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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Odila Amélia Veiga França
ALFABETIZAÇÃO, HISTÓRIA DE VIDA E
FORMAÇÃO NA PESQUISA INTERDISCIPLINAR:
SENTIDOS E SIGNIFICADOS
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
São Paulo 2014
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Odila Amélia Veiga França
ALFABETIZAÇÃO, HISTÓRIA DE VIDA E
FORMAÇÃO NA PESQUISA INTERDISCIPLINAR:
SENTIDOS E SIGNIFICADOS
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Educação: Currículo, sob a orientação da Profa. Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda.
São Paulo 2014
3
Banca Examinadora
4
É preciso não temer. Não fugir do futuro. E a hora do desafio é agora!
(Odila Amélia Veiga França)
Até por que...
Se você pensa que consegue ou que não consegue, em ambos os casos você está
absolutamente certo.
(Henry Ford)
Ademais, ...
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem
demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora do filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz
que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz (EPICURO, apud RIOS, 2008, p. 150).
5
Luz do Mundo. Sal da Terra.
A vida é dádiva! Enquanto tal, não deve ser negociada nem vendida. A vida deve ser doada.
Que o conhecimento adquirido na vida e aqui construído possa significar instrumento ativo para eu praticar essa doação.
Só assim o conhecimento terá sentido. Só assim a vida valerá a pena!
(Odila Amélia Veiga França)
6
Ao Ge, amor além da vida,
que sempre soube (e ainda sabe)
de tudo o que é capaz de me fazer feliz.
Que sempre esteve e que está aqui e
agora comigo.
A poiesis da minha existência!
E ...
à doce Piti que, pelos exemplos dados em vida, fez triplicada a minha
capacidade de acolher a vida tal qual ela se dá. E hoje, do “País da Verdadeira
Vida”, continua me ensinando sobre essas coisas.
7
Ao Jairo, a quem humildemente peço perdão pelas obscuridades docentes, pois, em
sua plena infância promissora, impus-lhe, sem tomada de consciência, a dura ordem
regressiva!!!
UM LUGAR VAZIO, POR QUÊ? ...
POR QUE VOCÊ FOI EMBORA, JAIRO...
Figura 1 – Um lugar vazio. Por Quê? ... Fonte: Carteira Escolar. Disponível em: paulofranke.blogspot.com. Acesso em: 29 set. 2014.
Sem receber o “primeiro livro” das
minhas mãos....
Sinto que você sentiu dor... ... vergonha...
Pudera! Nem você sabia que sabia pensar!!!
As carteiras ocupadas por mim, Jairo, nunca ficaram vazias como a
que você deixou...
Mas o vazio da sua ausência foi, durante todos esses anos,
muito mais vazio do que a
carteira que você deixou!...
Contudo, nos encontramos outra vez. Eu e você na academia. Quem diria? Talvez, só mesmo Cecília Meireles,
Basta-me um pequeno gesto.
feito de longe e de leve para que venhas comigo
e eu para sempre te leve!
8
À minha mãe Emília “minha primeira zona de conforto e segurança total”, de olhar
interdisciplinar, eu digo: a vida que conta é a sua, porque ela é muito mais amor que
matéria. É muito mais um conhecer do que ser conhecido. Eu a amo!
Aos meus filhos Patrícia e Levi, porque são filhos que toda mãe gostaria de ter e eu
os tenho como bênçãos do céu.
À Maria Odila e à Maria Emília, minhas adoráveis netinhas, que com
a graça e a simplicidade das flores do campo matizaram com as
cores do arco-íris a minha vida. E hão de sustentar as suas próprias
vidas na ciência e na fé; no saber e no fazer; no ser e no conviver
interdisciplinares.
As “gerações chegantes” dos sobrinhos-netos para que se sensibilizem com a
grandeza de Deus, com a beleza da vida e com a relevância do conhecimento
científico.
À garra e à perseverança que definem o “ser no mundo” dos França, dos Pereira,
dos Veiga, e dos Simões Berthoud.
Ao casal Andréia e Oliveira, meus “filhos” do coração: As boas ideias que vocês têm
na cabeça removem os problemas, as habilidades que vocês têm nas mãos movem
as soluções, mas o amor que vocês têm no coração comove a todos. Obrigada!
“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mais na intensidade com
que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e
pessoas incomparáveis”, assim como você, Andréa Cristina. Sem tirar e nem pôr!
À Nadir pela incondicional amizade e cuidado comigo e com os meus e à Priscila por
olhar as minhas netas pelo meu olhar.
Ao Tuti, outro “filho” do coração, obrigada pelo companheirismo e gestos sempre
afetuosos.
