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A TRADIÇÃO DO 13 DE MAIO NO BAIRRO DO QUILOMBO HERMES RODRIGUES NERY A festa da dona Luzia em louvor a São Benedito e à Princesa Isabel

A tradição do 13 de maio no Bairro do Quilombo em São Bento do Sapucaí

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Artigo do Professor Hermes Nery - A tradição do 13 de maio no Bairro do Quilombo em São Bento do Sapucaí

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A TRADIÇÃO DO 13 DE MAIONO BAIRRO DO QUILOMBO

HERMES RODRIGUES NERY

A festa da dona Luzia em louvor a São Benedito e à Princesa Isabel

Vista do Município de São Bentodo Sapucaí, a partir do alto da

antiga Serra do Quilombo

“Mas o próprio Ditinho Joana diz que São Bento do Sapucaí é quase umcéu, porque é feito de gente, e aí é preciso paciência e talento, para a

convivência, pois gente demanda trabalho e cuidado, e a vida cá na terranão é dada pronta, exige trato, e há o perigo do desmancha-prazeres

enciumado entornar o caldo e azedar o que era doce, por isso é quase céu,pois só lá é que o encanto será perfeito, e a gente toda estar em festa.”

Hermes Rodrigues Nery

Vista de parte da praça doBairro do Quilombo

No exercício da Presidência da CâmaraMunicipal (no biênio 2009-2010), entre váriasações de valorização da cultura e da história doMunicípio, foi significativa a recuperação dasatas antigas da Câmara, desejando obtersubsídios para escrever apontamentos sobre asorigens e o desenvolvimento de São Bento doSapucaí. Meus assessores disseram que a maisremota era de 1957, e que as demais estavamdispersas, muitas delas perdidas numa enchentede 1945. Conversando com um e com outro, ex-prefeitos, pessoas idosas, professores, etc.,conseguimos localizar as atas originais, desde aprimeira, de 1858.

Contratei paleógrafos de Pindamonhangabapara transcrever especialmente o primeiro livro(até 1868), e pude então constatar informaçõespreciosas sobre o cotidiano da segunda metadedo século XIX, e entendi claramente que osdocumentos, na fonte, falam muito, iluminambastante, sem crostas ideológicas. Pelas atastomei conhecimento de que, em 1866, escravosalforriados foram lutar na Guerra do Paraguai eque na época, já havia referência a um quilombo,que deu nome a um bairro do Município.

1º livro de atas da Câmara Municipal deSão Bento do Sapucaí: 1858 a 1868

Na mesma ata, datada de 12 de abril de1859, faz-se referência a Manoel José da Silva,inspetor da Estrada Municipal denominadaQuilombo, e o mesmo livro menciona VicenteVaz, também inspetor de estrada, “pelo lado doQuilombo”.1

Um dos bairros mais antigos da cidade,“cuja origem estaria relacionada à doação deterras, por parte da igreja, a um grupo de ex-escravos expulsos das fazendas da região,quando da abolição da escravatura no Brasil”2,ate hoje preserva o sentido de comunidade,de raíz profundamente católica. Mas as atascomprovam que a origem do Quilombo éanterior à abolição, e faz parte da história domovimento abolicionista, pois em São Bentodo Sapucaí, durante o período do SegundoReinado, escravos foram sendo alforriados, eos documentos atestam o “bom tratodispensado aos negros, conforme as cartas dealforria, que são dadas de livre e espontâneavontade pelos senhores, não havendo registrode nenhuma compra de liberdade por partedos próprios negros, e muitos receberam

terras de seus senhores, doações registradasem testamentos e até em escrituras públicas”3,como conta Isaura de Lima e Silva, uma dasmais dedicadas estudiosas do bairro.

E ela explica:

“Com a instalação das primeiras fazendasde criar no alto vale do Sapucaí, a ‘paragemdenominada Quilombo’ se tornou uma delase, por ocasião da fundação da freguesia, em1832, as terras já estavam ocupadas e divididasem várias propriedades, conforme escriturasde compra, venda e hipotecas registradas noslivros do 1º Cartório de Notas de São Bento doSapucaí. Assim, em 1832, o Sr. José JoaquimRodrigues vendia terras a Manoel GonçalvesCardoso na ‘paragem denominada Quilombo’,em 1845, possuíam terras na mesma paragemo casal José Cordeiro de Morais e AnnaJoaquina do Espírito Santo. E o ano de 1865,um sítio ‘denominado Qui lombo’ foihipotecado ao tenente Antonio ModestoMonteiro Dias, por Claro Monteiro Moreirae Maria das Dores de Jesus”4.

