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355 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):355-382, jul-set, 1997 DEBATE DEBATE A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época The ecological issue: science and ideology, or the utopia of a time 1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, 5 o andar, bloco A, Rio de Janeiro, RJ 20559-900 Brasil. 2 Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210 Brasil. Elmo Rodrigues da Silva 1 Fermin Roland Schramm 2 Abstract Our modern concern over the environment brings us to the historical discussion of Scientific Rationalism, principally in contemporary western society, where the conflict between Man and the Natural World is at its greatest. In an attempt to solve this conflict, Ecology, a field of science, stands out riddled with problems, seeking to draw subjects from other fields into its own. Following an “ecologized world view” (Ecosystemics), some social currents denounce the en- vironmental impact of, technological and industrial models, highly pollutant and dependent on natural resources, generating the contemporary disorder in our biosphere. These movements, fol- lowing different schools of thought, demand changes in society, taking into consideration the present and future state of the environment. Key words Ecology; Environment; Environmental Ethics Resumo A problemática atual da questão ambiental remete-nos à discussão histórica da racio- nalidade científica, sobretudo nas sociedades ocidentais contemporâneas, onde o conflito entre a relação homem/meio natural fica evidenciado. Pretendendo dar conta deste conflito, a ecolo- gia constituída como disciplina científica destaca-se como um campo problemático da ciência que busca integrar diversas disciplinas em torno de si. Alguns movimentos sociais, orientando-se por uma “visão ecologizada” (ecossistêmica) de mundo, partem para denunciar os impactos am- bientais oriundos, dentre outros, do modelo tecno-industrial altamente poluidor, consumidor dos recursos naturais e gerador da atual desordem global da biosfera. Esses movimentos, sendo orientados por éticas diferenciadas, reivindicam mudanças do quadro social e ambiental da so- ciedade atual a fim de garantir as necessidades das futuras gerações. Palavras-chave Ecologia; Meio Ambiente; Ética Ambiental

A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma … · Introdução O debate em torno da questão ambiental deve ser compreendido através das relações e inter-pretações

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DEBATE DEBATE

A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época

The ecological issue: science and ideology, or the utopia of a time

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Rua São Francisco Xavier 524,5o andar, bloco A,Rio de Janeiro, RJ 20559-900 Brasil.2 Departamento de CiênciasSociais, Escola Nacional de Saúde Pública.Rua Leopoldo Bulhões 1480,Rio de Janeiro, RJ 21041-210 Brasil.

Elmo Rodrigues da Silva 1

Fermin Roland Schramm 2

Abstract Our modern concern over the environment brings us to the historical discussion ofScientific Rationalism, principally in contemporary western society, where the conflict betweenMan and the Natural World is at its greatest. In an attempt to solve this conflict, Ecology, a fieldof science, stands out riddled with problems, seeking to draw subjects from other fields into itsown. Following an “ecologized world view” (Ecosystemics), some social currents denounce the en-vironmental impact of, technological and industrial models, highly pollutant and dependent onnatural resources, generating the contemporary disorder in our biosphere. These movements, fol-lowing different schools of thought, demand changes in society, taking into consideration thepresent and future state of the environment.Key words Ecology; Environment; Environmental Ethics

Resumo A problemática atual da questão ambiental remete-nos à discussão histórica da racio-nalidade científica, sobretudo nas sociedades ocidentais contemporâneas, onde o conflito entrea relação homem/meio natural fica evidenciado. Pretendendo dar conta deste conflito, a ecolo-gia constituída como disciplina científica destaca-se como um campo problemático da ciênciaque busca integrar diversas disciplinas em torno de si. Alguns movimentos sociais, orientando-sepor uma “visão ecologizada” (ecossistêmica) de mundo, partem para denunciar os impactos am-bientais oriundos, dentre outros, do modelo tecno-industrial altamente poluidor, consumidordos recursos naturais e gerador da atual desordem global da biosfera. Esses movimentos, sendoorientados por éticas diferenciadas, reivindicam mudanças do quadro social e ambiental da so-ciedade atual a fim de garantir as necessidades das futuras gerações.Palavras-chave Ecologia; Meio Ambiente; Ética Ambiental

Introdução

O debate em torno da questão ambiental deveser compreendido através das relações e inter-pretações que se estabeleceram historicamen-te entre o homem e a natureza, ou seja, entreos processos artificial/cultural e o natural. Ros-set (1989) argumenta que as filosofias (apesarde um certo arbítrio) são classificáveis em ‘na-turalistas’ e ‘artificialistas’. O autor consideraque, na história da filosofia ocidental, este é ocaso de dois breves períodos, nos quais o pen-samento artificialista representou oficialmentea filosofia, na ausência momentânea de qual-quer paisagem naturalista oferecida à crençados homens pela imaginação filosófica. Destemodo, essas lacunas da paisagem naturalistaseriam suficientemente possantes para engen-drar filosofias artificialistas, ou seja, haveriaum momento de ‘depressão filosófica’ interca-lando-se entre a derrocada de uma represen-tação naturalista e a reorganização de uma no-va, a qual estaria encarregada de assegurar aimportância dos temas naturalistas interrom-pidos temporariamente. A história da filoso-fia ocidental, segundo o autor, conheceu duasgrandes depressões: a pré-socrática (após a ruí-na da representação animista e antes do natu-ralismo antigo de Platão e Aristóteles) e a pré-cartesiana (após a ruína do aristotelismo e an-tes da reconstituição de um naturalismo mo-derno por Descartes, Locke e Rosseau) (Rosset,1989).

A partir deste esquema de raciocínio, po-der-se-ia argumentar que o período atual esta-ria entrando em uma nova fase, também de de-pressão, entre concepções artificialistas e na-turalistas. Isto é válido para o mundo ociden-tal, onde a racionalidade científica passou a in-termediar a relação sociedade/natureza. Ha-bermas considera que a racionalização pro-gressiva da sociedade está ligada à institucio-nalização do progresso científico e técnico,através do qual as próprias instituições modifi-cam-se e antigas legitimações desmontam-se.Portanto, ‘secularização’ e ‘desenfeitiçamento’das imagens do mundo são a contrapartida deuma racionalidade crescente do agir social(Habermas, 1983).

Ao se referir à ciência contemporânea, Hot-tois prefere empregar o termo tecnociênciapois este destaca a estreita ligação entre o téc-nico e o epistêmico, a ação e a cognição, assimcomo a ruptura com o antigo projeto logoteó-rico e filosófico do saber. A tecnociência, parao autor, produziu um mito evolucionista que vêa física, a biologia e as tecnologias da inteligên-cia sob um ângulo sistemista e operacionalista,

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destacando que o mito tecnocientífico buscase desenvolver de “forma absolutizada ou au-tonomizada”, fora de toda consideração antro-pológica e, bem entendida, ética (Hottois,1994).

Deste modo, para tentar melhor compreen-der todas as rápidas transformações ocorridasnas relações homem/natureza e suas implica-ções ético-filosóficas, sociais, ambientais e po-líticas, pode-se buscar na instauração do mun-do moderno, ou seja, na passagem dos séculosXVI para o XVII, as bases do projeto atual dedominação da natureza pelo saber-fazer tecno-científico.

Longe de pretendermos organizar uma cro-nologia histórica deste processo, apontaremosalguns momentos importantes na formaçãodesta cultura tecnocientífica e de seus desdo-bramentos até os dias atuais, ao desembocarno campo da Ciência Ecológica e nos movi-mentos sociais a ele relacionado.

A ciência moderna: a natureza versus o artifício

Com as descobertas do século XVI, um períodode transformações profundas surge no Ociden-te. Como escreve Châtelet, “o recomeço da filo-sofia nos séculos XVI e XVII está ligado ao apa-recimento de um outro contexto, o da ciência”(Châtelet, 1994:53). Discursos inovadores sãoelaborados então, num contexto científico in-cipiente, através de diversos pensadores, entreeles, Francis Bacon (1561-1626). Precocemen-te, Bacon registrou o que seria marcado peloséculo do ‘artificialismo’ (da metade do séculoXVI à metade do XVII), ao afirmar que: “umpreconceito (...) é olhar a arte como uma espéciede apêndice da natureza, supondo que só lheresta completá-la (...) ou corrigi-la (...), e de for-ma alguma mudá-la (...), transformá-la e aba-lá-la em seus fundamentos: isso tornou, antesdo tempo, os negócios humanos desesperados(...). As coisas artificiais não diferem das natu-rais nem pela forma nem pela essência, mas so-mente pela causa eficiente (...). E quando as coi-sas são dispostas para produzir um determina-do efeito, pouco importa que isso se faça com ousem o homem” (Bacon, 1852 apud Rosset, 1989:64-65). Desta forma, estavam lançadas as ba-ses científicas para a intervenção técnica sobreos processos naturais.

A experiência e os sentidos passaram a serutilizados na validação de hipóteses, consti-tuindo, deste modo, um marco na revoluçãocientífica que separa a Idade Medieval do Mun-do Moderno. Nicolau Copérnico (1473-1543) eAndrès Vesalio (1514-1564), entre outros, ao

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utilizarem o método experimental e indutivo,estão entre os pioneiros na aplicação do novométodo científico que irá revolucionar idéias ecomportamentos. Giordano Bruno (1562-1600)demonstrou o significado que este método e acosmologia copernicana representaram para anova visão de mundo que se instaurava: “osdeuses deram ao homem o intelecto e as mãos(...) outorgando-lhe poder sobre os demais ani-mais. Eles supõem não só que o homem seja ca-paz de atuar conforme a sua própria natureza(...) mas que também possa operar à margemdas leis naturais, para deste modo (...) triunfarmantendo-se como deus da terra” (Bruno, 1852apud Edmunds & Letey, 1975:37).

É deste período ‘revolucionário’ que a ima-gem do mundo, tal como a conhecemos hoje,foi construída e deve-se, em grande parte, àGalileu Galilei (1564-1642). Para ele, a realida-de sensível era inteligível, contanto que se rea-lizassem as análises necessárias e se aperfei-çoasse o instrumento matemático, como ocor-reu em seguida, principalmente com os traba-lhos do físico Isaac Newton (1643-1727).

René Descartes (1596-1650) deu continui-dade ao processo de mudanças iniciado porCopérnico e Galileu, sendo considerado o filó-sofo fundador da modernidade (Châtelet,1994). A respeito do projeto moderno de domi-nação racional da natureza pelo homem, Des-cartes afirma: “... conhecendo a força e as açõesdo fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e detodos os outros corpos que nos cercam, tão dis-tintamente como conhecemos os diversos miste-res de nossos artifícios, poderíamos empregá-losda mesma maneira em todos os usos para osquais são próprios, e assim nos tornar como quesenhores e possuidores da natureza” (Descartes,1966:64). A partir do método cartesiano, a ci-são entre homem/natureza, corpo/espírito pas-sou a ser ‘doutrinária’, ou seja, a visão de sepa-ração e dominação tornou-se predominanteno mundo ocidental.

Chatêlet diz que “caso se aceite a verdadeda nova física, não se pode mais trabalhar coma mesma ontologia, com a mesma concepção doser, do real (...). É preciso reformar (...) a repre-sentação do real, operar um deslocamento deci-sivo” (Chatêlet, 1994:63). Isto significa revolu-cionar os conceitos aceitos até então. Emboraa pretensão de tornar o homem “senhor e pos-suidor da natureza” tivesse se mostrado, nosséculos seguintes, nem tão possível, nem tãoboa, o pensamento cartesiano ficou profunda-mente enraizado na cultura ocidental, desde asociedade iluminista até os tempos atuais.

Dois aspectos importantes destacam-se nopensamento cartesiano: a racionalidade e o

antropocentrismo. Conseqüentemente, a na-tureza dessacralizada pela separação homem-sujeito de um lado e natureza-objeto do outro,resultou em ‘novas’ possibilidades científicas etecnológicas, libertando definitivamente aciência das concepções teológicas herdadas domundo medieval. Abrem-se diferentes pers-pectivas no pensamento filosófico, político,econômico e surge a industrialização que deuorigem a profundas transformações sociais naEuropa.

A partir do século XVIII, elementos inova-dores são introduzidos, dentre estes, a concen-tração de capitais, a apropriação das forçasprodutivas, as novas técnicas, máquinas e ma-térias-primas. As indústrias instalam-se, des-truindo ou redefinindo o meio rural, produzin-do ou ampliando as aglomerações urbanas,modificando as formas de apropriação dos re-cursos naturais e os modos de relacionamentocom o ambiente natural original. Thomas afir-ma que “ao final do século XVIII (...) não haviaprecedentes para (...) as queixas (...) sobre o efei-to desfigurador das novas edificações, estradas,canais; do turismo e da indústria” (Thomas,1989:339). Deste modo, os impactos ambien-tais não devem ser associados exclusivamentecom a grande indústria, dominante a partir dasprimeiras décadas deste século. Já no séculoXVIII, o seu modo de operar se fazia sentir, al-terando a natureza, devido, principalmente, adois elementos fundamentais do relaciona-mento entre atividades produtivas e meio am-biente: a escala e a intensidade dos impactos(Costa, 1989). É a partir deste período que ciên-cia e tecnologia tornam-se inseparáveis.

No domínio específico da ciência, observa-se a continuidade da fragmentação do conhe-cimento científico. Com a valorização da filo-sofia positiva, no século XIX, a especializaçãodisciplinar vai se estabelecendo como paradig-ma. Moscovici afirma que “a individualizaçãodos atos, dos interesses e das relações humanas,deram vigoroso impulso à oposição sociedade enatureza (...). Em física, em biologia, em econo-mia, em filosofia, em toda parte o indivíduo é aunidade de referência (...) [e] a sociedade só po-deria ser um estado antagonista (...). O princí-pio das instituições e das leis políticas que hojenos dirigem têm [aí], o seu firme alicerce” (Mos-covici, 1977:75). Este constituiu o modelo doprojeto racional para o mundo, em que a ciên-cia e a técnica são identificadas como ideais deprogresso e felicidade.

Apesar da crença progressista na ciência ena tecnologia, a exploração predatória dos re-cursos naturais era sentida e questionada poralguns grupos. O movimento romântico euro-

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peu, por exemplo, possibilitou o surgimento de‘novas sensibilidades’ em relação ao mundonatural: “o início do período moderno de fatoengendrou essa sensibilidade cindida, da qualsofremos até hoje” (Thomas, 1989:339).

De certa maneira condicionada a esta he-rança, surge, no século XX, a crítica ao projetomoderno de compreensão e dominação da na-tureza. As incertezas, os paradoxos e a dificul-dade para explicar os novos fenômenos vãoconduzindo a ciência a buscar novos rumos. A‘nova física’, por exemplo, proposta por I. Pri-gogine, demonstra-nos que os fenômenos sãodependentes da historicidade, que há impreci-são nos instrumentos e nas observações objeti-vas da ciência, causando perplexidades. Assim,Prigogine & Stengers consideram que “as des-cobertas experimentais inesperadas que marca-ram a física nos anos 50 [tais como]: instabili-dade das partículas elementares, estruturas denão-equilíbrio [e] evolução do universo (...)apontam para a necessidade de ultrapassar anegação do tempo irreversível (...), herança dei-xada pela física clássica para a relatividade e amecânica quântica” (Prigogine & Stengers,1992:13). Deste modo, busca-se compreendera emergência dos sistemas evolutivos e umanova visão de mundo vai se delineando.

