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Sobre a Obra: ESTE VOLUME REÚNE dois dos ensaios mais importantes de Aldous Huxley sobre os efeitos da ingestão de drogas alucinógenas e as implicações mentais e éticas dessa experiência. A obra inclui ainda uma série de pequenos textos sobre outros modificadores da percepção humana, revelando a profunda dicotomia do autor que, ao buscar iluminações místicas inalcançáveis pelo pensamento racional, não esconde seu inconformismo com as limitações do corpo humano. Em As portas da percepção, de 1954, o romancista e ensaísta inglês descreve suas experiências pessoais com a mescalina, alcalóide extraído de um cacto mexicano, muito empregado pelos xamãs. As experiências, realizadas sob rigoroso controle médico, lhe proporcionaram uma "visão sacramental da realidade". O exame das implicações mentais e éticas dessa experiência tem continuidade em Céu e inferno, de 1956, em que Huxley constata que, se as alucinações produzidas pela droga podem atingir uma esfera mística inalcançável pelo pensamento racional, também podem conduzir o paciente às margens da auto-aniquilação. A obra se encerra com uma série de pequenos ensaios sobre outros modificadores da percepção humana, como a falta de vitaminas no cérebro, o dióxido de carbono e suas conseqüências tóxicas sobre a mente. Foi graças a estes ensaios que Huxley tornou-se uma espécie de guru entre os hippies da contracultura californiana da década de 1970, tais como o roqueiro Jim Morrison, da banda The Doors. No entanto, como escreve Manuel da Costa Pinto em seu prefácio à esta edição, estas "são meditações escritas à luz radiosa da razão, relatos de experiências com a mescalina que não conduzem a uma adesão imediata aos paraísos artificiais, mas sim a uma idéia de alargamento da consciência que não elide seu elemento reflexivo". Sobre a Digitalização desta Obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livro livremente! “Para M.” (Aldous L. Huxley) PARA TODOS OS FAUSTOSAs Portas da Percepção & Céu e Inferno A l d o u s H u x l e y O©®B R R

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  • Sobre a Obra: ESTE VOLUME RENE dois dos ensaios mais importantes de Aldous Huxley sobre os

    efeitos da ingesto de drogas alucingenas e as implicaes mentais e ticas dessa experincia. A obra inclui ainda uma srie de pequenos textos sobre outros modificadores da percepo humana, revelando a profunda dicotomia do autor que, ao buscar iluminaes msticas inalcanveis pelo pensamento racional, no esconde seu inconformismo com as limitaes do corpo humano.

    Em As portas da percepo, de 1954, o romancista e ensasta ingls descreve suas experincias pessoais com a mescalina, alcalide extrado de um cacto mexicano, muito empregado pelos xams. As experincias, realizadas sob rigoroso controle mdico, lhe proporcionaram uma "viso sacramental da realidade".

    O exame das implicaes mentais e ticas dessa experincia tem continuidade em Cu e inferno, de 1956, em que Huxley constata que, se as alucinaes produzidas pela droga podem atingir uma esfera mstica inalcanvel pelo pensamento racional, tambm podem conduzir o paciente s margens da auto-aniquilao. A obra se encerra com uma srie de pequenos ensaios sobre outros modificadores da percepo humana, como a falta de vitaminas no crebro, o dixido de carbono e suas conseqncias txicas sobre a mente.

    Foi graas a estes ensaios que Huxley tornou-se uma espcie de guru entre os hippies da contracultura californiana da dcada de 1970, tais como o roqueiro Jim Morrison, da banda The Doors. No entanto, como escreve Manuel da Costa Pinto em seu prefcio esta edio, estas "so meditaes escritas luz radiosa da razo, relatos de experincias com a mescalina que no conduzem a uma adeso imediata aos parasos artificiais, mas sim a uma idia de alargamento da conscincia que no elide seu elemento reflexivo".

    Sobre a Digitalizao desta Obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefcio

    de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade a marca da distribuio, portanto:

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    Para M. (Aldous L. Huxley) PARA TODOS OS FAUSTOS

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  • ALDOUS LEONARD HUXLEY nasceu em 26 de julho de 1894 no condado de Surrey, na Inglaterra. Seu primeiro livro foi publicado em 1916, uma coletnea de poemas. Autor de uma linhagem de reconhecidos intelectuais em que sobressai o av, o bilogo Thomas Henry Huxley, defensor das idias evolucionistas de Darwin, Aldous teve sua reputao literria estabelecida a partir de 1921 com a novela Crome Yellow. Imediatamente seguiram-se stiras brilhantes (Antic Hay, de 1923; Folhas inteis, de 1925; Contraponto, de 1928), nas quais o autor analisa de maneira espirituosa porm implacvel as agruras da sociedade contempornea.

    No perodo anterior Segunda Guerra Mundial, a obra de Huxley adquire um tom mais sombrio. So desse perodo Admirvel mundo novo (publicado em 1932, denuncia os aspectos desumanizadores do "progresso" cientfico e material) e Sem olhos em Gaza (novela pacifista de 1936), alm de uma srie de ensaios.

    Em 1937, no auge da fama, Huxley deixa a Europa e se muda para a Califrnia. No momento em que o Ocidente se preparava para a guerra, ele comea a acreditar que a chave para a resoluo dos problemas do mundo estaria na troca da razo individualista ocidental pela "sabedoria perene", de carter mstico, centrada na idia da unidade. So dessa fase tanto as obras de fico O tempo deve parar, de 1944, e A ilha, de 1962 (uma espcie de seqncia de Admirvel mundo novo), quanto o famoso relato de sua primeira experincia com mescalina, As portas da percepo, de 1954.

    Aldous Huxley morreu em 22 de novembro de 1963, por coincidncia o dia em que John F. Kennedy foi assassinado.

    MANUEL DA COSTA PINTO nasceu em So Paulo em 1966. Jornalista, editor da revista Cult, autor de Albert Camus Um elogio do ensaio (Ateli Editorial) e organizador e tradutor da antologia A inteligncia e o cadafalso e outros ensaios, de Albert Camus (Record).

  • PPRREEFFCCIIOO

    A ALUSO QUE ALDOUS HUXLEY faz ao poeta William Blake nos ttulos de seus dois ensaios sobre as drogas alucingenas no deve nos enganar: As portas da percepo (1954) e Cu e Inferno (1956) so meditaes escritas luz radiosa da razo, relatos de experincias com a mescalina que no conduzem a uma adeso imediata aos parasos artificiais, mas sim a uma idia de alargamento da conscincia que no elide seu elemento reflexivo.

    Essa observao fundamental por causa da histria nada desprezvel da recepo de Huxley em um mbito que ultrapassa os limites da chamada "alta cultura" (na qual ele havia se consagrado como autor dos clssicos Contraponto e Admirvel mundo novo). No final dos anos 60, o compositor, cantor e poeta Jim Morrison criou na Califrnia uma banda de rock chamada The Doors, cujo nome fora inspirado na leitura de As portas da percepo. Morrison morreria em Paris em 1971, provavelmente de overdose, mas sua curta e fulminante trajetria marcada no apenas pelo sucesso musical e por escndalos comuns dentro do universo pop, como tambm por uma produo potica que chegou a ser comparada de Rimbaud acabaria estabelecendo uma ponte entre a potica visionria de Blake, o erotismo sacrifi-cial dos concertos dos Doors e a obra de Huxley, que assim ganharia uma aura de guru da contracultura.

    Essa identificao estava sintetizada num trecho do clebre poema em prosa "O matrimnio do cu e do inferno" "If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite" ("Se as portas da percepo estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como , infinito", segundo traduo de Jos Arantes publicada pela editora Iluminuras). E, no entanto, a imagem de Huxley como uma espcie de profeta aristocrtico da era hippie no parece resistir leitura de As portas da percepo e Cu e Inferno. bem verdade que ele mesmo alimentou a confuso ao colher os ttulos dos ensaios nos aforismos de um poeta "maldito", que mimetizou suas alucinaes tanto com as palavras quanto em telas que representam personagens bblicas em cenrios apocalpticos. E tambm verdade que Morrison estava sendo fiel letra de Huxley ao conferir a suas experincias com mescalina e cido lisrgico um carter ritual inspirado no xamanismo: afinal, o escritor ingls escolhera a mescalina para seus experimentos justamente por causa da funo sagrada que o peiote (raiz da qual extrada a droga) desempenha nas religies dos ndios americanos.

    O fato, porm, que em nenhum momento Huxley parece buscar nos alucingenos uma converso mstica ou uma ruptura absoluta com o mundo ordinrio. Tampouco parece movido por um desacordo essencial em relao aos crceres psicolgicos e perceptivos da realidade emprica. Enquanto Blake era um gnstico para quem "o caminho do excesso leva ao palcio da sabedoria",

    Huxley fez do excesso de sabedoria e de curiosidade um caminho para o palcio do xtase: a razo que, percebendo sua insuficincia perante a pluralidade do mundo, busca uma abertura para novas formas de percepo que sejam uma alternativa ao solipsismo (essa perverso do idealismo) e ao behaviorismo (perverso do empirismo). Nesse sentido, Aldous Huxley um perfeito agnstico.