Com isso, D. Isaura diz ser infundada “aversão de que o Quilombo formou-se comescravos libertos pela lei Áurea, em 1888”5,mas afirma que “é possível que negrosdesvalidos tenham-se abrigado nas terras daIgreja, pois realmente não tinham para ondeir”6. O fato é que se houve uma concentraçãode ex-escravos após a abolição em terrasdoadas pela Igreja, na antiga localidade aindahoje denominada Quilombo, é possível quetenha havido algumadispersão ou migração paraoutros bairros ou até mesmoem outras cidadesespecialmente do Sul deMinas, pois – ressalta Isaurade Lima e Silva – noQuilombo, atualmente “amaioria dos moradores ébranca, com poucamestiçagem e os negros quevivem lá, ou vieram de outrosmunicípios ou os seusantepassados7, como é o casode dona Luzia, nascida em Gonçalves (MinasGerais), em 1932, reside no bairro do Quilombohá mais de quarenta anos e, no transcorrerdestas décadas, “vem assumindo há algunsanos, graças a sugestões de D. Isaura, a tarefa

D. Luzia Maria da Cruz,liderança que

representa umpatrimônio cultural doBairro do Quilomboo

de representar as memórias da escravidão deque o bairro é considerado umrepresentante”8. Sobre a provável dispersão dosex-escravos, especialmente após 1888, a própriaD. Isaura traz dados para entender o que podeter havido: “a incidência de maior número deescravos estava nas fazendas, cuja produção defumo constituía a principal atividade agrícola:Cantagalo, Bocaina, Árias, Bahu e Paiol Grande.Nas demais, onde predominava a criação do

gado, o número deles émenor, pois é uma atividadeque exige pouca mão-de-obra, sendo a mesma supridapelos próprios donos e seusfamiliares”9. É possível,portanto, que escravosalforriados desde a fundaçãode São Bento do Sapucaí, aospoucos fossem seconcentrando na “paragemdenominada Quilombo”10,especialmente depois daguerra do Paraguai e mais

ainda na década que antecedeu a Lei Áurea,formando um quilombo protegido pela Igreja,ainda mais depois da Abolição. E que no iníciodo século XX, muitos foram buscar trabalho nasfazendas de fumo, que já em 1895, “era um dos

produtos então cultivados com sucesso noMunicípio”11.

Isso pode explicar o fato de um séculodepois o bairro possuir uma população demaioria branca, fato este que não invalida atradição do próprio nome, de ter sido formadoinicialmente por negros que obtiveram a sualiberdade ainda antes do glorioso 13 de maio.

“Antes da Lei Áurea de 1888, quandoos horrores da escravidão ganharam vultoe as estrofes inflamadas de Castro Alvesacenderam nas almas bem formadas osmais justos sentimentos de revolta,Francisco Esteves sentiu-se compungidoante o quadro tão vividamente descrito docativeiro e, contando com o seu grandeprestígio, seguiu os passos gloriosos deAntonio Bento e Luís Gama, vendo embreve, em quase todo o Município, graçasao seu esforço, centenas de negroslibertados”12. As atas falam, portanto, numnúmero expressivo de escravos libertos. “Asatas da Municipalidade da Câmara de SãoBento contam que, em março de 1888, doismeses antes do decreto da princesa Isabel,Francisco Esteves, depois de obter o

As atas falam emum número

expressivo deescravos libertosem São Bento do

Sapucai

consentimento por escrito de todos osfazendeiros e senhores de escravos de suacircunscrição m unicipal, reuniu o povo napraça fronteira à edilidade e, da sacada,entre vibrantes aplausos, proclamou aliberdade incondicional dos negros, fazendoler, um por um, os nomes dos beneficiadose as cartas de alforria subscritas pelosproprietários”13.

Desde 1810, o Brasil comprometera-seem acabar com a escravidão, mas oprocesso político foi complexo, porque erapreciso preparar o País para tão significativamudança. Houve pressão de grandesproprietários rurais, que resist iram edificultaram a aprovação da libertação dosescravos, cr iando obstáculos noparlamento, ameaças e um temorinfundado de desestabilização social. ParaJoaquim Nabuco, a independênciaproclamada em 1822 só seria “completadapela abolição”14. José Bonifácio, em 1823,chamou a escravidão de “cancro mortal queameaçava os fundamentos da nação”15. Omovimento foi lento e gradual, exigiumobilização tanto dos senhores quanto dosescravos, e havia o risco de uma eclosão social,