Ecologia: entre a ciência e a visão ambientalista de mundo

Antes de possuir caráter científico stricto sen-su, a idéia de equilíbrio da natureza teve umabase teológica. Assim, a crença na perfeição dodesígnio divino precedeu e sustentou o concei-to de cadeia ecológica, o qual teve, inicialmen-te, forte conotação conservacionista. No séculoXVIII, a maior parte dos cientistas e teólogosdefendia que todas as espécies da criação ti-nham um papel necessário a desempenhar naeconomia da natureza (Thomas, 1989). A visãomítica de natureza não abandonou totalmenteas representações sociais e, ainda hoje, é ado-tada por alguns grupos do movimento ambien-talista.

Pode-se admitir que a origem da ciênciaecológica está associada ao estudo de histórianatural na Inglaterra do século XVI e, conformeMcCormick, “o crescimento do interesse pelahistória natural revelou (...) as conseqüênciasda relação de exploração do homem com a na-tureza. Isso levou inicialmente a um movimen-to pela proteção da vida selvagem (...) [e] a pri-meira influência sobre o movimento ambienta-lista britânico [surgiu] do estudo da história na-tural” (McCormick, 1992:22). Os fundamentos

da botânica e da zoologia modernas, além dosde outras ciências biológicas, foram estabeleci-dos pelos trabalhos de naturalistas amadoresnos séculos XVI, XVII e XVIII. McCormick co-menta ainda que as descobertas do naturalistaJohn Ray e do botânico Carl von Linné (Lin-naeus) – cujo trabalho em taxonomia botânicafoi a infância da ecologia – estimularam as pes-quisas em ciências naturais, culminando nasteorias de Darwin e Wallace.

Historicamente, a ecologia como disciplinacientífica tem seus primeiros fundamentos de-finidos no século XIX e Acot diz que o termoecologia (Oekologie) foi citado em 1866, por Er-nest Haeckel (1834-1919). Numa nota de roda-pé de página de seu livro Generelle Morpholo-gie der Organismen, a palavra biologia é substi-tuída por ecologia, sendo esta definida porHaeckel como a “ciência da economia, do modode vida, das relações externas do organismo ...”(Haeckel apud Acot, 1990:27). Contudo, somen-te na segunda metade do século XX é que a sín-tese completa da ecologia foi constituída coe-rentemente. No presente, define-se a ecologiacomo “o estudo das relações dos organismos vi-vos ao seu ambiente, ou a ciência das inter-rela-ções que ligam os organismos vivos ao seu am-biente” (Odum, 1986:4).

O pensamento sistêmico tentava explicar avida numa perspectiva holística, não reducio-nista e fragmentária, travando-se uma disputaentre as concepções vitalistas e organicistas,num sinal precursor do reconhecimento dacomplexidade (Fernandez, 1995). O biólogoLudwig von Bertalanffy, nos anos 40, propôs aconstrução de uma espécie de ‘metadisciplina’:a Teoria Geral dos Sistemas. Segundo o autor,“somos forçados a tratar com complexos, com‘totalidades’ ou ‘sistemas’ em todos os campos doconhecimento. Isto implica uma fundamentalreorientação do pensamento científico” (Berta-lanffy, 1977:19-20). Assim, a visão sistêmica in-fluenciou o surgimento de novas áreas do co-nhecimento, dentre elas, a ciência ecológica.Odum (1986) assinala que o termo ecossistemateria sido proposto pelo ecologista inglês A. G.Tansley, em 1935. Posteriormente, o mecanis-mo ecossistêmico pôde ser compreendidoatravés da associação entre as bases termodi-nâmicas do ser vivo lançadas em 1945 pelo físi-co Schrödinger e o modelo cibernético desen-volvido por Norbert Wiener.

A formulação integrada da ecologia ocorreuno decorrer dos anos 50 e 60 com os irmãosOdum. Através da publicação Fundamentals ofEcology (Odum, 1971), utilizaram a linguagemda termodinâmica a fim de descrever o funcio-namento dos sistemas ecológicos. Desta for-

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ma, os autores afirmam que tanto os organis-mos vivos e os ecossistemas, bem como toda abiosfera teriam a característica termodinâmicaessencial de serem capazes de criar e manterum estado de ordem interna ou de baixa entro-pia. No fim dos anos 60, as pesquisas estatísti-cas das dinâmicas das populações conduziramà elaboração de modelos matemáticos de evo-lução dos ecossistemas, estes vistos como sis-temas complexos, onde o conjunto de equili-bração (homeostase) pôde ser descrito por me-canismos de retroação (feedback), conceitocentral da cibernética proposto por NobertWiener, na década de 40.

Assim estavam dadas as bases para melhorexplicar a inter-relação dos sistemas vivos como ambiente. A partir destes modelos ecossistê-micos foi possível compreender melhor os im-pactos da poluição sobre os sistemas ecológi-cos,os quais, ao serem associados aos gravesacidentes ambientais, tais como: a contamina-ção da Baía de Minamata e Nagata ( Japão, dé-cada de 50); o vazamento de gases tóxicos (Se-veso – Itália, 1976/Bhopal – Índia, 1984); os aci-dentes de usinas nucleares (Three Miles Island– USA, 1978; Tchernobyl – URSS, 1986); as mu-danças climáticas; a destruição de florestascom a perda da biodiversidade; a poluição ge-neralizada dos rios, mares, solos e atmosfera,e, ainda, ao serem agravados pelos níveis depobreza e miséria da maior parte da populaçãomundial, proporcionaram importantes argu-mentos para interrogar o poder e os rumos nouso da tecnociência e impulsionar os diversosmovimentos contestatórios em todo o mundo.

Com base nos novos modelos científicos,tem-se uma visão integrada dos diversos ecos-sistemas terrestres, e a questão ambiental pas-sa a ser tratada em nível global. Por questãoambiental pode-se entender a contradiçãofundamental que se estabeleceu entre os mo-delos de desenvolvimento adotados pelo ho-mem, marcadamente a partir do século XVIII,e a sustentação deste desenvolvimento pelanatureza. A partir da Revolução Industrial, avelocidade de produção de rejeitos da socieda-de, o avanço do mundo urbanizado e a forçapoluidora das atividades bélicas e industriaissuperaram em muito a capacidade regenerati-va dos ecossistemas e a reciclagem dos recur-sos naturais renováveis, colocando em níveisde exaustão os demais recursos naturais nãorenováveis (Toynbee, 1982).

Essa problemática ambiental apontaria pa-ra a ‘crise da relação’ (eco-lógica) – crise damoradia na qual a vida se faz, crise da raciona-lidade das relações que os seres estabelecementre si, com outros seres vivos e com a própria

moradia [oikos] e ‘crise de valores’, uma vezque, frente à situação de integração mundialde nosso tempo, a cooperação é imprescindí-vel, mas seria necessário o estabelecimento denovos valores para o enfrentamento de tão rá-pida transformação. A questão ecológica refe-re-se, portanto, a uma crise de conceito e umacrise de projeto (Schramm, 1992).

A constatação da crise generalizada, identi-ficada na ciência e refletida na sociedade, podeser percebida como risco ou como oportunida-de de se lançarem novas bases para mudanças.Deste modo, a própria ciência hoje é colocadaem questão, e segundo Acot: “... na sua essên-cia, [ela] é atravessada pelas ideologias e mar-cada pelas mentalidades (...) [,] governada porinstituições e intervém em suas criações e trans-formações (...) [sendo] tanto oriunda, como ins-piradora das demandas sociais” (Acot, 1990:189), ou seja, ela dependeria de um novo ‘qua-dro epistêmico’ (Piaget & Garcia, 1987).

A ciência e, sobretudo, seu uso técnico-in-dustrial pode tanto estar a serviço da melhoriadas condições ambientais e conseqüentemen-te sociais, como ser utilizada para fins não tãonobres. Assim sendo, Hottois nos diz que “aideologia do progresso valoriza o cientista e otécnico sem os responsabilizar, quer dizer, semconsiderar a questão ética a propósito de suasatividades. A atividade científica (...) é julgadasempre boa (...) pois ela é [o] progresso do co-nhecimento (...). O risco de um mau uso da téc-nica, de uma má aplicação da ciência, está rela-cionado aos decisores políticos e sociais (...).Responsabilizar a ciência (...) é colocar em dú-vida sua neutralidade (...) é exigir dos técnicos –os atores da tecnociência – mais do que a sim-ples competência” (Hottois, 1994:72).

Seguindo este mesmo ponto de vista, Bor-nheim assinala que a técnica pode salvar, masrepresenta também o perigo, sendo ela neces-sária para a salvação da Humanidade, escon-dendo, entretanto, em seu bojo o perigo dadestruição. De certo modo, ela passou a domi-nar e decidir, revelando uma margem de irra-cionalidade que a aproxima do incontrolável. Aambigüidade presente na tecnologia e na polí-tica terminam por entrecruzar-se, não signifi-cando necessariamente uma solução, mas aabertura para o processo de responsabilidadedo empenho político (Bornheim, 1989).

Identificamos que o período de transiçãoatual necessitaria de uma ampla operação dereconceituação onde o conhecimento deveriaser reestruturado através de instrumentos ino-vadores e transdisciplinares. De certa maneira,a ciência ecológica, além de opor-se ao modelomecanicista/reducionista nas ciências, busca a

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integração de diversas disciplinas e propõe aproblemática visão holística (aqui entendidacomo a impossibilidade de reduzir os fenôme-nos em suas partes constituintes). A este res-peito Coutinho afirma que “inevitavelmente seimpõe de novo a questão tão controversa de serou não, a Ecologia, uma disciplina que tenhatranscendido as fronteiras da ciência moder-na, sob o ponto de vista da sua racionalidade”(Coutinho, 1992:128).

Odum considera que o aumento da atençãopública às questões ambientais afetou profun-damente a ecologia acadêmica. Antes dos anos70, a ecologia era vista, em grande parte, comouma subdivisão da biologia e, embora perma-neça radicada na biologia, ela teria ganho amaioridade como uma disciplina integradoraessencialmente nova, que une os processos fí-sicos e biológicos e serve de ponte de ligaçãocom as ciências sociais (Odum, 1986). Por ou-tro lado, Cramer & Daele afirmam que a Ecolo-gia de Ecossistemas concebe a Natureza comoum tipo de máquina, ainda que muito mais so-fisticada do que o universo mecânico da físicaclássica (Cramer & Daele, 1985). Deste modo, aecologia é vista como uma perspectiva que su-gere uma atitude tecnológica sistêmica e por-tadora de valores em relação à natureza. Assim,a moralização do ecossistema ou de suas pro-priedades – sua valorização como bens éticos –seria algo acrescentado e não implicado peloconhecimento ecológico. A causa ecológicabusca, então, ultrapassar as incertezas e ambi-güidades existentes, sendo entendida comoum movimento mais profundo que coloca emquestão o conjunto de valores da modernida-de. Dupuy identifica que “as respostas que aecologia não traz, é em outros lugares que de-vem ser procuradas, ou seja, na renovação da fi-losofia política, na emergência de uma nova fi-losofia da natureza, na eclosão de um novo pa-radigma científico” (Dupuy, 1980:89).

Diante da problemática ambiental viven-ciada pelas sociedades pós-industriais moder-nas, surge a politização das questões incorpo-radas a partir dos conceitos e representaçõesda ecologia. Desta forma, o ‘ecologismo’, vistocomo movimento político, surgiu, como suge-rem Lago & Pádua, “da percepção que a atualcrise ecológica não se deve a ‘defeitos’ setoriais eocasionais no sistema dominante mas é conse-qüência direta de um modelo de civilização in-sustentável do ponto de vista ecológico (...) e so-cialmente injusto ...” (Lago & Pádua, 1985:36).Para os autores, estamos diante de uma criseúnica na civilização e que exige a invenção deum novo caminho. Da mesma forma, Moriconsidera a “nossa época [como] de grande fer-

mento intelectual – talvez uma daquelas ‘fasescríticas’ da história em que muda-se a própriamaneira de ‘conceitualizar’ os problemas ...”(Mori, 1994:2).

A ecologia em ‘movimento’

Coutinho argumenta que o pensamento am-bientalista da década de 60, apesar de toda asua pluralidade, tomou a Ecologia como inter-locutora, ou seja, adotou uma unidade discur-siva onde o modelo de representação de natu-reza fosse compatível com sua consideraçãocomo algo singular e original, e sua valorização,como bem ético. Por outro lado, a importânciaatribuída à integração, às totalidades e ao ho-lismo pavimentou o caminho para a ressacrali-zação da natureza. Esta matriz disciplinar (ouparadigma) – a Ecologia dos Ecossistemas –propiciou a interação entre uma disciplinacientífica e um pensamento, cujo eixo seriauma crítica racional da modernidade (Couti-nho, 1992).

Para isso, alguns grupos pacifistas/ecologis-tas europeus e norte-americanos propuseramuma profunda transformação nos valores sedi-mentados pela sociedade ocidental através deuma nova relação homem/natureza orientadapor uma ‘visão ecologizada de mundo’. Rossetcritica esta idéia por considerá-la uma re-natu-ralização, seja ela conservadora ou revolucio-nária, que, desejando negar o presente (ou oartifício), recusa o fabricado (o que existe). As-sim, o autor apresenta o artifício como ‘ver-dade’ da existência, e a idéia de natureza, comoerro e fantasma ideológico (Rosset, 1989). Aocontrário, pensamos que seria possível estabe-lecer uma ponte entre passado e futuro, semnegar necessariamente o presente, nem o arti-fício. Como escreve Morin, “... a ecologia geralsuscita o problema (...) homem/natureza no seuconjunto, na sua amplitude, na sua atualidade”(Morin, 1977:45).

O movimento ecológico foi bastante in-fluenciado, entre outros, pelo pensamento deAldo Leopold (1949). Este argumentava que aética a qual havia regulamentado as relaçõesentre os humanos e, em seguida, aquelas entreo humano e as várias instituições sociais, porfim abriu-se a uma terceira relação envolvendotoda a biosfera, denominando-a como a Éticada Terra (The Land Ethic). Assim sendo, Moridiz ser Leopold o ‘patrono da ética ambiental’(Mori, 1994:4). Impulsionados pela gravidadedos problemas sociais e ambientais contempo-râneos, os ecologistas partiram, nos anos 70,para uma estratégia de ações locais e globais.

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Neste período, as pesquisas ambientais deli-neavam um perfil catastrófico sobre os ecossis-temas terrestres e os estudos ecológicos passa-ram a orientar os discursos, baseados, entreoutros, nos conceitos prescritivos da EcologiaAplicada. Posteriormente, observou-se a assi-milação ampla nos discursos dos setores polí-ticos convencionais, em escala mundial.

A Conferência Científica da Onu sobre Con-servação e Utilização de Recursos Naturais(UNSCCUR-USA, em 1949) foi “o primeiro mar-co importante na ascensão do movimento am-bientalista internacional” (McCormick, 1992:53). O relatório do Clube de Roma, sobre os ‘li-mites do crescimento’ (Meadows, 1978), cau-sou uma grande controvérsia ao defender a pa-ralisação do crescimento populacional, econô-mico e tecnológico. Com base em modeloscomputacionais que deram origem ao Relató-rio Meadows, previa-se um futuro de catástro-fes ambientais, caso o processo de crescimentonão fosse revertido. Embora o relatório tenhasido muito criticado por sua inconsistência eexcessos nas previsões, isto é, pelo seu carátermalthusiano ou neo-malthusiano, diversasquestões foram trazidas para o debate poste-rior, como na Conferência das Nações Unidassobre o Meio Ambiente Humano, em Estocol-mo (1972), sendo esta, sem dúvida, um marcofundamental no crescimento do ambientalis-mo internacional que determinou uma transi-ção do novo ambientalismo emocional e oca-sionalmente ingênuo dos anos 60, para umaperspectiva mais racional, política e global dosanos 70 (McCormick, 1992).