    Vale a pena fazer aqui um pequeno desvio para explicar a origem desse termo.

  • Afinal, a expresso "agnstico" foi literalmente inventada pelo av de Aldous o eminente bilogo Thomas Henry Huxley durante as acirradas polmicas surgidas depois da publicao de A origem das espcies, de Charles Darwin, em 1859. Ferrenho defensor da teoria da evoluo, Thomas Henry se viu na obrigao de rebater as crticas dos criacionistas (religiosos que faziam uma leitura fundamentalista das Escrituras, defendendo a idia de que o homem foi gerado por Deus em sua conformao atual), formulando ento um conceito que passou a ser um estandarte do antidogmatismo e da emancipao do pensamento:

    Quando cheguei maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, testa ou pantesta, materialista ou idealista, cristo ou livre-pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fcil era a resposta, at que por fim cheguei concluso de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definies, com exceo da ltima. A nica coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a nica coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa 'gnose' haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existncia, enquanto eu estava bastante seguro do contrrio e possua uma convico razoavelmente forte de que o problema era insolvel. [...] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rtulo adequado: 'agnstico'. Pensei nele como uma anttese sugestiva dos 'gnsticos' da histria da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.

    Aldous Huxley foi um legtimo herdeiro do ethos iluminista e anti-religioso de seu av. As portas da percepo e Cu e Inferno so relatos pacficos de uma experincia extraordinria e sugerem um autor que no transfere para a escrita as fendas e as instabilidades de sua paisagem interior. Estamos longe do estilo candente de um Thomas de Quincey ou de um Artaud para citar dois outros escritores que associaram drogas a um estado de esprito demonaco. Com Huxley, estamos mais prximos do ceticismo moderno de Montaigne ou Hume; ele desconfia igualmente do totalitarismo da razo e das quimeras de nossa imaginao e s se interessa por estas ltimas em sentido antropolgico, como uma fresta por onde se pode sondar a alma humana. Mesmo quando tematiza as drogas em obras de fico, o escritor ingls parece estar preocupado menos com o transe que elas provocam em personagens individuais do que com seus efeitos sobre o mecanismo psicolgico das massas caso dos narcticos imaginrios consumidos no universo asfixiante de Admirvel mundo novo (o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante) e na sociedade utpica do romance A ilha (a moksha, uma plula que "liberta do cativeiro do prprio ego"). Talvez seja por isso, por essa falta de predisposio ao fantstico ("sou e, at onde minha memria alcana, sempre fui pouco dado a devaneios"), que, ao provar pela primeira vez a mescalina, em 1953, Huxley tenha descoberto no um novo continente, mas um novo olhar sobre cenrios familiares: "Nada de paisagens, espaos abissais, mgico crescimento e metamorfose de edificaes,

    nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parbola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira no era o mundo das vises; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformao se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava". A essa ausncia de figuras sobrenaturais, porm, corresponde a perplexidade diante do carter transcendente que os objetos adquirem a partir da alterao do estado de conscincia de quem os observa. Descrevendo as transformaes que sofrem as flores de um vaso, uma cadeira ou um simples pedao de tecido na percepo de algum que ingeriu a droga, Huxley nos revela o "milagre do

  • inteiro desabrochar da existncia em toda sua nudez" e uma nova dimenso de tempo, "um perptuo presente, criado por um apocalipse em contnua transformao".

    A despeito das referncias de Huxley ao taosmo e a msticos como so Joo da Cruz ou Swedenborg, essa "viso sacramentai da realidade" proporcionada pela mescalina se restringe a um plano estritamente natural. Huxley admira os estados de esprito extticos porque eles proporcionam exemplos do carter irredutvel da existncia e, sob esse aspecto, o uso argumentativo que Huxley faz de Buda e de Mestre Eckhart tem uma surpreendente semelhana com o sentido que este grande nome da mstica renana ou o filsofo japons Nishida adquirem na obra de Heidegger. De resto, quando Huxley descreve sua percepo "narcotizada" de uma cadeira como "minha Despersonalizao na Desindividualizao que era a cadeira", a frase parece remeter exatamente distino que o filsofo de Ser e tempo faz entre o ente manipulvel (tal qual institudo pela razo instrumental) e o ser autntico (cuja eterna irrupo fora encoberta pela dicotomia sujeito-objeto e seria redescoberta pela superao heideggeriana da metafsica).

    diferena de Heidegger, porm, Huxley considera que tanto o esquecimento da totalidade do ser quanto seu oposto a abertura da conscincia para a irrupo dos acontecimentos - so um fenmeno do mundo biolgico. Para ele, o crebro e o sistema nervoso seriam uma "vlvula redutora", que evita por meio do carter seletivo da memria e das restries impostas pela linguagem que o homem seja esmagado pela torrente de informaes a que sua "oniscincia" potencial estaria sujeita.

    Seria um anacronismo tentar avaliar a correo dessas afirmaes a partir das descobertas recentes das neurocincias. Nem As portas da percepo nem Cu e Inferno so tratados cientficos. Huxley cita vrios pesquisadores de seu tempo, consulta especialistas, explica a ao qumica dos diferentes tipos de drogas, defende suas virtudes e aponta seus malefcios mas parece se guiar sobretudo por aquele esprito de curiosidade intelectual formulado por Montaigne na aurora da modernidade. Cu e Inferno texto que d continuidade s experincias relatadas em As portas da percepo uma cartografia da mente cuja analogia entre os estados possveis da conscincia e as zonas do globo (com sua diversidade de fauna e flora) deve muito descrio, feita nos Ensaios de Montaigne, das "maravilhas" encontradas pelos navegantes nos antpodas das terras civilizadas.

    Em Cu e Inferno, essas metforas geogrficas expressam "a dessemelhana essencial das regies longnquas da mente" que as drogas permitem desbravar. Para o leitor de hoje, elas tm tambm um significado tico: ensinam a olhar com tolerncia e compreenso para essas pequenas epifanias que nos consolam de um mundo em que o prazer mercantilizado pela indstria do combate ao narcotrfico e em que a mente agenciada pelos psicofrmacos. Alis, a proliferao atual das drogas normalizantes que reduzem o crebro a uma glndula e transformam a existncia num protocolo torna ainda mais urgente a necessidade de transcendncia que podemos detectar pela onipresena do uso de alucingenos nas mais variadas culturas. Como escreve Aldous Huxley: "Parece extremamente improvvel que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem parasos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida to sofredora em seus pontos baixos e to montona em suas eminncias, to pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, esto e tm estado sempre entre os principais apetites da alma".

    MANUEL DA COSTA PINTO

  • AS PORTAS DA PERCEPO

    FOI NO ANO DE 1886 que o farmacologista alemo Ludwig Lewin publicou o primeiro estudo sistemtico do cacto que, depois disso, haveria de receber seu nome. O Anhalonium lewin era novo para a cincia, embora fosse, na verdade, um amigo desde tempos imemoriais para as religies primitivas e para os ndios do Mxico e do Sudoeste dos Estados Unidos. Era at muito mais que um amigo. Segundo as palavras de um dos primeiros espanhis a visitar o Novo Mundo, "eles comem uma raiz a que chamam de peiote e que por eles venerada como a um deus".

    O porqu de tal venerao evidenciou-se quando psicologistas eminentes, tais como Jaensch, Havelock Ellis e Weir Mitchell, comearam suas experincias com a mescalina o princpio ativo do peiote. No h dvida de que eles as interromperam em um ponto muito aqum da idolatria, mas tudo nos leva a situar a mescalina em posio mpar entre os demais alcalides. Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepo que qualquer outra droga disposio do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos txica que as demais.

    A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os dias de Lewin e Havelock Ellis. Os qumicos no se limitaram a isolar o alcalide; conseguiram tambm realizar-lhe a sntese, com o que no mais ficaram merc das escassas e problemticas coletas de um cacto do deserto. Os alienistas tm, eles mesmos, feito uso da mescalina, buscando assim conseguir uma melhor e mais direta compreenso dos processos mentais de seus pacientes. Infelizmente, por trabalharem baseados em um nmero muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condies por demais estreita, os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos mais impressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram a algumas concluses a respeito do mecanismo de sua ao sobre o sistema nervoso central. E ao menos um filsofo militante tomou o alcalide, ante a luz que este poderia lanar sobre antigos e insolveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e a relao entre a inteligncia e o consciente.

    Assim estavam as coisas at que, h dois ou trs anos, foi observado um fato novo, talvez de grande importncia.1 Na verdade, havia muitas dcadas que esse fato se apresentava ao vivo, diante de todos, mas, a despeito disso, ningum se havia dele apercebido at que um jovem psiquiatra ingls, que atualmente trabalha no

    l. A esse respeito, veja-se: l. HOFFER, Abram; OSMOND, Humphry; SMYTHIES, John. "Schizophrenia: a new approach". Journal of Mental Science, 100(418), jan. 1954. 2. OSMOND, Humphry. "On being mad". Saskatchewan Psychiatric Services Journal, 1(2), set. 1952. 3. SMYTHIES, John. "Schizophrenia: a new approach". Journal of Mental Science, 98, abr. 1952. 4. SMYTHIES, John. "The mescalin phe-nomena". The British Journal for the Philosophy of Science, 3, fev. 1953. Numerosos outros artigos sobre bioqumica, farmacologia, psicologia e neurofisiologia da esquizofrenia e dos efeitos da mescalina esto em preparao.