Francisco Esteves,pai de Plínio

Salgado, chefepolítico local,

libertou escravosantes da Lei Áurea

A Igreja Nossa Senhora doRosário, marco zero da

cidade: feita por escravospertencentes à Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário edos Remédios

a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidosdurante a guerra da Secessão, ou mesmo “arevolução escrava do Haiti”16 , pois “em meadosdo século XIX, não havia nenhuma garantia deque o fim da escravidão no Brasil se daria embreve. Nas regiões cafeeiras do Sudeste,especialmente nas províncias de São Paulo,Minas Gerais e Rio de Janeiro, a escravidãoganhou força com o crescimento dasexportações de café. Era de interesse dosfazendeiros de café que a escravidão seprolongasse o máximo de tempo possível.Políticos das regiões cafeeiras fizeram de tudopara impedir qualquer medida legal que levasseà abolição imediata. Alegavam que a aboliçãoprovocaria crise econômica, pois a grandelavoura não suportaria o impacto da perda dosbraços escravos.

Em 1867, Nabuco de Araújo, pai do futuroabolicionista Joaquim Nabuco, afirmou que aabolição imediata “precipitaria o Brasil em umabismo profundo e infinito”17. Muitos achavaminclusive que “seguindo as determinações da leia escravidão não acabaria tão cedo no Brasil.”infinito”18

Desde então, alguns abolicionistaspartiram para ações mais ousadas, estimulandofugas ou dando esconderijo a escravos fugidos,impedindo a venda para outras províncias ecriando inúmeras situações para inviabilizar otrabalho cativo nas cidades. Em várias delas osabolicionistas formaram redes de ajuda aescravos fugidos, enviando-os para outrasprovíncias ou os escondendo em locais onde nãopoderiam ser facilmente localizados pelapolícia.19

Reunidos na sede da irmandade negra deNossa Senhora dos Remédios, os caifazescontavam com diversos colaboradores nacidade de Santos e São Paulo que recebiam eacomodavam em esconderijos os fugitivos.Nesse sentido, a precisão decisória da princesaIsabel em seus períodos de regência, contribuiupara que a vitória do abolicionismo fosseobtida pela via institucional, e semderramamento de sangue. Daí o incentivo quedeu ela própria alforriando muitos escravos eestimulando os proprietários que iam tomandoconsciência de que não haveriadesenvolvimento da nação brasileira, sem a

A or igem do bairro do Qui lombopode estar relacionada a rede dea juda de escravos fug idos oulibertos, sob o amparo da Igreja, queauxi l iava na compra de a l forr iasatravés das irmandades de NossaSenhora do Rosário e dos Remédios

A Igreja Nossa dos Remédios , no centro dacidade, celebra todo ano, em 15 de agosto, uma

das mais importantes festas religiosas docalendário católico de São Bento do Sapucaí, cujo

nome evoca outra importante irmandadereligiosa que auxiliou os escravos a obterem suas

alforrias ainda antes da Lei Áurea

erradicação definitiva da escravidão em nossoPaís. Pois o próprio Nabuco reconhecia quehavia “uma indiferença absoluta pela sorte dapopulação escrava”20 .

O fato é que muitos escravos foramrecebendo ao longo das décadas de 40-80 doséculo XIX, cartas de alforria e se organizaramem irmandades religiosas. A Princesa Isabelnão apenas assinou a lei libertadora, masesperava implementar a promoção social quegarantisse a indenização e a justa remuneraçãoao negro liberto, para uma efetiva cidadania,mas com a proclamação da República, oprojeto gestado ainda no gabinete do Viscondede Ouro Preto foi solapado, a família realexilada e a crise do governo Deodoro deu inícioa uma fase de grande instabilidade política eeconômica, afetando de modo mais intenso osmunicípios menores, “num período perigosode transição em que o Brasil poderia ser levadoà anarquia”21.

Escravos libertos ornam de camélias aimagem da Princesa Isabel, após a

Abolição, em 1888

A gratidão e devoção à princesaIsabel deu origem à tradicional

festa do 13 de maio

No gabinete da presidência da Câmara,consultando os documentos antigos, percebia atualidade do retrato de São Bento no finaldo século XIX, onde “a politicagem, uma dasmais típicas do país, corroía a cidade em lutasestéreis. A arrecadação municipal era mínima,sugando o Estado mais da metade dessapequena renda. A população não alcançavamil e quinhentas pessoas, composta poragricultores pobres, esfolados de impostos,rarefazendo-se, dia-a-dia, pela emigração defamílias em consequência da transformaçãodas terras de policultura em pastagens, o quetrazia a miséria para os menos favorecidos”22.Não havia uma única farmácia na cidade,quem abriu a primeira foi o pai de PlinioSalgado.23 E nesse contexto de desamparosocial, os ex-escravos encontraram na Igrejaonde se ancorar, daí a tradição católica doQuilombo, ainda hoje de grande influência nobairro. E é fácil de entender porque o escravoliberto, protegido da igreja, manteve-searraigado à devoção católica, pois como