Na década de 80, foi dada continuidade àsquestões anteriores por meio do relatório Nos-so Futuro Comum (Brundtland, 1991), que re-sultou na Conferência das Nações Unidas so-bre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CNU-MAD – (Rio de Janeiro, 1992). Com uma visãocrítica deste documento, Coutinho afirma quea ciência seria a grande redentora, segundo orelatório Brundtland, pois dependeria dela arealização do potencial tecnológico na soluçãodos problemas ambientais. Na visão crítica daautora, o relatório apontava o papel que a co-munidade científica e as organizações não go-vernamentais tiveram num passado recente,recomendando manter esta aliança para atransição do desenvolvimento insustentável aosustentável. Assim, a Ecologia Aplicada tornar-se-ia a base do discurso tecnocrático que dife-renciar-se-ia conceitualmente do discurso dedenúncia da década de 70 (Coutinho, 1992).

Por outro lado, Viola & Leis argumentamque a complexa dinâmica do ambientalismoem nível global torna este movimento históri-

co/ideológico não apenas um ator multidi-mensional, mas um ator ético-prático com ca-pacidades sinérgico-sincréticas. O ambienta-lismo seria, para os autores, o único movimen-to contemporâneo em condições de desenvol-ver valores e conhecimentos do novo tipo. Maisdo que produzir meios para uma maior acomo-dação e/ou tolerância das diferenças, ele signi-fica gerir meios sincréticos para uma ativa coo-peração sinérgica entre atores com interesses eperspectivas diferentes, e até mesmo contradi-tórias (Viola & Leis, 1995).

No campo filosófico, Mori constata que anovidade do debate ético contemporâneo seriaa expansão do horizonte moral desenvolvidoem três níveis: da bioética (iniciada no finaldos anos 60); do movimento pela libertaçãoanimal e da ética ecologista, onde a naturezana sua totalidade, passa a ter um valor intrín-seco, independente da valoração humana, rei-vindicando uma visão não antropocêntrica demundo (Mori, 1994).

Ferry (1994) classifica as diversas correntesambientalistas como: a) movimento de liberta-ção animal, onde há uma expansão do univer-so moral para os seres sencientes, sendo estauma ética baseada em interesses utilitaristas,como a defendida por Singer (1994); b) a ecolo-gia superficial, de cunho instrumental, segun-do o qual a natureza possui caráter humanista,não é considerada sujeito de direito e sua pre-servação constitui-se um meio para conseguiro bem-estar do homem; c) a ecologia profunda,defendida por Naess (1973), a qual adota umanova ética baseada em princípios preconizado-res de que: a valorização ética da natureza in-depende da sua utilidade quanto às demandaspráticas da sociedade; os limites objetivos dequalquer ser vivo devem ser respeitados; os va-lores humanos devem ser equivalentes aos dosdemais seres da natureza; os homens não têmnenhum direito que lhes assegure dominaçãosobre as outras espécies (a relação deve ser ba-seada no respeito e solidariedade com os de-mais); a riqueza e a diversidade da vida devemser garantidas às gerações futuras.

Oriundos das próprias contradições daépoca atual, os posicionamentos ideológicosno interior do próprio movimento ambienta-lista são bastante divergentes. Schwarz &Schwarz dizem que os ambientalistas (vistoscomo ecologistas superficiais) aceitam, emprincípio, a estrutura intelectual da sociedadeindustrial, tentando resolver os problemas am-bientais neste contexto; os ecologistas ditosprofundos acreditam não ser possível resolvertais problemas, caso não se mude radicalmen-te o sistema de valores atuais com profundas

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substituições nos códigos culturais (Schwarz &Schwarz, 1990). Na prática, verifica-se (comomostra Coutinho) ser muito difícil analisar asdiferenças dos discursos no interior dos movi-mentos ambientalistas.

Neste contexto, o setor empresarial estariaassumindo um papel de destaque nesta novafase do debate ambientalista. Schmidheiny – oprincipal conselheiro para Negócios e Indús-tria do secretário-geral da Conferência das Na-ções Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvi-mento – defende que “parte da ‘sanidade am-biental’ só será alcançada através da moderni-zação dos meios de produção, sob uma ótica decusto/benefício” (Schmidheiny, 1992:35). Ao cri-ticar tal argumento, Tauk-Tornisielo afirma queele é “motivado (...) mais pela necessidade deracionalizar custos do que desenvolver cuida-dos com o ambiente, [refletindo ...] o novo posi-cionamento das indústrias diante da (...) novaordem econômica mundial, onde o aumentosensível da competitividade passa (...) pela re-dução de custos, sem a qual as empresas esta-rão à margem dos mercados” (Tauk-Tornisielo,1995:11).

Assim, a autora considera que a primeirafase ecológica foi caracterizada por um certo‘romantismo naturalista’ que lutava pela into-cabilidade da natureza. A segunda refletia umperíodo de informação, onde a junção da mí-dia com a ecologia, por um lado, e a emergên-cia de movimentos de defesa do meio ambien-te, por outro, permitiram o surgimento do‘marketing ecológico’, que causou transforma-ções nas formas de percepção das questõesambientais pela população. Na terceira fase daecologia (a da década de 90), a proteção am-biental passa a ser vista como ‘sub-produto daracionalização de custos’, garantindo, portan-to, a ‘oxigenação’ dos processos produtivos(Tauk-Tornisielo, 1995).

Neste embate ressurgiu, a partir dos traba-lhos em ecodesenvolvimento na década de 60,o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’,visto como “um processo de transformação noqual a exploração dos recursos, a direção dos in-vestimentos, a orientação do desenvolvimentotecnológico e a mudança institucional se har-monizam e reforçam o potencial presente e fu-turo, a fim de atender às necessidades e aspira-ções humanas” (Carvalho, 1991 apud Ribeiro,1992:21). Assim, a idéia de sustentabilidade doambiente e do desenvolvimento passou a serfundamental no interior das discussões daCNUMAD/92.

Na visão economicista, diz Comune, “oponto central da teoria econômica do meio am-biente [diz que] a maneira de [se] tratar as ine-

ficiências do mercado para atingir o ponto óti-mo de eficiência alocativa da economia, [defi-ne] as bases das políticas do meio ambiente”(Comune, 1994:51). Nas análises econômicasconvencionais, as externalidades e os bens pú-blicos nem sempre são levados em considera-ção e, para a eficiência de um mercado perfei-tamente competitivo, não se contabilizam es-tes fenômenos por constituírem fontes de ine-ficiências.

Ainda sob o ponto de vista da economia,Anderson & Leal (1992) afirmam que a ecologiade livre mercado enfatiza a importância dosprocessos de mercado na determinação dequantidades ótimas da utilização de recursos.Somente quando os direitos forem bem defini-dos, garantidos e transferíveis, é que os indiví-duos com interesses próprios irão confrontaras concessões mútuas inerentes a um mundode escassez. Tais autores criticam os adeptosdo desenvolvimento sustentável e consideramque este seria demasiadamente centrado naadministração científica do ambiente e basea-do em políticas coercitivo-disciplinadoras, sobo controle do Estado. Dizem, fazendo apologiaao mercado, que “ao contrário das soluções porregulamentações para os problemas do meioambiente, [as quais exigem dos] especialistasuma postura onisciente e benévola, (...) o am-bientalismo de livre mercado descentraliza opoder e atrela os interesses próprios através deincentivos de mercado” (Anderson & Leal, 1992:167).

Como podemos observar, existem posicio-namentos bastante controvertidos em relaçãoà questão do desenvolvimento sustentável eViola diferencia três posições divergentes nestedebate: a) a estatista, que, através de mecanis-mos normativos, reguladores e promotores, vêno Estado o locus privilegiado do desenvolvi-mento social e ambientalmente sustentável; b)a comunitária, que, por meio dos movimentossociais e das organizações não governamentais– vistos como promotores de um novo sistemade valores, fundado na solidariedade – identifi-ca na comunidade esse lócus privilegiado; c) ado mercado, que, mediante taxas/tarifas, tantoda poluição, como do uso de recursos naturaise de concessões comercializáveis de taxas depoluição, prioriza o critério da eficiência sobreo da eqüidade (Viola, 1992).

Apesar dos confrontos entre as diferentescorrentes de pensamento atual, Fucks argu-menta que as grandes questões ambientais pa-recem tender a um posicionamento consen-sual entre os atores. Para o autor, este é o pro-cesso de todos os fenômenos sociais significa-tivos em que, inicialmente, tem-se a pujança, a

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pura expressão das formas de ser emergentes,não codificáveis e, ao final, observa-se a assi-milação pelas estruturas vigentes, com o arre-fecimento e esforço de enquadramento insti-tucional (e cognitivo) de aspectos do fenôme-no (Fucks,1992). Contudo, consideramos que,a despeito da aparente acomodação dos posi-cionamentos divergentes, os problemas e con-flitos continuam em aberto, provocando mu-danças nas configurações e ações dos movi-mentos sociais.

De acordo com Viola & Leis, ao final da dé-cada de 80, o movimento ambientalista possuíaduas posições distintas: a) uma minoritária,que não assumia nem as características, nemas regras da dimensão política, enfatizando ati-tudes éticas e espirituais de tendência biocên-trica; b) uma majoritária, que assumia plena-mente a dimensão política, sendo esta subdi-vidida em uma subclasse minoritária, a qualachava necessária uma rápida e intensa disse-minação de valores ecológicos, com redistribui-ção do poder político-econômico em níveis lo-cal e global e em uma subclasse majoritária, decaráter reformista, que apontava para a neces-sidade da adoção gradual de um novo modelode desenvolvimento o qual, baseado na racio-nalidade científica, interiorizasse a sustentabi-lidade social e ambiental (Viola & Leis (1992).

Considerações finais

A ciência se move do conhecido para o desco-nhecido, tentando revelar as regularidades, asleis, os processos que se acham escondidos nasaparências, em que o método significa o cami-nho a ser seguido. Atualmente, por meio dasCiências da Complexidade, buscam-se teoriasque possibilitem decifrar a linguagem univer-sal dos padrões evolutivos para os quais todosos sistemas se dirigem. Partindo das desco-bertas da termodinâmica, da física quântica,transportando-as para a biologia evolucionáriados sistemas vivos, as ciências encontram seuslimites onde a relação entre o particular e ouniversal continua um desafio e, portanto, emaberto.

Deste modo, a complexidade poderia serútil para uma melhor compreensão da realida-de social e ambiental que vivenciamos, indi-cando a necessária integração, mediante umaEcologia Complexa, dos pontos de vista quepermaneceram durante tanto tempo fraciona-dos e internalizados, tanto nos indivíduos,quanto nas instituições, sendo preciso buscaralternativas metodológicas, técnico-científi-cas, político-institucionais, industriais e com-

portamentais, incorporando todos os setoresenvolvidos com as questões sociais e ambien-tais emergentes. Para enfrentar tais desafios,concordamos com Jonas (1973) ao afirmar quenão há uma receita única, mas somente muitoscaminhos como compromissos que, caso a ca-so, deverão hoje e sempre ser procurados emuma vigilância a cada instante.

Quanto à viabilização de uma nova práticapara o desenvolvimento, Brüseke indica a ne-cessidade de aprimoramento das teorias, con-siderando-se a pluridimensionalidade da so-ciedade global no seu contexto natural. As pro-postas para um desenvolvimento sustentável,embora não consensual entre diversos autores,apontam nesta direção. Na visão do autor, a in-trodução de elementos das discussões sobresistemas dinâmicos não lineares parece opor-tuna, pois, antes de antecipar a contribuiçãodesta nova teoria (agora sustentável), há que seelaborar melhor a capacidade de interpreta-ção, na tentativa de se preverem os riscos defracasso de novas propostas de desenvolvi-mento, mesmo que estas levem em conta as li-mitações ecológicas e sociais em seu bojo (Brü-seke, 1993). Dito de outra forma, teremos querealizar previsões e tomar decisões num con-texto de incertezas, de riscos tecnológicos, am-bientais estruturais e de proporções globais.

Quanto aos desdobramentos futuros para ahumanidade de questões como a desordemglobal da biosfera, podem-se vislumbrar al-guns cenários possíveis, tais como, continuida-de desequilibrante; eco-autoritarismo; centra-lismo ecológico global com auto-organizaçãodemocrática local e auto-eco-organização glo-bal (Viola & Leis, 1991). Contudo, para evitarque os embates produzam decisões autoritá-rias, faz-se mister a construção de uma éticaque possibilite orientar os rumos da tecnociên-cia e da política em nível mundial.

Neste sentido, Hottois propõe uma ética desolidariedade para a era da tecnociência, sen-do baseada, entre outros, no diálogo aberto,que implica o confronto pluralista e interdisci-plinar; na ética reguladora; no pragmatismo;na não-exclusão do sentimento – a expressãoafetiva do julgamento – do conjunto de ele-mentos que cooperam na tomada de decisãoética; na ética da ambivalência, no sentido deser esta uma escolha, e não uma conclusão ló-gica, ou um resultado mecânico; na ética evo-lutiva e da reversibilidade dos princípios; naética da co-responsabilidade (Hottois, 1994).

Para Ferry, à margem do cartesianismo, doutilitarismo, assim como da ecologia funda-mentalista, é que se deveria elaborar uma teo-ria dos deveres com a natureza, sendo impor-

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tante realizar uma fenomenologia dos sinais dohumano na natureza para se ter acesso à cons-ciência clara do que pode e deve ser nela valo-rizado. A partir de tal base e impondo limitesao intervencionismo da tecnociência, é que aecologia democrática poderia responder ao de-safio lançado, tanto na ordem política, quantona esfera metafísica, à sua concorrente inte-grista/fundamentalista (Ferry, 1994).

Acreditamos que, no contexto transitórioatual, há uma enorme tarefa para identificarcorretamente os problemas (sem reduzir a

complexidade), a saber: integrar os esforços,superar os conflitos, tomar consciência de nos-sas responsabilidades para que se possa agirconseqüentemente. A tecnociência opera sal-tos cada vez mais rápidos e, antes mesmo deser absorvida, ela nos escapa. Vislumbram-seas seguintes questões: será possível indentifi-car e evitar os impactos dela resultantes? Seráfactível limitá-la, evitá-la, ou não? Este, con-cordamos com Ladrière, constitui um “apelo àinventividade ética, ao exercício da razão práti-ca” (Ladrière, s/d:152).

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O artigo acima reflete polêmicas sobre a ques-tão ambiental, oriundas particularmente dasáreas de ciências sociais. O assunto é sem dú-vida relevante, não só pela importância da áreaambiental, como também pela inclusão dasciências sociais no debate.

Entretanto, gostaria de chamar a atençãopara cinco assuntos que poderiam ser mais de-finidos ou ainda elaborados: a relação entre asciências sociais e a natureza; a noção de equilí-brio em ecologia; a ecologia de sistemas, comoparte da disciplina Ecologia; a relação ecologiae ciências ambientais; o conceito de sustenta-bilidade.

