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    RIO DAS RSMEMRIA DE UMA

    COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO*

    Jean-Franois Vran**

    Em Rio das Rs h um povoado chamado Mucambo. Est a 17km do Rio So Francisco, nas margens do qual vive atualmente a maio-ria da populao de Rio das Rs. Muitos dos moradores dali j ouviramfalar do Mucambo, porm sem nunca l terem estado. um desses

    mltiplos sinais que balizam o espao e a memria. Para alguns, oMucambo o lugar onde viviam pais e avs e onde eles mesmos foramcriados, at que a seca de 1953 os obrigou a se instalar nas margens doRio So Francisco. Desde ento, s se voltava l para buscar o gadoque mocambava no mato. Para a minoria dos idosos que l viviam nopassado, o lugar era to mata que s tinha ona. Depois chegaram osnegros de lngua enrolada, que viviam de caa e de mel. Algunsdeles se tornaram, em seguida, escravos, quando os marotos (os por-

    tugueses) chegaram no Mucambo e mandaram construir a sua casa-grande. Os relatos so confusos, do mesmo modo que tambm confusaa histria oficial da regio... Para as famlias nascidas nas margens dorio, o Mucambo evoca, sobretudo, a origem dos imbelinos estepovo com quem moram hoje , sendo o local de onde se emigrava,em tempos de grande seca, para cultivar as terras frteis do lameiro.Para os jovens, o Mucambo nem sequer um sinal geogrfico, pois as

    * Traduzido do francs por lea Melo da Fonseca.** Doutorando na cole des Hautes tudes, Marseille, Frana.

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    cercas de arame farpado da fazenda vizinha probem o acesso h quasequinze anos.

    Para os militantes negros, os polticos e as associaes envolvi-

    dos na defesa das famlias de Rio das Rs, ameaadas de expulsodesde 1984 por um fazendeiro, no h dvidas de que, no sculo passa-do, o Mucambo era um quilombo. Alm disso, mocambo sinnimo dequilombo, comunidade de escravos fugitivos. , alis, isso que se pro-cura explicar populao de Rio das Rs: que este Mucambo era ummocambo, um quilombo, e que, ento, ela remanescente dequilombolas. De fato, a comunidade hoje oficialmente reconheci-da como comunidade remanescente de quilombo pelo Ministrio daCultura. Em Rio das Rs, j se ouviu falar do Mucambo, mas ignora-seo que vem a ser um mocambo.

    Mas, a propsito, o que um quilombo? A pergunta, freqente-mente feita em Rio das Rs pelos moradores, tinha certa pertinncia,particularmente em 1995, no contexto do ano Zumbi, durante o qual olocal recebeu inmeros antroplogos, jornalistas, militantes e outras per-sonalidades, todos interessados no quilombo do Rio das Rs. O senti-

    mento de confuso que poderia ter sido experimentado pela populaode Rio das Rs na ocasio do seu encontro com a sua imagem decomunidade remanescente de quilombo era compartilhado a um nvelmais geral, pois houve grande agitao poltica e meditica no ano Zum-bi, durante o qual a questo da remanescncia foi se atualizando: oZumbi do Governo um heri morto, celebrado em meio s pesquisasarqueolgicas na Serra da Barriga; o Zumbi do povo negro um herivivo, e ns o celebramos na Esplanada dos Ministrios, foi o que sepde ouvir naquele dia.

    A questo, que tinha colocado em lados opostos os movimentosnegros e o Governo, durante o ano de 1995, com a comemorao doano Zumbi e que terminou com o boicote das cerimnias oficiais, mostrou, para alm das oposies polticas, uma oposio irredutvelentre dois quadros de referncia ao passado.

    Por um lado, havia o Zumbi do Governo, simbolizado pelas pes-quisas arqueolgicas no local do antigo Quilombo de Palmares e pelaentrada oficial de Zumbi no panteo dos heris nacionais. o quilombo

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    dos Lugares de Memria, segundo a expresso de Pierre Nora, paraquem os lugares de memria so, antes de tudo, os restos, restos quetm de ser arquivados, materializados a servio de uma histria que

    marca o luto da memria viva e que busca, no espetculo da diferen-a, o brilho repentino de uma identidade impossvel de achar1. Che-gou-se a sugerir a transformao da comunidade negra do Cafund emum museu da escravido, oferecendo reconstituies histricas das quaisos moradores da comunidade seriam os atores2. Por outro lado, havia oZumbi do povo negro, que vive em cada um dos que lutam, e cujacomemorao se traduz por uma renovao do militantismo afro-brasi-leiro centrado em uma memria tnica ou etnicitria.

    Lugares de memria a preservar ou memria viva do quilom-bismo, as comunidades remanescentes de quilombo tm fornecidoum quadro fsico para esse jogo das lgicas concorrentes de representa-es de um evento passado o quilombo e de construo de umdiscurso histrico e poltico correspondente, diante dos desafios do pre-sente. Essa dialtica a que submetido cada olhar coletivo sobre a his-tria, entre um passado interpretado e um presente interpretante3,

    nunca foi to perceptvel como durante o debate que reuniu, em 1995,militantes, juristas, antroplogos, personalidades polticas, historiadores,etc., em torno do problema da regulamentao do Artigo 68 sobre odireito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombo4:Aos remanescentes dos antigos quilombos que estejam ocupando assuas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estadoemitir-lhes os respectivos ttulos. O texto de lei refere-se a uma cate-goria coletiva que j no existia (o quilombo) para dar juridicamente

    1 Pierre Nora, La fin de lhistoire-memoire, in Pierre Nora (sous la direction de) Leslieux de mmoire, vol. 1 La Republic (Paris, Gallimard NRF, 1984), p. XXIV.

    2 Carlos Vogt & Peter Fry, A descoberta do Cafund: alianas e conflitos no cenrioda cultura negra no Brasil, Religio e Sociedade, 28 (1982), pp.45-53.

    3 Ricouer, citado por Jacky Bouju, Tradition et identit. La tradition Dogon entretraditionalisme rural et no-traditionalisme urbain, Enqute, n. 2 (1996), p. 117.

    4 Estamos aqui nos referindo, de maneira mais especfica, ao seminrio organizado nosdias 26 e 27 de setembro de 1995 na Cmara dos Deputados sobre o Artigo 68 dasDisposies Transitrias da Constituio do Brasil?? (DTCB), que tinha como objetivo

    refletir sobre um quadro de regulamentao especfico, que contivesse definies preci-sas dos termos quilombo e comunidade remanescente de quilombo, a fim de permi-tir a aplicao deste artigo at ento nunca ativado.

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    existncia a uma categoria coletiva que ainda no existia (a comunida-de remanescente). Ento, era preciso, antes de tudo, haver entendi-mento entre os diversos atores envolvidos no debate sobre a definio

    do objeto histrico em questo: O que que se quer dizer, ou ainda, oque que se deveria querer dizer com quilombo?

    No se trata aqui de refletir sobre esta questo5, mas sim de acen-tuar, por um lado, a postura na qual ela se inscreve a construo deuma categoria coletiva , e, por outro, o processo dialtico sobre o qualela reside: a interao entre uma representao do passado, o presenteno qual ela faz sentido, e o objeto que a mobiliza e que ela constri.

    O propsito dessa postura do trabalho de regulamentao deconstatar a sua grande semelhana com a prtica das Cincias Sociais.E, de fato, a partir de um trabalho de construo do seu objeto depesquisa e dos seus instrumentos analticos que o antroplogo vai orga-nizar as suas observaes de campo. A participao importante e,sem dvida, necessria dos antroplogos nesse esforo de definiodas comunidades remanescentes de quilombo no deve, portanto, ocultaralgumas reflexes.

    No contexto do debate sobre a regulamentao do Artigo 68, oscientistas sociais tm fornecido um quadro terico permitindo compre-ender a idia de remanescncia de quilombo. Com justa razo, foi-seinsistindo sobre o fato de que o reconhecimento do carter remanescen-te de uma comunidade no poderia s basear-se sobre o conhecimentoexplcito de um passado de quilombo, tal como ele definido por atoresexternos. Devem ser consideradas, tambm, a existncia de formas e de

    smbolos mais difusos de articulao com este passado, tais como a cons-cincia de uma origem comum, o sentimento de pertencer a um territ-rio, o mito das origens, ou a existncia de um grupo tnico.

