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duro e tao lisa, no qual nada se fixa. E tambem urn material frio e sobrio" (1994, p. 117). Nao, os vestigios nao se fixam sobr,e 0 vidro, material que, sintomaticamente, est<i destmado a tel' apagada amemoria de qualquer toque humano que nele se imprima (a diferen<;a do veludo!). Trata-se mesmo aqui da estrategia de assumir 0 rompimento com urn passado que so oblitera e paralisa, de recusar as 9ferendas do passado quando seu peso e intolenivel. E, assim, chegada a hora de negar 0 valor daquiloque nao mais garante a cria<;ao e, seguindo a etica proposta pOl' Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra (Prologo, 1), permitir 0 evento realmente renovador da crian<;a (Heber-Suffrin, Pierre, 1991), dotado da inocencia e do esquecimento, capaz de "wn sagrado dizersim". Reconhecer 0 estado deste "contempodineo nu, deitado como urn recem-nascido nas fraldas sujas de nossa epoca", como se expressa Benjamin, eassumir a insuficienciaea inoperancia deste Ersatz de tradi~ao e saudar positivamente os que se dao a conhecer como mais honestos, justamente por desejarem come<;ar de novo. Come<;arem do zero, como Descartes e Einstein, nas palavras do proprio Benjamin (1994, p.116). Contudo, tambem em outro texto, a saber, "0 Narrador", Benjamin denuncia a perda. Desta vez, perda de uma certa rela~ao autoral com 0 ato de narrar - capacidade que se expressaria pela peculiaridade de aquele que esta a narrar deixar impressa sobre 0 relata mesmo sua presen<;a, a semelhan<;adas maos do oleirocuja presen<;a tambem e inevitavelmente deixada sobre a pe<;atrabalhada. cidade-, e ela propria, num certo sentido, urn forma artesanal de comunica<;ao. Ela nao esta interessada em transmitir 0 "puro em-si" da coisa narrada como uma inforrna~ao ou urn relatorio. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mao do oleiro na argila do vaso. (1994, p. 205) Sabemos que, segundo Benjamin, nao setrata de uma estampagem meramente psicologica aquee deixada sobre a narrativa durante sua transmissao, porem 0 que nos interessa aqui, para alem deste problema, e procurar mostrar o vinculo do tempo da narrativa a urn momenta historico em quea tradi<;ao se mostrava capaz de oferecer respostas a quem Ihe endere<;ava uma duvida, a urn momenta governado pela possibilidade de se expor, para 0 efeito de orienta<;ao de nossas vidas, como se ousava dizer, uma sabedoria. A narrativa, que durante tanto tempo floresceU num meio de artesao - no campo, no mar ena Tudo issoesclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tern sempre em si, as vezes de forma latente, uma dimensao utilitaria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestao pratica, seja num proverbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, 0 narrador e urn homem quesabe dar conselhos. Mas,se dar conselhos parece hoje algo de antiquado, e porque as experiencias estao deixando de ser comunicaveis. Em consequencia, nao podemos dar conselhos nern a nos mesmos nem aos outros. Aconselhar e

(a - ufpe.br · proposta pOl' Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra (Prologo, 1), permitir 0 evento realmente renovador da crian

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duro e tao lisa, no qual nada se fixa. E tambem urn materialfrio e sobrio" (1994, p. 117). Nao, os vestigios nao se fixamsobr,e 0 vidro, material que, sintomaticamente, est<idestmado a tel' apagada a memoria de qualquer toquehumano que nele se imprima (a diferen<;a do veludo!).

Trata-se mesmo aqui da estrategia de assumir 0

rompimento com urn passado que so oblitera e paralisa, derecusar as 9ferendas do passado quando seu peso eintolenivel. E, assim, chegada a hora de negar 0 valordaquilo que nao mais garante a cria<;ao e, seguin do a eticaproposta pOl' Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra(Prologo, 1), permitir 0 evento realmente renovador dacrian<;a (Heber-Suffrin, Pierre, 1991), dotado da inocencia edo esquecimento, capaz de "wn sagrado dizer sim".Reconhecer 0 estado deste "contempodineo nu, deitadocomo urn recem-nascido nas fraldas sujas de nossa epoca",como se expressa Benjamin, e assumir a insuficiencia e ainoperancia deste Ersatz de tradi~ao e saudar positivamenteos que se dao a conhecer como mais honestos, justamentepor desejarem come<;ar de novo. Come<;arem do zero, comoDescartes e Einstein, nas palavras do proprio Benjamin(1994, p.116).