A relação entre as ciências sociais e a natureza

De acordo com os autores, a cisão homem/na-tureza tornou-se predominante no mundo oci-dental. Essa parece ser mais uma visão disci-plinar que geral: a realidade das ciências so-ciais não deve ser transplantada para as outrasciências. Ou seja, a visão antropocêntrica, queexclui a humanidade da natureza, foi (é) essen-cialmente predominante nas ciências sociais enão é observada nas ciências naturais. Toman-do como exemplo a antropologia, houve histo-ricamente a divisão entre antropologia biológi-ca (física) e cultural/social (dentre outras). Ain-da em 1952, A. Kroeber (The Nature of Culture)revelou e sustentou a dicotomia homem/natu-reza na análise sobre o superorgânico/orgâni-co. Na biologia, e ecologia, a humanidade fazparte da natureza, em todas as escalas: dosgens aos indivíduos e às comunidades. Em ou-tras palavras, a etologia clássica, a sócio-biolo-gia, a partir dos anos 70, e a área de modela-gem de transmissão cultural, a partir da déca-da de 80, sempre incorporaram, cada uma aseu modo, a relação gens-cultura (natureza-cultura) na análise do comportamento huma-no. Em outra escala, indivíduos e comunidadeshumanas são analisados em relação às intera-ções com os recursos naturais: seja através demodelos evolutivos, os modelos para avaliarestratégias de subsistência (como forragea-mento ótimo), seja mediante análises detalha-

Debate sobre o artigo de Elmo Rodrigues da Silva & Fermin Roland Schramm

Debate on the paper by Elmo Rodrigues da Silva & Fermin Roland Schramm

Núcleo de Estudos ePesquisas Ambientais,Universidade Estadual de Campinas,Campinas, Brasil.

Alpina Begossi

das sobre percepção, conhecimento e uso dosrecursos naturais, que incluem a etnossistemá-tica e etnobiologia.

A noção de equilíbrio em ecologia

No artigo, cita-se em ecologia a noção de equi-líbrio da natureza e de processos de homeosta-se. A idéia de equilíbrio em ecologia evoluiubastante desde os anos 60. Como interpretamesse conceito os autores? Como falar em equilí-brio sem mencionar ciclos, flutuações, estabili-dade? Um influente ecólogo, como C. Holling,analisou em 1992 esse conceito, dentre outrosassociados, em artigo na Ecological Mono-graphs. Então, equilíbrio em ecologia deve serusado associado a alguma definição atualizada.

A ecologia de sistemas como parte da disciplina Ecologia

Os autores apenas citam a ecologia de sistemasde Odum, como se a ecologia como um todofosse sistêmica. Essa é uma visão reducionistada disciplina. Ou seja, a ecologia analítica, evo-lutiva, de populações e comunidades, que ana-lisa as interações entre os organismos (comocompetição e mutualismo, por exemplo) foi ig-norada. A ecologia dos clássicos R. MacArthur,E. Pianka, J. Roughgarden, D. Simberloff e T.Schoener, só para citar alguns, sequer foi men-cionada no artigo.

A relação ecologia e ciências ambientais

Da ecologia de Odum, os autores saltam paraproblemas ambientais (contaminação de Mi-namata, usinas nucleares), citando então aquestão ambiental. Aqui talvez se localize aorigem, ou a causa, das indefinições encontra-das no artigo. A ecologia não se transformouem ciências ambientais. É uma disciplina comperguntas definidas, metodologias próprias elimitações claras dentro das ciências naturais.As chamadas ciências ambientais englobamdiferentes disciplinas que se aglutinam paraanalisar problemas ou questões do meio am-biente. A antropologia, ecologia, economia, en-genharia, sociologia, dentre outras, de formainterdisciplinar, podem ser aglutinadas, semperda de identidade, para enfrentar tais ques-tões, como a contaminação por mercúrio, oimpacto de hidrelétricas ou ainda os proble-mas da manutenção da biodiversidade na Ma-ta Atlântica. Exemplos são encontrados emuniversidades brasileiras e do exterior: há pós-graduações e grupos de pesquisa em ecologiano Brasil e em ciências ambientais (esses, in-

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terdisciplinares). Nos Estados Unidos, existemcursos/grupos de pesquisa em ecologia, mui-tos desses fazendo parte de institutos/divi-sões/centros de ciências ambientais. Essescentros em geral aglutinam equipes interdisci-plinares (veja os diversos campi da Universida-de da Califórnia, por exemplo). A idéia de queas ciências ambientais são ou devem ser umnovo paradigma, holístico e transdisciplinar foiassunto de muitos debates nos anos 60/70, in-clusive no Brasil. Vale a pena analisar a evolu-ção desse pensamento ou proposta.

O conceito de sustentabilidade

Diante das inúmeras definições (ou indefini-ções?) do que é ou deve ser ‘sustentável’, sugiroque os autores comentem sobre conceitos desustentabilidade. Muitas definições são citadasem artigos relativamente recentes, como emGatto, 1995 (Sustainability: it is a well definidconcept? Ecological Applications, 5:1181-1183);Goldman, 1995 (Threats to sustainbility in afri-can agriculture – searching for appropriate pa-radigms. Human Ecology, 23:291-334) e Goo-dland, 1995 (The concpet of environmentalsustainbility. Annual Review of Ecology andSystematics, 26:1-24).

Vale salientar a relevância atual do assunto,especialmente para as ciências sociais e am-bientais, de uma maneira geral. É então funda-mental que conceitos e disciplinas menciona-dos no texto estejam bem descritos, explicita-dos e fundamentados.

Os autores abordam primeiramente uma pers-pectiva histórica das várias etapas do pensa-mento acadêmico, especialmente o filosófico,sobre as relações sociedade-natureza. A abran-gência do tema permite-nos acrescentar inú-meros desdobramentos e discussões. Porexemplo, vale lembrar que o arcabouço institu-cional contextualiza a racionalidade científica,que varia de acordo com os cenários. Podemosconsiderar o cenário acadêmico (através daecologia enquanto ciência), o ambientalista(através dos movimentos contestatórios, asso-ciações comunitárias) e o de políticas públicas(via ações governamentais). Dentro de cada ce-nário existem várias formas de agrupar as dife-rentes tendências e muitas ligações. Os autores

Departamento de CiênciasBiomédicas, UniversidadeFederal de Rondônia,Porto Velho, Brasil.

Ana Amélia Boischio

citam esses agrupamentos tanto para as cor-rentes ambientalistas, como também para ostópicos relacionados ao desenvolvimento sus-tentável.

No cenário ambientalista, convém lembraro impacto do livro Primavera Silenciosa, noqual Rachel Carson (1987), na década de 60, fezum longo ensaio em linguagem acessível paraamplo público sobre os possíveis percursos edanos de alguns dos milhares de produtos quí-micos produzidos, utilizados e despejados noambiente. Um grande público foi atingido comesse livro, apesar de alguns erros e exageros ne-le contidos. A toxicologia ambiental, uma rele-vante disciplina da ciência ambiental, pode serconsiderada a versão acadêmica do conteúdodesse livro de cunho ambientalista.

No cenário acadêmico, os autores citam osmodelos ecológicos propostos por Odum (1985)na década de 70, como forma de entender anossa casa. Nesse caso, a entropia (tendênciaao caos, dispersão) deve ser considerada nosmodelos propostos. Utilizar modelos para en-tender e predizer tendências foi um avançosignificativo em ciência. Em momento poste-rior, Lovelock (1989) propõe um modelo globa-lizado na forma de Terra viva. A hipótese deGaia trata o planeta Terra como um único or-ganismo, possuindo, desta forma, vários meca-nismos de homeostase, resiliência, ou tambémo caos, que regulam as muitas taxas metabóli-cas, importantes aspectos da vida, tambémmérito de discussão. A idéia de Gaia é contro-versa quanto à questão capacidade de suportede poluição no planeta. Alguns grupos am-bientalistas consideraram “que a idéia de Gaiadá à indústria o direito de poluir o quanto qui-ser ...” (Lovelock, 1989), o que obviamente oautor defende como sem fundamento, enfati-zando justamente a perspectiva contrária.

Nas políticas públicas pode-se discutir aquestão do desenvolvimento sustentável, que,no contexto democrático, deve convergir ciên-cia (enquanto ecologia) e qualidade de vidadas populações humanas. O desenvolvimentosustentável é um termo amplo que abriga vá-rias definições em torno de “...garantir a dispo-nibilidade de recursos para gerações futuras...”.No entanto, tal desenvolvimento impõe políti-cas públicas de questionável praticabilidadenas circunstâncias vigentes, especialmente nospaíses do Terceiro Mundo. Mais recentemente,as ações comunitárias têm ganho significativaatenção. A sociedade civil mobilizada atravésde organizações não governamentais (ONGs) éum encaminhamento para a democratizaçãodos processos decisórios pelas comunidadeshabitantes das muitas aldeias do mundo. Mui-

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Departamento deAntropologia,Universidade Federal de Santa Catarina,Florianópolis, Brasil.

Dennis Werner O ensaio de Silva e Schramm apresenta muitostemas interessantes e importantes para deba-te: história da ciência, critérios para definir éti-ca, características de movimentos sociais, rela-ções do ser humano com o seu meio ambiente.Poderia questionar alguns detalhes na argu-mentação, como, por exemplo, a afirmação ci-tada pelos autores de que “estamos diante deuma crise única na civilização”, que se deve aomodelo de civilização insustentável do pontode vista ecológico (em outro trabalho – Werner,1987 – argumentei que a queda de muitas civi-lizações antigas na Mesopotâmia, Egito, Méxi-co e Estados Unidos deviam-se a crises ecoló-gicas decorrentes dos modelos insustentáveisdestas sociedades). Mas gostaria de dedicar es-tes comentários a algumas questões que per-meiam a discussão e que, ao meu ver, merecemuma reconsideração.

É quase automático hoje em dia reclamar-se de três características dos trabalhos científi-cos dos nossos antepassados, que agora sãoconsideradas ultrapassadas – o determinismo,o reducionismo e o simplismo. Gostaria deadotar o papel do advogado do diabo aqui e ar-gumentar que ainda precisamos destas trêsmaneiras de pensar.

Os autores deste ensaio não reclamam dodeterminismo, mas os seus questionamentos arespeito do mecanicismo talvez não sejam tãodistantes. Por determinismo podemos adotar adefinição mais ampla de Bunge (Bunge, 1979:13) – a manutenção da “hipótese de que eventosocorrem em uma ou mais maneiras definidas,que as maneiras de vir a ser não são arbitrárias,mas obedecem a leis, e que os processos pelosquais o objeto adquire as suas características sedesenvolvem a partir de condições pré-existen-tes”. Desde que obedecesse a algumas leis, atéo acaso poderia ser considerado determinado.Neste sentido, não importa muito se God playsdice (ou talvez, melhor, se Dice play God) paraas nossas noções de determinismo. Mesmo seaceitamos um ‘indeterminismo’ (ou casualida-de) no nível quântico, podemos continuar atrabalhar com determinismos probabilísticos.De toda maneira, o comportamento dos quan-ta não implica um indeterminismo em outrosníveis de análise (tal conclusão seria reducio-nista). Hoje, com as revelações da matemáticado caos, muitos duvidam até do indeterminis-mo quântico (Davies & Brown, 1993). É possí-vel, por exemplo, que o que vemos como inde-terminismo seja simplesmente a nossa impos-sibilidade em conhecer suficientemente bemas condições iniciais de um processo (Stewart,

tos dos caminhos percorridos pela questãoambiental, via quaisquer dos cenários conside-rados, deve ser associado ao papel da mídia naprojeção dessas questões sobre o público.

Em todos esses cenários apontados, preva-lece o privilégio da nossa geração: podemosgerenciar uma enorme quantidade de informa-ções, que permitem desenvolver uma ciênciacomplexa de aspecto interdisciplinar, semcomprometer a profundidade necessária damesma. A quantidade de arquivos que podemser ativados para redesenhar modelos e utilizaros mesmos como base para análises, discus-sões e decisões torna a questão ambiental, co-mo também muitas outras, objeto de uma épo-ca informatizada, que possibilita o desenvolvi-mento de uma Ecologia Complexa, como a su-gerida pelos autores.

É também importante incluir a questão éti-ca como parte da proposta de Ecologia Com-plexa. A ética da solidariedade, diferente da éti-ca competitiva, deve permanecer. A qualidadede vida eqüitativa atual e futura em todas as al-deias deve ser a prioridade do percurso huma-no na Terra. Alguns autores (Katz & Oechsli,1993) discutem também a perspectiva da éticaantropocêntrica. Esses autores sugerem queexiste uma obrigação moral à natureza e aosecossistemas, propondo portanto uma visãonão antropocêntrica nas ações ambientais, oque não combina muito com a questão de de-senvolvimento sustentável por parte das políti-cas públicas.

O texto manifesta a utopia mencionada notítulo ao indicar alguns aspectos da impratica-bilidade do paraíso!

CARSON, R., 1987. Silent Spring. Boston: HoughtonMifflin Company.

LOVELOCK, J., 1989. The Ages of Gaia. Oxford: OxfordUniversity Press.

KATZ, E. & OECHSLI, L., 1993. Moving beyond an-thropocentrism: environmental, ethics, develop-ment, and the Amazon. Environmental Ethics, 15:49-59.

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tra é a idéia de uma “linguagem universal dospadrões evolutivos para os quais todos os siste-mas se dirigem”. Esta maneira de pensar lem-bra muito a teologia natural da Inglaterra dosséculos passados. “For there is a language offlowers, and the flowers are peculiarly the poetryof Christ”, escrevia o letrista louco dos hinosanglicanos, Christopher Smart. Naquela época,a perfeição das adaptações de plantas e ani-mais servia para demonstrar a existência deum desenhista maior – Deus. Tenho a impres-são que alguns matemáticos querem ressusci-tar o Deus de Spinoza (Deus = leis da Nature-za), ou outras filosofias idealistas. Respeito oempenho dos matemáticos em tentar entendero desenvolvimento de conjunturas complexasestáveis, mas questiono o alcance destas teo-rias em explicar tudo que precisamos saber so-bre o ser humano e os ecossistemas. O proble-ma é que a seleção natural é oportunista. Juntapeças disponíveis num ato de ‘bricolagem’ pa-ra construir algo que funciona no momento. Is-to implica imperfeições. Com efeito, Darwinteve que passar muito tempo demonstrando aimperfeição das adaptações para se defendercontra os teólogos naturais.

Os adeptos da teoria da complexidade po-dem achar que vestígios desta ‘bricolagem’ (co-mo o nosso apêndice, ou ponto cego dos nos-sos olhos) são ‘meros detalhes’ sem importân-cia no caminho “para os padrões evolutivos pa-ra os quais todos os sistemas se dirigem”. No en-tanto, nós precisamos conviver com estes e ou-tros ‘acidentes’ que encontramos neste cami-nho. Em outro trabalho (Werner, no prelo), ar-gumentei que uma visão da realidade maisdarwinista ajudaria a evitar os problemas doidealismo e o desespero dos fenomenalistas.Uma maior atenção à idéia de seleção naturaljá tem ajudado a entender processos tão varia-dos como a imunologia, a computação (Cziko,1995), a psicologia e a aprendizagem (Cziko,1995; Barkow et al., 1992), a moralidade (Wright,1996; Rachels, 1991), a cooperação (Axelrod,1990) e a própria origem das leis do universo(Dennett, 1995). Acho que reflexões sobre asrelações entre o ser humano e seu meio am-biente beneficiam-se muito destas idéias. Tal-vez os movimentos percam um pouco o seu sa-bor místico. Ou, quem sabe, talvez, aprenda-semelhor a direcionar este misticismo para finsmais justos e ecológicos.

ATKINS, P. W., 1995. The Periodic Kingdom: A Journeyinto the Chemical Elements. New York: BasicBooks.

AXELROD, R., 1990. The Evolution of Cooperation.New York: Penguin.

1995). Mas, mesmo se nós nunca podemos tercerteza das coisas, isto não implica necessaria-mente que a própria realidade seja casuística,e o fato de precisarmos lidar com incertezasnão invalida a procura para regularidades.