Maria Emília
9
Figura 2 – O Sagrado Fonte: Arquivo Pessoal
10
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda que aprovou a minha decisão por um
resgaste intelectualmente desafiador e emocionalmente tocante, a quem submeto a
análise deste trabalho aos olhares rigorosos da teoria interdisciplinar.
À “Emília” que existe ousada na interdisciplinaridade de Fazenda.
Ao Prof. Dr. Cláudio Piccolo. Sou a “Emília”, habitante do seu ser e tenho
encontrado abrigo seguro no seu saber. E isso é tudo! O resto é “nada... nada...
nada...”.
Ao Prof. Dr. Ruy Cezar do Espírito Santo. Eu o escolhi para participar da minha
Banca Examinadora, a exemplo de Fernando Pessoa, “não pela pele, mas pela
pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante”.
À Profa. Dra. Edna Maria Querido de Oliveira Chamon. Um currículo não faz a
pessoa. A pessoa, sim, faz um currículo. Este pode fazer da pessoa que o fez, uma
celebridade ou então situá-la em lugar comum. Mas é o “ser no mundo e o ser ao
mundo” que verdadeiramente celebra a razão de ser e existir da pessoa. Esse é o
seu caso!
À Profa. Dra. Mariana Aranha Moreira José, amiga pessoal, aqui lhe digo que as
pessoas que vencem nesse mundo são as que procuram as circunstâncias de que
precisam e, quando não as encontram, as criam. No seu caso, põem criatividade
nisso! Você e sua coerência são imprescindíveis à humanidade.
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À Profa. Dra. Fátima Aparecida Arantes Sardinha, um presente na minha vida que
faz o tempo presente ser magnânimo e ilimitado. Por isso, “não nos afastemos
muito, vamos de mãos dadas”.
À Profa. Dra. Ana Maria Reis Taino. Como nos velhos tempos de formação
continuada na Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) e no Centro
de Aperfeiçoamento de Recursos Humanos (CARH) de São José dos Campos,
insisto em te pedir “dá-me a tua mão: vou agora te contar como entrei no
inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta”.
Aos filósofos Prof. Dr. Antonio Chizzotti e Prof. Dr. Mário Sérgio Cortella por me
permitirem juntar os pequeninos miosótis das minhas ideias aos jequitibás enormes
desses dois gigantes.
À Professora Dra. Mere Abramowicz que mediou minhas primeiras compreensões
acerca da relevância do currículo criado no cotidiano escolar.
À Profa. Dra. Delfina de Paiva Villella, amiga pessoal e de quem fui sujeito da
pesquisa intitulada “Estudo das Unidades Escolares de Ação Comunitária – UEAC
da Delegacia de Ensino de Taubaté, pela boniteza da parceria na vida acadêmica e
sobretudo neste trabalho.
À Profa. Dra. Marilda Prado Yamamoto, parceira fiel de jornada acadêmica e amiga
pessoal, com quem tenho dividido momentos de dor e de alegria de nossos
cotidianos, todos construtores de vínculos sólidos, desses que marcam a vida de
forma indelével. Afinal, aprendemos juntas que a parceria nos possibilita trocar
intersubjetividades no sentido de que seu pensar objetivo e substantivado venha
substantivar o meu pensar criativo e aberto à complementaridade do seu.
12
À Profa. Dra. Roseli dos Santos Albino, amiga pessoal por quem tenho respeito
integral como pessoa e como educadora. Obrigada pelo querer fraterno e por me
mover como profissional.
Ao notável linguista Prof. Me. Joel Abdala – Grupo de Estudos de Língua
Portuguesa (GELP), da UNITAU, educador de tantos, pela segura orientação na
transformação dos conteúdos vividos e aprendidos em novos instrumentos de
aprendizagem da língua portuguesa.
À mestra e amiga pessoal Cássia Elisa Lopes Capostagno... referência que
desponta em meio à exuberância da leitura e da escrita... Que tem a alma envolta na
linguagem e tece o encontro da sua força educadora com a força educativa das
palavras... E se completa na riqueza delas.
À educadora Ebe Camargo Pugliesi: Seu apoio valoroso me chegou, como sói
acontecer, em momento decisivo deste trabalho. Só educadores da sua categoria
abrem-se ao outro na plenitude da atitude solidária. Obrigada!
À educadora Maria Christina de Toledo Simões: Amiga, Charles Chaplin diz que
cada pessoa que passa em nossa vida deixa um pouco de si e leva um pouquinho
de nós. Creio que você tem levado até pouco de mim, mas deixado, muito ... muito
de você!
À Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, lócus de ação de agentes
especializados do conhecimento e instância de formação de pesquisadores, o meu
reconhecimento incondicional.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares (GEPI) e as suas lideranças,
reitero a humildade e a disciplina inegociáveis que dão sentido ao desejo de
continuar dele ter parte ativa. A atitude de conhecer nesse hábitat, é consequente,
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pertinente e relevante. Com certeza o GEPI marcou o período de muitas mudanças
na minha vida.
À Universidade de Taubaté que como instituição de ensino superior cumpre o papel
de mediar a árdua travessia do conhecimento comum ao conhecimento científico.
Aos parceiros do Programa de Educação Continuada (PEC) da Universidade de
Taubaté – por me ensinarem que só somos humanos juntos.
Aos dirigentes e educadores do Departamento de Educação, Cultura e Esportes
(DECE – 1998/2000), que me impulsionaram a pensar a prática estando nela e a
aprender a ser na interação.
Às educadoras e amigas do peito: Edna Manfredini, Eiko Nishisawa, Hilda Árias,
Maria Aparecida dos Passos Ferreira e Maria Rosa Pistilli, que me ensinaram, cada
uma a sua maneira, que o importante tem que respeitar o tempo do essencial.
De Luciana Ramos da Silva, english personal training, trago comigo o exemplo de
garra, capacidade de trabalho, coragem e ousadia. O gosto de mel da parceria, do
fino trato e do grau de positividade que juntas conseguimos atingir nas eficientes
aulas de inglês. A ela, profundos agradecimentos.
Aos amigos da fé “que não costuma falhar” e que comigo partilharam da rica
experiência das Unidades Escolares de Ação Comunitária (UEAC), na jamais
esquecida região do Vale do Ribeira e que só fisicamente estão distante de mim.
Ao Amarildo pela colaboração neste trabalho e a todos aqueles que cuidaram de
mim nos dias de correrias e aflições
Ao amigo Celsinho pelo zelo e carinho comigo e com os meus.
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Ao Eduardo e à Sandra que mesmo distantes mantêm a ternura filial que nos une.
Aos formadores de formadores dos dias atuais, para que resistam à sedução
intencional de encerrar o ensino nos limites demarcados da disciplina e de cristalizá-
lo na ambição igualitária do positivismo.
Àqueles educadores anônimos que me ajudaram a decidir pelo investimento físico,
mental, emocional e financeiro nesta pesquisa, que também é deles.
Aos alunos-professores do PARFOR que de terça em terça-feira me ensinam cada
vez mais. Quero sabê-los em busca contínua das terras sonhadas.
A todos os meus alunos e ex-alunos que tanto me ensinaram a aprender.
Ao Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto que, na existência terrena, repetia: “um dos
meus pontos fortes de inserção no mundo é a educação”.
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ODILA AMÉLIA VEIGA FRANÇA
ALFABETIZAÇÃO, HISTÓRIA DE VIDA E FORMAÇÃO NA PESQUISA INTERDISCIPLINAR: SENTIDOS E SIGNIFICADOS
RESUMO
A interdisciplinaridade é a base desta pesquisa, de abordagem qualitativa, que se vale de uma narrativa entretecida na história de vida e na formação pedagógica da pesquisadora, resgatada pela memória. Trata-se da tese que tem origem no fato pedagógico vivido com o aluno Jairo, no ensino da leitura e da escrita no processo inicial de alfabetização, numa Escola de Emergência Multisseriada, localizada na zona rural do município de Sete Barras, Estado de São Paulo, região sul do Vale do Ribeira, no ano de 1968. O problema de pesquisa, ou a inquietação da pesquisadora e sua busca primeira, está assim formulado: em que sentido a teoria interdisciplinar, tomada como iluminação teórica do estudo do fato pedagógico, pode fundamentar a discussão da formação disciplinar da professora, hoje, pesquisadora? Pode explicar a relação da professora e do aluno Jairo com o saber? Pode fertilizar os caminhos da melhor qualificação docente às novas gerações de educadores? O objetivo precípuo é tomar a experiência como objeto de estudo com fins de realizar a análise crítica dos efeitos da ação alfabetizadora relacionada com a formação disciplinar da pesquisadora. Busca-se fecundar os elementos originários do fato pedagógico, analisar os seus traços mais salientes nas dimensões epistemológica, metodológica e político-pedagógica, confrontadas com a realidade educacional do contexto analisado, para encontrar os sentidos e os significados da experiência aqui colocada à luz da ciência interdisciplinar e fenomenológica. As contribuições do estudo para a formação inicial e continuada de professores da educação básica justificam a relevância social, teórica e político-pedagógica da pesquisa. Defende a pesquisadora que o alcance de resultados satisfatórios no ensino, na aprendizagem e na avaliação do desempenho escolar dos alunos está intrinsecamente ligado à qualidade da formação do professor. Entende que problematizar a realidade educacional é, antes de um exercício salutar, um dever e uma atitude ética de todo educador. Uma docência que se quer repensada e requalificada tem que, fundamentalmente, sondar os seus sentidos e seus significados em favor da qualidade histórica e sociocultural da comunidade à qual serve. Dada a natureza e a singularidade da pesquisa interdisciplinar, é forçoso respeitar a amplitude e a abrangência do seu campo teórico, entrelaçando-o com outras searas do conhecimento, como a história de vida, a formação docente, a educação dialógica enquanto possibilidade de libertação do ser, por fim, a educação pautada nos fundamentos da fenomenologia e no autoconhecimento.