Contudo, tambem em outro texto, a saber, "0Narrador", Benjamin denuncia a perda. Desta vez, perda deuma certa rela~ao autoral com 0 ato de narrar - capacidadeque se expressaria pela peculiaridade de aquele que esta anarrar deixar impressa sobre 0 relata mesmo sua presen<;a, asemelhan<;a das maos do oleiro cuja presen<;a tambem einevitavelmente deixada sobre a pe<;atrabalhada.

cidade -, e ela propria, num certo sentido, urnforma artesanal de comunica<;ao. Ela nao estainteressada em transmitir 0 "puro em-si" dacoisa narrada como uma inforrna~ao ou urnrelatorio. Ela mergulha a coisa na vida donarrador para em seguida retira-la dele. Assim seimprime na narrativa a marca do narrador, comoa mao do oleiro na argila do vaso. (1994, p. 205)

Sabemos que, segundo Benjamin, nao se trata deuma estampagem meramente psicologica a que e deixadasobre a narrativa durante sua transmissao, porem 0 que nosinteressa aqui, para alem deste problema, e procurar mostraro vinculo do tempo da narrativa a urn momenta historico emque a tradi<;ao se mostrava capaz de oferecer respostas aquem Ihe endere<;ava uma duvida, a urn momentagovernado pela possibilidade de se expor, para 0 efeito deorienta<;ao de nossas vidas, como se ousava dizer, umasabedoria.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceUnum meio de artesao - no campo, no mar e na

Tudo isso esclarece a natureza da verdadeiranarrativa. Ela tern sempre em si, as vezes deforma latente, uma dimensao utilitaria. Essautilidade pode consistir seja num ensinamentomoral, seja numa sugestao pratica, seja numproverbio ou numa norma de vida - de qualquermaneira, 0 narrador e urn homem que sabe darconselhos. Mas, se dar conselhos parece hojealgo de antiquado, e porque as experienciasestao deixando de ser comunicaveis. Emconsequencia, nao podemos dar conselhos nern anos mesmos nem aos outros. Aconselhar e

Sergio Oliveira

men os responder a uma pergunta que fazer umasugestao sobre a continua~ao de uma historiaque esta sendo narrada. (...) 0 conselho tecidona substancia viva da existencia tern urn nome.sabedoria. A arte de narrar esta definhand~porque a sabedoria - 0 lado epico da verdade _esta em extin~ao. (1994, p. 200-201)

Esta recolha da experiencia para a apresenta~ao deuma sabedoria nos esta interditada. Esta capacidade detomar 0 passado e continuar a historia que estava sendonarrada, a possibilidade de dar curso a experiencia,integrando-a as nossas vidas e constituindo para as mesmasurn rumo possivel, parecem abolidas - conclusao que ja semostrava explicita em "Experiencia e Pobreza". Contudo, 0

vinculo entre os dois textos nao nos deve sugerir umaproximidade tao intensa nas teses defendidas, porquanto naose apresentani em "0 Narrador", como saida possivel desteimpasse, a assun<;:aode qualquer "nova barbarie". De fato,Benjamin entrevira, naquele artigo, possibilidadeslibertadoras a partir da ado~ao radical desta barbariepositiva, como, bem a proposito, lembra Sergio PauloRouanet:

(...) ao mesmo tempo que estigmatiza 0

empobrecimento da experiencia, que, condenaos homens a perda de sua memoria hist6rica,[Benjamin] percebe 0 potencial politico dessanova sensibilidade, pois ela se caracteriza pelaintensifica~ao da consciencia: uma gesteigerteGeistesgegenwart, que op6e as situa~6es dechoque urn novo aparelho sensorial, capaz de

trabalhar, lucidamente, essas situa~6es, numaperspecti va transformadora. (1990, p. 54)

No entanto, se isto e mesmo verdadeiro, em sewmando aquele texto de 1933, ha motivos, como sugereGagnebin, para se imaginar 0 silencio de Benjamin em tornodesse conceito, passados alguns anos de sua apresenta~ao.podemos, assim, com a autora, imaginar que tera sido "semduvida, a instaura~ao desta barbarie real que proibiraBenjamin de continuar usando uma no~ao que ele tentadefinir positivamente no texto 'Experiencia e Pobreza', a de'nova barbarie'" (2000, p. 62). Contudo, se aquele conceitoem "0 Narrador", nao mais e aludido, reitera-se, ainda,neste texto, a exposi<;:ao do inquietante sintoma daimpossibilidade de estabelecer quaisquer comunica~6es,assentadas na for~a da tradi~ao, entre as dimens6es dopassado e do presente. 0 sintom a, entao, ja apontadonaquele texto de 1933, continua la, a se mostrar, porexemplo, na explica~ao de Benjamin acerca doaparecimento do romance.