    Canad, se deu conta da grande semelhana de composio qumica existente entre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o cido lisrgico um onrico extremamente poderoso, derivado da ergotina apresenta afinidades com essas duas substncias, em suas caractersticas bioqumicas. Veio em seguida a

  • descoberta de que o adrenocromo, produto de decomposio da adrenalina, pode produzir muitos dos sintomas observados no inebriamento por mescalina. E bem provvel que o adrenocromo seja o fruto de uma decomposio realizada espontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de ns capaz de produzir uma substncia qumica da qual, como sabemos, doses diminutas podem criar profundas alteraes na percepo. Algumas dessas alteraes so semelhantes s que acompanham essa praga to caracterstica do sculo XX que a esquizofrenia. Ser essa doena mental uma decorrncia de um desequilbrio qumico:1 E estar o desequilbrio qumico, por seu turno, ligado a sofrimentos psquicos que atuem sobre as glndulas supra-renais? Ser arrojado e prematuro afirm-lo. O mximo que podemos dizer que isso constitui uma hiptese plausvel. Entretanto, o mistrio vem sendo sistematicamente desvendado; os detetives bioqumicos, psiquiatras e psicologistas acham-se em sua pista.

    Em razo de uma srie de circunstncias que para mim foram extremamente favorveis vi-me, na primavera de 1953, situado bem no meio de tal busca. Um desses pesquisadores tinha chegado Califrnia, levado por suas investigaes. A despeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicolgico de que se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampli-lo. Eu me atravessara em seu caminho e estava disposto ou melhor, decidido a servir de cobaia. E foi assim que, em uma radiosa manh de maio, tomei quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d'gua, e sentei-me para esperar pelos resultados.

    Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstncias, existimos a ss. Os mrtires penetram na arena de mos dadas; mas so crucificados sozinhos. Abraados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus xtases isolados em uma nica autotranscendncia; debalde. Por sua prpria natureza, cada esprito, em sua priso corprea, est condenado a sofrer e gozar em solido. Sensaes, sentimentos, concepes, fantasias tudo isso so coisas privadas e, a no ser por meio de smbolos, e indiretamente, no podem ser transmitidas. Podemos acumular informaes sobre experincias, mas nunca as prprias experincias. Da famlia nao, cada grupo humano uma sociedade de universos insulares.

    Muitos desses universos so suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreenso por deduo, ou mesmo por mtua projeo de percepo. Assim, recordando nossos prprios infortnios e humilhaes podemos nos condoer de outras pessoas em circunstncias anlogas; somos at capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligao entre esses universos incompleta, ou mesmo inexistente. A mente o seu campo, porm os lugares ocupados pelo insano e pelo gnio so to diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que h pouco ou nenhum ponto de contato na memria individual para servir de base compreenso ou a ligaes entre eles. Falam, mas no se entendem. As coisas e os fatos a que os smbolos se referem pertencem a reinos de experincias que se excluem mutuamente.

    Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos vem uma das mais confortadoras ddivas. E no menos importante o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram. Mas e se esses outros pertencerem a uma espcie diferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poder o indivduo, mentalmente so, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminncia de ser reencarnado na pessoa de um sonhador, um mdium ou um gnio musical, como poderamos algum dia visitar os mundos que para Blake, Swedenborg ou Johann

  • Sebastian Bach eram seus lares? E como poder algum, que esteja nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do endomorfismo e da viscerotonia ou (a no ser dentro de certas reas restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia? Para o behaviorsta inflexvel, tais proposies suponho eu so desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista terico, aquilo que, na prtica, sabem ser verdade isto , que a experincia possui dois aspectos, um externo e o outro interno , os problemas apresentados so reais e tanto mais srios por serem, alguns, inteiramente insolveis, e outros s poderem ser resolvidos em circunstncias excepcionais e por mtodos que no se acham ao alcance de qualquer um. , pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis. Por outro lado, sempre me pareceu possvel que, por meio do hipnotismo, do auto-hipnotismo, da meditao sistemtica, ou ainda pela ao de uma droga apropriada, eu pudesse modificar de tal forma minha percepo normal que fosse capaz de compreender, por mim mesmo, a linguagem do visionrio, do mdium e at\ do mstico.

    Baseado no que j havia lido a respeito das experincias com a mescalina, eu me convencera antecipadamente de que a droga haveria de garantir minha admisso, ao menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.* Mas o que eu esperava no aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar vises de corpos geomtricos multicores, de formas arquitetnicas animadas, recobertas de gemas e fabulosamente belas, de paisagens repletas de figuras hericas, de dramas simblicos e perpetuamente apaixonantes, no limiar da revelao derradeira. Mas est claro que eu no levava em conta as idiossincrasias de minha formao mental, as realidades de meu temperamento, educao e hbitos.

    *Pseudnimo literrio de George William Russell (1867-1935), poeta e pintor irlands.

    Sou e, at onde minha memria alcana, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, no conseguem produzir imagens em minha mente. No vm ao meu encontro vises hipnaggicas no limiar do sono. Quando me lembro de algo, a memria no se me apresenta como um fato ou objeto vivido. Por um esforo da vontade, consigo evocar uma imagem no muito vivida do que aconteceu na tarde da vspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destrudas ou da estrada de Bayswater quando os poucos nibus eram verdes e pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilmetros por hora. Mas essas imagens tero pouca substncia, e de forma alguma podero ter vida prpria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporo que os fantasmas homricos apresentam com relao aos homens de carne e osso que vo visit-los nas sombras. S quando tenho febre alta que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginao frtil, meu mundo interior ter de parecer curiosamente montono, limitado e desinteressante. Este era o mundo um pobre mundo, porm meu que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.

    A modificao que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionria. Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes superfcies rubras que cresciam e se avolumavam a partir de brilhantes ndulos de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo de estruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, plidas esferas azuladas que se iam materializando e, medida que o faziam, deslizavam

  • silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaos abissais, mgico crescimento e metamorfose de edificaes, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parbola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira no era o mundo das vises; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformao se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.

    Eu ingerira minha poo s onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado em meu escritrio, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha ele apenas trs flores uma rosa-de-portugal, inteiramente desabrochada, com sua rsea corola onde a base de cada ptala apresentava um matiz mais quente e brilhante; um grande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua herldica beleza, de um prpura plido, a flor-do-ris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras do bom gosto tradicional. Pela manh, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonncia de suas cores. Mas tal j no era mais minha opinio. No contemplava mais uma esquisita combinao de flores; via, agora, aquilo mesmo que Ado vira no dia de sua criao o milagre do inteiro desabrochar da existncia, em toda a sua nudez.

    Isso agradvel? perguntou algum. (Durante essa parte da experincia, todas as conversas foram gravadas, e foi-me assim possvel refrescar a memria a respeito do que fora dito.)

    Nem agradvel, nem desagradvel respondi. Apenas existe.

    Istigkeit "existncia" , no era essa a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? O Existir da filosofia platnica com a diferena que Plato parecia ter cometido o enorme, o grotesco erro de separar Existir de tornar-se e de identific-lo com a abstrao matemtica a Idia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto um ramalhete de flores a brilhar com sua prpria luz interior, quase que estremecendo sob a tenso da importncia do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebido de que essa to grande importncia da rosa, do ris e do cravo residia, to-somente, naquilo que eles representavam uma efemeridade que, no obstante, significava vida eterna, um perptuo perecer que era, ao mesmo tempo, puro Existir; um punhado de pormenores diminutos e sem par no qual, por algum indizvel paradoxo, embora axiomtico, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existncia.

    Continuei a observar as flores e, em sua luz vivida, eu parecia captar o equivalente qualitativo da respirao mas de uma respirao sem retornos a um ponto de partida, sem refluxos peridicos, mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior. Palavras tais como Graa e Transfigurao vieram-me mente, e isto, sem dvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa para o cravo, e daquela incandescncia de plumas para as suaves volutas de ametista animada, que era o ris. A Beatfica Viso, Sat Chit Ananda Existncia-Conscincia-Beatitude , pela primeira vez entendi, no em termos de palavras, no por insinuaes rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essas slabas prodigiosas. E lembrei-me, ento, de uma passagem que lera em um dos ensaios de Suzuki: "Que o Dharma-Corpreo do Buda?". (O Dharma-Corpreo do Buda outro modo de se referir Mente, Peculiaridade, ao Vazio, Divindade.) A pergunta foi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo novio. E, com a vivaz insensatez de um dos Irmos Marx, respondeu-lhe o superior: "A sebe ao fundo do jardim". "E poderia eu perguntar" retrucou timidamente o novio "qual o homem que

  • concebeu essa verdade?" A que Groucho, dando-lhe uma pancada nas costas com seu basto, responde: "Um leo de cabelos de ouro!".