Os autores são mais enfáticos quanto aoproblema do reducionismo, vendo com bonsolhos uma diminuição nesta questão nas últi-mas décadas. Reducionismo geralmente refe-re-se à explicação de um fenômeno em termosde outros fenômenos num nível mais baixo.Por exemplo, descobertas químicas são expli-cadas em termos da física (o que marcou mui-to da história da química – Atkins, 1995); fenô-menos biológicos são exemplificados em ter-mos da química (os avanços atuais na área debiologia molecular são neste sentido). Emboraos autores afirmem que o reducionismo estádiminuindo na ciência, há muita evidência deque está acontecendo o contrário. Como argu-menta Dennett (Dennett, 1991:455), sólidos, lí-quidos e gases podem ser explicados em ter-mos de coisas que não são conscientes.

Esta observação não nega a importância deanálises independentes feitas em diferentes ní-veis. Podemos explicar muitos aspectos de pro-gramas de computador, como o Word, inde-pendentemente de funcionarem num Apple ounum IBM, embora saibamos que no nível daprogramação de máquina os programas são di-ferentes. Da mesma maneira, Durkheim argu-mentou (e Radcliffe-Brown e Murdock demos-traram) que alguns aspectos de uma sociedadepodem ser analisados sem referência à psico-logia ou simbologia dos indivíduos que a com-põem. Nem a análise logística do trânsito pre-cisa levar em conta as particularidades de to-dos os veículos. No entanto, uma análise ver-dadeiramente holística teria que pensar nos di-ferentes níveis da realidade e lidar com as co-nexões entre eles. No mínimo, a análise de umnível deve evitar pressupostos claramente erra-dos quanto ao nível imediatamente abaixo.Uma análise do trânsito não deve pressuporque veículos podem parar num segundo, e umaanálise de sociedades humanas não deve pres-supor que as pessoas obedecem cegamente àsautoridades ou aos apelos à solidariedade.

A atitude dos autores quanto ao simplismovê-se no seu endosso entusiasta para as teoriasda complexidade, atribuindo a estas idéiasuma ressacralização da natureza. Suspeito quehá várias reflexões metafísicas envolvidas aqui.Uma é o pressuposto de que “tudo está relacio-nado com tudo”, uma idéia que filósofos comoBunge (1979) rejeitam, preferindo imaginar arealidade como existindo em módulos de ne-xos causais relativamente independentes. Ou-

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Ecologia, meio ambiente, holismo e ética sãopalavras da moda. A chamada questão ecológi-ca certamente é importante, mas, como bemdefiniu L. V. Bertalanffy, citado em outro con-texto pelos autores do artigo aqui comentado,“... doubtless there is a new compass of thoughtbut it is difficult to steer between the Scylla ofthe trivial and the Charybdis of mistaking neo-logisms for explanation”.

A leitura do texto deixou-me frustrado epreocupado. Constitui um exemplo perfeito doestilo de certa literatura moderna sobre am-bientalismo e ecologismo, temas de importân-cia atual indiscutível, freqüentemente tratadosde forma incorreta. Cobre um extenso leque detemas, que são abordados com uma superficia-lidade que contrasta com afirmativas generali-zantes e categóricas, apoiadas em uma biblio-grafia parcial, insuficiente para permitir a dis-cussão aprofundada dos assuntos tratados.Passa pela filosofia e pela história com o des-cuido de quem brinca ao lado de um poço cuja

BARKOW, J.; COSMIDES, L. & TOOBY, J., 1992. TheAdapted Mind: Evolutionary Psychology and theGeneration of Culture. New York: Oxford Univer-sity Press.

BUNGE, M., 1979. Casuality and Modern Science.New York: Dover Publications.

CZIKO, G., 1995. Without Miracles: Universal Selec-tion Theory and the Second Darwinian Revolu-tion. Cambridge: MIT Press.

DAVIES, P. C. W. & BROWN, J. R., 1986. The Ghost inthe Atom. New York: Cambridge University Press.

DENNETT, D., 1991. Consciousness Explained. Boston:Little Brown and Co.

DENNETT, D., 1995. Darwin’s Dangerous Idea: Evolu-tion and the Meaning of Life. New York: Simonand Scuster.

RACHELS, J., 1991. Created from Animals: The MoralImplications of Darwinism. New York: OxfordUniversity Press.

STEWART, I., 1995. Nature’s Numbers: The Unreal Re-ality of Mathematical Imagination. New York: Ba-sic Books.

WERNER, D., 1987. Uma Introdução às Culturas Hu-manas: Comida, Sexo, Magia e Outros AssuntosAntropológicos. Petrópolis: Vozes

WERNER, D. Epistemologia Darwinista: Evolução e oPensamento de Animais, Humanos, Intelectuais eAntropólogos. Florianópolis: Editora da UFSC,(no prelo).

WRIGHT, R., 1996. O Animal Moral: Porque Somos co-mo Somos. A Nova Ciência da Psicologia Evolu-cionista. Rio de Janeiro: Campus.

Fernando Diasde Ávila-Pires

Departamento de Medicina Tropical,Instituto Oswaldo Cruz,Fundação Oswaldo Cruz,Rio de Janeiro.

profundidade desconhece. Fala da filosofia oci-dental como se fosse a única, da história me-dieval como se fosse a pródiga, passa pela eco-logia como se fosse um pássaro, pela propostade um desenvolvimento sustentável como sefosse sólida, para acabar vazio como um paco-te flácido. Termina por reconhecer que: “Par-tindo das descobertas da termodinâmica, da fí-sica quântica, transportando-as para a biologiaevolucionária dos sistemas vivos, as ciências en-contram seus limites onde a relação entre o par-ticular e o universal continua um desafio e, por-tanto, em aberto”.

Deixo de lado algumas distorções factuais ecronológicas, como a de mencionar que Co-pérnico e Vesálio teriam utilizado o método ex-perimental e indutivo. Dupla falta, primeiroporque a indução, em ciência, é devida a Fran-cis Bacon, que tinha três anos quando morreuVesálio, e as obras do astrônomo, como as doanatomista, são bons exemplos do exercício daobservação e da dedução, mas não da experi-mentação.

Passo a analisar o texto em sua essência enão em seus detalhes.

Muito tem-se escrito sobre a eclosão, nasduas últimas décadas, do interesse popular pe-las questões relativas ao uso racional dos re-cursos naturais e sobre o ambientalismo comomovimento político. Boa parte dessa literaturapretende estabelecer uma ponte entre a ciên-cia ecológica e as questões sociais e políticasrelativas ao uso dos recursos, à poluição e àsmudanças globais. A maior parte falha frente àfalta de conhecimentos de ecologia, errada-mente subordinada à biologia, e, em boa medi-da, devido à amplitude e generalidade dos ob-jetivos temáticos pretendidos. Espera-se daciência ecológica respostas que devem ser bus-cadas na ecologia política e a solução de pro-blemas para os quais ela não dispõe de meto-dologia. Alguns aspectos formais precisam ser avalia-dos para que se possam abordar tais proble-mas.

O modelo de ecossistema geralmente cita-do é um modelo didático, destinado a ilustrar acirculação de nutrientes e a transferência deenergia nos sistemas ecológicos. Não se aplicaliteralmente às comunidades bióticas na natu-reza e, muito menos, àquelas caracterizadaspela presença humana, atualmente denomina-das geossistemas. Existe uma extensa literaturasobre ecologia humana, usualmente ignoradanessas discussões.

Um longo caminho teve que ser percorridoantes que fosse possível chegarmos ao concei-to de ecossistema, passando, por exemplo, pe-

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las contribuições pioneiras à química de Lavoi-sier, à nutrição vegetal de Liebig, à fermenta-ção, putrefação e decomposição de Pasteur,pela elucidação dos processos de síntese dassubstâncias orgânicas, pelas filosofias vitalis-tas, e pela natureza dos mecanismos da sele-ção, competição e evolução, de Darwin e Wal-lace.

A idéia de que a ecologia é um ramo da bio-logia constitui uma distorção comumente en-contrada na literatura leiga. Se suas raízes pio-neiras vêm da fitogeografia e da botânica, suanatureza complexa e multidisciplinar foi moti-vo de um comentário pertinente de Clements eShelford em uma obra que marcou época (Bio-ecology, John Wiley, 1939): “... students of eco-logy will continue to be trained primarily as bo-tanists, zoologists, sociologists, or economists forsome time to come – probably indeed as long asuniversity depertments are organized on thepresent basis”. Solo, clima e os demais fatoresdo ambiente abiótico fazem parte das análisesecológicas, tanto quanto sua componente bió-tica. No caso da ecologia humana, métodos econceitos das ciências sociais fazem parte doinstrumental de pesquisa. Aliás, a ‘formulaçãointegrada’ (p. 9) não ocorreu com os irmãosOdum, mas no início do século.

Entretanto, não reside apenas aí a fonte dosproblemas detectados na literatura ecologicis-ta atual. Reside também no tipo de confusãoconceitual que se faz entre religião e igreja,educação e ensino, política e ação partidária,ciência econômica e economia política, ecolo-gia e meio ambiente ou natureza. Freqüente-mente confunde-se instituição com ação, a dis-cussão teórica com a análise de casos, a normaestabelecida com a contravenção praticada, aregra com a distorção. Para muitos, a ecologiaconstitui a moderna encarnação da própria na-tureza e defender a ecologia é sinônimo de pre-servar o meio ambiente – como se defender aetnologia significasse a defesa das etnias mino-ritárias.

A ciência ecológica busca elucidar a tramade relações existentes entre organismos e os fa-tores bióticos e abióticos do meio. Seu conhe-cimento é indispensável à compreensão dosproblemas da produção primária, da conserva-ção dos recursos renováveis e não renováveis,do controle de pragas, parasitos vetores e hos-pedeiros não humanos de certas enfermidades.A análise da capacidade de resposta à explora-ção ou de absorção de resíduos deve ser feita àluz das teorias ecológicas e com o auxílio demetodologias desenvolvidas por ecólogos.

Mas as relações entre ciência ecológica epolítica ambiental, economia política, política

conservacionista, desenvolvimento econômicoe relações internacionais, envolvendo o usocompartido de recursos naturais, não são ime-diatas, nem diretas, nem singelas. Não é o ecó-logo, como tal, que vai decidir sobre questõespolíticas, econômicas ou éticas. A ecologia nãopossui instrumental técnico ou metodológicoque o permita.

Quem pretende entrar em uma discussãoque se propõe a abordar as relações entre aciência ecológica e a ideologia de uma épocaapoiado, apenas, nas obras (traduzidas) cita-das (Acot, Lago & Padua e uma edição antigado livro-texto de Odum), não pode esperaratingir seus objetivos. Seria o mesmo que en-frentar uma discussão sobre a crise religiosa nomundo moderno apoiado em um catecismoescolar, ou discutir o desenvolvimento da ciên-cia e tecnologia em relação aos impactos am-bientais nos países de primeiro e terceiro mun-dos sem o recurso da moderna historiografia eda perspectiva histórica, que não se encontramnos livros escolares.

Não acredito no resultado de discussõesque não partam da definição exata dos objeti-vos, dos termos utilizados, da solidez e corre-ção dos fundamentos históricos em que seapóiam os argumentos e da precisão dos fatoscientíficos alegados em suporte às idéias de-fendidas. E, nos escritos, impressiona-me malo excesso de aspas, que significam que o autornão se deu ao trabalho de buscar uma palavraou expressão que exprima exatamente o quepretende dizer.

Acredito, porém, que cabe-nos como pes-quisadores e professores um papel importanteno questionamento sério e na análise aprofun-dada de questões fundamentais. Questiona-mento baseado em bibliografia apropriada eno conhecimento aprofundado dos temas ana-lisados, transmitido em terminologia precisa ecom definições claras. Desta responsabilidadelembrou-nos Ruy Barbosa ao reconhecer que:“O vício essencial entre nós /é que/ o pouco deciência que se ensina segue métodos que levama decorar e repetir e nunca a desenvolver a ca-pacidade de pensar e analisar. Estas faculdadesvão produzir, então, doutores incapazes de ver anatureza presente, mas capazes de sustentar,com todas as pompas da retórica, as hipótesesmais inverificáveis sobre a existência do incog-noscível” (Ruy Barbosa, 1882).

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É importantíssimo ressaltar de início que otrabalho examina, de maneira praticamenteexaustiva, o pensamento mais substanciososobre o tema da ecologia que possa interessara cogitação de nossa época. É, por isso, um do-cumento de muito grande valor.

Os comentários feitos a seguir serão maisrelacionados com o que diz respeito às formu-lações vinculadas à condição humana dos ‘su-jeitos’, relativa aos indivíduos, os quais sãosempre descentrados, pelo simples fato de se-rem, em sua mais profunda (sub)essência, lan-çados (jectum) de um lugar, do qual quasesempre não se lembram, de algo central, masesquecido, por razão de ‘con-veniências’, sem-pre pessoais. Nessa perspectiva, examinaremosdois significantes considerados no texto: a vigi-lância e a solidariedade.

A maior ou menor artificialidade ou natu-ralidade que sujeito humano consegue admi-tir, colocar diante de si, dependerá, se marca-mos nossa reflexão pelo percurso do pensa-mento freudiano, do movimento, sempre pes-soal, a partir de uma cisão interna definitiva,entre natural e cultural, moduladora do mun-do emocional, que é eixo para a hominização.Note-se que, assim pensando, a essência dohumano é a artificialidade, a modelagem e amodulação, a simulação, ou mesmo a dissimu-lação.

O cuidado necessário manifestar-se-ia, porisso, inicialmente, com uma visão mítica danatureza, e haveria a possibilidade, neste caso,de um equilíbrio que, em nossa visão, somenteseria possível na ordem do divino. Essa posturaé aquela que parece nortear, também, a visãodos teóricos que olham para os grupos, vendosujeitos aí envolvidos, sempre em conflitos ín-timos e tomados, cada um, por diferentes arti-fícios do viver, e, com isso, não teriam jamais,acesso a uma homeostase do corporal. Esta,em uma visão bastante ideal, poderia ser, emalguma situação, ligada àquele ‘equilíbrioecológico’ que, por sua vez, estaria, paradoxal-mente, à prova das emoções que o fizeram co-mover-se com a natureza, ou seja, à prova danecessidade ou do interesse (Freud, 1974b,c)que, mais profundamente, aciona-os.

Movidos por essa forma de análise, não te-ríamos, por exemplo, por que nos admirar coma posição do Brasil em Estocolmo em 72, nemcom os pescadores famintos que não respei-tam a regulamentação da periodicidade dapesca, muito menos com a mortalidade oumorbidade elevadas, sobretudo quando se tra-ta da infância.

É certo que a sociedade não deve, e jamaisficará passiva diante do egoísmo de alguns.Mas parece, diante do fracasso de certos pro-cessos didáticos, de certos planos urbanos, re-gionais e globais, e também daqueles de pre-servação do ambiente em geral, que a ‘vigi-lância’ não deve ocupar lugar privilegiado nosprocessos educativos. Assim, parece centralque algum método de formação deixe de ladoperspectivas mais ideais de controle, com rela-ção à não-‘con-sider-ação’ dos sujeitos, osquais não se submetem e que a qualquer mo-mento podem se fazer presentes, com o retor-no do que lhes foi imposto esquecer, mesmopor um ‘bom comportamento’ sempre espera-do. A ecologia e seus limites são um campo pri-vilegiado para essa formação, que teria, a nos-so ver, o sentido dado no trabalho de preparoda militância do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra, e da formação de psicanalis-tas. Aí, o que foi esquecido é continuamenterevisitado, pois o central a ser construído, for-mado é uma nova imagem (building) da vida,sempre em tempo de formação (building) e,então, os ressentimentos pelas privações nãoseriam colados ao que é necessário faltar, nu-ma perspectiva do bem comum, sem o qual ospróprios sujeitos não existem. O que a psica-nálise tenta mostrar é que uma regressão, ouum ‘re-voltar’ da ordem do rancor, acionadapor uma necessidade vivida no presente, podelevar os sujeitos a uma passagem ao ato, ondegestos impensados, impedem a evolução dopensamento, a única chance para a evoluçãoda cultura, pois a reflexão parte da contínua‘re-con-sider-ação’ do egoísmo.