    5 Para alguns antroplogos, a idia de remanescncia no deve, necessariamente, refle-tir uma filiao genealgica com escravos fugitivos, mas deve traduzir, de maneira maisgeral, a existncia de um princpio tnico de organizao, na medida em que ele constituia expresso de uma pluralidade cultural e poltica repousando sobre a recusa de um modode dominao, e do qual a proteo deve ser o verdadeiro objetivo da lei. Nesta lgica,foi proposto que se substitusse comunidade remanescente de quilombo por comuni-

    dade de resistncia cultural. Para outros, mais aferrados ao esprito inicial do texto dalei, que era o de reabilitar uma herana cultural desprezada pela histria oficial do pas,a ligao com um antigo quilombo imprescritvel.

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    Neste quadro terico, podemos nos questionar sobre essas carac-tersticas da memria e da identidade, atribudas a priori6 s comunida-des remanescentes de quilombos na construo de uma representao

    poltico-jurdica do objeto histrico quilombo: em que medida elas re-fletem, na verdade, mecanismos identitrios e modos de organizaoexistentes nas comunidades consideradas hoje como remanescen-tes desses quilombos? Por outro lado, nessa luta para a conquista dosentido do ano Zumbi, a que acabamos de nos referir, interessantequestionar em que medida esta sbita construo do quilombo comofato de memria reflete uma memria real do passado, alm de mo-dos de representao da histria compartilhados entre as populaes

    envolvidas.Precisamente, parece-nos que, descobertas no ano Zumbi,

    essas comunidades apenas foram lembradas por sua origem nos antigosquilombos, enquanto comunidades remanescentes. Desse modo, con-siderada como um atributo transparente e mecnico, a ligao com essepassado especfico , em grande parte, pressuposta e est desligada dosprocessos scio-histricos pelos quais essas comunidades foram se de-

    senvolvendo e se organizando. contra esta forma de determinismoque Barth chama ateno, lembrando-nos que categorias de identifica-o, como a memria coletiva, o grupo tnico, etc., no so carac-tersticas primrias e fundamentais de um grupo, mas sim resultados,implicaes do processo de construo e de reconstruo sucessivasdesse grupo atravs da sua histria.7

    So esses mecanismos de construo dos laos sociais de umgrupo, dentro da cronologia da sua existncia, a partir das relaes sociaisque o constituram e das suas relaes sucessivas com o passado, queprocuramos entender durante o nosso trabalho de campo na comunida-de rural de Rio das Rs.

    6 Ficamos cientes de que esta postura a priori inerente ao processo de definio de umaregulamentao jurdica. Ela se apresenta como uma fico jurdica na qual a distensoao real se inscreve como condio necessria definio de uma categoria geradoracoletiva de direitos. A nossa observao se inscreve aqui na perspetiva do pesquisadorpara quem a desconstruo desta fico por um questionamento especificamente

    emic (que leva em conta as representaes das populaes envolvidas) constitui osubstratum da postura cientfica nas Cincias Sociais.

    7 Frederik Barth, Ethnic Groups and Boundaries, Oslo, Universitats Forlaget, 1969.

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    Esta comunidade, na qual ficamos hospedados entre maro de1995 e fevereiro de 1996, est situada no Serto da Bahia, aproximada-mente a 80 km de Bom Jesus da Lapa. Ela se compe de umas 210

    famlias espalhadas em quatro povoados (Rio das Rs, Brasileira, Ca-po do Cedro e Ench), em um territrio de cerca de 15.000 hectares.Vivendo um violento conflito de terras desde 1974, a comunidade de Riodas Rs foi oficialmente reconhecida como comunidade remanescentede quilombo em 1993 pela Fundao Palmares e deveria, em con-seqncia disso, receber os ttulos definitivos de terra, de acordo com asdisposies do artigo 68 das DTCB(desenvolver). A partir dos primei-ros resultados de nossas pesquisas, procuramos nos aprofundar sobre

    as ligaes que essas famlias teriam mantido com o passado de quilombo,em nome das quais as entidades de apoio organizaram a defesa da co-munidade contra as ameaas de expulso. Esta problemtica mereceser precisada luz das hipteses e perguntas que seguem.

    Partindo da hiptese que considera a memria coletiva comoindissocivel das relaes sociais que constituem o grupo para o qual elaapela, esta deve, ento, ser considerada nos contextos sucessivos de

    jogos de troca e de negociaes que constituem a histria social destegrupo8. A anlise da memria coletiva de Rio das Rs passa, assim, poruma srie de questes preliminares. De que grupo se trata? Como queele se formou? Quais so as relaes sociais que o constituram atravsde sua histria e que o constituem hoje?

    Em que medida a ligao que mantm o grupo social atual com opassado se traduz como uma referncia explcita s origens e conser-vao de uma memria oral, articulada a um momento especfico dasua histria, como, por exemplo, enquanto quilombo? Numerosos tra-balhos mostram como um passado especfico rememorado apenasquando adquire um valor no presente, e como esta memria est orien-tada pelo presente no qual ela faz sentido: Os acontecimentos no es-to a apenas a se produzir, dizia Max Weber, mas eles so dotados desentido e sobrevm apenas porque eles significam9. Da mesma manei-

    8 Maurice Halbwachs, La mmoire collective, Paris, PUF, 1968, p. 204.9 Ver Marshall Sahlins, Des les dans lhistoire, Paris, Hautes Etudes, Gallimard, Le Seuil,1989, p. 188. Tambm Halbawachs, La mmoire.

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    ra, o passado de quilombo no a priori um evento memorvel, e aexistncia, ou no, desta memria deve ser compreendida a partir daexperincia ps-quilombo das comunidades. Em que medida, em Rio

    das Rs, a experincia dos antepassados das comunidades remanes-centes foi significativa no curso do sculo que se seguiu abolio daescravido? Na medida em que um grupo teria conservado a memriada fuga da escravido, que significado atribudo a este evento?

    A pluralidade dos contextos de referncia ao passado entre osatores urbanos, militantes, polticos, associaes diversas, e a prpriapopulao de Rio das Rs, coloca finalmente a questo da sua articula-o no contexto da atualidade do conflito de terra. Em que medida ainvocao do passado, como elemento estratgico no quadro de umaluta pela defesa do seu territrio, reorienta o vnculo que a populaomantm com a sua prpria memria e o seu passado?

    Comunidade e territrio: uma perspectiva scio-histrica

    O relato da histria de Rio das Rs ainda est entravado por inmeras

    incoerncias, zonas sombrias e contradies. Por estar estreitamenteligado histria fundiria das grandes sesmarias do Estado da Bahia,ele se articula e se sobrepe a outros registros de realidades histricas,que muitas vezes no se correspondem.

    Tradicionalmente, nesta regio de histria to atribulada e fre-qentemente violenta, o vnculo terra no reflete uma categoria bemdefinida de proprietrio, mas sempre articulou-se a diferentes regis-tros formais e informais de propriedade e de ocupao. No sculopassado, os critrios de propriedade foram se estabelecendo sem refe-rncia sistemtica a um Direito, ademais impreciso e mal conhecido,tendo sido muitas vezes construdo pela ao das armas, ou pela simplesanterioridade de ocupao.

    No caso especfico de Rio das Rs, a histria confusa e muitasvezes contraditria que os arquivos revelam aquela que fala de umacerta propriedade cujos princpios jurdicos e contornos fsicos s sero

    efetivamente definidos na segunda metade do sculo XX. A memriaefetiva do lugar detida por famlias, entre as quais algumas tm ocu-

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    reconstitumos o quadro scio-espacial das famlias, em diferentes mo-mentos cronolgicos, partindo de dois indicadores principais: os vriosmovimentos de migrao para as terras de Rio das Rs, assim como no

    interior do territrio, e as evolues sucessivas da rea matrimonialem funo dessas migraes.