E é claro, a festa do 13 de maio, tradicionalíssima! Por aí se vêque “a veia festiva é intrínseca à religiosidade do sambentista”

explica Gilberto Freyre, “na ternura, namímica excessiva, no catolicismo em que sedeliciam nossos sentidos, na música, no andar,na fala, no canto de ninar menino pequeno,em tudo o que é expressão sincera da vida,trazemos quase todos a marca da influêncianegra”24.E os estudos das atas e dosdocumentos históricos, me levaram aentender que nem todos os quilombos eramde escravos revoltosos, mas aquele de SãoBento do Sapucaí, de modo especial, pode tertido origem em negros alforriados católicosmuito devotos. E hoje esta origem está tãobem representada por dona Luzia e suafamília, que mantém por décadas a festa do13 de maio, em louvor a São Benedito e àPrincesa Isabel.

***

Quando conheci a dona Luzia, umasenhora de quase 80 anos, líder do bairro doQuilombo, especialmente por manter viva atradição do 13 de maio, fui conversar com elaa respeito das origens do bairro e ela mecontou que aquele Quilombo era abençoado,

porque aquela festa existia para homenagearuma santa. Fiquei impactado com aquelacolocação e indaguei. Mas que santa? E elame respondeu, com muita simplicidade eprofunda emoção: a Princesa Isabel. Havia emsua fala, uma forte devoção e um sentimento

de gratidão, havendo, sim, mais que umrespeito tão grande, mas uma veneração.

A festa mantém a promessa feita a sua avóSilvéria, e há muitos anos dona Luzia vemmobilizando a comunidade, com doaçõesprincipalmente de alimentos para o almoçocomunitário (inteiramente gratuito). Logo após,os grupos de dança e música se apresentam napraça em frente a igreja da ImaculadaConceição. “Toda dança de congada representaa devoção que temos à Santa Isabel, que nosdeu a libertação”25, diz com entusiasmo LuziaMaria da Cruz, mulher de liderança natural,afável, trabalhadora, mãe de 12 filhos, de famílianumerosa, com 36 netos e 26 bisnetos, e contadona Luzia: “mais alguns filhos que criei porqueficaram sem mãe. Aqui em casa vem muitacriança. Aqui não falta alegria nem prato decomida para elas. Na festa até da congada elasparticipam”26 .

Salientei em meu discurso de posse:“Tocante a devoção desse povo: na via-sacra daQuaresma, quando vi – pela primeira vez – a

“...em tudo o que é expressão sincerada vida, trazemos quase todos a

marca da influência negra”

Gilberto Freyre

Andor com imagem de São Benedito no dia de sua festa, em São Bento do Sapucaí

cidade do alto do Cruzeiro, antes das seis damanhã; a reza do terço em família, como nacasa de D. Isolina, as procissões e festasreligiosas, a paixão de Jesus Cristo encenadanas ruas da cidade pelo grupo de teatroamador, a coroação de Nossa Senhora pelas

crianças no mês mariano, as novenas ecelebrações nas igrejas dos bairros rurais, oalmoço comunitário no bairro do Quilombo”27

e ainda outros momentos festivossignificativos, como “a Fanfarra Municipal nodesfile cívico do 16 de agosto, o Zé Pereira no

Carnaval, os animados catireiros, a congada, aLira musical Sambentista entrando triunfal naIgreja Matriz, em ocasiões solenes, e tantasoutras alegrias e expressões desse povo quetem como vocação a vida em comunidade”28.E destaquei: “Quem sabe um dia ainda sereifesteiro!”29

A FORÇA DE CONGRAÇAMENTO DASFESTAS POPULARES

As festas populares e religiosas em SãoBento do Sapucaí desempenham um papelfundamental de integração da comunidade,como força cultural unitiva, momento exclusivade congraçamento do povo. Rita Elisa Seda eSonia Gabriel explicam que “as festas popularesque possuem um caráter de diversão para quemas assiste, carregam consigo a devoção religiosa,a solidariedade, a partilha, a reafirmação devalores e sentimentos que são preservados degeração em geração nas famílias e comunidadesàs quais se pertencem, daqueles que asrealizam, conferindo-lhes identidade esignificado”30. E acrescentam que “as festas deSão Bento do Sapucaí começaram a fazer parteda cultura da cidade a partir da construção daigreja Matriz. Eram festas pomposas co mandores bem trabalhados, muita música,foguetórios e pessoas bem vestidas para oevento. Tradicionalmente, consta que a maisantiga festa da zona rural é a do renomadoBairro do Quilombo, em 8 de dezembro,celebrada em louvor a Nossa Senhora daImaculada Conceição; o bairro é rico emmanifestações culturais populares preservandosua linguagem, religiosidade, usos ecostumes”31. Da cidade, a festa de São Bentoocorre desde 1830, “escolhido pelos escravospara padroeiro do lugar”32, celebradasolenemente em 11 de julho, desde 1970, pordecisão do padre Theófilo de Almeida Crestani.