O trabalho com a ecologia, pelas metáforasque possibilita, pode ser um recurso útil nãosomente no trato de fontes naturais limitadas,mas também no desenvolvimento da cons-ciência do que seja o caminho do humano.Neste aspecto, é central a aceitação da carên-cia, a consideração da cárie, como centro daconstituição humana, onde algo de início estádefinitivamente perdido e onde o precário ins-tala-se como fundador.

Nessa perspectiva, qualquer solidariedadesomente seria possível na medida em que nãomais houvesse a necessidade de uma urgenteobturação de faltas, que, vistas como falhas, ra-teios, poderiam ser consideradas justamentecomo o lugar de encontro do humano. A falha,esse espaço de desamparo e de abandono (Hil-flosigkeit, Freud, 1974), ocasionado por umaprematuridade sempre presente no momentoda enunciação, que parte do sujeito, impedirá aeficácia de discursos plenos, complementares,próprios da repetição de enunciados de outros.

Jorge CamposValadares

Escola Nacional deSaúde Pública,Fundação OswaldoCruz, Rio de Janeiro,Brasil.

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Do centro da solidão que sempre evoca es-se lugar, próprio do sujeito, e somente de ondeele poderá escrever seu nome próprio, que nãoé um ato cartorial, é que nascerá alguma possi-bilidade para o gesto solidário. A capacidadede solidão está imediatamente ligada à capaci-dade de preocupação (concern) (Winnicott,1982). Por isso, defendemos a idéia de que esseespaço, quer do ponto de vista ambiental maisamplo, quer do ponto de vista da arquiteturamais imediata e dos dispositivos institucionais,no lugar de fortificar uma vigilância, deve in-centivar práticas de desenvolvimento de ima-ginário onde os movimentos relativos ‘peque-nos grupos’ (Valadares, 1994) devem ser inten-samente independentes do número de pessoas– as árvores telemáticas ou o grupo momentâ-neo ‘da copa’ de um departamento podem serexemplos – e onde o murmúrio possa exercersua função de elaboração da dor e de elevaçãodo protesto contra a repetição.

O fenômeno do consumo tem elevado o ní-vel do mal-estar, pela pobreza psíquica queacarreta, a partir de artifícios do mascaramen-to da repetição, inclusive com a internacionali-dade editorial, com mecanismos de racionali-zação que chegam a exasperar, pela total friezadiante do outro que, no caso, não merece a mí-nima comoção. Com a informática, todos so-mos autores e editores. Isso traz para a indús-tria editorial uma fúria divulgadora sem prece-dentes. A informação toma, então, o lugar daformação e os sujeitos usam as modas edito-riais como espaço de camuflagem de seu aban-dono e da voracidade correspondente, especu-larizada na tensão de uma ecologia de ideaisque pode ser devastadora.

FREUD, S., 1974a. O futuro de uma ilusão. In: ObrasCompletas, vol. 21, pp. 13-71.

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Sobreviver ou não sobreviver. Eis a questão!Mais do que uma mera paráfrase, essas são asalternativas – cruciais! – que se colocam para ahumanidade nesta transição de século. Porquê?

Porque evidências cotidianas inquestioná-veis do mundo contemporâneo mostram-noso planeta no seu ponto crítico (Brown et al.,1984-86), o que nos leva a dois axiomas inexo-ráveis (Almeida Jr., 1994):1) A Terra depende de certos arranjos nas con-dições físicas, biológicas e culturais, numa es-cala espaço-temporal, para sua conservaçãoem equilíbrio dinâmico (sustentabilidade evo-lucionária). Assim, a prevalecerem os modelosde desenvolvimento da ordem mundial vigen-te, que se caracterizam por romper constante-mente o equilíbrio dinâmico desses arranjos, oplaneta é insustentável a longo prazo – tempoentre 100 e 1.000 anos aproximadamente.2) Os modelos de desenvolvimento refletemos paradigmas de percepção, pensamento eação (cosmologias) da humanidade como umtodo e de cada sociedade e cultura humana emparticular. Portanto, a sustentabilidade evolu-cionária futura da Terra depende de profundasmudanças nos paradigmas cosmológicos pós-industriais que levem a modelos de desenvol-vimento ecologicamente auto-sustentáveis e,desse modo, a uma nova ordem mundial.

Assim, aceita-se como factual o estarmosdiante do sobreviver ou não sobreviver – lem-bre-se aqui, nesse sentido, que no ano de 1996morreram de fome, no planeta, 76 pessoas porminuto, 50% crianças, e que o homem extin-gue, direta ou indiretamente, 72 espécies de se-res vivos por dia, três por hora (Myers, 1993) –,não nos deve escapar o caráter moral inerenteàs escolhas suscitadas por essas alternativas;tampouco deve-nos escapar a natureza com-plexa, multidimensional, da questão.

De fato, a questão em pauta é ecológica,porque diz respeito às relações interdependen-tes da espécie humana e do planeta como umtodo; é política e, como tal, estratégica, social,econômica e cultural, porque remete-nos aocompromisso com a ação visando à sobrevi-vência do homem e da Terra e é ética, porqueencerra valores morais diante de um bem juri-dicamente protegido – a vida, em todas as suasformas, manifestações e relações.

Posto isso, quero dizer que concordo, deum modo geral, com os autores Elmo Rodri-gues da Silva & Fermin Roland Schramm noseu artigo A questão ecológica: entre a ciência ea ideologia/utopia de uma época. Mas desejo

José Maria G. deAlmeida Jr.

Instituto de Ciências Biológicas, Universidadede Brasília, Brasília,Brasil.

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Comentar o artigo de Silva & Schramm (dora-vante S & S) em três laudas é uma tarefa espi-nhosa. Em seu breve texto, os autores vão daevolução da filosofia à história da técnica, dalógica da produção industrial à história do mo-vimento ambientalista, da ética ao utilitarismo,dos pré-socráticos aos reflexos da Eco-92. Nes-ta mistura, há idéias estimulantes e provoca-doras, mas há muito mais a que objetar. Ate-nho-me a dois dos temas que demandam umcomentário mais detalhado.

Racionalismo filosófico e tecnocientífico como origem da crise ambiental

“Os impactos ambientais não devem ser asso-ciados exclusivamente com a grande indústria[...]. Já no século XVIII, o seu modo de operar sefazia sentir ...”. Para construir seu argumento, S

Thomas MichaelLewinsohn

Laboratório de Interações Insetos-Plantas, Instituto de Biologia, UniversidadeEstadual de Campinas,Campinas, São Paulo.

que essa concordância seja entendida à luz doque exponho nestes comentários.

É conservador ter e procurar passar umapercepção da questão ecológica como um elocomum entre ciência e ideologia, entre racio-nalismo e ‘emocionalismo’.

Por outro lado, é revolucionário ter e passaruma percepção da questão ecológica como umelo singular entre os paradigmas cosmológicosda ordem mundial vigente e os que se pretendepara uma nova ordem.

Creio ser esse – o segundo posicionamento– o que permite escolher o pensar e o agir a fimde tornar possível tudo aquilo que é necessárioà sobrevivência humana e planetária, nummundo que seja marcado pela solidariedade,dignidade, eqüidade, paz e liberdade. Umautopia de uma época – a do nosso tempo? Sim,uma utopia. E o que é mais humano do que so-nhar, almejar, buscar e, quem sabe, alcançar osublime?

ALMEIDA JR., J. M. G., 1994. Desenvolvimento eco-logicamente auto-sustentável: conceitos, princí-pios e implicações. Humanidades 10(4/38):284-299.

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& S postulam que racionalidade, antropocen-trismo, industrialização etc. engendram a criseambiental. Ora, problemas ambientais são umpouquinho anteriores a Descartes. Crises sé-rias de sobre exploração e salinização de soloscultivados ocorrem na Mesopotâmia (1700a.C.); desflorestamento predatório leva a crisesde construção e combustíveis na Babilônia(2000 a. C.); a demanda de lenha e carvão parametalurgia fazem de Creta e Grécia terras arra-sadas; o cipreste, hoje árvore típica da paisa-gem do Mediterrâneo, torna-se dominante emfunção do desmatamento da região por umasucessão de civilizações clássicas ‘florescentes’;a substituição de florestas pela agricultura levaà erosão tão violenta que importantes portosda Ásia Menor e Grécia são perdidos por totalassoreamento – alguns são abandonados porse tornarem zonas endêmicas de mosquitos emalária. Tudo isto entre 700 a.C. e 200 d.C.(Perlin, 1989). A poluição dos rios em cujasmargens surgem as grandes cidades européiasé tão séria que obrigam-nas a trazer água delonge para seu abastecimento: isto em Romadesde 300 a.C., em Londres desde 1236, emBreslau desde 1479 (Pontig, 1991).

Perante tais crises, a consciência ecológicaantecede bastante Aldo Leopold e o século XX,seja como ética (desde os mitos de Gilgamesh,na Suméria), seja pela percepção crítica deconseqüência do desflorestamento, erosão epoluição, seja por inovações tecnológicas debaixo impacto. A arquitetura prioriza eficiên-cia de aquecimento solar tanto em Roma co-mo na Grécia antiga, onde cidades como Prie-ne têm seu traçado inteiro dirigido para au-mentar tal eficiência. Substituem-se materia-is e técnicas de construção e metalurgia, paramaior eficiência, e nem mesmo a reciclagemde lixo é tão recente – em Roma, coletava-se vi-dro para a reciclagem já no século I (Perlin,1989).

Estes exemplos avulsos não significam queos problemas ambientais tenham sido inteira-mente compreendidos a seu tempo, nem queas soluções tenham sido suficientes. O que es-panta é que civilização após civilização caia emarmadilhas semelhantes, experimente crisesparecidas e tente lidar com elas tardiamente epor soluções técnicas parciais.

Entretanto, esta perspectiva extrapola otexto de S & S, que atrelam as crises de hoje àmoderna industrialização, à ciência e à tecno-logia contemporâneas, e estas, por sua vez, auma filosofia racionalista e reducionista. Comotentei mostrar, tal esquema explicativo não dáconta de uma história ambiental muito maislonga, e mais complexa, do que apresentam.

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Antes de prosseguir a outro tema, será queo próprio “projeto atual de dominação da na-tureza pelo saber-fazer tecnocientífico” começade fato com a instauração do mundo moderno,quando se rompem as relações homem/natu-reza? Aqui parece-me haver igualmente umavisão ingênua do mundo antigo e medieval. Ve-ja-se, a propósito, o trabalho clássico de White(1967), que encontra na teologia judaico-cristãbases para o distanciamento e dominação des-trutiva da natureza pelo homem.

Ciência ecológica e programas holísticos

A origem e a construção da ciência ecológicasão representados de maneira equivocada porS & S. As contribuições dos naturalistas ingle-ses e da sistemática de Lineu para o surgimen-to de uma ciência da Ecologia são reais, masincluem-se entre muitos aportes importantes.A ciência ecológica tem outras raízes, em quesobressaem a geografia de organismos e comu-nidades de Humboldt; questões sobre relaçõesorganismo-meio, tratadas por cientistas comoLamark e de Candolle, desde o século XVIII; ademografia iniciada no século XVII (ver, entreoutros, Hutchinson, 1978; Mcintosh, 1985;Drouin, 1991). Entretanto, destaca-se a contri-buição de Darwin. A Origem das Espécies con-tém, entre outras coisas, um tratamento exten-so de questões ecológicas, enfeixando dinâmi-ca de populações, interações intra e interespe-cíficas, respostas a pressões e modificações doambiente, e organização e dinâmica de comu-nidades (Darwin, 1859). O conhecimento evo-lutivo e ecológico não avançaram de formaconcordante e mais de uma vez estiveram emoposição (McIntosh, 1985; Drouin, 1991), mas ainfluência darwiniana sobre o desenvolvimen-to conceitual da ecologia do século XX é nítida.

A ciência ecológica construiu-se por muitasvertentes. A caracterização e necessidade deexplicar padrões de diversidade de espécies emdiferentes ambientes e regiões geográficas éuma das primeiras (Lewinsohn et al., 1991). Aecologia vegetal de Warming (1895), entre ou-tros, investigou respostas morfológicas e fisio-lógicas de plantas ao ambiente, tanto comoprocesso adaptativo como em suas conseqüên-cias biogeográficas. Warming representa ummarco na organização da ecologia como cam-po de investigação (Goodland, 1975). A ecolo-gia animal segue outros caminhos, centradosna formalização da dinâmica de populações,em modos de interações interespecíficas e naorganização trófica de comunidades naturais(Elton, 1927). Dinâmicas de conjuntos interati-vos de populações são abordados em estudos

de campo e em experimentos controlados nasdécadas de 1930 a 1950.

A visão ecossistêmica toma forma na mes-ma época. O sistema dinâmico de organismosvivos e seu ambiente físico é chamado de ecos-sistema por Tansley em 1935. Seis anos depois,R. Lindeman desenvolve uma abordagem dinâ-mica para a questão da eficiência energéticadestes sistemas, apontada originalmente porElton e delineada por Hutchinson (Lindeman,1942). A estes trabalhos é que se agregam aspesquisas mais importantes dos irmãos Odum(Odum & Odum, 1955).

A ciência ecológica consolidou sua identi-dade institucional como área de pesquisa pró-pria nas últimas quatro décadas, mas sempreconservou uma diversidade de linhas de pes-quisa e aplicação tão grande como mostra o es-boço acima. O interesse recente na históriadesta ciência tende a superar uma visão sim-plificada, que divide a ecologia simplesmenteem ecologia de ecossistemas e ecologia de sis-temas, por um lado, e em ecologia evolutiva eecologia de populações, por outro. Na verdade,estas duas vertentes não são nem internamen-te homogêneas, nem tão autônomas entre si(McIntosh, 1985; Golley, 1993).

A ciência ecológica, portanto, antecede evai além do programa ecossistêmico desenvol-vido pelos irmãos Odum e seus colaboradores.Ao contrário do que indicam S & S, este progra-ma está longe de ser a ‘síntese completa daecologia’. Mais que isto: embora E. e H. Odumdefinam sua abordagem como completamenteholista, sob exame mais cuidadoso, a ecologiade ecossistemas mostra-se tão reducionista co-mo outras abordagens da biologia e ecologia.Mesmo a historicidade da ‘nova física’ de IliaPrigogine, que para S & S exemplifica os novosrumos que a ciência deve buscar, é objeto ex-plícito de investigação da atual ecologia de po-pulações e de comunidades, mas não cabe noquadro da ecologia de ecossistemas.

Há outras razões para reconsiderar critica-mente a identificação da ciência holística odu-miana com as reações sociais à ciência indivi-dualista e a soluções tecnocráticas. Duas delasmerecem ao menos menção. As relações entreo trabalho dos irmãos Odum e o establishmentgovernamental e militar norte-americano sãobastante complexas; sua pesquisa teve uma ní-tida função validadora para o uso da energianuclear após a Segunda Guerra (Hagen, 1992;Taylor, 1988) e os modelos de ecossistemas queproduzem são a mais acabada representaçãoda natureza ao modus da engenharia.

Não há espaço para abordar outros impor-tantes temas de que S & S tratam, como os mo-

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vimentos ambientalistas, a eventual cooptaçãode suas causas, ou as bases para uma ética am-biental. Porém, antes de erigir uma nova ‘Eco-logia Complexa’, é necessário aprofundar-se eentender melhor sobre a efetiva construção, aslimitações e, principalmente, o próprio con-teúdo do conhecimento científico e sua inser-ção na sociedade. Para alicerçar um programarenovador e abrangente valendo-se da históriaambiental e a ciência ecológica, há que conhe-cê-las a ambas mais de perto.