    Os documentos aqui apresentados foram construdos a partir destapesquisa sobre a memria genealgica das famlias, e com a metodologiaseguinte: cada trao nos mapas etnogrficos entre dois povoados repre-senta pelo menos uma relao matrimonial envolvendo um adulto mo-rando hoje no povoado de Rio das Rs10, ou um antepassado dele, se formencionado na sua memria genealgica. Da mesma maneira, os povo-ados s aparecem nos mapas (documentos 1-4) na medida em que elesforam mencionados, no perodo considerado, na histria genealgica dasfamlias. Esses povoados se referem ao lugar de nascimento de pessoasque depois emigraram para Rio das Rs, seja por causa de um desloca-mento familial, ou aps uma aliana matrimonial. Por exemplo, no mapa1, o trao entre a Pituba e a Batalinha OU Batalhinha? traduz o seguinterelato de um morador do povoado Rio das Rs: meu av era nascido da

    Batalinha; ele casou com minha av que era nascida na Pituba, e assimpor diante. Os perodos cronolgicos foram reconstitudos com uma basede trinta anos por gerao. Assim ordenados num plano espacial e crono-lgico, os dados genealgicos recolhidos constituem indicadores permitin-do uma melhor compreenso e ilustrao do processo de constituio dacomunidade, bem como a sua progressiva integrao no quadro scio-espacial regional.

    Documento 1: Antes de tudo, preciso relatar as poucas infor-maes disponveis no perodo 1800-1850, a memria oral da genealogiadas famlias sendo geralmente limitada a duas geraes. O povoado que

    10 Insistimos aqui sobre o fato de que a pesquisa foi feita no povoado de Rio das Rs, queno pode ser confundido com a rea que tem nome de Rio das Rs. O que hoje se chamacomunidade Rio das Rs um conjunto de povoados situados sobre as terras da fazendaRio das Rs. Esses povoados, por volta de uns quinze h cinqenta anos atrs, hoje so

    apenas quatro (Brasileira, Rio das Rs, Ench, Capo do Cedro), por causa das migraesligadas s secas e, sobretudo, dos deslocamentos provocados pelo proprietrio da fazen-da nos anos oitenta.

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    hoje se chama Rio das Rs conta apenas com trs famlias, vivendocada uma sobre espaos distintos e dispondo cada uma de uma terra demigrao durante as cheias do Rio So Francisco. Cada famlia forma-

    va uma rede densa e fortemente constituda, com limites territoriais bemdelimitados. O afastamento de um centro urbano, a independncia ali-mentcia e a pouca diversificao das atividades so fatores que limitamas relaes sociais rede familial, como ilustra a prtica do mutiro, doqual a organizao estritamente interna. A organizao, em volta dochefe de famlia, de relaes densas permite um controle informal sobreos membros e uma mobilizao rpida dos recursos e das solidarieda-des. Ela traduz tambm a incapacidade de se procurar recursos suple-

    mentares fora da rede familial. A importante endogamia das relaesmatrimoniais mencionadas neste perodo confirma a fraca integraodas redes familiais. Observemos a migrao das famlias do Mucambopara Pedra de Cal. So elas que tm hoje o maior peso demogrfico nospovoados da fazenda Rio das Rs.

    Documento 2: A populao da fazenda cresce. Novos focos de

    povoamento perifricos aparecem, principalmente aps migraes in-ternas. Por volta de 1900, h cerca de sete casas em Rio das Rs, cincoem Pedra de Cal, seis no Bom Retiro, quatro na Brasileira e quatro noEnchu. A integrao regional progride sensivelmente. A rede matrimo-nial das famlias de Rio das Rs se estende aos povoados do outro ladodo rio, bem como aos dos arredores de Parateca, ao sul.

    Os povoados de Mucambo, Riacho Seco, Caldeiro e Pau Preto,mais ao leste, constituem uma rede matrimonial distinta. Finalmente,observamos o movimento de migrao regional sobre as terras da fa-zenda e nos arredores, que provm sobretudo dos centros urbanos deCaetit, Vitria da Conquista, Feira de Santana, etc.

    Documento 3: Entre 1900 e 1950, o povoado de Rio das Rscresce, devido essencialmente a numerosas migraes internas (Caipimdo Raiz) e regionais. Por volta de 1920, houve um movimento de migra-

    o no povoado do Mucambo e, mais adiante, a seca de 1953 obrigou asfamlias a migrar para as margens do rio, para Rio das Rs e Bom

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    Retiro. A explorao das fazendas vizinhas e a estabilizao do sistemafundirio conferem, revelia, um regime de ocupao das terras prprioa Rio das Rs. Enquanto a maioria das fazendas da regio vem se do-

    tando de maior infra-estrutura e intensifica a cultura de algodo e acriao, o que se traduz muitas vezes na expulso dos posseiros, a fa-zenda Rio das Rs permanece a reserva de gado de um proprietrioausente. Apesar do controle das migraes, efetuado pelos encarrega-dos (geralmente escolhidos entre os moradores de Rio das Rs), assis-timos ao deslocamento para Rio das Rs das famlias de Agreste, Cal-deiro e Pau Preto, que j tinham laos de parentesco com as famliasde Mucambo emigradas para Rio das Rs no sculo passado (doc. 1).

    As migraes regionais continuam. Trata-se, essencialmente, de homenssolteiros vtimas do desmembramento das grandes fazendas coloniais ede repetidas secas. Os idosos evocam tambm as numerosas famliasde retirantes que atravessavam a regio, morrendo de fome. Vriosfilhos desses retirantes, depois de terem sido recolhidos, vivem hoje emRio das Rs.

    Os fluxos matrimoniais se estendem a outros povoados, particu-

    larmente ao norte, enquanto aumentam as trocas de mulheres entre amargem esquerda e a regio de Parateca. O alargamento importante daeira matrimonial diretamente ligado s ondas sucessivas de migraopara Rio das Rs: alguns descendentes de migrantes escolhem o parcei-ro no povoado nativo dos pais. As migraes se traduzem, ento, poruma reterritorializao, uma extenso das redes de relaes em direoaos povoados de origem11, conduzindo a uma crescente integrao deRio das Rs no seio da regio. O quadro scio-espacial constitudo por

    essas redes fica ento muito espalhado: ele ultrapassa largamente oslimites de uma fazenda de contornos ainda mal definidos. A populaode Rio das Rs constitui um grupo de famlias com origens muitos diver-sas: de acordo com a terminologia de Durkheim, no h, primeiravista, uma solidariedade orgnica resultando dos laos de filiao, cons-

    11 As mulheres de certas famlias tradicionais de Rio das Rs no estavam inicialmente

    accessveis s famlias de imigrao recente. Depois, a crescente impermeabilidade dasfronteiras das fazendas, assim como o enfraquecimento dos mecanismos de controle daautoridade familial, obrigaram a uma redefinio das estratgias de aliana.

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    tituindo, na verdade, uma comunidade. Todavia, mesmo se cada fam-lia conserva um espao e um modo de produo independentes, as rela-es de proximidade se intensificam entre os povoados da fazenda Rio

    das Rs. Emergem atividades coletivas, como a Festa do Divino e osseis dias do fazendeiro, que renem toda a populao uma vez porano, com o fim de entreter os principais eixos de circulao da fazenda.

    Documento 4: Na vspera das grandes migraes provocadaspelo conflito de terra nos anos oitenta, observamos dois processos si-multneos no arranjo do quadro scio-espacial das famlias de Rio dasRs: a) a concentrao das famlias nos arredores do rio, com migra-es cclicas alternativamente para os vizinhos da caatinga ou para asmargens do rio; b) o adensamento das relaes no interior da fazenda,perceptvel essencialmente atravs das relaes matrimoniais muito maisendgenas do que no curso do perodo precedente. Esse duplo processose traduz, ento, pela progressiva adequao entre um espao e umgrupo social especfico. Para ilustrar, 43% das mulheres que viviam, em1996, no povoado de Rio das Rs nasceram l, contra 21% das mes;

    64% das mulheres nasceram nas terras da fazenda Rio das Rs, contra44% das mes. No que concerne aos homens, 57% nasceram em Riodas Rs, contra apenas 20% dos pais; 79% nasceram nas terras dafazenda Rio das Rs, contra 48% dos pais.