Palavras-Chave: Interdisciplinaridade. Alfabetização. História de Vida e Formação. Fenomenologia. Autoconhecimento.
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ODILA AMÉLIA VEIGA FRANÇA
LITERACY, LIFE HISTORY AND EDUCATIONAL BACKGROUND IN THE INTER-
DISCIPLINARY RESEARCH: SENSES AND MEANINGS
ABSTRACT
The interdisciplinarity is the basis of this research, of qualitative approach, and of a narrative of the pedagogic kind interweaved in the life history and educational background of the researcher, rescued by memory. It has to do with a thesis originated from the pedagogic fact experienced by the pupil Jairo, in the teaching of reading and writing in his early stages of the literacy process, in an Emergency Multi-series School, situated in the countryside of the municipality of Sete Barras, São Paulo State, southern region of the Vale do Ribeira, in 1968. The problem of the research, or even the restlessness of the researcher in her first search, is then formulated. In which sense, can the inter-disciplinary theory, taken as theoretical illumination of the study of the pedagogic fact, justify the discussion over the researcher’s disciplinary educational background, a researcher nowadays? Can also explain the relationship of both the teacher and pupil with knowledge? Can fertilize the ways of the best teaching qualification to the educators’ generations? This research has as its main purpose to take experience as an object of study as a means of carrying out a critical analysis of the effects of a literacy action related to the disciplinary educational background of the researcher. It aims at fecundating the originating elements of the pedagogic fact, analyze its most enhanced traces in epistemological, method as well as political - pedagogical dimensions confronted with the educational reality of the context analyzed, in order to find senses and meanings of the experiences here put to the light of the inter-disciplinary and phenomenological science. Due to the contributions of the study for the initial and continued educational background of teachers from the basic education, it is possible to recognize the social, theoretical and political-pedagogic relevance of the research. The researcher defends the idea that satisfying results in the teaching and learning process, as well as pupil’s performance evaluation is closely related to the quality of teacher’s educational background.it is understood that looking at the educational reality as a problem, is, before being a salutary exercise, it is a duty and ethical attitude of any educator. A teaching desired to be rethought and qualified, has primarily to probe its senses and meanings in favor of the historical and socio-cultural quality of the community it serves. Considering the nature and singularity of the inter-disciplinary research, it is forcedly necessary to respect its amplitude and broadness of its theoretical field, interweaving it to other aspects of knowledge such as life history, teacher’s education background, and dialogical education with the possibility of freeing the human being, and at last, education based on the fundamentals of Phenomenology and self-knowledge.
Keywords: Interdisciplinarity. Literacy. Life History and Educational Background. Phenomenology. Self-knowledge.
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LISTA DE SIGLAS
APM Associação de Pais e Mestres
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior
CARH Centro de Aperfeiçoamento de Recursos Humanos
CE Conselhos de Escola
CEFAM Centros Específicos de Formação para o Magistério
CEI Coordenadoria de Ensino do Interior
CENP Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
DECE Departamento de Educação, Cultura e Esportes
DOE Diário Oficial do Estado
EJA Educação de Jovens e Adultos
ESALQ Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”
FAFLICA Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes
FDE Fundação para o Desenvolvimento da Educação
FUNART Fundação Nacional de Artes
GE Grêmios Estudantis
GEDH Grupo de Estudos de Desenvolvimento Humano
GELP Grupo de Estudos de Língua Portuguesa
GEPI Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares
INTERESPE Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação
NEF Núcleo de Estudo do Futuro
PARFOR Plano de Formação de Professores da Educação Básica
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PEC Programa de Educação Continuada
PMT Prefeitura Municipal de Taubaté
PNLD Plano Nacional do Livro Didático
PROFA Programa de Formação Professores Alfabetizadores
PROJOVEM Formação profissional dos professores para atuação no
Programa Nacional de Juventude
PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SEE/SP Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
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UDEMO Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do
Estado de São Paulo.