    Quando li esse dilogo, achei-o pouco mais ou menos um amontoado de insensatez. Agora, porm, tudo est to claro como o dia, to evidente quanto o postulado de Euclides. No h a menor dvida de que o Dharma-Corpreo do Buda seja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele estas flores, ele qualquer coisa que desperte a ateno de meu ego (ou melhor, de minha bem-aventurada despersonalizao, liberta por um momento de meu abrao asfixiante). Assim tambm os livros, que recobrem as , paredes de meu escritrio: tais como as flores, eles tambm luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com uma importncia mais profunda. Livros vermelhos de rubi; livros de esmeralda; livros de gata, de gua-marinha, de topzio; livros de lpis-lazli de cor to intensa, to intrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrair minha ateno.

    Que me diz das relaes espaciais? perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros.

    Era difcil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala j no mais pareciam encontrar-se em ngulos retos. Mas no eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatao de que as relaes espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimenses que no as de espao. Em situaes normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? A que distncia? Como se situa em relao a tal coisa?. Durante a experincia com a mescalina, as perguntas tcitas a que a viso responde so de outra ordem. Lugar e distncia deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreenso das coisas em termos de intensidade de existncia, profundidade de importncia, relaes dentro de um determinado padro. Eu olhava para os livros, mas no me preocupava, em absoluto, com suas posies no espao. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posio e as trs dimenses eram questes de somenos. No, evidentemente, que a noo de espao houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciao sobre a posio dos objetos. O espao ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, no com medidas e lugares, e sim com a existncia e o significado.

    E, de par com essa indiferena pelo espao, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.

    Parece haver bastante foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noo que tinha dessa dimenso.

    Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, est claro, olhar para meu relgio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experincia tinha sido, e ainda era, de durao indefinida, tambm podendo ser considerada um perptuo presente, criado por um apocalipse em contnua transformao.

    Dos livros, meu interlocutor desviou-me a ateno para o mobilirio. No centro da sala havia uma pequena mesa para mquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, alm dela, uma escrivaninha. As trs peas

  • formavam um intricado desenho de horizontais, verticais e oblquas desenho tanto mais interessante por no estar sendo interpretado em termos de suas relaes de espao. Mesa, cadeira e escrivaninha constituam uma composio que se assemelhava a algo por Braque ou Juan Gris: uma natureza-morta nitidamente relacionada com o mundo objetivo, mas onde no havia profundidade, nada de realismo fotogrfico. Eu examinava minha moblia, no como o utilitrio, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em mesas; no como o operador cinematogrfico ou o investigador cientfico, mas como o esteta puro, cuja nica preocupao se cinge s formas e suas relaes dentro do campo visual ou dos limites de um quadro. Mas, medida que prosseguia em minha investigao, essa anlise puramente esttica de cubista foi sendo substituda pelo que poderei apenas definir como sendo a viso sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importncia. Assim, os ps daquela cadeira quo miraculosa a sua tubularidade, quo sobrenatural seu suave polimento! Consumi vrios minutos ou foram vrios sculos? no apenas admirando aqueles ps de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois "eu" no estava em jogo, do mesmo modo como, at certo ponto, "eles" tampouco o estavam), sendo minha Despersonalizao na Desindividualizao que era a cadeira.

    Refletindo sobre minha experincia, vejo-me levado a concordar com o eminente filsofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, "que ser bom considerarmos, muito mais seriamente do que at ento temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relao memria e ao senso de percepo. Segundo ela, a funo do crebro e do sistema nervoso , principalmente, eliminativa e no produtiva. Cada um de ns capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que j ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que est acontecendo em qualquer parte do universo. A funo do crebro e do sistema nervoso proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inteis e sem importncia, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveramos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensaes selecionadas que, provavelmente, tero utilidade na prtica".

    De acordo com tal teoria, cada um de ns possui, em potencial, a Oniscincia. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa viver a todo o custo. Para tornar possvel a sobrevivncia biolgica, a torrente da Oniscincia tem de passar pelo estrangulamento da vlvula redutora que so nosso crebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se atravs desse crivo um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfcie deste singular planeta. Para formular e exprimir o contedo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeioa incessantemente, esses sistemas de smbolos com suas filosofias implcitas a que chamamos idiomas. Cada um de ns , a um s tempo, beneficirio e vtima da tradio lingstica dentro da qual nasceu beneficirio, porque a lngua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experincia de outras pessoas; vtimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado a nica sabedoria que est a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noo como a expresso da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome de "este mundo" apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitao dos idiomas. Os vrios "outros mundos" com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato no passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente Oniscincia. A maioria das

  • pessoas, durante a maior parte do tempo, s toma conhecimento daquilo que passa atravs da vlvula de reduo e que considerado genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espcie de desvio que invalida essa vlvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em carter temporrio, seja espontaneamente, seja como resultado de "exerccios espirituais" voluntrios, do hipnotismo ou da ingesto de drogas. Mas o fluxo de sensaes que percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporrio, no suficiente para que algum se aperceba "de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo" (uma vez que o desvio no destri a vlvula de reduo, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Oniscincia), embora possibilite a passagem de algo mais e sobretudo diferente do que aquelas sensaes utilitrias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mnimo, suficiente) da realidade.

    O crebro dotado de um certo nmero de sistemas enzimticos que servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose destinado a alimentar as clulas cerebrais. A mescalina, inibindo a produo dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose disposio de um rgo que tem uma fome constante de acar. E o que acontece quando o metabolismo do acar no crebro reduzido pela mescalina? O nmero de casos observados diminuto e, pois, ainda no nos possvel apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido maioria daqueles que tomaram o alcalide, sob controle, pode ser assim resumido:

    1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente no sofre reduo perceptvel. (Ouvindo os registros de minha conversao, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condies normais.)

    2. As impresses visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olho recupera um pouco da inocente percepo da infncia, quando o senso no se achava direta e automaticamente subordinado concepo. O interesse pelo espao diminui e a importncia do tempo cai quase a zero.

    3. Embora o intelecto nada sofra e a percepo seja grandemente aumentada, a vontade experimenta uma grande transformao para pior. O indivduo que ingere mescalina no v razo para fazer seja o que for, e considera profundamente injustificvel a maioria das causas que, em circunstncias normais, seriam sufi-

    cientes para motiv-lo e faz-lo agir. Elas no o preocuparo, pela simples razo de ter ele melhores coisas em que pensar.

    4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) l fora, aqui dentro ou em ambos os mundos o interior e o exterior, simultnea ou sucessivamente. Que elas so melhores, isso parece axiomtico a quem quer que tome mescalina, desde que possua um fgado so e uma mente isenta de angstias.

    Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reao que se poderia esperar de uma droga com o poder de reduzir a eficincia da vlvula redutora que o crebro. Quando esse rgo atingido pela carncia de acar, o subnutrido ego se enfraquece, j no mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interesse por essas relaes de tempo e espao que possuem to grande valor para um organismo preocupado com a vida neste mundo. Assim que a Oniscincia vence a barreira daquela vlvula, comeam a ocorrer todas as espcies de fatos desprovidos de utilidade biolgica. Em certos casos, podero dar-se percepes extra-sensoriais. Outras pessoas podem descobrir um mundo de visionria beleza. Ainda outras tm a revelao da

  • glria, do infinito valor e da significao da existncia primeva, do fato objetivo e no conceituado. No estgio final da despersonalizao h uma "obscura noo" de que Tudo est em todas as coisas de que Tudo , em verdade, cada coisa. Isso , no meu entender, o mximo a que uma mente finita pode alcanar em "aperceber-se de tudo o que est acontecendo em qualquer parte do universo".

    A esse respeito, quo significativa a enorme ampliao da percepo das cores sob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinados matizes possui grande importncia biolgica. Mas, alm dos limites de seu espectro utilitrio, a maior parte dos seres vivos apresenta completa insensibilidade s cores. Assim as abelhas, que consomem quase todo o seu tempo "desflorando as frescas virgens da primavera", s conseguem distinguir umas poucas cores, conforme Von Frisch o demonstrou. A grande percepo s cores de que o olho humano capaz um luxo biolgico inestimavelmente precioso para ns, como seres intelectuais e espirituais, mas desnecessrio nossa sobrevivncia como animais. A julgar pelos adjetivos que Homero lhes ps nas bocas, os heris da Guerra de Tria mal ultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir cores. Ao menos sob esse aspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso.