    Num contexto de estabilizao do regime fundirio, que tornou asfronteiras mais impermeveis, as populaes da regio tenderam emseguida a se sedentarizar, as ondas de migrao das geraes preceden-tes pararam: o acesso s terras da fazenda era, desde ento, submetido aum controle estrito. Em paralelo, a populao das fazendas vizinhas seestabilizou. As fronteiras de Rio das Rs tendem a tornar-se uma reali-dade fsica. Elas refletem, alm disso, uma realidade social especficapara a populao de Rio das Rs: a no submisso de fato ao sistema deconstrangimento tradicional dos agregados, ao qual as populaes dasfazendas vizinhas esto submetidas.

    Diante desse processo de reforo das fronteiras scio-espaciais,

    o rpido crescimento demogrfico das famlias de Rio das Rs se traduzpela concentrao e adensamento das redes de relaes. A multiplica-

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    o das alianas matrimoniais internas no curso dos ltimos cinqentaanos permitiu totalidade12 dos descendentes de migrantes se integrarno seio das famlias mais antigas. medida que essas alianas foram se

    diluindo, as origens heterogneas foram, ento, progressivamente sendoabsorvidas, tornando-se um grupo de parentesco pela assimilao dosparentes colaterais.

    A partir de 1986, sob presso do novo proprietrio, todas asfamlias residentes nas terras da fazenda Rio das Rs foram obrigadas ase reagrupar no interior da zona que lhes foi atribuda (doc. 4). O povoadode Brasileira cresceu de seis para noventa casas em poucas semanas.Seis povoados desapareceram: Manga, Bom Retiro13, Corta P, Pedrade Cal, Ju, Ariba. Rio das Rs foi dividido em dois e os moradoresforam constrangidos a se reagrupar atrs da cerca de arame farpado.Os espaos de vida e de cultura foram consideravelmente reduzidos. Aconcentrao forada da populao acelerou o processo de sedentariza-o. As atividades perderam o carter cclico e tenderam a se circunscre-ver no interior de cada um dos povoados da fazenda. Este ltimo perodomarcou sobretudo o fim da adequao entre uma famlia e o seu territ-

    rio tradicional. As terras das margens do rio foram divididas, operandouma distino de fato entre os autctones e a populao deslocada.Certas famlias se espalharam, muitas (cerca de um tero) emigrarampara So Paulo, outras reconstruram uma unidade territorial, como osMartins, que se reagruparam no extremo norte de Brasileira. De umamaneira geral, a famlia deixou de constituir o quadro exclusivo de orga-nizao das redes de relao. Novos grupos (religiosos, polticos, etc.)tenderam a reorganizar espaos antigamente monopolizados por redes

    familiais, das quais a funo estruturante perdeu algo da sua eficciadiante dos novos desafios da conjuntura.14

    12 Com exceo de um casal idoso vindo do Rio Grande do Norte, que at hoje vive numacampamento instalado no quintal de uma casa. No quadro das disposies de umaportaria sobre a Comunidade Remanescente de Quilombo de Rio das Rs, o casal teriade ser expulso a ttulo de intruso populao quilombola.

    13 Somente o velho Chico Tom, hoje idoso de 102 anos, permanece no local com a suafamlia.

    14 O que sobretudo perceptvel ao nvel das alianas matrimoniais que transgridem muitasvezes os interditos ou as preferncias das geraes precedentes, levando os ancios aconstatar uma perda de autoridade sobre suas famlias.

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    Espaos, redes e territrios

    No prolongamento desta anlise, algumas reflexes sobre o modo de

    territorializao especfico das famlias de Rio das Rs se impem.As terras que passaram a ser a fazenda Rio das Rs, no fim

    sculo passado, se estendem sobre mais de 50.000 hectares. Esta su-perfcie considervel de mata densa ou coberta de caatinga, sempreconsistiu em um recurso determinante para a populao: durante a es-cravido, porque ela permitiu o esconderijo sem obrigar ao xodo arris-cado da fuga; como modo de adaptao aos ciclos das enchentes e dassecas, pela circulao entre as margens e a caatinga; como modo de

    regulao dos conflitos e das migraes, pela multiplicao perifricados povoados; e enfim, mais tarde, pelo papel das fronteiras da fazendana proteo do territrio das famlias.

    Diante da amplitude das terras disponveis, a expanso demogrficade Rio das Rs e a concentrao da populao no permetro do rio nose traduziram, ento, por uma transformao do modo de territorializa-o, mas sim pela sua reproduo perifrica: os territrios familiais,

    expandveis na medida das necessidades, foram se justapondo e multi-plicando em lugar de se sobrepor, ou mesmo de se enfrentarem umcontra o outro. No houve confronto entre as fontes de autoridades noseio de um mesmo espao, mas multiplicao dos espaos de soberania.No fim do sculo passado, havia quatro povoados. Duas geraes de-pois, eram quinze.

    Da mesma maneira, no houve uma verdadeira transformaoda natureza das redes de relaes, que repousavam essencialmentesobre uma entidade de produo e de consumo baseada na famlia.Este modo de organizao foi bem descrito por Queiroz , quando eladefiniu a famlia camponesa tradicional como uma comunidade deposse e uma comunidade de consumo, alm da comunidade de traba-lho, sob a autoridade de um membro que o pai de famlia. Queirozobserva tambm a forte tendncia centralizao deste tipo de fam-lia procurando se perpetuar por meio de uma ligao vigorosa com

    seus meios de subsistncia (...), e para tanto negando aos membros odireito dela de se apartar para criar situaes scio-econmicas dis-

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    tintas15. Anlises sobre o campesinato baiano mostraram como maisrecentemente, apesar desta estrutura conservadora, algumas comuni-dades tiveram que diversificar a sua produo e transformar a sua es-

    trutura social para permitir a sobrevivncia em terras que se tornaramfracionadas16. Em Rio das Rs, tal no foi o caso; a disponibilidade dasterras favoreceu o status quo da organizao social e econmica. Oalargamento do grupo de filiao se traduziu, quando muito, pelaredistribuio do espao e da rede familial. Antes da associao demoradores criada, em 1994, no contexto do conflito de terra, no perce-bemos uma organizao social alm do quadro estrito das solidarieda-des familiais. Ao contrrio da descrio de Queiroz do bairro rural,

    cuja armadura social se baseia no mutiro e na igreja17, em Rio das Rso mutiro sempre foi familial e nunca houve uma capela nem um espaoqualquer destinado vida coletiva. Tambm nenhum espao de decisocoletivo e de soberania, alm do chefe de famlia.

    Numerosos autores tm mostrado como, em situaes de con-corrncia ou de ameaa para a integridade de um grupo, a mobilizaode uma memria coletiva e a construo de uma identidade coletiva

    podem exercer um papel fundamental na defesa do grupo contra seusagressores18. Em Rio das Rs, at recentemente, as famlias no tiveramque defender um territrio. Com efeito, as fronteiras estavam garantidasdesde o fim do sculo passado pelos limites (ainda mal definidos) dasfazendas Batalha e Rio das Rs, cujos proprietrios pertenciam a umadas famlias mais poderosas da regio. O que nos parece caracterizar asituao de Rio das Rs at os anos setenta , ento, precisamente estaausncia de relaes concorrenciais, tanto no interior do grupo quanto

    no quadro regional. a partir desta reflexo que queremos colocar ago-ra a questo da memria.

    15 Maria Isaura Pereira de Queiroz, O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilizao egrupos rsticos no Brasil, Petrpolis, Vozes, 1973, p. 18.