O que há de mais tradicional – no melhorsentido de tradição – são as festas. A cada ano,

os festeiros vão buscar as prendas, organizar asnovenas, os comes e bebes, as cantorias, etc. Eo povo aflui de todos os bairros da zona rural,depois da procissão e da missa, transitam pelaspraças e barracas, colocam a conversa em dia,uns vão ao bingo, outros ao baile, etc., nãotendo outro momento tão forte decongraçamento social. É assim desde o séculoXIX. Eugenia Sereno descreve tão bem o sentidoe o valor das festas:

“O repinique dos sinos sobe para asmontanhas cambiantes entre rojões de lágrimasdo Felisberto, papocos de foguetes-de-três-respostas, foguete de rabo, salva de morteiros,ofertórios, ladainhas, archotes, velas votivas,andores, paus-de-sebo, anjos de doiradas asase vestes miríficas, leilão de prendas e de bois defitas nos chifres, levantamento de mastroenfeitado de fitas e de flores, bandeirinhas, aacenarem boas vindas de fiéis, a fim de concedervez à vida”33.

Lembro-me tanto destas festas, no períododa infância dos meus filhos, quando morava narua Alferes Pedrosa, cuja sacada do sobradotinha vista da Igreja Matriz. E em dia de festa,bem cedinho os rojões anunciavam a alvorada.E íamos com as crianças participar da procissão,e era um mar de gente que seguia pela avenidaprincipal da cidade, e subia a rua da Matriz,adentrando na igreja ao som da Banda LiraMusical. À frente, os andores dos santos. Missacheia, demorada. Ainda antes de terminar, já sesentia o cheiro de pipoca, dos salgados e doces,e novos rojões, enquanto davam-se vivas aossantos e ao povo sambentista.

“Tão bonito que é! Enquanto foguetório devareta pipoca nas alturas para pompa domunicípio ataviado, lá vem, também, banda demúsica no coreto, muita pinga mais capilé nasduas vendinhas de em-frente da Matriz.Comeres e beberes ao ar livre, nas tendinhasde folha de catulé, taboa e cipó-folhoso. Pé-de-moleque e arroz doce de tijelinha, pastéis nascestas, cocadas de toda cor, que as vendeirascrioulas tiram das caixas envidraçadas. (...) Uma

Dia de festa de Nossa Senhora da Conceição, no bairro do Quilombo

festança vistosa, mesmo, de cores! E dilúvio decriançada de todo o jeito, de todo tamanho,como nunca não se viu. Por causa do ‘crescei emultiplicai , que Deus disse. Um pecadãodesfalcar o mundo! Por isso é criança no jacá,criança mamando, criança agachadinhacomendo camelinho de doce – um mirréis cada camelinho – e bichinho sabiá de rabinhoarrebitado, criança em exorbitados ventres,

chegando, criança escarranchada nos quartos damãe, criança a cavalo na cacunda do pai, criançano paninho, criança de cócora, atrás da árvorefazendo necessidade, criança a mancheias,aprazendo a multiplicação da humanidade”34.Em uma de nossas conversas, Ditinho Joana, oartista maior do Quilombo, artesão esmerado elíder da comunidade, contou-me em dia deeleição, a criançada gostava de ir à cidade,

porque tinha almoço de graça, e doces e balas,que o Padre Pedro distribuía a todos. E tambémnas festas, o que mais gostava mesmo era oarroz doce. “Almoço tem que ter sobremesa”,disse dona Luzia, na festa do 13 de maio, queparticipei em 2002, com meus filhos pequenos,enquanto cortava pedaços de abóbora.