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Instituto de Filosofia eCiências Sociais,Universidade Federal doRio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.

Wilmar do ValleBarbosa

Não resta a menor dúvida de que a chamadaquestão ecológica, bem como a crise ecológicaconstituem um dos problemas teóricos e práti-cos mais agudos deste século. E quando fala-mos em questão ecológica, estamos necessa-riamente referindo-nos, de modo implícito ounão, à nossa relação com a natureza, que, co-mo bem indicam Silva & Schramm, dá-se sob osigno da história. Da mesma forma como aquestão política foi, digamos, uma espécie deepicentro do século XVIII – século das resolu-ções – e a questão social, epicentro do séculoXIX – século da discussão sobre direitos políti-cos, sobre reforma e justiça social –, o nosso sé-culo parece ter elegido o problema da naturezacomo a sua questão. E com ela, os problemasreferentes ao que os autores do artigo em dis-cussão chamam de “projeto atual de domina-ção da natureza pelo saber técnico científico”.Mas o que é que se pretende dizer com estaproposição? Dito de outra maneira: o que é anatureza que se pretende dominar quando sefala em ‘projeto atual de dominação’?

Na nossa avaliação, se as culturas humanasconseguiram elaborar um termo, um conceito,uma representação, em nada unívoco, comple-tamente polissêmico, este é o de natureza. Noâmbito mesmo da cultura ocidental antiga, porexemplo, os termos physis (grego) e natura (la-tino) possuíam significados diferentes e, con-seqüentemente, sugeriam relações diferencia-das – inclusive as cognitivas – com o que gre-gos e romanos entendiam ser a natureza. Igual-mente, a natureza, tal como concebida pelos fi-lósofos e teólogos medievais, difere substanti-vamente daquela concebida pelos modernos, eesta última, por sua vez, já não mais corres-ponde às demandas da sensibilidade contem-porânea. Se estas rapidíssimas observações fo-rem consistentes, poderemos então afirmarque a implicação fundamental de toda a ques-tão ambiental deverá advir de uma renovadarelação com a natureza; deveremos tambémnos perguntar (e tentar responder!) “com quenatureza?” É nesse sentido que entendemos ademanda de François Chatêlet por uma novaontologia, uma nova representação do real,compreendendo, ao mesmo tempo, que o des-locamento decisivo que ele busca encontra-sena renovação da filosofia política e na emer-gência de uma nova filosofia da natureza, talcomo sugere J. P. Dupuy.

Quais poderiam ser as eventuais caracterís-ticas desta nova filosofia da natureza, parece-nos algo ainda difícil de se estabelecer com se-gurança. Uma coisa, porém, afigura-se-nos co-

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mo certa. Se é correto afirmar que as tendên-cias naturalistas pautaram-se tradicionalmen-te pela elaboração de uma representação danatureza que constituísse uma verdade absolu-ta e universal, esta nova filosofia deve abando-nar de vez este propósito. A polissemia e a plu-rivocidade do termo natureza e daquilo que eledesigna não estariam a indicar a impossibili-dade do naturalismo enquanto verdade daexistência humana? Impõe-se, assim, com-preender que a natureza precisa ser pensadacomo uma extensão do humano artifício, comouma construção; impõe-se compreender queela, tal como a experimentamos, é sempreconstruída no âmbito de nossas referênciassimbólico-culturais, é, rigorosamente falando,inventada. Só assim poderemos superar a po-lêmica entre naturalistas e artificialistas, quasetão antiga quanto a filosofia.

Do nosso ponto de vista, a questão ecológi-ca está processando a invenção de um novosentido de natureza. E a invenção de um novosentido é invenção de uma nova relação, ondeos elementos relacionados são também resig-nificados. Por isto é que a sensibilidade con-temporânea permite que se comece a reinven-tar o homem, concebendo-o, desta feita, comofator de continuidade da natureza e redefinin-do a essência da própria responsabilidade hu-mana relativamente ao não humano. Da mes-ma forma, permite que se reinvente a nature-za, na medida em que deixa de vê-la predomi-nantemente como máquina. Porém, se por umlado a questão ecológica constitui um dos ele-mentos que definem os contornos desta sensi-bilidade, por outro a tecnociência é um doselementos que a desafiam. Por quê? Porque atecnociência é a reinvenção em ato da nature-za e do homem, e assim sendo faz-nos perce-ber a potência que talvez sejamos, bem como afragilidade e a fugacidade daquilo que consti-tuímos. Ao tentar reinventar o naturalismo, asensibilidade contemporânea procura reeditara ‘verdade absoluta’ que ela mesma contribuiupara destronar. E o faz porque na dialética quese instaura entre sentimentos e idéias, normal-mente aqueles tendem a não progredir com amesma rapidez destas. Neste sentido, o cabo-de-guerra entre naturalistas e artificialistas tal-vez nos impeça de ver a real dimensão do mun-do que se descortina para as gerações futuras:mundo transitório, feito de transitoriedades,onde, porém, os deuses não transitarão, nemtampouco servirão para consolar.

O artigo coloca uma série de preocupações deforma breve e estimulante perante a comuni-dade científica. A discussão histórica de nossosinteresses ambientalistas é completa e sur-preendentemente crítica, uma vez que o textoem questão não é extenso. Sem dúvida, estaevolução nos tem trazido desde um períodonaturalista para um período científico ao pre-sente, no qual temos quase uma guerra virtualentre estas duas visões do homem na natureza.O dualismo cultural da cultura greco-romanainflui sobre todos nós até hoje, de forma que osdebates requerem-nos escolher entre uma dasduas caras dessa dualidade – em vez de procu-rar uma nova síntese que incorpore os aspec-tos positivos de cada e rejeitar os que não ser-vem no momento atual. A ciência de hoje pre-cisa de uma base cada vez mais exata e quanti-tativa – sem entrar na visão de túnel que nosamarra às ideologias ultrapassadas. A comple-xidade de ecossistemas humanos requer umavisão humanista do comportamento destes sis-temas tão complexos, que seu comportamentoé cada vez mais imprevisível com teorias e mo-delos deterministas. A ética da solidariedade éuma de muitas soluções, o ecosofismo é outra,oferecidas no momento atual para enfrentarnossas crises do meio ambiente e do desenvol-vimento. Uma pena que os autores não entra-ram na discussão da nova economia ecológica,a qual parece ter interesses e teorias em desen-volvimento para tratar de nossos deveres paracom a natureza, por exemplo, usando mecanis-mos quantitativos, como os preços, para noslevar a uma consciência da natureza dentrodos constrangimentos de nosso mundo mate-rialista.

Anthropological Centerfor Training and Research on Global Environmental Change,Indiana University,Bloomington, U.S.A.

Emílio F. Moran

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Os autores respondem The authors reply

Como sintetizou Ferdinand de Saussure no seuCours de Linguistique Générale (1916), “é oponto de vista que cria o objeto”. Este princípio(que tem suas raízes filosóficas longínquas nasofística grega: Protágoras afirmara “de todasas coisas medida é o homem ...”) passa pelaepistemologia kantiana, funda o método dasCiências do Espírito (Geisteswissenschaften)com W. Dilthey, para atingir as próprias Ciên-cias Naturais (Naturwissenschaften), inclusiveuma ‘ciência dura’ como a física, no século XX,delineando aquela que será conhecida comoepistemologia construtivista, um dos princi-pais métodos da abordagem do real, aplicadopelo saber científico contemporâneo no Oci-dente.

Existem, evidentemente, outros pontos devista sobre a pertinência do ponto de vista (quenos seja permitido este jogo de palavras) no sa-ber-fazer da tecnociência contemporânea, etodo o debate acerca do realismo está aí parademonstrá-lo, dentro e fora da cultura ociden-tal. Entretanto, foi esta a opção escolhida paranossa apresentação da questão ecológica.

Esta premissa é indispensável para enten-der corretamente o enfoque dado aqui, que,como todos os enfoques, é circunstancial e li-mitado, ou ‘arbitrário’ (como diria ainda Saus-sure) no sentido de não implicado necessaria-mente por uma suposta essência das coisas, in-dependente da interpretação. Ou seja, um pon-to de vista, como parecem confirmar tambémas neurociências atuais, nada mais é do queuma construção perceptiva dotada de sentido,num mecanismo complexo em que inputs sãoselecionados conforme interesses, necessida-des, desejos do observador. Assim sendo, umponto de vista é falível e refutável (como diriaPopper) porque não percebemos a realidadecomo ela é em si, mas tão somente como ela épara sujeitos epistêmicos detentores de pontosde vista. É por isso que somos também semprevítimas potenciais de falsas percepções quan-do confrontadas, por exemplo, com os resulta-dos obtidos de instrumentos de medida, apa-rentemente mais objetivos. Por exemplo, napercepção da cor não lidamos com objetos iso-lados, mas somente com relações entre os ob-

jetos e seus contextos, e é isso que faz com queum objeto seja percebido como mais escuro oumais claro dependendo do fundo, respectiva-mente mais claro ou mais escuro. Em suma, aprópria percepção é um processo ativo damente, uma construção a partir de hipóteses eteorias a priori, sem as quais não é possívelperceber realmente.

Mas a questão ecológica, por tratar-se deuma questão (ou problema), é necessariamen-te polêmica. Não somente porque tem a vercom pontos de vista diferentes sobre as rela-ções pertinentes e significativas entre indiví-duos da espécie homo sapiens sapiens e seuambiente natural (de fato natural-cultural),mas também porque se refere a valores emconflito, muitas vezes incomensuráveis entresi, e que determinam a eticidade (ou moralida-de) da problemática ambiental, estudada pelaética ambiental.

Assim sendo, nosso objetivo não era tanto ode analisar o surgimento da ecologia per se –que surge enquanto ciência, como bem fazemnotar vários dos interlocutores, no final do sé-culo XIX – mas o de apresentar as implicaçõeséticas resultantes de transformações culturaismais amplas, sintetizáveis pelo fato de que aproblemática ecológica se torna uma preocu-pação leiga (não só de especialistas portanto),no contexto daquela mudança paradigmáticaque apresentamos como a passagem de um pa-radigma dicotômico (imputável ao cartesianis-mo) para um paradigma complexo, preocupa-do com as relações viáveis entre biosfera e tec-nosfera.

É para dar conta dessa mudança que abor-damos a transformação das representaçõesacerca de um operador culturalmente impor-tante, o conceito de natureza, que – como jus-tamente sublinha Wilmar do Valle Barbosa noseu comentário – deve ser considerado comoum conceito ‘polissêmico e plurívoco’, resulta-do da criatividade humana. Neste sentido, aquestão ecológica dá novo sentido ao conceitode natureza, sobretudo se levarmos em conta avigência, a partir da Época Moderna, do para-digma tecnocientífico (essencialmente racio-nal e operacional), fato que coloca a questão,moralmente relevante, de como aliar princí-pios termodinâmicos e ecológicos, por um la-do, e bem-estar humano, por outro.

Surge então uma primeira pergunta relativaaos assim chamados direitos da natureza, pois,neste caso, deveríamos antes decidir qual na-tureza teria eventualmente direitos: Aquela dofuracão ou aquela da floresta destruída pelo fu-racão? Aquela natural, responsável pelas mal-formações de um feto ou aquela natural-cultu-

Fermin RolandSchramm

Elmo Rodriguesda Silva

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ral do ‘saber-fazer’ biomédico, capaz de corri-gir os efeitos da primeira? A questão dos direi-tos da natureza, de fato, não faz muito sentido.O que faz sentido é uma outra, consistente emreconhecer o direito à nossa exigência de pro-teger alguma forma de equilíbrio natural-cul-tural, pois dependemos ainda do meio (comobem demonstra a experiência fracassada daBiosphere Two norte-americana), mas depen-demos também, cada vez mais, das transfor-mações artificiais deste meio (como demons-tra, por exemplo, a luta acirrada contra os no-vos microorganismos).

É neste ponto que se insere a outra questãoabordada no texto: a do antropocentrismo. Es-ta questão é relevante do ponto de vista moralporque somente os humanos são, no atual es-tágio evolutivo, entes capazes de refletir sobreo mundo e sobre si, inclusive sobre os valoresque orientam (ou deveriam orientar) o agir eti-camente correto numa situação determinada.Ou seja, só os humanos podem, por enquanto,ser considerados detentores da inteligênciaabstrata, da consciência auto-reflexiva e da li-berdade, que os torna propriamente sujeitosautônomos ou ‘pessoas’ (como diria Kant), ti-tulares de direitos e deveres correspondentes.Assim sendo, a questão do antropocentrismo éfilosoficamente incontornável, mesmo quandose adota um ponto de vista biocêntrico ou cos-mocêntrico (como pretendem alguns defenso-res dos direitos naturais), pois, em última ins-tância, tudo depende do ponto de vista adota-do, que só pode ser construído e enunciadopor algum representante da espécie homo sa-piens sapiens, que tenha atingido a faculdadede pensar, de agir e de refletir sobre as suas im-plicações morais. É por isso que concordamoscom Barbosa – quando afirma que a única ma-neira de superar a polêmica entre ‘naturalistas’e ‘artificialistas’ consiste em pensar a próprianatureza como uma ‘extensão do humanoartifício’ –, ou com Jorge de Campos Valadares– quando afirma que a essência do humano é aartificialidade.

Se o nosso objetivo não ficou muito claro,isto deve-se, a além das nossas falhas devida-mente apontadas pelos debatedores, provavel-mente também ao fato de que a questão ecoló-gica é complexa e polêmica, pois remete – paracitar ainda Valadares – à ‘carência’ da humanacondição, quer dizer, para “onde algo de inícioestá definitivamente perdido e onde o precáriose instala como fundador”. De forma mais ge-ral, a questão ecológica é complexa porque im-plica vários tipos de saberes, não somente pro-priamente científicos, mas ainda culturais nosentido amplo, inclusive morais, todos eles

preocupados em dar conta, do seu ponto devista particular e legítimo, daquele que, para-fraseando Freud, pode ser chamado de um ver-dadeiro ‘mal-estar ecológico’ na experiênciaindividual e coletiva. Este mal-estar expressa-se no nosso texto pela oposição entre um fun-damentalismo ecologista (ou ecologia profun-da) e um ecologismo humanista (ou superfi-cial), que, ao invés de submeter stricto sensu ohumano à natureza (como fazem os funda-mentalistas), tenta ampliar progressivamenteo campo das considerações morais a outros su-jeitos (como animais e ambientes naturais). Sóque esta extensão é problemática, porque, ri-gorosamente falando, somente os humanospodem atribuir tais direitos, ou seja, reconhe-cer que o ponto de vista será de qualquer for-ma sempre antropocêntrico, mesmo quando seafirma não sê-lo, postulando, por exemplo, aexistência de pontos de vistas diferentes, atri-buídos a animais, em virtude do fato de queeles sofrem ou simplesmente porque fazemparte da grande Cadeia do Ser e participam,portanto, de uma mesma comunidade e desti-no (como julgam determinadas concepçõesmísticas ou religiosas). A questão ecológica es-tá tão presente no imaginário contemporâneo,que um autor chegou a afirmar que ela ter-se-ia tornado o ‘novo paradigma da política’ (Hös-le, 1991), afirmação evidentemente apressada,pois não dá conta nem do retorno dos funda-mentalismos e das novas formas de nacionalis-mo no cenário político mundial, nem da per-sistência de antigos problemas ético-políticos,como a injustiça social.