Segundo a genealogia tra~ada por Benjamin, 0

romance surge do fato de que urn governo das condutas pelasabedoria ja nao mais vige. 0 romance, exp6e, justamente, aausencia deste governo. "0 primeiro indicio da evolu~aoque vai culminar na morte da narrativa e 0 surgimento doromance no inicio do periodo moderno", diz-nos Benjamin(1994, p. 201). E, de forma ainda mais contundente,apontando para a solidao radical, para 0 isolamento comrela<;aoa urn passado que nao mais contem a promessa dasabedoria, experiencias vinculadas par excellence aoromance, 0 autor escreve:

A origem do romance e 0 indivfduo isolado, qUenao pode mais falar exemplarmente sobre suaspreocupa<;6es mais importantes e que nao recebeconselhos nem sabe da-los. Escrever Urnromance significa, na descrir;ao de uma vidahumana, levar 0 incomensuravel a seus ultimoslimites. Na riqueza dessa vida e na redescrir;aodessa riqueza, 0 romance anuncia a profundaperplexidade de quem a vive. 0 primeiro grandelivro do genero, Dam Quixote, mostra como agrandeza de alma, a coragem e a generosidadede um dos mais nobres her6is da literatura saototalmente refratarias ao conselho e nao contema men or centelha de sabedoria. (1994, p. 201)

Este desenraizamento da palavra comungada,daquele verdadeiro elo de ligar;ao geracional em que seconstitufa a narrativ(l, traz-nos "a solidao do autor, do her6ie do leitor" (Gagnebin, J. M., 2004, p. 62). Solidaoexemplar em Franz Kafka, autor cuja obra, como jaassinalamos, assume da forma mais frontal e corajosa, 0 fimda experiencia e recusa 0 vislumbre reconfortador dequalquer horizonte que, com as promessas apaziguadoras deum novo conteudo positivo fOljado as pressas, minimize acontundencia e as conseqUencias da perda deste elo organicocom 0 passado. A coragem de Kafka estaria justamente,segundo Benjamin, em situar-se a si e a seu leitor nodesassossego desta condir;ao, em nao se evadir dela poralgum atalho, tornado de forma oportunista ereequilibradora, em ai mante-Io a despeito de sua aflir;ao.

A prop6sito deste ponto, Gagnebin lembra umacarta de Benjamin a seu amigo Gershom Scholem, datada de

o Trabalho de COlltar 0 Pass ado ...

12 de junho de 1938, onde aquele critica urn livro de MaxBrod, livro nao suficientemente arguto, ao que parece, parafazer perceber que a literatura de Kafka tern sua forr;a maiorna insistencia com que caracteriza "0 adoecimento datradi<;ao". "Nao se pode falar em sabedoria na obra deKafka", diz-nos Benjamin, e, em prosseguimento, afirmaque "restam apenas os produtos da sua disso.lu<;ao"(Benjamin, W. e Scholem, G., 1993, p. 304). Asslm, aocontrario da visao de Max Brod de urn Kafka votado a umatarefa de ascese, Benjamin nos lembra, naquela carta, quenao deveriamos esquecer que se trata de urn autor cujafar;anha maior esta em representar, de forma exemplar, umaexperiencia malograda. Esta, paradoxalmente, e a suagrandeza: "Nada e mais memonivel do que 0 fervor com queKafka ressaltou seu fracas so" (op. cir., 1993, p. 305). E eassim que deveriamos continuar a entende-lo: como 0

modelo de urn escritor para quem, diante de um mundo emque a experiencia se apagou e a tradir;ao, no que dela resta,se tornou doente, a supera<;ao desta condi<;ao exasperante,onde "nao ha doutrina a se aprender e nem conhecimentosque se possa conservar" (op. Git, 1993, p. 303), por algumanova saida totalizadora, visando a algum alivio, seria vistacom total horror (cf. Gagnebin, 2004, p. 67-68). Aocomentar, entao, esta carta de Benjamin, Jeanne MarieGagnebin assim se expressa sobre a afinidade entre aspercepr;6es do critico alemao e do escritor tcheco:

Essas interpreta<;6es edificantes [oferecidas porMax Brod] eliminam a especificidade da obra,que se deve tanto ao genio pessoal de Kafkacomo a sua situar;ao hist6rica precisa: a saber,essa longa paciencia as vezes desesperada, essa