UEAC Unidades Escolares de Ação Comunitária
UERJ Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO - acrônimo de United Nations Educational,
Scientific and Cultural)
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNITAU Universidade de Taubaté
USP Universidade de São Paulo
USP Universidade de São Paulo
ZDP Zona de Desenvolvimento Proximal
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Um lugar vazio. Por Quê? ... ...................................................................... 7
Figura 2 – O Sagrado .................................................................................................. 9
Figura 3 – Representação imagética da tríade dos elementos do processo de
aprendizagem .......................................................................................................... 183
Figura 4 – Emília ficcional de Lobato ...................................................................... 280
Figura 5 – Emília, verdade factual da Odila, no seu primeiro momento de
teatralização na PUC/SP, nov. 2010 ....................................................................... 280
Figura 6 – A Velha e a Moça .................................................................................. 317
Figura 7 – Mapa da Região do Vale do Ribeira onde trabalhei e morei. Adaptado
pela Pesquisadora ................................................................................................... 336
Figura 8 – Odila Amélia Veiga: normalista, de fato, nos “anos dourados” (1967) ... 337
Figura 9 – Malu Mader: normalista em "anos dourados" (Seriado televisivo) ......... 337
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 22
1 CAMINHOS METODOLÓGICOS ......................................................................... 45
1.1 A definição do método de condução da pesquisa: a linha de raciocínio e os
motivos da escolha do tema ...................................................................................... 45
1.1.1 A Abordagem Qualitativa .................................................................................. 54
1.1.2 Por uma pesquisa interdisciplinar e uma narrativa do tipo pedagógica
entretecida na história de vida e formação da pesquisadora resgatadas pela
memória .................................................................................................................... 56
2 A VERDADE HISTÓRICA DA PESQUISADORA ................................................ 62
2.1 Quem é Odila? A que veio? Quer falar de quê? .................................................. 62
2.2 Implicações da formação inicial disciplinar da pesquisadora no pensar certo a
educação (1967) ....................................................................................................... 67
2.3 As pedras do caminho e a primeira travessia guiada pela intuição mais que pelo
conhecimento elaborado (1968) ................................................................................ 74
2.4 Quem é o Jairo? ................................................................................................. 78
2.5 A escrita de Jairo e a desestabilização do modelo convencional do ensino da
escrita: o sentido da história da consciência ............................................................. 87
2.6 Do conhecimento profissional compartilhado ao conhecimento educacional
especializado: as múltiplas redes de contato ............................................................ 97
2.7 A formação de formadores na educação municipal de Taubaté/SP (1997/2000)
................................................................................................................................ 103
2.8 Conversa com quem gosta de ensinar e aprender, dirigida aos formandos e
futuros formadores das gerações futuras ................................................................ 118
3 A CONVERSA INTERDISCIPLINAR COM JAIRO SOBRE O FATO
PEDAGÓGICO: O exercício da crítica ................................................................. 125
4 OS CAMINHOS APRENDENTES DA ALFABETIZAÇÃO: Pedaços
significativos da história de vida e formação da pesquisadora ........................ 166
4.1 O encontro com Cagliari no ano de 1970 ...................................................... 169
21
4.2 Um novo encontro e desta vez com Emília Ferreiro. Novo encontro e novas
lições: dose dupla de ensinamentos ─ Emília Ferreiro e Ana Teberosky ............... 180
4.3 O fenômeno educativo caracterizado no fato pedagógico e fundamentado na
teoria linguística ...................................................................................................... 188
5 A INTERDISCIPLINARIDADE PRÁTICA E AS PRÁTICAS ESCOLARES
INTERDISCIPLINARES: o diálogo, a linguagem e a relação dialógica na prática
educativa sentidos e significados .................................................................... 206
6 “EMÍLIA” EM MIM: A LIBERAÇÃO DE SUBJETIVIDADES NO DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR TECIDO NOS FIOS DA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL E
LOBATO: sentidos e significados ....................................................................... 223
6.1 Os antecedentes da dinâmica da teatralização ................................................. 223
6.2. A dinâmica da teatralização .......................................................................... 231
6.3 A fenomenologia como paradigma de interpretação da realidade e algumas
contribuições para o processo educacional............................................................. 268
7 TECENDO A LEITURA INTERDISCIPLINAR DOS FUNDAMENTOS
FENOMENOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO ─ Consciência e conscientização,
palavra e liberdade, teoria e prática, tempo e espera: interrelações, sentidos e
significados ........................................................................................................... 281
8 O AUTOCONHECIMENTO: o encontro do sentido pela leitura interdisciplinar
e fenomenológica .................................................................................................. 297
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 312
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 320
APÊNDICES ........................................................................................................... 336
APÊNDICE A – Cidade de Sete Barras .................................................................. 336
APÊNDICE B – Normalista ..................................................................................... 337
APÊNDICE C – Informações complementares para entendimento do texto – sobre a
Emília e Monteiro Lobato ........................................................................................ 339
APÊNDICE D – Informações complementares sobre Edmundo Husserl ................ 341
APÊNDICE E – Explanação sobre alguns termos utilizados ou teorias ................. 342
APÊNDICE F – Sebastião Salgado – Uma breve biografia ..................................... 343
APÊNDICE G – Platão ........................................................................................... 344
APÊNDICE H – A Palavra escrita permanece / Ecofuturo ...................................... 345
22
INTRODUÇÃO
A ciência se constrói não pela prudência dos que marcham, mas pela ousadia dos que sonham. Todo conhecimento começa com um sonho. O conhecimento nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada.
