    aristocracia imbudos de valores burgueses.

    Se o melodrama nasce no universo do Drama Burgus, explorado por

    Diderot, suas apropriaes por diferentes expresses culturais pera, msica, teatro,

    cinema, TV o tornam flexvel a ponto de ser reinventado a cada salto tecnolgico,

    conservando as freqentes afetaes sentimentais e o clssico jogo das polaridades bem

    e mal.

    O tom melodramtico incorpora as mais diversas expresses artsticas,

    explorando os efeitos conciliatrios de identificao da platia com a histria encenada.

    Uma catarse que gera estados emocionais catalisadores da credulidade de quem o

    assiste. Assim, impe ao contedo, qualquer que o seja, uma forma que ressalta os

    valores vigentes sob a prtica de uma pedagogia moral.

    O leitmotiv do melodrama perscruta uma simplificao das relaes

    humanas com o mundo. A arquitetura do enredo projeta-se em uma equao binria de

    causa e conseqncia, de modo que, o sucesso da empreitada do personagem depender,

    em parte, de seu mrito; em parte, do acaso. Contudo, no s de finais felizes se fazem

    grandes melodramas. Em enredos que tematizam o fracasso, fatores exteriores

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    determinam a ao e garantem, a personagem, lugar de vtima radical espera de

    redeno, que via de regra, deve chegar no ltimo minuto da trama.

    Neste sentido, o melodrama cannico ope-se ao realismo moderno e

    tragdia clssica, nos quais a organizao do mundo comporta o peso de uma rede

    complexa de contradies, apta a definir os limites do poder dos homens sobre o seu

    destino (Xavier, 2000, p.81). Isso porque, no melodrama atual, a apropriao de

    temticas trgicas se d de modo a atenuar as tenses entre, por exemplo lei e desejo,

    identidade familiar, falsos parentescos, etc em funo de uma adaptao que atenda

    aos ideais de hedonismo da sociedade de consumo.

    Assim, das arenas gregas ao cinema high-tech, o recorrente uso de temticas

    universais revelam tanto uma matriz de indagaes humanas, quanto ratificam sua

    formalizao em produes estticas. Nesta pauta de contedo, h formas e formas de

    lanar mo de composies melodramticas. Na forma cinematogrfica, Almodvar

    um gran maestro desta arte.

    Em sua ltima obra, A pele que habito, o diretor condensa exemplarmente

    as maiores angstias do homem, sem deixar nada a desejar nem s grandes tragdias

    gregas, nem aos clssicos enredos de fundo psicanaltico. O mistrio do sexo, o horror

    da castrao, a rivalidade fraterna, a superao da morte, a interveno do destino,

    traio, romance familiar, megalomania, neuroses e perverses, realizao do amor.

    Uma miscelnea de temas que, mesmo individualmente, poderiam comportar fora

    dramtica para sustentar um enredo. Neste ponto, Almodvar preciso na dosagem de

    cada uma destas substncias.

    Os costumeiros transbordamentos afetivos dos neurticos almodovianos,

    recheados de humor-negro e emoldurados em cenrios de cores fortes, recebem neste

    filme um contraponto esttico frio, clean, perverso e calculista, necessrio para

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    execuo eficiente do destino, no s de uma personagem, como tambm do enredo do

    filme.

    Na pele da mo pesada de Almodvar, podemos entrever duas linhas

    paralelas que se cruzam, se emaranham, se quebram e se desenrolam ao final do filme.

    Chamaremos a primeira, de linha do Amor Corts. Nela se sustenta uma

    clssica histria de amor no correspondido. Um rapaz apaixonado por uma moa que

    no pode lhe retribuir o afeto, devido a uma impossibilidade maior e intransponvel:

    neste caso ela lsbica, portanto tem como objeto de atrao sexual o corpo feminino.

    Notem que, apesar do contedo contemporneo do conflito, o que apontamos aqui a

    recorrncia do tema do amor no correspondido e das situaes adversas que o

    personagem deve atravessar para ser merecedor do afeto da dama.

    A linha do Amor Corts to sublime quanto pouco perceptiva e

    praticamente apaga-se no emaranhado rocambolesco em que Almodvar costura nosso

    olhar com a segunda linha. Esta, chamaremos de linha do Amor Pathos1.