    A mescalina aviva consideravelmente a percepo de todas as cores e torna o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenas de matiz que, sob condies normais, ser-lhe-iam totalmente imperceptveis. Poder-se-ia dizer que, para a Oniscincia, os chamados caracteres secundrios das coisas seriam os principais. Contrariamente a Locke, ela consideraria as cores dos objetos como mais importantes e, pois, merecedoras de maior ateno que suas massas, posies e dimenses. Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos msticos percebem cores de uma intensidade preternatural, no s em seu mundo interior como tambm no das coisas objetivas que os rodeiam. Fato idntico ocorre com os indivduos suscetveis a ou que sofrem de psicoses. H certos mdiuns para os quais as revelaes que se manifestam, por breves perodos, nos indivduos que ingerem mescalina so uma experincia diria, de todas as horas, por longos espaos de tempo.

    Podemos agora, aps esta longa mas indispensvel excurso ao reino da teoria, voltar quela maravilhosa realidade quatro ps de cadeira, de bambu, no meio de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de riquezas a inestimvel ddiva de uma concepo nova e direta da verdadeira Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma de compreenso, particularmente no campo das artes.

    Uma rosa uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro ps de cadeira, alm de ps de cadeira eram So Miguel e todos os anjos. Quatro ou cinco horas aps o incio da experincia, quando comeavam a cessar os efeitos da deficincia de acar no meu crebro, levaram-me para um pequeno passeio pela cidade, no qual estava includa uma visita, ao cair da tarde, ao que era modestamente considerado o maior drugstore do mundo. Nos fundos do estabelecimento, entre brinquedos, cartes de felicitaes e revistas de histrias em quadrinhos, havia por estranho que pudesse parecer toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcance da mo. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi A cadeira aquele assombroso retrato de uma realidade metafsica que o pintor louco viu, com uma espcie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa era uma tarefa em que at o poder do gnio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que a cadeira vista por Van Gogh era, em essncia, a mesma que eu vira. Mas, ainda

  • que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepo comum deixa entrever, mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um smbolo do fato, embora extraordinariamente expressivo. O fato fora uma manifesta Peculiaridade; isto era apenas um emblema. Esses emblemas so fontes de conhecimentos seguros sobre a Natureza das coisas, e tais conhecimentos podem servir para preparar a mente que os aceita para ilaes imediatas sobre essa mesma natureza. Mas isso tudo. Por expressivos que sejam, os smbolos jamais se podem converter nas coisas que representam.

    Seria interessante, sob esse aspecto, realizar um estudo das obras de arte que prenderam a ateno dos grandes apreciadores da Peculiaridade. Que tipo de pintura teria Eckhart admirado? Quais quadros e esculturas contriburam para a experincia religiosa de San Juan de Ia Cruz, de Hakuin, de Huineng ou de William Law? Essas indagaes esto alm de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convico de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte alguns, recusando-se pura e simplesmente a lev-la em conta; outros, contentando-se com trabalhos que olhos de crtico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de dcima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificao de uma pintura como sendo de primeira ou de dcima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, ser coisa que lhe h de provocar a mais soberana indiferena.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou ento a essas obstinadas mediocridades que decidiram satisfazer-se com a contrafao da Peculiaridade, com smbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardpio elegantemente apresentado em vez da prpria refeio.

    Devolvi Van Gogh prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli. Folheei-o. O nascimento de Vnus, que nunca figurou entre minhas telas prediletas; Vnus e Marte, aquela beleza to apaixonadamente denunciada pelo pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragdia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e no muito bom Judite. Minha ateno foi despertada e eu me quedei embevecido, no pela plida e neurtica herona ou por sua serva; no ante a hirsuta cabea da vtima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purprea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.

    Aquilo era algo que eu j havia visto, e naquela mesma manh, entre as flores e os mveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas prprias pernas cruzadas. Essas dobras de minhas calas que labirinto de infinita complexidade simblica! E a textura da flanela cinzenta quo rica, profunda e misteriosamente suntuosa era ela! E l estava isso tudo, de novo, no quadro de Botticelli!

    Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, no pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitolgica ou histrica, onde no haja representao de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mrito da origem, jamais poderemos atribuir ao hbito do vesturio o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema principal em todas as artes plsticas. evidente que os artistas sempre lhe conferiram um valor intrnseco (ou, qui mais propriamente, sempre se aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens est pintando ou esculpindo formas que, em ltima instncia, no possuem simbolismo intrnseco formas no condicionadas que os artistas, mesmo os mais fervorosos adeptos do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apstolos,

  • os elementos estritamente humanos, inteiramente simblicos, constituem cerca de dez por cento da obra. O restante formado por um sem-nmero de variaes coloridas do inexaurvel tema de linhos e ls amarfanhados. E esses nove dcimos no-simblicos de uma Madona ou um Apstolo podem ser to importantes, qualitativamente, quanto o so em quantidade. No raro, so eles que do o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema est sendo executado, que exprimem a disposio de esprito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estica se revela por superfcies suaves, pelas amplas dobras das roupagens de Piero. Esmagado entre realidade e vontade, entre cinismo e idealismo, Bernini ajusta a verossimilhana quase caricatural das faces que modela com vastas abstraes de pano que so a corporificao, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retrica o herosmo, a santidade, a sublimidade a que a humanidade perpetuamente aspira, quase sempre em vo. E h ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco; as dobras vivas, retorcidas quais chamas, em que Cosimo Tura envolvia seus personagens. No primeiro, a espiritualidade tradicional se dilui em annimo anelo fisiolgico; debate-se, no segundo, um sentimento torturado ante a reserva e a hostilidade caractersticas deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens e suas mulheres empenham-se em lutas, aprontam-se para bailes, embarcam, em relvas de veludo e sob vetustas rvores, para a Citera dos sonhos de todos os amantes; a imensa melancolia que os envolve, bem como a pungente sensibilidade de seu criador, encontram expresso, no nas aes, atitudes ou semblantes dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafet, de seus mantos e gibes de cetim. No h nelas nem uma polegada sequer de superfcies suaves; tudo um emaranhado de sedas em incontveis e minsculas pregas e rugas em incessante modulao reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurana de uma mo de mestre de tom para tom, de uma cor indefinvel para outra. Na vida, "o homem pe e Deus dispe". Nas artes plsticas, quem prope o assunto; mas quem dispe , em ltima instncia, o temperamento do artista, e em primeira ao menos em retratos, pintura histrica e descritiva as roupagens e tapearias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faa vir lgrimas aos olhos; que uma crucificao tenha uma tal serenidade que nos alegre a alma; que uma cena de suplcio seja quase que intoleravelmente lbrica; que o retrato de um prodgio de insensatez feminina (penso, neste instante, no incomparvel Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexvel intelectualidade.

    Mas isto no tudo. As roupagens, percebo-o agora, so muito mais que simples artifcios para a introduo de formas desprovidas de simbolismo nas pinturas e esculturas naturalistas. O que ns outros s vemos sob a influncia da mescalina pode, a qualquer tempo, ser visto pelo artista, graas a sua constituio congnita. Sua percepo no est limitada ao que biolgica ou socialmente til. Algo do saber inerente Oniscincia flui atravs da vlvula redutora do crebro e do ego e atinge sua conscincia. Isso lhe d um conhecimento do valor intrnseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para quem ingere mescalina, o tecido um hierglifo vivo que representa, de certo modo singularmente expressivo, os insondveis mistrios da existncia. Ainda mais que a cadeira, embora talvez menos que aquelas flores absolutamente preternaturais, as dobras de minhas calas de flanela cinzenta estavam impregnadas de existncia. No sei dizer a que deviam elas sua privilegiada situao. Seria porque as formas assumidas pelas dobras dos tecidos so to esquisitas e dramticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existncia sobre a ateno? Quem poder dize-lo? Mas importa menos a razo para a experincia do que esta em si mesma. De olhos fitos nas saias de Judite, no maior drugstore do

  • mundo, fiquei sabendo que Botticelli e no somente ele como tambm muitos outros havia contemplado as roupagens e tapearias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores que eu possua naquela manh. Eles haviam visto o Istigkeit, a Totalidade e o Infinito das dobras de um tecido e haviam empregado ao mximo seu talento para represent-las na tela ou no mrmore. evidente que no poderiam, de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existncia pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expresso, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gnio, teria feito com minhas velhas calas de flanela cinzenta. No seria muito sabe-o o cu em comparao com a realidade, mas bastaria para deliciar geraes e geraes de amantes da arte, para faz-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em nossa pattica imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca da televiso.

    assim que precisamos ver fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calas ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jias nas estantes e pelos ps de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. assim que precisamos ver as coisas tal como elas so! E ainda havia reparos a fazer. Pois se algum visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser to-somente a sublime Desindividualizao da flor, do livro, da cadeira, das calas. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relaes humanas? No registro da conversao daquela manh, encontrei, a cada passo, a repetio da pergunta: "Que me diz das relaes humanas?". Como poderia algum conciliar essa infinita bno de ver as coisas, tal como elas devem ser vistas, com os deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como mister que se sinta? preciso que sejamos capazes respondi eu de considerar estas calas infinitamente importantes, e os seres humanos

    ainda mais infinitamente importantes. preciso! mas na prtica isso me pareceu impossvel. Essa participao no manifesto esplendor das coisas no deixava lugar, por assim dizer, para as preocupaes comuns, necessrias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupaes com os indivduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu no era eu mesmo, a um s tempo percebendo e sendo a Desindividualizao das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualizao recm-nascida, o comportamento, a aparncia, o prprio raciocnio do indivduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivduos seus companheiros de at ento , se no lhe eram desagradveis (pois a averso no figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitaes. Compelido pelo pesquisador a analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a ss com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro ps de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calas de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente, procurava no tomar conhecimento de sua presena. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasio, a mescalina me havia tirado o mundo dos personalismos, da dimenso tempo, dos julgamentos morais e das consideraes utilitrias; o mundo e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer o mundo da auto-afirmao, da convico, da supervalorizao da palavra e das noes idolatra-mente cultuadas.