    16 Silvia dos Reis Maia, Market dependency as subsistence strategy: the small produces inSapeau, Bahia, Bulletin of latin American Research, n 2, vol 10, (1991), pp. 193-

    219.17 Queiroz, O Campesinato Brasileiro.18 Ver, por exemplo, Halbwachs, La mmoire collective e Barth, Ethnic Groups.

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    A questo das origens e a memria da poca de ouro

    A ligao que a populao de Rio das Rs entretm com o seu passadoprincipalmente atravs da sua memria coletiva indissocivel daconstituio de laos sociais a partir de situaes particulares original-mente muito heterogneas. Veremos, de fato, como o espao no qual seforam progressivamente agrupando os intercmbios sociais balizou oquadro de referncia ao passado: as fronteiras do territrio foram setornando tambm as fronteiras da memria. Poderemos nos questionarsobre como, e de que forma, neste movimento de sedimentao de qua-dros sociais sucessivos, um evento tal como a fuga da escravido, res-

    trito a algumas famlias e anterior histria coletiva do grupo atual, podeser portador de um significado social pertinente na construo de umaidentidade coletiva. De uma maneira mais geral, e luz deste processo, importante questionar em que medida a referncia ao passado podeser operacional e efetiva dentro do processo de construo e de defini-o do grupo social de Rio das Rs, tal como ele se apresenta hoje.

    A questo das origens

    diferena dos quilombolas Saramaka da Guiana Holandesa, descritospor Richard Price, em Rio das Rs no h primeiros tempos mticos,que comeariam, por exemplo, com a fuga da escravido do ancestralfundador do cl19. surpreendente constatar o quanto os relatos sobreos primeiros moradores de Rio das Rs so desarticulados, confusos efrancamente difusos. Exceo feita aos discursos bastante etnicizadosque apareceram com o conflito da terra, nos quais a histria local teria

    diretamente a sua fonte na frica, so raras as referncias diretas, quais-quer que sejam, s origens de Rio das Rs ou s dos seus moradores.Fora as famlias recentemente integradas que evocam a poca e o pon-to de partida da sua migrao, a chegada na regio para os outros nose refere, nos discursos, a tempos imemoriais ou a fundadores cujosnomes e relatos de sua epopia teriam sido conservados pela memriaoral, como o caso para os Saramakas.

    19 Richard Price, Les Premiers Temps, la conception de lhistoire des Marrons saramakas,Paris, Seuil, 1994, p. 279.

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    A questo das origens se resume idia de uma ocupao muitoantiga das terras: eu nasci e me criei aqui, a minha famlia toda daqui, meu pai, meus avs so todos daqui , apesar de que a refe-

    rncia aos ndios como tendo sido os primeiros moradores da regiorevela a conscincia de ter vindo de fora. Entretanto, se o pertenci-mento a um territrio hoje afirmado pela ancianidade da ocupao,no h uma tradio oral ligando a conscincia deste passado mem-ria histrica dos eventos e dos homens que a constituram, e na qual aevocao das origens encontraria uma expresso ritualizada.

    Outros indicadores parecem confirmar a fraca memria das ori-gens como modo de referncia ao passado. A identidade familial no serefere a ancestrais fundadores; ela o produto de uma construo re-cente mobilizando signos de pertencimento extrados do presente ou dopassado imediato. Os nomes dos grupos principais de filiao aparece-ram recentemente, no ritmo da concentrao progressiva das famliasnas margens do rio20, e se formaram a partir de personagens contempo-rneos, como Jos Cascavelha, que, por ter sobrevivido mordida deuma serpente cascavel, deu o seu apelido famlia dos Cobras, ou

    como Imbelina, me solteira de muitos amantes, que deu o seu nome familia dos Imbelinos. Observemos que a difuso progressiva des-ses nomes se fez acompanhar de um uso retroativo, pois eles desig-nam tambm a posteriori as geraes anteriores: o pai de Imbelina considerado hoje como um Imbelino. Da mesma maneira, os apelidosno vinculam sistematicamente referncia a uma origem patronmica oude linhagem. A atribuio, tarefa at ento episodicamente cumpridapelos padres por ocasio de batizados, s se generalizou recentemente

    com a multiplicao das viagens para So Paulo, tornando necessria aaquisio de uma carteira de identidade.21

    20 A apario de nomes identificando os grupos familiais faz parte de um processo maisgeral de definio de fronteiras internas medida que as interaes exteriores redefamilial se densificam.

    21 muitas vezes no escritrio da prefeitura da cidade vizinha que se chega a conhecer onome de famlia, depois de um questionamento sobre a paternidade, tornado s vezesdifcil devido ao nmero de filhos naturais em Rio das Rs. assim que, por ter empres-

    tado ao vizinho um nome que ele achava bonito, um chefe de famlia deu suadescendncia o nome de uma outra famlia de Rio das Rs com a qual no tinha nenhumlao de parentesco.

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    A constatao da fraqueza da memria vertical no de grandeoriginalidade. Trata-se aqui de caractersticas em grande parte comunss memrias camponesas, que foram muitas vezes descritas tanto no

    meio rural nordestino quanto no mundo campons francs do sculoXIX. Numa publicao de 1947 sobre a cidadezinha de Cunha, situada,como Rio das Rs, no serto da Bahia, Willems observou que, em setratando de famlias tradicionais, o apelido extremamente valorizadoe a maioria dessas famlias capaz de retraar a sua genealogia atquatro ou cinco geraes. Para as famlias mais humildes, e sobretudoas situadas na zona rural, a importncia dos patronmicos menor eesses ltimos podem ser substitudos, modificados, e se reduzir a sim-

    ples apelidos. Da mesma maneira, Queiroz observou que, no meio cam-pons tradicional, os antepassados no so conhecidos com precisoe que Para alm dos tempos vividos pelos velhos do bairro, as noesse tornam ainda mais vagas e fluidas (...) e o contorno do grupo deparentela se torna impreciso22.

    Enfim, no existe nenhum espao social de encenao ritualizadado passado. No h um altar onde seria invocado o esprito dos antepas-

    sados. Os mortos so enterrados trs horas aps o falecimento, num ce-mitrio de covas annimas23. O culto dos espritos, que conheceu umaexpanso notvel em Rio das Rs h uns quinze anos, no centradosobre a identidade especfica das famlias. Pelo contrrio, aberto para aregio toda (numerosas famlias da fazenda vizinha vm para se consul-tar) e, na verdade, muitos ajudantes e a maior parte dos participantesvm de fora. Por outro lado, os cultos vm de um sincretismo largamentetomado de emprstimo aos centros espritas urbanos, aos quais os trs

    centros locais esto afiliados, e nada no ritual corresponde incorporaode prticas especficas de Rio das Rs (canes, referncias, histria,

    22 Emilio Willems, Cunha, Tradio e transio em uma cultura do Brasil , s/l, Secretariada Agricultura, 1947, p. 57; Queiroz, O Campesinato Brasileiro, p. 53.

    23 Com a exceo notvel das duas famlias mais influentes da fazenda, que dispem de umtmulo de cimento. A existncia muito antiga desse cemitrio testemunha a influnciada Igreja Catlica na regio, mas tambm os seus limites: at uma poca recente, ocemitrio no era nem cercado nem cuidado, o lugar do tmulo s era perceptvel por

    relevos de terra. Em 1995, a CPT e a diocese de Bom Jesus da Lapa iniciaram um dia damemria dos antepassados no contexto do tricentenrio da morte de Zumbi, heriguerreiro do Quilombo de Palmares. Nessa ocasio, o cemitrio foi cercado e limpo.

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    etc.). Esta ausncia de um espao social de encontro entre a memria e osagrado tambm foi observada por Willems. Notando a ausncia de so-lidariedade com os membros falecidos da famlia, ele escreve, a propsi-

    to dos tmulos de Cunha: nenhum signo, cruz de madeira, lpide, coroaou ramo de flores figuram nessas tumbas, revelando, assim, a ausncia deum culto dos mortos comum na civilizao urbana24.