(ALVES, 2008, p. 23)
Esta investigação nasceu do desejo incontido da pesquisadora, que de tanto,
a fez persistir no resgate do caso de ensino aqui tomado como fato pedagógico,
ocorrido no ensino da leitura e da escrita na Escola de Emergência Multisseriada,
localizada na zona rural do município de Sete Barras (APÊNDICE A), Estado de São
Paulo, região sul do Vale do Ribeira, no ano de 1968.
Dizer que esta investigação é norteada pela perspectiva interdisciplinar
significa, para a pesquisadora, satisfazer mais um desejo antigo na obtenção de um
conhecimento intimamente relacionado as suas necessidades vitais de conhecer.
Significa também dizer da ânsia de a pesquisadora encontrar as possíveis respostas
às perguntas intelectuais e às perguntas existenciais postas por ela em espontânea
incumbência de encontrá-las.
Assim, a persistência e a decisão pela investigação do fenômeno linguístico
ocorrido naquela memorada sala de aula de roça, no processo de alfabetização
inicial e hoje trazida a estudo no âmbito da academia em grau de doutorado, guarda
cumplicidade com os imperativos categóricos da interdisciplinaridade e mantém
reciprocidade com a luta empenhada pela pesquisadora ao longo de sua carreira
profissional e acadêmica, no esforço da aproximação do conhecimento comum ao
conhecimento científico e na parceria ininterrupta com a Secretaria de Estado da
Educação de São Paulo (SEE/SP), para o desenvolvimento dos processos de
formação continuada dos profissionais daquela Rede de Ensino.
Muito tempo foi concedido à espera “vigiada” para a captação da essência do
fato pedagógico ora analisado, embora naquele primeiro ano de minha experiência
docente a inquietação, dele derivada, já habitasse os espaços vazios da totalidade
desconhecida em relação às especificidades do ato de ensinar e aprender,
23
sobretudo o ler e escrever. O impulso, pois, diz respeito ao imperativo para o voo
livre sobre o ainda não sabido.
Dessa forma, motivada pelas inquietações provocadas pelo fato pedagógico
originado no modelo de escrita do Jairo e nos questionamentos decorrentes do fato,
esta pesquisa tem a finalidade precípua de construir conhecimento suficiente para
assegurar a pertinência das perguntas intelectuais e das perguntas existenciais
postas pela pesquisadora e que estão nos propósitos e conteúdos explicitados e/ou
subjacentes no texto.
Sustentada por referenciais teóricos que dão sentido à arquitetura da
pesquisa, procede-se à reanálise do fato pedagógico de forma a perceber a
importância de o processo de alfabetização considerar as várias dimensões do ser
engastadas nas múltiplas dimensões do aprender, bem como para reconhecer que a
educação verdadeiramente de qualidade é aquela que lança mão de ferramentas,
não só úteis, mas sobretudo eficazes na construção dessa qualidade. Ferramentas,
portanto, que indicam caminhos mais adequados e que explicam a geografia da
amplitude e da abrangência dos próprios caminhos apontados para a construção
almejada. Ferramentas e caminhos nem únicos e nem puramente abstratos,
tampouco absolutos ou autossuficientes. Ferramentas que, antes de tudo, respeitam
os sujeitos da aprendizagem, tanto quanto os objetos de conhecimento; que
respeitam a ciência e a responsabilidade de elegê-la para nortear o sentido e o
significado da tarefa transformadora. Responsabilidade nos moldes proclamados por
Saramago: “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos.