    Nesse ponto da experincia passaram-me s mos uma grande produo em

  • cores do conhecidssimo auto-retrato de Czanne, o busto de um homem cuja cabea estava coberta por um grande chapu de palha; rosado, de lbios corados, ostentando opulentas suas negras e dono de olhos escuros e inamistosos. uma obra excelente; mas no era como obra de arte que eu a encarava, naquele instante. Pois a cabea imediatamente adquiriu relevo e ganhou vida sob a forma de um homenzinho que lembrava um duende, olhando atravs de uma janela que era a pgina diante de mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razo, disse, e continuei repetindo:

    Que pretenso! Quem pensa ele que ? Essa exclamao, eu no a endereava a Czanne, em particular, mas a toda a espcie humana. Quem pensavam eles todos que eram?

    Isso me faz lembrar Arnold Bennett nos Dolomitas disse eu, repentinamente, recordando uma cena que um instantneo feliz imortalizara, cerca de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava atravs de uma trilha gelada em Cortina d'Ampezzo. Ao seu redor, a neve virgem; ao fundo, a atrao irresistvel dos rubros despenhadeiros. E l estava o caro, afvel e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. L vinha ele, vagarosamente, sob o brilhante sol dos Apeninos, os polegares metidos na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regncia a cabea jogada para trs, como que tentando vencer uma crise de gagueira, sob a cerlea abbada celeste. J no me lembro de quais tenham realmente sido suas palavras; mas seu porte, seu ar e sua atitude pareciam proclamar: "Sou to bom quanto essas montanhas do inferno!". E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes era infinitamente superior; mas e ele bem o sabia no o era pela forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da fico, gostava de ser.

    Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der palavra) todos ns exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvvel de se tratar de Czanne, de pouco lhe valia. Pois o renomado pintor, com seu pequeno conduto para a Oniscincia a burlar a ao da vlvula redutora formada pelo crebro e o filtro do ego, era tambm, e to-somente, um duende de grandes suas e olhar inamistoso.

    Para descansar, voltei s pregas de minhas calas.

    E assim que precisamos ver as coisas tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: "Isto o tipo de coisa que precisa ser vista". Coisas sem pretenses, satisfeitas com serem apenas elas mesmas, conformadas com suas peculiaridades, no agindo de per si, no tentando, loucamente, isolar-se do Dharma-Corpreo, em diablico desafio graa de Deus.

    O que mais se aproximaria disso disse eu seria um Vermeer.

    Sim, um Vermeer. Pois esse misterioso artista foi triplamente bem aquinhoado com a viso que identifica o Dharma-Corpreo com a sebe ao fundo do jardim; com o talento para reproduzir, com a mxima fidelidade, essa viso, dentro das limitaes impostas pela capacidade humana; com a prudncia para se ater, em suas pinturas, aos aspectos da realidade mais suscetveis de serem reproduzidos. Pois, embora Vermeer representasse seres humanos, sempre foi um pintor de naturezas-mortas. Czanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforassem por parecer-se com mas, buscava pintar seus retratos dentro do mesmo esprito. Mas suas raparigas com ar-de-ma associam-se mais s idias de Plato que ao Dharma-Corpreo na sebe. Elas so a Eternidade e o Infinito, no em areia ou por flores, mas pelas abstraes de alguma

  • espcie de alta geometria. Vermeer jamais pediu a seus modelos que buscassem parecer-se com mas. Ao contrrio, insistia em que fossem o mais femininas possvel mas sempre abstendo-se de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ou ficar de p, mas no deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogncia, jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja os filhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam, por essa mesma razo, de apresentar sua sublime e essencial Despersonalizao. de Blake a opinio de que as portas da percepo de Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um nico painel atingira uma transparncia quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalizao essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No homem, s podemos vislumbr-la quando ele est em repouso, com a mente desanuviada, o corpo esttico. Nessas circunstncias, Vermeer pde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza pde v-la e, at certo ponto, represent-la em sutil e suntuosa natureza-morta. Vermeer , indubitavelmente, o maior pintor de seres humanos no estilo natureza-morta. Mas houve tambm outros contemporneos de Vermeer na Frana, tais como os irmos L Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma srie de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepo do infinito valor de todas as coisas est presente, no como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas por uma intensificao das luzes, uma obsessiva distino das formas, dentro de uma tonalidade austera e quase que monocromtica. De nossos dias Vuillard, o pintor inexcedvel, com suas esplndidas e inesquecveis pinturas do Dharma-Corpreo sob a forma de um quarto de dormir burgus; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da famlia de um comerciante hora do ch, em um jardim suburbano.

    Ce qui fait que 1'ancien handagiste reme L comptoir dont l faste allchait ls passants C'est son jardin d'Auteuil, ou veufs de tout encens, Ls Zinnias ont l'air d'tre en tle vemie*

    *O que faz com que o antigo lojista despreze/ O faustoso balco que atraa os fregueses/ seu jardim de Auteuil onde, lisonja imunes,/As znias lembram flores de lata envernizada.

    Para Laurent Taillade, o espetculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante de material ortopdico se houvesse sentado suficientemente imvel, Vuillard teria visto nele, to-somente, o Dharma-Corpreo; teria pintado, entre as znias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila um recanto do den ao romper do outono.

    E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepo aguada com uma justa preocupao pelas relaes humanas, com os deveres e as tarefas inadiveis, para no mencionar a caridade e a piedade atuantes? A velha disputa entre ativos e contemplativos estava sendo renovada e renovada, creio eu, com uma violncia sem precedentes. Pois, at aquela manh, eu s conhecera a contemplao sob suas formas mais humildes e encontradias a divagao do pensamento; a arrebatada abstrao na poesia, na pintura ou na msica; a paciente espera pela inspirao, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor no pode pretender realizar coisa alguma; como vislumbres acidentais da natureza "de algo muito mais profundamente interligado", no dizer de Wordsworth; como o silncio sistemtico que leva, por vezes, noo de um "obscuro saber". Mas, desta feita, conheci a

  • contemplao em sua pujana. Em sua pujana, sim, mas no em toda a sua plenitude. Pois, quando esta atingida, a estrada que leva a Maria inclui a de Marta* e eleva a contemplao, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar contemplao, mas a uma contemplao que incompatvel com a ao e at mesmo com a vontade de agir, com a prpria idia de ao. Nos intervalos entre suas revelaes, quem toma mescalina capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por outro lado h nisso qualquer coisa de errado. Seu problema , essencialmente, o mesmo com que se defronta o eremita, o arfoat** e, em outro plano, o paisagista e o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poder resolver tal problema; servir apenas para situ-lo, em termos obscuros, para aqueles aos quais ele jamais se apresentou. Sua soluo plena e definitiva s poder ser encontrada por quem esteja preparado para reforar a verdadeira Weltanschauung*** por meio do comportamento adequado e de uma vigilncia constante, natural e apropriada. Ao eremita se ope o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, est pronto a descer do stimo cu para levar de beber a seu irmo doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior em um Nirvana inteiramente transcendental, ope-se o Bodhisattva****, para quem a Peculiaridade e o mundo das contingncias so uma mesma coisa, e para cuja piedade sem limites, a cada uma dessas contingncias correspondem outras tantas oportunidades, no s para meditaes transfi-guradoras, como tambm para praticar a caridade mais objetiva. E, no universo da arte, a Vermeer e aos outros pintores de retratos inanimados, aos mestres do paisagismo chins e japons, a Constable e a Turner, a Sisley, Seurat e Czanne, ope-se a arte integral de Rembrandt. Esses so nomes clebres, inacessveis eminncias. Pelo que me toca, nessa memorvel jornada de maio pude to-somente ser grato a uma experincia que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta.

    * Marta e Maria, irms de Lzaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho de So Lucas. Nas alegorias crists, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa.