E o calendário de festas, ao longo do ano,é extensíssimo:

“Em São Bento do Sapucaí , a tradição dasfestas populares e religiosas permanece sob oscuidados da população. O calendário anual de

ventos religiosos percorre de janeiro a outubroe tem seu ponto alto em 25 0de dezembro como Natal. O calendário abaixo demonstra como atradição é forte na cidade: em janeiro – Festade São Sebastião – bairro do Paiol Grande; abril– Festa de São Benedito – cidade, na igreja deSão Benedito; maio – festa de São José – bairrodo Serrano São José, festa de Santo Expedito –cidade, na igreja matriz, Festa de Santa Rita –bairro da Bocaina, festa de São Paulo – bairrodo Paiol São Paulo; junho – festa de Santa Maria

– bairro do Cantagalo, festa de Santo Antonio –cidade, na igreja de Santo Antonio , festa de SãoPedro – bairro do Paiol São Pedrio; julho – festade São Bento – cidade, Padroeiro na IgrejaMatriz, festa de Santo Antonio – bairro dos Dias;agosto – festa de Nossa Senhora dos Remédios– bairro do Torto e na cidade, festa da SagradaFamília – bairro do Serrano; setembro – festado Sagrado Coração de Jesus – bairro doPinheiro, festa Santa Cruz – bairro do Baú, festade São Tarcísio – bairro do Sítio; outubro – festade Nossa Senhora Aparecida – bairro doSerrano, festa de Santa Terezinha – bairro do

Monjolinho”35. E é claro, a festa do 13 de maio,tradicionalíssima! Por aí se vê que “a veia festivaé intrínseca à religiosidade do sambentista”36

É bonito de se ver o Quilombo!

Foi no bairro do Quilombo que vi pelaprimeira vez os minúsculos e encantadoresvagalumes, luzentes no pisca-piscacontagiante, em meio ao esplendor da noiteestrelada. “Vaga-lumes sem conta – ummundo deles – acendem-apagam, aqui e ali,

Almoço comunitário na festa do 13 de maio

Momento único, inesquecível, de sentir apaisagem sambentista, o céu aberto, com a Via-Láctea, ao longe. E os olhos não cansam decontemplar a beleza daquele instante dadivoso.“Àquela hora, na grande altura empoada eapática, as estrelas brilham calmamente: grãosde milho miúdo, dourado, debulhado. Nenhumgrito na calada. Sob as pérolas do serenolacrimoso, nada de surpreendente. Nem umfrêmito de asas nos galhos enfloreados. Nem aaragem mais leve, movendo as folhas

embevecidas... Só ummugido nostálgico de boimisantropo, crescendo dasombra grande, por entrea fosforescente reticênciados vagalumes. E tritri degrilos e assobios decapiau, morrendo aolonge, pelos ermos láembaixo, na longa fita

pelo ar, esquivos bri lhos verdes,batalhãozinho de lume alado mui miudinho,cortejo ininterrupto, mais de bruxuleio que decintilação”37. Acima, uma lua alvíssima numcéu límpido; os bambuzais que rangem quandoo vento sopra mais forte, num canto agudo defazer estremecer quemousa andar por entre aestrada escura que vai docentro de São Bento até ovilarejo bucólico queacolhe a casa do artistamaior da cidade, DitinhoJoana, na praça da igrejaImaculada Conceição.Estrada que “serpenteia as

beiras dos morros”38, e que percorri tantasvezes a pé e de bicicleta, com meus filhos, notempo em que morei no Quilombo (2002-2003). “Desta estrada se avista, ora à esquerda,ora à direita, as várzeas do vale do rio Sapucaí-Mirim, onde se cultivam a mandioquinha-salsa,o milho, o feijão e onde, há pouco mais de dezanos, dizem alguns moradores, plantava-semuito arroz. Da estrada se vêem ainda asencostas dos morros cobertas de bananeirasou de capim para a pastagem”39.

estreita de um caminho. Através da bruma,piscam pirilampozinhos de luz lírica, receosa efugidia . A noite se fez tão clara, tão pura!”40 .

Da porteira da casa de Joaquim Costa(famoso pelos seus carros de boi), com vista aolonge do majestoso Jequitibá, novamente osvagalumes luziam, “de azulado lume incessante”(P.E. 498). Tais seres cintilantes encantaram oantropólogo da USP, Heitor Frúgoli Júnior,incansável e talentoso em suas pesquisas sobreo povo sambentista, que também daquela

O artesão Ditinho Joana prepara o delicioso tareco ou orelha de padre

porteira avistou deslumbrado os pirilamposmiúdos, “pintalgando delicadamente apaisagem, que o medo e a projeção das árvoressombrejam mais”41.