-...._-------------------~Perspectiva Filos6fica - Vol. II - n° 24 - jullto-dezembro/2005 145

morada exata e atenta no desmoronamento, poinao e possivel, ou, pelo menos, ainda nao :possivel, nem voltar para tnis, para umaharmonia ancestral, nem reconstruir urn Outromundo. Permanencia amarga da qual Kafka naopode nem dizer nem quando teni fim nem setent, verdadeiramente, urn fim. (2004, p. 67)

Contudo, se e mesmo verdade que ern "Experiencia ePobreza", de 1933, e em "0 Narrador", de 1936, 0

esvanecimento da experiencia e a impossibilidade de seforjar uma palavra que consiga incorporar ao presente atradi~ao e sabedoria que esta ja forneceu se apresentamcomo os temas principais de reflexao, outra sera a re1a~aoproposta com rela~ao ao passado no texto de 1940, "Sobre 0Conceito de Historia".

. . As teses que comp5em esse texto querem, agora,redlmlr 0 passado, salva-Io do esquecimento. Despertar osmortos; fazer ressurgir, num novo jogo ainda, 0 que naorecebeu espa~o naquela Historia que se apresenta comototal, naqueles relatos que tern a pretensao de dizer "0 quereal mente aconteceu". Libertar, pOltanto, do olvido aquiloque uma memoria com tra~os totalizadores quis minguar ateo ponto do desaparecimento. E tarefa, portanto, dohistoriador, segundo este texto de Benjamin, aproximar-sedo fragmento que perm"aneceu mudo, emborapotencialmente pleno, e recolhe-Io para com ele contar umao.utra historia; restituir uma configura~ao nova para 0 que,mnda em germe, se apresenta somente como urn caco.Imaginar, enfim, com base no presente, a esperan~a contidanaquilo que,. embora nao tendo sido, permanece comopossibilidade a ser resgatada. Assim se expressa Benjamin:

o passado traz consigo urn indice misterioso,que 0 impele a reden~ao. Pois nao somostocados por urn sopro do ar que foi respiradoantes? Nao existem, nas vozes que escutamos,ecos de vozes que emudeceram? Nao tern asmulheres que cortejamos irmas que elas naochegaram a conhecer? Se assim e, existe urnencontro secreto, marcado entre as gera~5esprecedentes e a nossa. Alguem na ten'a esta anossa espera. Nesse caso, como a cada gera~ao,foi-nos concedida uma fragil for~a messianicapara a qual 0 passado dirige urn apelo. (1994, p.223)

o cronista passa a ter a preocupa~ao, agora, ao narraros acontecimentos, nao so com 0 grande even to, mas com 0

detalhe que nao coube na grande narrativa legitimadora dosvencedores, com a margem, com 0 pequeno, com 0 ex-centrico. Diz Benjamin que este cronista "leva em conta averdade de que nada do que urn dia aconteceu pode serconsiderado perdido para a historia" (2004, p. 23). Contudo,nao nos enganemos com 0 que se pretende com esta novaforma de se contar 0 passado: Benjamin nao quer substituiruma historia totalizadora dos vencedores por outra historiatambem total de quaisquer que tenham sido os vencidos. Ahistoria resgatada nao deve querer aspirar ao lugar daverdadeira narrativa. Afinal, como muito oportunamenteeSclarece, a respeito desse ponto exato, Sergio PauloRouanet, em uma entrevista concedida ao suplementoFolhetim: "A historia dos vencidos e quase identica atradicional - so que em vez das batalhas mais importantes

Sergio Oliveira

tem-se a greve dos chapeleiros em 1917. 0 objeto mUdamas 0 processo e 0 mesmo." (1984, p. 12) ,

A filosofia da historia de Benjamin recusa uma t Iconcep<;ao evolucionista, segundo a qual alguma "march

a

das for<;as~r?~uti:as" revelaria, em algum final dos tempos~quando a vltona fmal dos vencidos fosse alcan<;ada, "a facereal dos acontecimentos". Sua concep<;ao de historia nao serefere a algum fluxo continuo de acontecimentosc~m~rometido por quaisquer telos nem a um progressoatmgldo pOI' algum poder que, alcan<;ada uma suposta"si~tese", ~cab.aria por des velar os fatos autenticos que,enflm, se flxanam como 0 verdadeiro relato historico. Namesma entrevista, Rouanet nos lembra que, em Benjamin,podemos encontrar teses e antiteses, mas certamentenenhuma sintese final. Trata-se de uma historia feita detensoes, apenas de tensoes, e expressa num fluxo muito maissurpreendente. A ideia ai e a de que 0 historiador develiberal' deste fluxo, de uma maneira muito mais criadora eimprevisivel, 0 fen6meno, transformando-o em "m6nada"(d. com 0 proprio texto de Benjamin, 1994, p. 231).