    ** Arfoat - monge budista que atingiu a luz; santo budista. *** Weltanschauung ("viso do mundo") uma concepo filosfica do

    universo como decorrncia do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo. **** Bodhisattva - santo budista; aquele que, seguindo as pegadas do Buda,

    dever, em encarnao futura, tornar-se tambm um Buda. Seja-me permitido acrescentar, antes de abandonar este assunto, que no h

    forma de contemplao, mesmo a mais passiva, que no possua seu contedo tico. No mnimo a metade de toda a moral negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contm menos de cinqenta palavras, e seis delas so dedicadas a pedir a Deus que no nos deixe cair em tentao. O contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma srie de aes que no deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito diminudo se os homens aprendessem a permanecer serenamente em seus aposentos. Mas o contemplativo cuja percepo haja sido esclarecida no precisar permanecer encerrado em seus aposentos. Poder sair para seus afazeres, to perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que nunca ver-se- tentado a entregar-se ao que Traherme chamou de "impuros Artifcios do mundo". Quando nos sentimos como se fssemos os nicos herdeiros do universo, quando "o mar corre em nossas veias [...] e as estrelas so nossas jias",

  • quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobia ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os contemplativos no so propensos a se tornarem jogadores, alcoviteiros ou brios; como regra, no pregam a intolerncia nem promovem guerras; no so levados ao roubo, fraude ou opresso dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda acrescentar outra que, embora difcil de definir, no s importante como tambm positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem no praticar a contemplao em sua plenitude, mas mesmo assim nos podero proporcionar informaes esclarecedoras sobre outra e transcendente regio da mente. E, se praticarem-na com elevao, tornar-se-o os condutos atravs dos quais poder advir uma certa influncia benfica, dessa regio ignota, para um mundo de personalidades atormentadas, em constante agonia por falta desse auxlio.

    Enquanto isso, eu me voltara, a pedido de meu interlocutor, do retrato de Czanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude ento observar foi curiosamente decepcionante: meu campo de viso estava repleto de estruturas de cores vivas, em constante mutao, que pareciam feitas de plstico ou de folha esmaltada.

    Vulgar comentei. Ordinrio. Como os objetos de uma loja americana.

    Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.

    E como se algum estivesse, debaixo do convs, em um navio exclamei. Uma loja americana flutuante.

    E, medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretenses humanas. Esse interior sufocante de loja barata embarcada era meu prprio ego; esses vistosos mobiles vulgares, de lata e de matria plstica, eram minhas contribuies pessoais para o universo.

    Achei a lio salutar, embora no deixasse de ser constrangedor que ela me tivesse sido ministrada nesse momento e sob tal forma. De modo geral, quem toma mescalina descobre um mundo interior to claramente definido, to axiomaticamente infinito e sagrado quanto aquele mundo exterior transfigurado que eu havia visto de olhos abertos. A princpio, minha prpria experincia fora diferente. A mescalina me proporcionara, temporariamente, o poder de ter vises de olhos cerrados; mas no pudera ou, ao menos naquela ocasio, no o fez revelar-me uma viso interior remotamente comparvel s minhas flores, cadeira ou s calas de flanela "l de fora". O que ela me permitira perceber, interiormente, no fora o Dharma-Corpreo por intermdio de imagens, e sim minha prpria mente; no um padro de Peculiaridade, mas um conjunto de smbolos em outras palavras, um substituto caseiro dessa Peculiaridade.

    Os indivduos de imaginao frtil so, em sua maioria, transformados em visionrios pela mescalina. Alguns deles e seu nmero talvez seja bem maior do que geralmente se admite no necessitam de transformao; so permanentemente visionrios.

    A espcie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuda, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta no consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto "aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins". No reside em que "estes maravilhosos entes, surgidos em minhas vises, tivessem, alguns

  • deles, cem ps de altura [...] todos repletos de mitolgico e recndito significado". Est apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de xito) com traos e cores, ao menos certos aspectos de uma experincia algo incomum. O visionrio desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior no menos assombrosa, bela e valiosa que o mundo observado por Blake; mas faltar-Ihe- por completo habilidade para exprimir, por meio de smbolos plsticos ou literrios, aquilo que viu.

    Conclui-se perfeitamente, luz dos documentos e rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plsticas que chegaram at ns, que, na maioria das pocas e dos lugares, os homens tm atribudo maior importncia a suas vises interiores que s coisas objetivas que conhecem. Tm julgado que o que vem, quando de olhos cerrados, possui maior importncia espiritual que o visto luz do dia. Qual a razo para isso? A familiaridade gera indiferena, e o problema da sobrevivncia de uma premncia que vai da tediosa rotina tortura. para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhs, nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No mundo interior no h trabalho nem monotonia. Visitamo-lo apenas em sonhos e devaneios, e sua singularidade tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasies sucessivas. Que h, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como regra geral, mas no necessariamente: no somente em sua religio, como tambm em sua arte, os taostas e os budistas Zen procuravam ir alm de suas vises, ao encontro e atravs do Vazio, at as "dez mil coisas" da realidade objetiva. Graas a sua doutrina da Palavra tornada carne, poderiam os cristos, desde o incio, adotar uma atitude semelhante com relao ao universo que os circundava. Mas, em razo da doutrina do Pecado Original, viram-se em grande dificuldade para faz-lo. H apenas trezentos anos, uma expresso de completa fuga ao mundo, e mesmo de sua condenao, era no s ortodoxa como compreensvel: "Nada h na Natureza que merea a nossa admirao, a no ser a encarnao de Cristo". No sculo XVII, essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demncia.

    Na China, a ascenso do paisagismo categoria de arte importante ocorreu h um milnio; no Japo, h uns seis sculos; na Europa, h uns trezentos anos. A identificao da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo taosta com o transcendentalismo budista. Foi, pois, apenas no Extremo Oriente que os paisagistas, conscientemente, encararam sua arte como obra religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo mstico. E, no obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o Impar em sua pluralidade, ficou indignado quando algum lhe elogiou a poesia de suas obras. "Limito-me a aplicar o Sistema", protestou ele.

    Em outras palavras, ele se considerava um praticante do pointillisme* e nada mais. Passagem semelhante conta-se de Constable: Blake, j no fim de sua vida, conheceu-o em Hampstead e examinou alguns de seus esboos. A despeito de seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionrio soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse tratar-se de obra de Rubens. "Isto no desenho", exclamou ele, "isto inspirao!" Ao que Constable lhe teria retrucado, de modo bem caracterstico: "Fi-lo para que fosse desenho". Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao mesmo tempo era inspirao inspirao no mnimo to elevada quanto a de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboo

  • era uma reproduo, necessariamente imperfeita, mas assim mesmo profundamente impressionante, do que uma percepo sem peias revelara aos olhos abertos de um grande pintor. De uma contemplao segundo os moldes de Wordsworth e Whitman, identificando a Divindade com a sebe, e das vises introspectivas, tais como as de Blake, das "maravilhosas entidades", os poetas contemporneos recuaram para uma investigao do que pessoal, como oposto ao mais do que pessoal, subconsciente, e para uma reproduo, em termos altamente abstratos, no dos fatos reais, objetivos, mas de meras noes cientficas e teolgicas. Coisa algo semelhante ocorreu no campo da pintura. Nela verificamos uma fuga generalizada da paisagem forma predominante dessa arte no sculo XIX. Essa fuga no se deu para aquele sublime Princpio interior ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado , para aquele Mundo Modelo, onde os homens tm sempre ao seu dispor estas duas matrias-primas: mito e religio. No; o que houve foi uma fuga para o Princpio exterior, para o subconsciente individual, para um mundo intelectual mais esqulido e ainda mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plstico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as ltimas criaes da arte no-representativa.

    *Tcnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas so aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema.

    Naquele momento, algum acabava de ligar um fongrafo e de pr um disco no prato. Ouvi com prazer a msica; mas nada h que se equipare viso apocalptica que tive das flores e de minhas calas. Poderia um msico, prodigamente aquinhoado pela Natureza, ouvir as revelaes que, para mim, foram exclusivamente visuais? Seria interessante fazer essa experincia. Entretanto, embora no transfigurada, embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a msica contribuiu, e no pouco, para a compreenso do que se passara comigo e dos problemas mais amplos que esses acontecimentos suscitaram.

    A msica instrumental, por estranho que parea, deixou-me bastante indiferente. O Concerto para piano em d-menor, de Mozart, foi interrompido aps o primeiro movimento e substitudo por um disco de madrigais de Gesualdo.

    Essas vozes disse eu com prazer , essas vozes so uma espcie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens.

    E como ponte continuaram, mesmo quando cantando as composies mais povoadas de variaes cromticas dentre as obras do prncipe louco. A msica prosseguiu atravs das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo aquele personagem fantstico de

    um melodrama de Webster a desintegrao psicolgica exagerara, levara aos limites extremos uma tendncia inerente msica modal, em contraposio inteiramente tonai. Da suas obras darem a impresso de terem sido escritas pelo ltimo Schoenberg.

    E no entanto senti-me forado a dizer, enquanto ouvia esses estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval , e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaos. O conjunto catico, mas cada fragmento, de per si, ordenado, a representao de uma Ordem Superior. Essa Ordem Superior sobrepuja a prpria desintegrao. Sente-se a unidade at nos fragmentos. Talvez ela seja mais sensvel do que em uma obra inteiramente

  • coerente. Ao menos, no seremos levados a um sentimento de falsa segurana por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepo direta, de natureza fundamental. Portanto, at certo ponto, a desintegrao pode ter suas vantagens. Mas fora de dvida que ela perigosa; terrivelmente perigosa. Suponhamos que no mais possamos voltar, fugir ao caos...

    Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de trs sculos, para Alban Berg e sua "Suite Lrica".

    Isto avisei antecipadamente ser o inferno.

    Mas, quando a msica comeou, verifiquei que me enganara. Na verdade, a melodia parecia at alegre. Vindo do fundo do meu subconsciente, o enlevo se multiplicava pelos outros tantos tons da orquestra; contudo, o que realmente me impressionou foi a incongruncia essencial entre uma desintegrao psicolgica talvez ainda mais completa que a de Gesualdo e os prodigiosos recursos, tanto em talento como em tcnica, empregados em sua expresso.

    No parece que ele est triste consigo mesmo? comentei

    com zombeteiro desagrado. E logo depois: Katzenmusik!, douta Katzenmusik!* Finalmente, aps mais uns poucos minutos de tortura: Quem se importa com quais sejam seus sentimentos? Por que no pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa?

    Como crtica de uma obra indubitavelmente notvel, ela era injusta e parcial, mas no creio que fosse despropositada. Cito-a, no s pelo valor que possa ter, como tambm por ter sido assim que, em um estado de pura contemplao, reagi ante a "Suite Lrica".

    * Literalmente, "msica de gatos"; expresso alem empregada para definir uma msica desagradvel.

    Quando acabou sua execuo, sugeriu-me o pesquisador que passessemos pelo jardim. Gostei da idia e, embora meu corpo parecesse ter-se separado quase por completo de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade do transfigurado mundo exterior j no mais se fizesse acompanhar da de meu prprio organismo), do ponto de vista fisiolgico verifiquei ser capaz de levantar-me, abrir a porta e sair para o jardim com um mnimo de hesitao. Era, na verdade, estranho sentir que eu no era a mesma coisa que esses braos e pernas l de fora; que esse tronco, esse pescoo, essa cabea mesma. Era estranho; mas em breve acostumamo-nos a isso. E, seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si prprio. Na verdade, ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer formular desejos, que so ento transmitidos ao corpo por foras que ele controla muito pouco e absolutamente no compreende. Quando faz algo mais por exemplo, quando se esfora em demasia, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro , reduz a eficincia dessas foras e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoea. Em meu estado, no momento, a perceptibilidade no era encaminhada a um ego; estava, por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligncia fisiolgica que controla o organismo tambm estava entregue a si mesma. Nessa ocasio, aquele importuno neurtico que, nas horas de viglia, se esfora por "dirigir o espetculo" estava, felizmente, fora de ao. Transpondo a porta, sa para uma espcie de prgula, em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centmetros de largo, a intervalos de um centmetro umas das outras. O sol brilhava, e a sombra das ripas formava um zebrado claro-escuro no cho da varanda, no assento e no encosto de uma

  • cadeira de jardim que se achava prxima casa. Aquela cadeira! Poderei algum dia esquec-la? As alternncias de sombra e luz formavam, sobre a lona de seu estofo, listras de um anil intenso, porm luzente, sucedidas por outras de uma incandescncia to intensamente brilhante que era difcil acreditar no fossem produzidas por chamas azuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmo desejar saber que que tinha diante de mim. Em outra ocasio qualquer teria visto apenas uma cadeira com barras alternadas de luz e sombra. Mas, no momento, a percepo sensorial dominara a idia. Eu estava to absorto na contemplao, to estupefato pelo que via, que no pude ter conscincia de nada mais. Mobilirio, ripas, luz do sol, sombra tudo isso no passava de nomes e noes; de meras verbalizaes para o aproveitamento cientfico ou utilitrio dos resultados. O resultado era essa sucesso de portas de fornalha azul-celeste, separadas por insondveis abismos de genciana. Aquilo era indizivelmente maravilhoso; de uma sublimidade que tocava as raias do terrfico. E ento, repentinamente, tive uma vaga noo do que seja sentir-se louco. A esquizofrenia tem seus parasos, de par com seus infernos e purgatrios. Lembro-me do que um velho amigo, de h muito falecido, contou-me sobre a doena da esposa. Um dia, nos primeiros estgios da enfermidade, quando ela ainda desfrutava intervalos de lucidez, tinha ido visit-la no hospital e dar-lhe notcias dos filhos. Ela o ouviu por algum tempo e ento, de sbito, interrompeu-o: como poderia ele perder tempo com um casal de crianas ausentes quando tudo o que verdadeiramente importava, ali e naquele instante, era a indizvel beleza dos desenhos que ele criava, em seu casaco marrom de xadrez, a cada movimento de braos? Infeliz! Esse paraso de percepo ilimitada, de contemplao pura, parcial, no iria durar. Os intervalos felizes tornaram-se mais raros, mais breves, at que, finalmente, desapareceram de vez; s restou o horror...

    Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensaes celestiais da esquizofrenia. A droga s leva o purgatrio ou o inferno queles que tenham tido um acesso recente de ictercia ou que sofram de depresses peridicas ou ansiedade crnica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse reconhecidamente txica, sua ingesto seria suficiente para provocar ansiedade. Mas o indivduo razoavelmente saudvel sabe antecipadamente que, para si, esse alcalide ser completamente incuo e que seus efeitos tero cessado aps oito ou dez horas, sem deixar sensaes desagradveis nem, conseqentemente, nsias por novas doses. Fortalecido por essa convico, ele pode entregar-se experincia sem temores em outras palavras, sem qualquer predisposio para converter um ensaio de uma singularidade sem precedentes, inumano, em algo de aterrador, de verdadeiramente diablico.

    Diante de uma cadeira que parecia um Juzo Final ou, para ser mais preciso, ante um Juzo Final que, depois de longo tempo e com considervel dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira , eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do pnico. Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma presso de realidade muito superior que uma mente, acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortvel mundo de smbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experincia religiosa, abundam referncias aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestao do Mysterium Tremendum. Em linguagem teolgica, esse temor funo da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina;

  • entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, s pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatrio. Doutrina praticamente idntica a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e at mesmo das Luzes menos intensas, indo lanar-se, precipitadamente, na confortadora escurido da personalidade, reencarnando-se em um recm-nascido, transformando-se at em animal, em um infeliz fantasma ou indo ter ao inferno. H de preferir qualquer coisa ao gneo refulgir da implacvel Realidade qualquer coisa!

    O esquizofrnico uma alma, no s impura, como tambm desesperadamente desgostosa com sua situao. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivduo so) refugiando-se no universo do senso comum, por ns mesmos construdo esse mundo estritamente humano das noes teis, dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenes socialmente aceitveis. O esquizofrnico qual homem sob a influncia contnua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele no pode suportar por lhe faltar pureza; que no pode interpretar por ser ela o mais inflexvel dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, fora-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestao da maldade humana ou at csmica, levando-o s mais desesperadas contramedidas que vo da violncia assassina, de um lado da escala, at a catatonia ou suicdio psicolgico , do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal, ningum poder mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para mim.

    Quem enveredar pelo caminho errado disse eu em resposta s perguntas de meu inquiridor encontrar, em tudo o que acontecer, uma prova da conspirao que se articula contra si. Tudo servir de confirmao. A prpria respirao estar fazendo parte do sinistro plano.

    Com que ento voc acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo "Sim".

    E no poderia control-la?

    No; no poderia faz-lo. Quem comea com medo e dio, como principais premissas, ter de ir at o fim.

    Voc seria capaz perguntou-me minha esposa de fixar sua ateno naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?

    Fiquei em dvida.

    Seria ela capaz de manter o mal afastado, caso voc pudesse encar-la? insistiu ela. Ou ser que voc no poderia fit-la?

    Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:

    Talvez; talvez o conseguisse. Mas s se houvesse l algum que pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. No possvel fazer-se isso a ss. Da a razo, creio eu, para o ritual tibetano assentar-se algum ao nosso lado, durante todo o tempo, para dizer o que vai ocorrendo.

    Depois de escutar a gravao dessa parte da experincia, apanhei meu exemplar da traduo do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: " tu, que

  • nasceste nobre! No permitas que tua mente seja distrada". Esse era o problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordao de pecados passados; ante a evocao de prazeres, a amarga lembrana de antigos erros e humilhaes; ante todos os temores, dios e ansiedades que, de ordinrio, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas faziam com os mortos e os agonizantes no poderia ser feito com os insanos pelo psiquiatra moderno? Que haja uma voz para lhes assegurar, durante as horas de viglia e at mesmo enquanto dormem , que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confuso, a Realidade fundamental permanece imutvel e idntica, em sua substncia, luz interior, mesmo da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de artifcios tais como gravadores, relgios de controle de circuitos, sistemas de alto-falantes, inclusive distribudos pelos travesseiros, seria faclimo fazer com que os internados, mesmo em casas de sade pobres em pessoal, fossem constantemente doutrinados sobre esse fato primordial. Talvez algumas dessas almas desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obteno de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um s tempo maravilhoso e aterrador, , no entanto, permanen