E é bonito de se ver amanhecer,especialmente em setembro, os ipês floridosna campina, cheia de borboletas multicores.E ainda do alto do Trincheira, se contemplaa vista magnânima do vale dos Costa, deímpar luminosidade, e logo adiante acomunidade do Ditinho Joana, como umacaixinha rara de jóias, que São Bento doSapucai traz consigo, e mostra bem contenteaos visitantes, um quase céu – como eleschamam – daquela beleza estonteante queé a vila do Quilombo, onde “há estrelas no

céu, brancas, esparramadas que nem umpulular de pipocas numa grande panela azul”mais”42. Mas o próprio Ditinho diz que équase um céu, porque é feito de gente, e aíé preciso paciência e talento, para aconvivência, pois gente demanda trabalho ecuidado, e a vida cá na terra não é dadapronta, exige trato, e há o perigo dodesmancha-prazeres enciumado entornar ocaldo e azedar o que era doce, por isso équase céu, pois só lá é que o encanto seráperfeito, e a gente toda estar em festa.

Recordações tocantes de quem é mestreda vida, Ditinho Joana e dona Luzia,abrilhantaram a Sessão Solene itinerante, deagosto de 2009, na entrega do título decidadão sambentista a Cleci e Martim Von

Simsom. E mais uma vez, com a praça lotada,dona Luzia entrou com o seu povo, coroasobre a cabeça, dançou e cantou, com alegriae generosidade.

Quem conhece o Quilombo e tudo debonito que tem, sabe de suas tantaspromissões, da natureza dadivosa, da terraboa de se plantar e colher, da gentetalentosa, trabalhadora e cheia de vida earte. Por isso, atrai tanto turista curioso porsaber que lá há “o artesanato desenvolvidoa part ir de matéria prima nãoindustrializada como palha, madeira e fibrasvegetais”43, as melhores minas d’água, equem sabe alguma boti ja cheia deconsiderável tesouro, com poçõesbalsâmicas e curativas.

De dia, sob a claridade límpida, quemsai do centro da cidade e segue pela estradaque passa pelo Trincheira, vai avistando àdireita o bairro de Santa Teresinha, onde ficao Paço Municipal, antigo Hotel Estância. Ecaminha rumo ao Quilombo, “com seus valese colinas e onde há de tudo. Não padecedúvida que vale ser vista com olhos de ver”44.E para quem pôde caminhar, sem pressaalguma, proseando com mestre DitinhoJoana, vai contemplando “através das léguasde barro povoadas de ipês dourados eidênticos, presentes na paisagem, queobstinadamente amarelos viajam ao nossoencontro”45. E as montanhas calmas deliciamas vistas, até chegar ao povoado, ondemestre Ditinho é rei.

Porteira da casa de Joaquim Costa,mestre na arte de fazer carros de boi

24 de agosto de 2009: Entrada de D. Luzia eseu grupo de congada na Sessão Solene

Itinerante no Bairro do Quilombo

Ao chegar à casa de dona Luzia, “cantamgalos nos galhos por entre o bole-bole dasfolhas”46. Há patos e marrecos, e tambémperus. E as imagens de muitos santos seespalham por sua sala: Nossa SenhoraAparecida, Nossa Senhora e o menino Jesus;Jesus e as criancinhas, e Santa Teresinha, asanta mais popular do Brasil. E um quadrode madeira com a seguinte inscrição; “Crê noSenhor Jesus e será salvo. Tu e a tua casa.” Etambém um quadro muito interessanteintitulado; “A Arca – Deus anuncia o dilúvio”,com os animais entrando na Arca de Noé. Enaquela visita que antecedeu a Sessão

Solene itinerante, estavam mestre DitinhoJoana, dona Luzia, maestro Esmar (da LiraMusical Sambentista, Maria Helena,presidente do Artesanato do Quilombo e Gilson Rosa. E dona Luzia falou da festa do 13de maio, da sua família, das dificuldades deem todo ano começar tudo de novo, amobilização da comunidade e o quantoprecisa um apoio mais efetivo do poderpúblico para o trabalho que faz.

Quem melhor compreendeu aimportância cultural da liderança de dona Luziapara a comunidade do Quilombo, foi aantropóloga Maria Ester Pereira Fortes, em suadissertação de Mestrado (2004) aodepartamento de Antropologia do Instituto deFilosofia e Ciências Humanas da UniversidadeEstadual de Campinas, sob a orientação da Prof.Dra. Bela Feldman Bianco, com bancacomposta também pelos especialistas Prof.Dra. Emília Pietrafesa de Godoi e prof. Dr.Heitor Frúgoli Júnior.