    Mas, assim como Willems depois perceberia, bem como tambmmuitos outros que se interessaram pelo mundo rural, a pouca importn-cia concedida memria dos antepassados e das origens no significaque as sociedades camponesas no tenham memria. Com certeza, Riodas Rs tem uma.

    Fronteiras do territrio, fronteiras da memria

    Se a ligao ao passado no aparente em uma memria genealgicaou clnica, da qual a evocao ritualizada teria uma funo social espe-cfica, ela se deixa, todavia, decifrar de mltiplas maneiras noagenciamento das relaes scio-espaciais do cotidiano. Em Rio dasRs, a memria coletiva se articula horizontalmente: ela se traduz

    pelo perfeito conhecimento das redes de parentesco muito complexasque ligam cada um dos moradores entre si, pela distribuio das terras epelos mltiplos pontos de demarcao que balizam a regio, da reparti-o do gado, das felicidades e das desventuras de cada um, etc.

    No insistimos nessas observaes, que j foram objeto de nu-merosas anlises.25 Essa memria traduz uma ligao ao passado ime-diato, que fornece o contexto e a referncia a partir dos quais o espao

    e as relaes sociais so estruturados no cotidiano. Tambm se trata deuma caracterstica muitas vezes encontrada nas sociedades campone-sas. Fentress e Wickham nos lembram da importncia do espao e dashistrias trocadas entre uns e outros como meios mnemotcnicos damemria.26 Ficando no assunto, Halbwachs observa que se as lem-

    24 Willems, Cunha, p. 57.

    25 Queiroz, O campesinato brasileiro.26 James Fentress & Chris Wickham, Peasant Memorie, Oxford & Cambridge, Blackwell,1992, p. 188.

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    branas se conservam, no pensamento do grupo, que ele permaneceno solo, e a imagem do solo dura materialmente por fora dele; e que elea pode retomar a cada momento27. Torna-se, ento, possvel compre-

    ender como, no caso de algumas famlias que moram hoje em Rio dasRs, as marcas da memria puderam evoluir com as balizas territoriaisdurante as sucessivas fases de migrao.

    A vinculao com o passado acompanha ento este processo; amemria tende a se circunscrever s redes de parentesco e ao espaono qual elas se inscrevem; ela existe em relao direta com o processode constituio do grupo social de Rio das Rs.

    A pesquisa sobre a genealogia das famlias nos permitiu percebermelhor esta homogeneizao progressiva dos contextos de referncia aopassado: entre as famlias de imigrao no incio do sculo, e ao contrriodas famlias de instalao mais antiga, raras foram as que tinham guarda-do a memria do nome e do contexto de vida dos avs. Por outro lado,esses mesmos migrantes podiam associar, a cada marca espacial, histri-as remontando, s vezes, a bem antes da poca da sua chegada. Se amemria no , decerto, exclusivamente local, as fronteiras que ela ultra-

    passa so as das redes de parentesco que integraram progressivamenteRio das Rs no quadro regional. Assim, como foi visto antes, essas redestendem a se concentrar e, com elas, o quadro de referncia ao passado: apartilha das lembranas se baseia na partilha das experincias. Pudemos,vrias vezes, constatar at que ponto, de uma gerao para a outra, qua-dros de referncia ao passado muito heterogneos foram evacuados emfavor de uma memria mais estritamente local e imediata.

    A progressiva constituio de um grupo social no interior de umterritrio para ele exclusivo no basta, portanto, para dar conta da cons-truo de um tempo coletivo de referncia. Por um lado, uma memriaespecfica de uma famlia no poderia ser confundida a priori com atradio coletiva de um grupo, pois, com efeito, algumas famlias tmuma histria bem mais antiga do que outras nas terras de Rio das Rs.

    Por outro lado, a partilha de experincias num lugar de vida co-mum no implica a existncia mecnica de uma memria coletiva.

    27 Halbwachs, La mmoire colletive, p. 142..

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    Assim o resume Pierre Nora: para que haja memria, tem que havervontade de memria. Esta vontade de memria procede largamenteda conscincia de uma identidade coletiva mobilizada em certos contex-

    tos de interao, assim como o veremos a respeito do conflito de terra;ela repousa sobre essa lgica da exterioridade constituinte que Derridadescreveu.28 Lucette Valensi mostrou muito bem como, diante de umaameaa vinda de fora, a identidade nacional marroquina tinha se fortale-cido, exumando, depois de vrios sculos, a memria da sua vitoria so-bre Portugal na Batalha dos Trs Reis.

    Em Rio das Rs, a fraqueza de uma cultura do passado, que aca-bamos de observar, pode, provavelmente, estar ligada ausncia desseseventos mobilizadores da identidade coletiva de um grupo, que, no en-tanto, , em grande medida, ligado pelos laos de parentesco. No setrata de dizer que Rio das Rs era tradicionalmente uma comunidadeisolada. Os documentos produzidos em primeira mo mostram, se fornecessrio, que possvel relativizar essa idia de afastamento, fre-qentemente invocado como uma condio objetiva na antropolo-gia das sociedades rurais. Barth insiste no fato de que, mais do que a

    existncia ou a densidade dos intercmbios, a sua natureza concorrencialque gera a constituio de fronteiras simblicas ou fsicas. A partirdeste quadro de anlise, se torna possvel compreender como o proces-so de territorializao em Rio das Rs, por multiplicao e justaposiode territrios familiais, tem favorecido relaes de similitude e no deconcorrncia entre grupos autnomos e, na origem, heterogneos.

    No mesmo sentido, o livro de Price sobre os quilombolasSaramakas mostrou como, entre cls tradicionalmente em competio,a conservao e a transmisso dos Primeiros Tempos na forma derelatos, ritos, cantos, tinham um papel fundamental de explicao dasrelaes de poder scio-polticas sucessivas, e como esta memria dopassado constitua contrato implcito da distribuio do poder e das ter-ras.29 No que em Rio das Rs no tivesse havido Primeiros Tem-pos, mas a ausncia de relaes de concorrncia entre chefes de fam-lia morando em territrios muito espalhados permite compreender esta

    28 Jacques Derrida, Monolinguisme de loutra ou la prothse dorigine, Paris, Galill, 1996.29 Price, Les Premiers Temps, p. 279.

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    fraqueza de uma memria explcita se referindo a eles, e a inopernciado discurso histrico como quadro de explicao do presente e comomodo de construo da legitimidade. Com efeito, constatamos, nas rela-

    es sociais tradicionais, a ausncia notvel de uma hierarquia institudae de mecanismos formais de resoluo dos conflitos. A disponibilidadede terras, associada a um modo especfico de territorializao, tem exer-cido o papel de uma vlvula de segurana contra conflitos de autori-dade que, em outras circunstncias, teriam amalgamado um grupo socialpor fora da necessidade de gerir essas tenses.

    Conflito de terra e memria coletiva

    Foi no contexto do conflito de terra, que se iniciou a partir de 197730, queo lao com o passado foi exprimido pelos moradores de Rio das Rs naforma de referncias explcitas a um tempo coletivo e especfico. Dessemodo, veremos que a memria foi galvanizada com a ameaa da perdado territrio, ao qual ela to estreitamente associada. Alm disso, oconflito de terra teve um papel de catalisador, porque a questo dapropriedade e da anterioridade da ocupao que ele suscitou, implicou

    necessariamente a referncia a um ordenamento tirado do passado, econduziu as famlias a explicitar, pelo exerccio da memria, uma ligaoentre o passado e a legitimidade da sua presena nessas terras. Dianteda ameaa da perda do territrio, o indivduo sofre, o grupo resiste.Observa Halbwachs: Para que esta resistncia se manifeste, tem queemanar de um grupo.31 A forte resistncia que se organizou progressi-vamente contra o fazendeiro32 testemunha da constituio de um grupoque, pelo exerccio da memria, fica consciente de si mesmo. SegundoPierre Nora, a memria brota de um grupo por ela soldado.33

    30 Ano das primeiras denncias pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da Lapadas ameaas e atos de violncia cometidos pelos homens do fazendeiro Carlos Texeira.