Sem memória não existimos e sem responsabilidade, talvez, não devamos existir”
(SARAMAGO, apud BRITO, 2013, p. 8). Neste sentido, o teor evocativo de
Delacroix, trazido por Bourdieu (1996) e transcrito abaixo, dá sentido à opção da
pesquisa:
Todos os assuntos tornam-se bons pelo mérito do autor. Oh! Jovem artista, esperas um assunto? Tudo é assunto, o assunto é tu mesmo, são tuas impressões, tuas emoções diante da natureza. É em ti que é preciso olhar, e não em torno de ti. O verdadeiro assunto da obra de arte não é nada mais que a maneira propriamente artística de apreender o mundo, isto é, o próprio artista, sua maneira e seu estilo, marcas infalíveis do domínio que tem de sua arte (DELACROIX, apud BOURDIEU, 1996, p. 334).
24
Pois que o exame do fenômeno educativo não pode perder de vista a
dimensão sociocultural dele próprio quanto à evolução temporal do fato pedagógico
que lhe é inerente. Também não se pode perder o modelo de formação e ensino
naquela época instituídos, permitindo que a experiência alfabetizadora não sofra do
afastamento da percepção histórica e de tudo que a una à sociedade e à história de
vida e formação da pesquisadora. Isso porque são os aspectos considerados na
análise, entretecidos na “[...] história social das lutas a propósito das formas que
constitui a vida e o movimento do campo artístico”, conforme orienta Bourdieu (1996,
p. 336). Como semelhante busca é a do campo da educação, a pesquisadora dedica
esforços para encontrar apaziguadas as inquietações que a acompanham
sistematicamente desde a iniciação no magistério, sobretudo aquelas derivadas do
fato pedagógico posto à análise. E “[...] é a análise das condições sociais de
possibilidade dessa atividade singular” que poderá favorecer o rompimento com os
seus pressupostos introduzidos de forma impositiva.
Sobre isso, afirma Bourdieu (1996):
[...] ao fim, todo o compreender é um compreender de si mesmo... [...] Compreender é reaprender uma necessidade, uma razão de ser, reconstruindo, no caso particular de autor particular, uma fórmula geradora, cujo conhecimento permite reproduzir, de outro modo, a própria produção da obra, experimentar lhe a necessidade a realizar-se mesmo fora de toda experiência empática... [...] não se pode reviver ou fazer reviver o vivido dos outros, e não é a simpatia que leva à compreensão verdadeira, é a compreensão verdadeira que leva à simpatia, ou melhor, a essa espécie de amor intelectualis que, baseado na renúncia do narcisismo, acompanha a descoberta da necessidade (BOURDIEU, 1996, p. 336, grifo do autor).
Ademais, a pesquisa analisa o modelo de formação disciplinar percebido
como falho frente ao compromisso ético e político-pedagógico na educação e no
ensino de qualidade na escola básica.
Trata-se de uma experiência docente singular que impulsiona a pesquisadora
à tomada de decisão de escolher o caminho de análise do fato pedagógico para
então compreender a situação-problema experienciada posta à luz da teoria
interdisciplinar e reavaliada quanto as suas antigas crenças, valores e teorias
embasadoras do processo ensino-aprendizagem, especialmente na alfabetização
25
inicial, reorganizando o seu pensamento e investindo na ampliação e solidez dos
seus conhecimentos adquiridos na Escola Normal que a habilitou para o Magistério.
O resgate empírico de abordagem interdisciplinar da experiência vivida situa a
professora, naquele contexto rural, convivendo com a incerteza e a insegurança de
seu modelo teórico-conceitual e metodológico impresso pela sua formação básica
disciplinar. Tentando administrar o conhecimento difuso de si mesma, próprio de
uma jovem no auge de seus vinte anos; o desconhecimento do público para o qual
estava endereçada a educação escolar, a instrução e o ensino oferecidas pela
escola. Enfrentando ainda a compreensão requerida à desconstrução do método e
da metodologia de alfabetização aprendidos na renomada Escola Normal de
Formação para o Magistério – Instituto de Educação Júlio Prestes de Albuquerque,
Sorocaba/São Paulo. Nada sabe sobre currículo e bem menos sobre a necessidade
de sua reconstrução; sobre as peculiaridades, interesses e necessidades reais do
aluno de zona rural e de sua família; sobre a cultura caiçara e japonesa, os hábitos,
os saberes, as crenças dos adultos alfabetizados e não alfabetizados da
comunidade ribeirinha. Sofre a pressão do sistema e dos órgãos do comando
centralizado, bem como da hierarquia intermediária do sistema, somada ao medo do
suposto fracasso comumente atribuído à incapacidade de ensinar.