Na dissertação “Arte e festa no Quilombo:processo de construção turística de um bairrorural da Mantiqueira, Maria Ester PereiraFortes reconhece o rico patrimônio cultural doQuilombo, especialmente como potencialturístico, elemento fundamental para a

A comunidade participa da tradicionalfesta do 13 de maio

Dona Luzia e sua família: 12 filhos, 36 netos e2 6 bisnetos

promoção de um desenvolvimento socialeconômico a partir da valorização daidentidade cultural. Afirma que “adescoberta do Quilombo, que aconteceu emconcomitância com o interesse despertadopelos trabalhos do escultor Ditinho Joana,acabou por despertar o interesse de D. Isaurapela figura do negro, que ganha espaço nocenário da vida e da história locais”47. Nessesentido, dona Luzia exerce, na história nãoapenas do bairro do Quilombo, mas tambémdo Município, papel relevante. O paradoxode haver no Quilombo uma população demaioria branca o u cabocla “é resolvido pelopróprio Ditinho Joana, quando conta que sua

bisavó era filha de uma escrava com seusenhor e que recebeu dele uma doação deterras logo depois da abolição daescravatura. Esta versão, que justifica osrelatos orais que associam o bairro àpresença de ex-escravos em sua origem, érepetida também por alguns moradores dobairro, parentes de Ditinho, que nasceram eviveram no bairro durante toda a vida”48..Coube, portanto, à “D. Luzia e sua família, o

O casal Joaquim e Luzia: família unidamantém a tradição da festa

papel de representar com mais propriedadea vertente ‘escrava’ das narrativas que seconstroem sobre o bairro e que fazem deleuma das atrações do município”49. E essepapel tem sido afirmado, cada vez mais,com a tradição da festa do 13 de maio.

O aspecto relevante dessa questão nãose trata apenas da presença de dona Luziae de sua numerosa família no bairro, masporque o seu perfil de liderança expressa osentimento e as atitudes dos escravosl ibertos que formaram um qui lomboenraizado na devoção e fé católica. Aocontrário daquele que se revoltou contra osistema da escravidão e obteve a liberdadecomo fugit ivo, optando também a viaviolência para garantir a sua liberdade. OQui lombo, portanto, de São Bento doSapucaí , que a dona Luzia tão bemrepresenta, é justamente por isso: de

negros libertos, trabalhadores honestos,devotos sinceros. Tais princípios e valoressão expressos na celebração que fazem do13 de maio, rememorizando esta opção, por“um qui lombo abençoado”, em que seganha a vida com trabalho e se celebra avida com alegria e festa. Significativo, nessesentido, a festa da dona Luzia ser em louvora São Benedito e à Princesa Isabel, e não aSão Jorge.50 Dado este característico nãoapenas do Quilombo e do Município de SãoBento do Sapucaí, mas da nação brasileira,especialmente neste importante contributocultural do negro em nossa história: a suagraça, a sua espontaneidade, a sua cortesia,o seu riso bom e contagioso. Na Bahia tem-se a impressão de que todo dia é dia defesta. Festa de igreja brasileira com folha decanela, bolo, foguete, namoro.”51

Festa, alegria, sentido de família e

Na foto acima, Gilson Rosa, Marlene, Ditinho Joana, Hermes Rodrigues Nery,Dona Luzia, maestro Esmar e morador do Quilombo

BIBLIOGRAFIA:

1. Atas da Câmara Municipal de São Bento do

Sapucaí, 12 de abril de 1859;

2. Maria Ester Fortes Pereira, Arte e festa no

quilombo : processo de construção turistica de um

bairro rural da Mantiqueira, p. 10;

3. Isaura Lima e Silva, História do Quilombo

4. Isaura Lima e Silva; História do Quilombo

5. Isaura Lima e Silva, História do Quilombo

6. Isaura Lima e Silva, História do Quilombo

7. Isaura Lima e Silva; História do Quilombo

8. Maria Ester Fortes Pereira, Arte e festa no

quilombo : processo de construção turistica de um

bairro rural da Mantiqueira, p. 10;

9. Isaura de Lima e Silva, História do Quilombo

10. Atas da Câmara Municipal de São Bento do

Sapucaí, 12 de abril de 1859

comunidade, tradição e devoção sincera,generosidade e boa prosa, acolhedora eliderança natural, tudo isto faz de donaLuzia representante do melhor que o bairrodo Qui lombo tem de valor humano ecomunitário, por isso, sem dúvida, ela é umpatrimônio cultural.

“Nesse sentido, dona Luziaexerce, na história não apenas dobairro do Quilombo, mas também

do Município, papel relevante (...) Eesse papel tem sido afirmado,

cada vez mais, com a tradição dafesta do 13 de maio. “

“Quem conhece o Quilombo e tudo de bonito que tem, sabe de suas tantaspromissões, da natureza dadivosa, da terra boa de se plantar e colher, da

gente talentosa, trabalhadora e cheia de vida e arte. “

Hermes Rodrigues Nery