    31 Halbwachs, La mmoire colletive, p. 142.32 necessrio fazer uma distino entre o povoado de Rio das Rs, composto s das

    famlias que moravam no povoado antes do conflito, equeficaram unidas na defesa dassuas terras, e o povoado vizinho da Brasileira, formado por famlias deslocadas pelo

    fazendeiro, que sofreu fortes divises internas. A mobilizaoda identidade coletiva foibastante diferente entre os dois povoados.

    33 Nora, La fin de lhistoire-mmoire, p. xix.

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    Para concluir este ponto, observaremos que esta mobilizao damemria no traduz apenas o sbito despertar do estado latente da re-cordao. Ela corresponde, simultaneamente, a um processo acelerado

    pelo conflito de adensamento das redes de relaes (cf. documento 4), auma partilha objetiva de uma experincia comum, que oferece memriado grupo o tempo coletivo do qual ele tira toda a sua substncia.

    Como foi que se construiu esta referncia a um tempo coletivoentre os moradores de Rio das Rs?

    Na sua anlise da difuso da literatura de cordel no Serto,Fentress e Wickham percebem a importncia dos heris da histria

    medieval europia, tais como Roland ou Robert, antes da popularizaode Lampio. Eles explicam, a partir dessas observaes, que o passadodos camponeses sertanejos tende a ser representado como uma pocade justia e de prosperidade, uma idade de ouro.34

    Em Rio das Rs, no contexto dos anos difceis do conflito, marca-dos pela perda dos territrios familiais e pela promiscuidade impostapelo realocamento dos marcadores, a ligao ao passado se construiucom referncia a uma poca de fartura, a uma idade de ouro, a saber,

    a poca imediatamente antes do conflito. Foi surpreendente ver nasentrevistas que os testemunhos espontneos sobre o passado eram to-dos concentrados neste perodo, cuja evocao refletia, assim, umamemria imediata da experincia vivida. Algumas frases voltam comoleitmotiv: A gente tinha de tudo, a criao era vontade, um botavaroa ali, outro j botava roa l, tinha aquela liberdade de fazer tudoaquilo que a gente queria; o fazendeiro nunca mexia com a gente;

    aqui era um lugar bom; tudo era vontade, etc. Esta poca histricada idade de ouro, qual parece estar limitado o horizonte da memria, um passado coletivo. Este reflete uma vivncia partilhada, tanto pelasfamlias tradicionais, quanto pelas de imigrao recente, e contribui,assim, para unificar, num mesmo contexto de referncia, histrias familiaisoriginalmente heterogneas.

    Ser que a heterogeneidade dos percursos e das histrias familiais apagada por este tempo coletivo de referncia? Temos visto como as

    34 Fentress & Wickham, Peasant memories.

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    migraes se faziam acompanhar da perda das marcas scio-espaciaisoriginais: em que medida o estabelecimento em um novo territrio setraduz pela apropriao da memria deste territrio? Bem alm da ques-

    to da permeabilidade do tempo coletivo do grupo, surge, ento, a ques-to do uso da memria e o contexto no qual este uso intervm. Pareceevidente que as lgicas individuais ou familiais so irredutveis ao grupono qual elas se inscrevem e fazem sentido.

    Sem dvida, o debate ultrapassa o nosso objeto. Contentemo-nosem observar rapidamente que, enquanto a memria se torna fonte delegitimidade e mobilizadora de recursos no contexto do ano quilombo,ela se torna igualmente um novo objeto de confronto entre famlias, cu- jas oposies podem atingir vrias geraes.35 Diante da invaso dealguns territrios, a memria das famlias se torna menos permevel, medida que as fronteiras simblicas se reforam.

    Concluses

    Memria e evento: a histria do quilombo impossvel de achar

    Na atualidade do ano Zumbi, a comunidade Rio das Rs s foi des-coberta na sua qualidade de remanescente em relao a um momentoespecfico do seu passado, o quilombo.36 Lugar de memria, comuni-dade autnoma, sociedade alternativa, descendentes de escravos,protetores do ecossistema, herdeiros de Zumbi, etc.: a partir derepresentaes alimentadas no contexto do presente que este passado setornou visvel e que, simultaneamente, lhe foi atribudo um sentido.

    Mais concretamente, foi com referncia a este passado e ao tex-to da lei que lhe deu uma legitimidade poltica que se articulou a batalhajurdica diante do fazendeiro. igualmente a partir dessas representa-

    35 Constatamos como o tema do quilombo foi reapropriado a servio de brigas recente-mente provocadas pelos movimentos de relocao: algumas famlias se acusam recipro-camente (na presena do pesquisador) de ser da raa dos escravos...

    36 Durante o nosso trabalho de campo, a populao de Rio das Rs recebeu a visita de:umaequipe de televiso da rede ZDF alem, vrios jornalistas e fotgrafos de So Paulo,

    acadmicos de Salvador, um nibus de estudantes da Faculdade de Formao de Profes-sores Guanambida Universidade do Estado da Bahia (UNEB), militantes do MNU, per-sonalidades polticas, etc.

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    es orientadas em torno da idia de preservao do passado que seorganiza a realidade das comunidades remanescentes de quilombo,objetos de um tratamento jurdico e poltico especfico: ttulo de proprieda-

    de coletiva, territrio delimitado, administrao autnoma, promoocultural, zona de proteo do meio ambiente, escolaridade adaptada, cr-ditos especficos, etc.

    Todavia, assim como nos lembram Fentress e Wickham, os gran-des eventos do passado so designados como tais por pessoas externasa muitas sociedades locais, e com certeza, a todas as sociedades cam-ponesas.37 Estudando o mundo campons francs na Idade Mdia, elesnotam que as rebeldias contra os senhores no produziram, para os cam-poneses, a mesma ressonncia a longo prazo e a mesma fora nar-rativa que para os historiadores que analisaram essas revoltas. amesma constatao que faz Lucette Valensi na sua anlise da guerrados Marrocos contra Portugal, a tal da no-memria dessa memor-vel batalha dos Trs Reis.

    Da mesma maneira, em Rio das Rs, a populao no veicula, nasua memria coletiva, referncia a um passado de quilombo. Antes de

    tudo, porque esta memria no centrada por volta de um evento espe-cfico, como a fuga ou os Primeiros Tempos, mas em torno de interes-ses e de preocupaes que se inscrevem como casos prticos imediatosna esfera da vida cotidiana. Como observa Halbwachs, a memria cole-tiva no se constitui a partir de uma histria especfica, mas a partir deelementos tirados da cotidianidade, suficientemente gerais para conser-var o seu sentido e alcance para alm dos indivduos que compem ogrupo num dado momento: a sua natureza impessoal que assegura aotempo social a sua permanncia, e no os seus eventos, que, pelo seucarter excepcional, tambm so os mais datados e especficos dos ato-res e testemunhas imediatamente envolvidos. A memria volta, ento,ao passado at um certo limite, para alm do qual ela no mais signifi-cativa, e este limite se desloca no espao e no tempo em funo dogrupo de indivduos ao qual ela se refere. Assim, como vimos, em Riodas Rs a memria tem uma histria.

    37 Fentress e Wickham, Peasant memories, p. 96.

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    Na sua famosa introduo a Inventing Traditions, quandoHobsbawn se refere ao que ele chama de tradio inventada e suasfunes (coeso social, legitimao e socializao)38, a sua anlise se

    refere a um esquema cognitivo no qual o papel ativo do passado con-dicionado pela sua historicizao, a saber, pela transformao subjetivada memria em elemento ativo do presente. A idia de comunidaderemanescente de quilombo, tal como ela foi revelada e aplicada po-pulao de Rio das Rs, repousa essencialmente sobre esta idia de quea existncia e a sobrevivncia da comunidade depende dessa histori-cizao do seu passado, atravs de uma memria oral, um mito dasorigens, o culto dos antepassados, etc. Parece-nos que se trata aqui

    de modos de referncia ao passado bem especficos, e no exclusivos,que, em todo caso, no nos parecem corresponder ao vnculo muitomais fluido e informal que as famlias de Rio das Rs entretm com asua histria.