    O Amor Pathos trs em si, carga de destemperos em nome de um amor

    tematizado desde a mitologia grega, passando pela filosofia ocidental at os folhetins

    televisivos. Este registro conserva o poder de destruio das paixes; o pathos amoroso

    que justifica toda sorte de mentiras, traies, torturas e assassinatos que a desrazo

    humana pode disparar. As aes desencadeadas pela loucura ou ausncia de razo so

    identificadas e plenamente justificadas nos motivos do corao. Assim, podemos

    perceber na linha de enredo do Amor Pathos um arranjo no qual prevalecem grandes

    dramas universais que poderiam adequar-se matriz melodramtica.

    1 A acepo mais geral da palavra pathos coloca o sujeito em posio de passividade ante a algo que lhe

    acontece. Assim, diz de um assujeitamento de si a merc de paixes, sofrimentos, catstrofes.

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    Entretanto, Almodvar vai alm das limitaes simplistas do melodrama.

    Vai alm sem deixar de vestir-se de motivos, comumente evocados em fabulaes

    melodramticas, para despir-se deles, revelando pontos sombrios e intragveis ao

    imaginrio de um virtuosismo moral. A bondade ou maldade de suas personagens so

    circunstanciais. As aes erradas so punidas com um excesso que quebra a

    identificao com a vtima e a coloca no lugar de algoz, para em seguida ser novamente

    vitimizada.

    No sem alguma ironia, Almodvar ergue seu circo de horrores entre as

    duas pontas discretas da linha do Amor Corts. entre o desprezo da dama e o retorno

    do heri que se revelam o colorido berrante dos excessos e das paixes de um Amor

    Pathos. Podemos perceber aqui um leitmotiv grego to antigo quanto a cena teatral:

    todo excesso ser punido, ou ainda, a tragdia s se realiza quando os limites so

    ultrapassados (Brando, 1990).

    Aos moldes de um deus ex-machina2, Almodvar pune e salva seu heri

    sem poup-lo de seu destino trgico: extirpao da masculinidade causadora de sua

    dupla desdita (desprezo da mulher amada e possvel estupro de outra mulher). No por

    acaso, o ato que determina o destino do heri est envolto em um contexto que atenua

    seu possvel crime: drogas, orgias, aparente consentimento da moa. Se Almodvar opta

    por no caracterizar esta passagem com um mise-en-scne que ressalte a violncia de

    um estupro, rigor, s podemos considerar que os acontecimentos se deram muito mais

    por uma manobra do destino do que por uma escolha do heri.

    2 Deus ex-machina deus surgido da mquina. Expresso grega usada no drama para indicar o momento

    em que uma soluo improvvel, inesperada e mirabolante ocorre no desfecho da encenao. Fonte:

    www.dictionary.com

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    De modo astuto, o diretor engendra na cena mais determinante do destino do

    heri uma celeuma de dvida que ecoar at o desfecho de sua tragdia pessoal. De

    sada, Almodvar abre espao para um perdo que no chegar aos outros personagens

    em funo de suas mentiras, traies e violncias. Aqui se revela novamente a lgica

    trgica: os que se entregam ao humor nocivo de suas paixes praticam o crime de

    desafiar os deuses e, como tal, devem ser sumariamente punidos com a morte (Brando,

    1990).

    Assim, o que no melodrama cannico poderia ser explorado nos termos de

    um sofrimento redentor, nA pele que habito assume uma virulncia pragmtica da qual

    no h escapatria. Nada redime, nada desfeito, nem mesmo o amor corts que, no

    final da trama reaparece acanhado e tmido; como se tivesse as cores desbotadas ante o

    contraste das paixes humanas. Almodvar veste sua pele sob o vu do exagero

    melodramtico para despir-se e revelar, deste manto, sua ntima fragilidade.

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    Referncias Bibliogrficas

    Brando, J. S. (1990). Teatro Grego: Tragdia e Comdia. Petrpolis: Vozes. 5ed.

    Xavier, I. (2003). Melodrama ou a seduo da moral negociada. In: --------------------.

    O Olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. SP;

    Cosac e Naify, 2003, pp. 85-99.