Ora, Benjamin, que nos apresenta 0 texto "Sobre 0

Conceito de Historia" exatamente em 1940, vive em ummundo que the da razoes de sobra para sua descrenva na tesede que a historia, desdobrando-se num tempo linear ecumulativo, implica, com a forva de uma compulsao logica,um progresso em tudo anaIogo ao incremento da tecnica. Ano<;aode urn "progresso da humanidade" imaginado a luz deum tempo percorrido linearmente e 0 grande alvo de suacritica: "A ideia de urn progresso da humanidade na historiae inseparavel da ideia de sua marcha no interior de umtempo vazio e homogeneo. A critica da ideia do progressO

tern como pressuposto a crftica da ideia dessa marcha."(1994, p. 229)

Assim, trata-se de fazel', a partir de entao, paraBenjamin, uma critica a forma com que esta ideia de temponewtoniano (tempo que, a semelhan<;a de urn tapete que sedesenrola, apresenta linearmente os fatos conectados entre sipOl' rela<;oes causais simples) acabou pOl' influenciar 0

trabalho historiografico em sua relat;;ao conceitual com 0

passado. A concep<;ao de historia que Benjamin quer noslegar, no que tern de mais revolucionario, nos demanda urnoutra forma, infinitamente mais sutil, de nos aproximarmosdo passado. Nao mais nos valendo das imagens acalentadaspelo historicismo, que acreditava ser possivel vel' nopassado merarnente urn tempo homogeneo, feito deunidades identicas, con tendo no vazio de que e feito, fatosde igual dura<;ao.

Contrariamente, segundo Benjamin, a historia deveincluir tambem 0 tempo e a perspectiva daquele que esta anarraL Do pass ado, nesta nova concep<;ao da temporalidadehist6rica, da narratividade, com que aquela no<;ao estreitade temporalidade extraida da fisica classica nao seconfunde, espera-se que aquele ainda possa dialogar, sobnova luz, com 0 historiador e, neste dialogo, mostrar-se"saturado de 'agoras'" (1994, p. 229). 0 historiador, assim,deixa de fazer as vezes daquela. figura que se punha "adesfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas deurn rosario" (1994, p. 232). Nesta perspectiva, ele assumeexistir, assume ocupar urn lugar, "aquele presente em queele mesmo escreve a historia" (1994, p. 230), recusando-se,assim, a descrever sua atividade como 0 exerdcio de umasuposta "empatia" com 0 passado "tal como ele foi". No<;aoperigossima esta ultima, a proposito, bastando perguntar,

com Benjamin (1994, p. 225), a fim de nos apercebermos doincontormivel risco nela contido, sobre os valores de qualgrupo repousaria, afinal, a inadvertida "empatia" donarrador que reporta urn conjunto de significados como Se

eles contassem com uma existencia objetiva ...Se, de fato, Benjamin esta correto em afirmar 0

carater comprometido dos despojos hist6ricos que chegamate n6s justamente com as fon;as mais opressoras da culturaem questao, esta pretensa "empatia" pode se constituirapenas na desacautelada identifica~ao com os va]ores deuma cUltura transmitida na continuidade de urn processo delegitima~ao do vencedor. Nas palavras do pr6prio Benjamin,a li<;:aoque nos deveria ser mais cara:

Todos os que ate hoje venceram participaram docortejo triunfal, em que os dominadores de hojeespezinham os corpos dos que estao prostradosno chao. Os despojos sao carregados no cortejo,como de praxe. Esses despojos sao 0 quechamamos de bens culturais. 0 materialistahist6rico os contempla com distanciamento. Poistodos os bens culturais que ele ve tern umaorigem sobre a qual ele nao pode refletir semhorror. Devem sua existencia nao somente aoesfor<;:o dos gran des genios que os criaram,como a corveia anonima dos seuscontemporaneos. Nunca houve urn monumentoda cUltura que nao fosse tamMm urnmonumento da barbarie. E, assim como a culturanao e isenta de barbarie, nao 0 e, tampouco, 0

processo de transmissao da cultura. Por isso, namedida do possivel, 0 materialista hist6rico se

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desvia dela. Considera sua tarefa escovar ahist6ria a contrapelo. (1994, p. 225)

E Sybil Douek (2003, p. 78) quem, agora, evidenciapara n6s, de maneira precisa e contundente, 0 perigo daempatia historicista.