Feita esta longa mise au point, considera-mos que, pelas críticas recebidas, atingimosum dos objetivos a que se visava dentro do es-pírito da seção Debate desta revista, ou seja,discutir entre especialistas vindos de vários ho-rizontes disciplinares uma das questões maispolêmicas da atualidade. Agradecemos, por-tanto, a todos os participantes nesta ‘logo-maquia’ por terem apontado erros e simplifi-cações; por terem exigido esclarecimentos eaprofundamentos, e destacamos humildemen-te (nunca faz mal) que aprendemos muito dascríticas, mesmo das mais contundentes, poiselas permitem integrar outros olhares ao nos-so, que, repetimos, é necessariamente parcial eincompleto, logo refutável.

Infelizmente, não será possível responder atodas as perguntas e críticas de modo exausti-vo, considerando o espaço aqui concedido.Muitas questões ficarão, portanto, em aberto.

Dennis Werner coloca-se na posição de ad-vogado do diabo, defendendo as ferramentasdo ‘reducionismo’, do ‘determinismo’ e da ‘sim-

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plificação’, forjadas a partir da epistemologiacartesiana. De maneira geral, concordamoscom ele, pois efetivamente não precisamos in-comodar a teoria da complexidade para darconta de fenômenos para os quais a epistemo-logia clássica é suficiente. Neste sentido, vale oprincípio metodológico conhecido como nava-lha de Occam, que prescreve a economia demeios conforme os fins almejados. De formamais específica, consideramos que cada mode-lo de investigação é pertinente em contextosespecíficos, dentro dos recortes e simplifica-ções feitos, necessários à modelização, sem aqual é praticamente impossível qualquer tipode conhecimento. Assim, uma compreensão‘total’ dos fenômenos constituiria uma buscaincansável e desesperada de um método uni-versalizante, bem diferente do método da com-plexidade, assim como foi desenvolvido porMorin, Prigogine e muitos outros. De fato, aciência, como a história, são construtos huma-nos sujeitos às limitações e aos erros dos seusatores, não existindo nenhum ponto de vistaabsoluto (ou ‘olho de sírio’, como dizia Nietzs-che), capaz de dirimir de uma vez por todas asquestões polêmicas. Neste sentido, a palavraimperfeição, utilizada por D. Werner, pareceum tanto arriscada, pois pressupõe a elimina-ção daquilo que é imperfeito – talvez o autorpudesse substituir o termo imperfeição porinadaptabilidade dentro do processo de sele-ção natural. Mas, por outro lado, concordamosquando ele aponta os riscos implícitos nas vi-sões de tipo holístico, consistentes numa res-sacralização da natureza e presentes, porexemplo, nas visões místicas adotadas por al-guns grupos ambientalistas de tipo fundamen-talista. Esta não é a posição defendida aqui,nem pela maioria dos cientistas que sustentamo ponto de vista complexo; o paradigma dacomplexidade implica o estudo não tanto dosobjetos em si (como no reducionismo clássi-co), mas das relações entre objetos, e, sobretu-do (distinguindo-se claramente do holismo), orespeito dos vários níveis hierárquicos perti-nentes de cada análise. Contudo, querendo as-sumir, por nossa vez, a postura do advogado dodiabo, podemos reconhecer que os mitos fa-zem parte de todas as culturas e de todas asépocas e, portanto, não podem ser ignorados.

As críticas feitas por Thomas Michael Le-winsohn são particularmente instigantes. Cabeesclarecer que não desconhecemos que a con-quista da natureza pelo homem não surge comas sociedades industriais e que, de forma maisgeral, a conquista do meio constitui uma espe-cificidade de todo ser vivo. Consideramos ape-nas que a industrialização tornou mais proble-

mática esta relação homem-natureza, devidoao fato de que os impactos sobre o meio am-biente mudaram de escala, fato este que apro-funda radicalmente o nível, o grau e o alcanceda transformação (como afirma Hans Jonas noseu livro O Princípio de Responsabilidade). De-limitamos propositalmente nossa apresenta-ção ao Renascimento Europeu, pois é aí que sedão as condições para o surgimento da ciênciamoderna que mutatis mutandi é ainda a ciên-cia vigente no mundo contemporâneo. Igual-mente, não desconhecemos a influência dopensamento judaico-cristão acerca da legiti-mação da dominação do homem sobre a natu-reza. Contudo, não foi nossa intenção, nestebreve ensaio, ser completos. Concordamos quea ecologia de ecossistemas e a de populaçõessão, sob certos aspectos, complementares. Po-rém, parece-nos que há, atualmente, uma ten-dência a considerar a ecologia de ecossistemascomo uma importante interlocutora do movi-mento ambientalista, e é por isso que insisti-mos nela. Neste sentido, Coutinho (autora ci-tada) traz uma importante contribuição ao re-fletir sobre idéias e conceitos que transitampor tal movimento. Em suma, a ecologia possuimais de um referencial teórico (como a maio-ria dos debatedores justamente sublinha) e ho-je, como no passado, as relações entre tais refe-renciais continuam em conflito, sobretudo noque diz respeito à conceituação do objeto na-tureza. Assim , por exemplo, a ecologia das po-pulações (surgida na década de 20 e que tevecomo um dos seus propositores, H. A. Gleason)possui uma representação de natureza total-mente distinta da ecossistêmica. Os adeptos daabordagem individualista rejeitam a visão ho-lística, por estar associada à corrente ecossistê-mica, apontando para os riscos de um retornoao vitalismo e de perspectivas anticientíficas.Assim sendo, cabe esclarecer que não ousaría-mos (sic) erigir nenhuma ‘nova ciência eco-lógica’ (como parece sugerir o debatedor), mastão somente discutir alguns aspectos relevan-tes do debate ético em torno das decisõesatuais com relação à ‘tutela da natureza’. Umaúltima observação: se é verdade que a cons-ciência ecológica antecede a obra de Aldo Leo-pold (cuja primeira versão é de 1933), é corretohistoricamente afirmar, como fizemos, que elepode ser considerado o fundador da ética na-turalista, ou ambiental, assim como é entendi-da pela ética contemporânea.

Sem entrar no mérito do tom adotado pelascríticas feitas por Fernando Dias de Avila-Pires,reconhecemos seu largo conhecimento e eru-dição em campo ambiental (e até na MPB), quenos ajudou a esclarecer melhor algumas ques-

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tões propriamente atinentes à ciência ecológi-ca. Entretanto, cabe-nos responder que, apesardos limites conceituais e metodológicos disci-plinares existentes, buscam-se, no campo cien-tífico, filosófico e na práxis, referenciais quepossam responder às questões levantadas pelo‘mal-estar ecológico’ atual. Neste sentido, aciência ecológica é apenas mais uma destas re-ferências. Concordamos com o autor que pre-cisamos de ‘pesquisadores e professores sérios’mas, acrescentaríamos, sobretudo ‘éticos’, querdizer, preocupados com os desdobramentosmorais resultantes da produção e aplicação do‘saber-fazer’ tecnocientífico em prol de umasociedade menos injusta, mais autônoma epluralista. Concordamos ainda sobre a neces-sidade de se distinguir ciência ecológica e eco-logia política para não ir buscar arbitrariamen-te as soluções desta naquela. Com efeito, issoimplicaria incorrer naquela que, em ética, é co-nhecida como falácia naturalista e num retor-no a posições de tipo jusnaturalista, impropo-níveis num mundo secularizado e tecnocientí-fico como é o nosso. Neste sentido, o jusnatu-ralismo pode ser considerado como um verda-deiro freio à própria cultura tecnocientífica,pois consiste em avaliar a legitimidade da or-dem social conforme sua adequação a uma su-posta ordem natural das coisas que, como vi-mos, é indefensável nas sociedades seculariza-das e democráticas contemporâneas. Esta ob-servação é relevante, pois a tendência em com-parar a ordem social à ordem natural (tendocomo modelo o corpo humano ou o meio am-biente) é uma tendência antiga do pensamen-to, que não está prestes a desaparecer. De fato,ela legitima, de regra, posições conservadoras,mas não podemos esquecer que foi utilizadatambém pelo pensamento progressista, a co-meçar pelos revolucionários jacobinos (quedeclararam os direitos humanos como inalie-náveis porque naturais), e pelo socialismomarxista (que se legitimou pela sua cientifici-dade, isto é, pela conformidade da ordem so-cial ao decorrer natural e inevitável do proces-so histórico rumo ao progresso).

Neste sentido, é importante a observaçãode José Maria de Almeida Jr. quando, depois deter lembrado os vínculos existentes entre di-mensão política e dimensão ética na questãoecológica, aponta para a necessidade de sepensar a dimensão da singularidade dentro daprópria questão ecológica.

As críticas de Alpina Begossi parecem diri-gir-se também à ênfase dada à ecologia deecossistemas, sobre a qual tentamos nos expli-car anteriormente. Mesmo neste caso, cabe res-saltar que não desconhecemos as outras ver-

tentes da ecologia citadas pela autora, nem,evidentemente, a relação com as ciências so-ciais pertinentemente destacada por ela. Preci-samos apenas que o ponto de vista em questãono nosso trabalho não é especificamente o dasCiências Sociais, mas o das Ciências Morais. Épor isso que destacamos a relação da questãoecológica com a filosofia, em particular, com ocampo interdisciplinar da ética aplicada, co-nhecido como ética ambiental. No que diz res-peito ao ponto de vista não antropocêntrico,supostamente adotado pelas ciências naturais,valem as considerações feitas acima. Mas, poroutro lado, concordamos com a autora quandodistingue ecologia e ciências ambientais, des-tacando-se que o saber do ecólogo (especialis-ta na ciência ecológica) distingue-se daqueledo ecologista (defensor da causa ecológica).

Uma importante sugestão nos vem do co-mentário ‘telegráfico’ (mas nem por isso me-nos interessante) de Emílio F. Moran, que la-menta não termos incluído a discussão sobre aeconomia ecológica (recente disciplina que in-corpora conceitos derivados da ecologia e umadas correntes econômicas que tratam das in-ter-relações entre economia e meio ambiente).A este respeito, podemos sucintamente citaralgumas das correntes existentes: a EconomiaAmbiental (título de um livro de David Pearce,de 1976), que é a mais próxima da teoria eco-nômica neoclássica ao utilizar técnicas de aná-lise de custo/benefício e insumo/produto e/oucontabilização, tanto nas políticas ambientais,como nas questões ligadas à poluição e aos re-cursos naturais; as abordagens desenvolvi-mentistas da economia do meio ambiente, quetratam, principalmente, da análise dos estilosou modelos de desenvolvimento, procurandoproduzir propostas alternativas para os paísesditos dependentes – dentre os adeptos destacorrente, destaca-se Ignacy Sachs e a proposi-ção do ‘modelo de ecodesenvolvimento’ –; aeconomia ecológica propriamente dita, quebusca conciliar métodos quantitativos como osformulados dentro da economia ambiental,mas apresenta uma proposta mais abrangenteao ampliar o conceito de sustentabilidade e aoaplicar o conceito termodinâmico de entropiapara análises econômicas, como consta no tra-balho pioneiro desenvolvido por N. Georges-cu-Roegen.

Moran lembra-nos que a quantificação e ataxação ambientais podem, dentre outras al-ternativas, ser utilizadas como instrumentocomplementar para orientar o uso dos recur-sos ambientais. A França, por exemplo, desde adécada de 60, instituiu a cobrança de taxas (re-devances) baseadas no princípio conhecido co-

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mo poluidor-usuário-pagador, aplicado ao usodos recursos hídricos, e, recentemente, no Bra-sil, foi aprovado um projeto de lei semelhanteao sistema francês. Este exemplo introduz-nosmais especificamente à vertente relacionadacom nosso enfoque, quer dizer, à vertente queutiliza os instrumentos da ética para criticar aeconomia ambiental. A este respeito podem-secitar alguns ‘clássicos’ como Kelman (1981),Kneese & Schulze (1985) e Sagoff (1988). Con-tudo, esta vertente já tem um campo discipli-nar relativamente consolidado, conhecido co-mo ética dos negócios (business ethics), razãopela qual não entramos nela, apesar do seuinegável interesse para a própria ética ambien-tal.

Na contribuição de Ana Amélia P. Boischio,destacamos sua distinção em três dimensõesda questão ecológica (a acadêmica, a ambien-talista e a governamental), assim como o fatode ter lembrado os aportes da informática, queabre novas possibilidades para uma aborda-gem complexa da questão. Contudo, ao co-mentar as teses de Katz e Oechsli, que permiti-riam supostamente ultrapassar o ponto de vis-ta antropocêntrico (ou ‘androcêntrico’, comoparece sugerir a referência ao best-seller de Ra-chel Carson?) pela obrigação moral para com anatureza e os ecossistemas, não fica muito cla-ro como este ponto de vista poderia ser cons-truído sem o concurso, mesmo descentrado e‘generoso’, do humano. Acreditamos que umaética não antropocêntrica pode decidir não sê-la, mas este é ainda, rigorosamente falando,um ponto de vista antropocêntrico.

Resumindo, no que diz respeito às explica-ções e conceitos de natureza, estes estão sem-pre associados às visões de mundo e sujeitosaos desejos e vicissitudes da condição huma-na. Ou seja, como comenta Barbosa, a polisse-mia do termo natureza deve-se ao fato de esteser um ‘construto humano’; do ser humanoconceber-se como ser natural; como criador deinstrumentos e artifícios; como ser de lingua-gem e cultura. Em suma, um ser em constru-ção de si mesmo e do mundo (como diria Pia-get).

Neste sentido, num futuro próximo, o ad-vento da biotecnociência (com o surgimentodas biotecnologias de segunda geração asso-ciadas às ciências da informação) (Schramm,1996) pode modificar ainda mais a idéia de na-tureza, reinventando o seu sentido e o da pró-pria natureza humana. Como afirma justamen-te Barbosa, “a tecnociência [ou a biotecnociên-cia] é a reinvenção em ato da natureza e do ho-mem”. Assim, podemos intuir que talvez este-jamos entrando nesta nova fase, à qual, dificil-

mente, as sociedades secularizadas e comple-xas renunciarão. Como resultado, surge a ne-cessidade de se tomar um posicionamento crí-tico e imparcial em face dos riscos e potencia-lidades que surgem, adotando uma atitude eti-camente responsável, propiciada pelo paradig-ma bioético, visto como referencial para a pon-deração dos problemas morais resultantes dosnovos poderes (ou ‘biopoderes’ como sugeriuFoucault) do saber-fazer na época de vigênciado paradigma biotecnocientífico.

Para concluir, gostaríamos de destacar oolhar ‘clínico’ de Jorge Valadares, que apontapara a possibilidade do “desenvolvimento daconsciência do que seja o caminho do humano”e para os riscos de uma “re-volta da ordem dorancor, acionada por uma necessidade vividano presente [que] pode levar os sujeitos a umapassagem ao ato, onde gestos impensados (...)podem ser, às vezes, violentos, impedindo a evo-lução do pensamento”.

HÖSLE, V., 1991. Philosophie der Ökologischen Krise.München: Beck Verlag.

KELMAN, S., 1981. What Price Incentives? Economistsand the Environment. Boston: Auburn House

KNEESE, A. V. & SCHULZE, W. D., 1985. Ethics and en-vironmental economics. In: Handbook of NaturalResource and Energy Economics (A. V. Kneese & J.L. Sweeney, eds.), vol. 1, pp. 191-220, Amsterdam:North Holland.

SAGOFF, M., 1988. The Economy of the Earth: Philoso-phy, Law and the Environment. Cambridge: Cam-bridge University Press.

SCHRAMM, F. R., 1996. Paradigma Biotecnocientíficoe Paradigma Bioético. In: Biosafety of transgenicorganisms in human health products (L. M. Oda,ed.), pp. 109-127, Rio de Janeiro: FIOCRUZ.