    Isso quer dizer que no haveria lugar para uma memria maisntima, individual, na qual a histria especfica de cada famlia seria maisprofunda e impregnada de um passado mais articulado pela volta de

    eventos vividos pelos ancestrais?Existe em Rio das Rs uma memria dos tempos da escravido,

    prpria a certas famlias. H histrias de torturas, histrias de fuga dacasa-grande e de vida escondida no mato, mas estas histrias, das quaismuitas se encontram na histria regional, so relatadas com uma grandeexterioridade; nunca a histria da prpria famlia que se conta, pelomenos nos discursos. Em Rio das Rs, quando as histrias desses ne-gros que viviam no mato so evocadas, elas sempre se referem auma poca de fome e de sofrimento: os negros eram um povo do mato,viviam, como os ndios, de carne de tatu e de mel. Nessa poca, s tinhaera ona, etc. As histrias de fuga pela Passagem dos Negros parasambar e namorar so associadas aos relatos das torturas infligidasquando eram capturados, ou quando as piranhas os atacavam ao atra-vessar o rio. Por contraste, o tempo coletivo de referncia a Rio dasRs o deste sculo de liberdade, desta idade de ouro onde tudo era

    38 Eric Hobsbawn, Inventing Traditions, in E. Hobsbawn & T. Ranger, The Invention ofTradition. (Cambridge, Cambridge University Press, 1983).

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    vontade, que tambm foi um tempo de convivncia pacfica com osfazendeiros. Assim o resume um morador em relao ao conflito quesurgiu depois: a gente no tinha razo nenhuma de desconfiar, os fa-

    zendeiros nunca mexeu com a gente, no.Se um trabalho aprofundado sobre a memria oral nos permitiu

    atingir essas histrias do tempo da escravido, de onde ns observa-dores tiramos a substncia da nossa representao das comunidadesremanescentes de quilombo, fica certo que este passado no valori-zado na memria coletiva da populao envolvida. De acordo com aexpresso de Pierre Nora, no h mais ligao identitria com estamemria, porque ela no lhe era mais significativa, pelo menos at oconflito de terra.

    A confrontao dos sentidos

    Antigamente, no tinha este negcio de comunidade esta observa-o de um velho chefe de famlia reflete uma dupla realidade: primeiro,a importao da idia de comunidade pelos atores externos para se

    referir populao de Rio das Rs que eles consideram como formandouma entidade coletiva especfica; e, segundo, a constituio efetiva deum grupo social, de repente reunido num mesmo espao em seguida aosdeslocamentos.

    O vaivm dialtico entre o quilombo e as representaes locaisse constri sobre a simultaneidade entre uma srie de circunstncias objeti-vas inditas e a apario de um vocabulrio e de um discurso externo aela referido. O quilombo, como expresso de uma resistncia diante deuma ameaa de destruio, referncia direta histria local para as en-tidades, se torna significativo para a populao em relao experinciapresente da luta contra o fazendeiro. Elemento estratgico do processojudicial, tema repentinamente mobilizador de recursos39, e sobretudo ele-

    39 Entre setembro e novembro de 1995, diversas instituies pblicas, que nunca tinhamintervindo em Rio das Rs, mandaram consertar a pista de terra que permite o acesso aosvrios povoados que compem a comunidade, e uma nova escola foi inaugurada. A

    CODEVASF (Coordenao de Desenvolvimento do Vale do So Francisco) ofereceu, umatrs do outro, dois presentes de valor: um poo artesiano, acabado em menos de um ms,que resolveu o dramtico problema da seca, e um projeto de irrigao com bomba e motor.

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    mento chave em torno do qual a populao reorganizada40, o quilombo,progressivamente, fez sentido: aos olhos da populao, ele rapidamentesimbolizou a resistncia ao fazendeiro e se tornou, no seio de uma popu-

    lao dividida, uma marca identitria que opera entre os do quilomboe os da associao de Bonfim.41

    notvel que, por ela ser significativa no contexto do presente, aidia de quilombo, tal como foi assimilada pela populao, encontra osentido de smbolo histrico de luta pela liberdade que lhe foi atribudono movimento do ano Zumbi. Essa convergncia de sentidos no tra-duz, porm, uma repentina revelao do passado. A referncia aoquilombo no se construiu em Rio das Rs como um despertar damemria. Hoje, ainda so raros os que estabelecem uma ligao entreum passado demasiado especfico de algumas famlias e o quilombode que se trata no conflito.

    Com efeito, a referncia ao quilombo indissocivel do con-texto no qual ela apareceu. O fim do conflito associado, no pensamen-to das pessoas, vinda do quilombo, que se torna, ento, um projetode futuro: quando o quilombo vai chegar... um tema constante de

    discusso, ele reflete a poca depois do conflito que se imagina comouma volta idade de ouro, a um passado de fartura a grande maioriadas famlias fala em voltar para as suas terras logo aps o fim do confli-to que tem muito a ver com o passado a partir do qual os atores

    40 Uma associao quilombola foi criada pelas entidades, e as suas funes se estendembem alm do seu objetivo inicial de representao jurdica no contexto do conflito.Paralelamente ao declnio do poder dos chefes de famlia tradicionais, o estatuto redigi-do por atores externos tende a se impor, sob a impulso de uma jovem liderana, comouma constituio local, devendo gerir as relaes sociais. Assistimos a vrios casos deconflitos de ordem privada que foram debatidos no contexto pblico da diretoria daassociao.

    41 Cerca de 23 famlias das 90 que moram na Brasileira aceitaram a oferta do fazendeiro dereceber ttulos de propriedade individuais sobre terras que lhes foram atribudas. Essasfamlias que, segundo a expresso do chefe local, recusam o quilombo se agruparamdepois numa associao criada pelo irmo do fazendeiro, um ex-deputado estadual. Aqueixa principal delas a de que a permanente instabilidade do estatuto da terra (e, pois,dos seus ttulos de propriedade), devida ao pedido de reconhecimento do lugar pelaassociao do quilombo como comunidade remanescente de quilombo, as impede de

    prosseguir projetos de desenvolvimento econmico: de fato, os bancos hesitam em abrircrdito para indivduos cujos ttulos de propriedade podem ser invalidados a qualquermomento.

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    urbanos elaboraram as suas representaes de Rio das Rs como co-munidade remanescente de quilombo.

    Para concluir, e antecipando o nosso trabalho em andamento,

    notamos rapidamente que no h reinveno de tradio ou lgicaetnicitria cada vez que uma populao retoma, nos seus discursos, ostemas provenientes do mercado cultural urbano. A idia de quilombo retomada por ser portadora de um sentido em relao a uma situaopresente, mas este sentido no necessariamente importado. No caso,a sua integrao em Rio das Rs corresponde a uma ordem de interesseestritamente local. O que chamaramos classicamente de etnicidade,a saber, a transformao de elementos culturais, como a memria (im-portados, tradicionais, autnticos, etc.), em motor de uma ao polti-ca existente, mas unicamente entre uma certa elite articulada a redes noseio das quais esses elementos culturais so geradores de legitimidade.Sobre isso tambm, no se trata necessariamente da tradicionalizaode uma memria exumada: o defensor mais ardente do quilombo Riodas Rs descendente de uma famlia de imigrao recente.

    Sobre este ltimo ponto juntemos que, num contexto como este

    de Rio das Rs onde os relatos sobre o passado produzidos por estaelite se inscrevem em atos polticos e respondem s solicitaes de ato-res mobilizadores de recursos e instrumentos de legitimidade , tilquestionar-se o valor desses relatos como expresses de uma memriacoletiva. Seria necessrio, por isso, levar em conta os atores que ge-ram esses discursos e sua lgica de ao especfica. Existe em Rio dasRs uma complementaridade quase orgnica entre uma certa elite local,especializada na produo de discursos e de comportamentos larga-mente adaptados demanda externa42, e atores urbanos para os quaisRio das Rs visvel apenas como comunidade negra remanescentede quilombo.

    42 Existe, na associao quilombola, uma comisso de cultura.

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