Esta suposta empatia passa ao largo doverdadeiro diaIogo, na medida em que anula asdiferen~as entre seus interlocutores: "Comoobserva Jlirgen Habermas, (...) ela estabelecemuito apressadamente, uma identidade apenasdesejada, e corre assim 0 risco de confundir acompreensao do Outro com 0 encontro semprerenovado do mesmo pelo mesmo" (Gagnebin,1982, p. 64). 0 passado que supostamentedeveria ser ressuscitado, e na realidade negadoem sua alteridade e diferen<;:a.Ao mesmo tempo,e Benjamin e, neste ponto, implacavel, 0

presente e colocado em suspensao: anula-se apresen<;:a daquele que escreve a hist6ria.Mistificadora empatia que, anulando a presen~adaquele que escreve a hist6ria, anula tambemsua capacidade de auto-reflexao critica. 0resultado de tal empatia s6 pode ser a empatiacom 0 vencedor.

Que fique claro que voltar-se para 0 passado, setivermos em conta este texto de Benjamin de 1940, nao e,portanto, atividade que se expresse como tendo umadimensao s6 arqueol6gica, a pretensao positivista de se dizercomo 0 passado, de fato, foi. Comporta, ademais e

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principalmente, uma possibilidade de rompimento com 0

estado de coisas vigentes. lr ao passado nao e tarefa deantiquario, aqui: e assumir 0 compromisso com a recriac;aodo futuro. Neste senti do, este passado esta pleno depromessas. Quando cristaliza uma "configuravao saturadade tens6es", na forma de uma "monada", 0 historiadorentreve a esperanc;a de fazer falar ainda uma outra historiade esboc;ar urn futuro do que teria sido - urn verdadeir~futuro do preterito.

o materialista historico so se aproxima de umobjeto historico quando 0 confronta enquantomonada. Nessa estrutura, ele reconhece 0 sinalde uma imobilizavao messianica dosacontecimentos, ou, dito de outro modo, de umaoportunidade revolucionaria de lutar por urnpassado oprimido. (1994, p. 231)

enquanto arquivo da injustic;a, ela contribui, decerto modo, para perpetua-Ia. Anjo dadestruivao, 0 Angelus Novus nao e somente urnredentor, mas tambem urn iconoclasta, que pararecompor os escombros que se acumulam a suafrente tern que reduzir a escombros osmonumentos dos vencedores. Ele tern afinidadescom 0 "carater destrutivo", que segundoBenjamin "transform a 0 existente em ruinas, naopor causa das ruinas, mas por causa doscaminhos que nelas se formam". (1990, p. 52)

Neste senti do, h3. que se observar, neste momento,que a tarefa de voltqr-se para 0 passado para conta-Io podecomponar, ao lado da dimensiio redentora de urn fragmentoque jaz a espera de sua festa de renascimento (a medida queo historiador devera liberar os cacos do fluxo da historia econfigura-Io uma vez mais), tambem uma dimensiio derompimento e destruir.;iio, de esquecimento ativo de umanarrativa que se apr~sentou como totalizante, a qual cabeni,segundo Sergio PaulQ Rouanet, ao Angelus Novus esfacelar:

Tendo-se em conta a citac;ao acima, "salvar 0

pass ado" tambem parece exigir esquecer e esquecer ativa evigorosamente. 0 Angelus Novus nao so anuncia ou revela:sua afirmavao exige igualmente a demolic;ao dos idolos."Salvar 0 passado" talvez deva exigir mesmo a violenciados que, nao acreditando em narrativas fechadas, saberaoreduzir sua solidez aparente a cacos e a construir, a partirdestes mesmos cacos, novas possibilidades. Apos 0 leao tel',enfim, realizado sua tarefa, comec;a "0 tempo da crianc;a"...

CIORAN, E. M. Exerdcios de Admirar.;iio. [Trad. JoseThomaz Brum]. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

o homem novo tem que emergir das ruinas doantigo. A cultura tern sido, historicamente, acultura dos vencedores. 0 esvaziamento datradic;ao nao e necessariamente urn mal, pois

DOUEK, Sybil Safdie. Memoria e Ex[fio. Sao Paulo:Escuta, 2003.

o Trabalho de Contar 0 Passado ...

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