Experimenta o gosto agridoce do isolamento físico-geográfico da escola (30
Km da bucólica cidadezinha de Sete Barras, quase parada no tempo) e do
individualismo que, de maneira ambígua, acaba sendo a força motriz de sua busca
pela superação do conjunto de ignorâncias e amarras ora explicitadas.
A visão parcial de mundo e de educação não permite à então professora,
admitir outra forma de ensinar que não pela assimilação memorística das letras e
sílabas hermeticamente apresentadas aos alunos, escalonadas e fragmentadas uma
a uma, subtraído o cunho dialético da ciência linguística, tão mal tratada naquela
escola e acredito, em muitos dos sistemas escolares até hoje. Não trazia presente a
ideia de educação básica como a mais fértil estratégia para o desenvolvimento
humano e para a formação integral das crianças que compunham aquele
contingente escolar. Passava-lhe despercebida a intrincada rede das relações
sociais e de poder que configurava aquela realidade rural.
Na época, o Vale do Ribeira vivia um momento histórico em efervescência,
em face dos cristalizados mecanismos de exclusão escolar, das políticas
26
educacionais descontinuadas e de dotação orçamentária visivelmente insatisfatória,
o que refletia ainda mais o descompasso da escola com os preceitos rígidos da
legislação que a disciplinava.
Era uma classe multisseriada composta de 31 alunos de 1ª a 4ª série do
ensino básico fundamental. Desse total de alunos, a maior parte formava a turma de
ingressantes aos quais eram endereçados os primeiros ensinamentos de leitura e
escrita – a turma de alfabetização inicial.
O método de alfabetização sintético aprendido na Escola Normal – Curso de
três anos mais um de Especialização – sacralizava procedimentos de repetição e
memorização próprios da concepção e prática de ensino da língua e da linguagem
de forma fragmentada e unidirecionada.
A metodologia, afinada com a concepção do método, imprimia uma prática
alfabetizadora transmissiva em que o papel do professor se reduzia a explicar e
demonstrar o objeto de ensino pronto e acabado. Ao aluno, por conseguinte, restava
escrever, copiar e reproduzir fielmente os ensinamentos da professora.
O material didático resumia-se na cartilha idealizada e desacompanhada de
qualquer possibilidade de enriquecimento, como por exemplo, a presença de livros
didáticos e paradidáticos, revistas, jornais e similares impressos.
O único veículo de comunicação com o mundo externo à escola resumia-se
no rádio de pilha da professora, cuja qualidade de som e alcance das ondas
transmissoras das mensagens distava, sobremaneira, do necessário e adequado.
A professora contava apenas com seu acervo pessoal de livros trazidos com
ela do Curso Normal, acervo que ela só podia ampliar nas férias de julho e janeiro,
quando de seu retorno ao lar, na cidade de Sorocaba/SP.
O fato pedagógico experienciado pela professora irrompe decorridos quase
dois meses dos exercícios para o desenvolvimento da coordenação motora em
conformidade com os rígidos preceitos do então chamado “período preparatório”.
Assim, iniciei o ensino da leitura e da escrita pela apresentação das vogais
aos alunos, mantendo fidelidade com a sequência orientada na forma mais
tradicional de fazê-la:
27
“A” “E” “I” “O” “U”
Leituras orais e cópias feitas pelas crianças desta sequência de vogais eram
realizadas exacerbadamente.
Em seguida, processei a junção variada de duas delas, apresentando-as em
cartões gigantes e lendo-as em alto e bom som para as crianças. Insistia a todo o
momento na observação atenta dos alfabetizandos para que a reprodução escrita
deles não apresentasse nenhum “erro”.
Depois de alguns dias mais desse exercício mecânico, passei a fazer o
“ditado” das junções vocálicas para verificar se os alunos tinham aprendido a lição.
O ditado era desenvolvido somente com a garantia de que as crianças já
revelassem hábitos de ouvir em silêncio e com atenção. Ele fazia parte integral do
método de ensino, sendo considerado vantajoso porque treinava a atenção, a
memória e principalmente melhorava a ortografia, pois por ele se oferecia ao aluno a
grafia das palavras que futuramente escreveriam de forma correta.
Aí é que o Jairo, filho de caiçaras ribeirinhos, com pouco mais de sete anos
de idade, evadido da escola no ano anterior e tido pelos professores daquele ano e
pela Equipe da Inspeção Escolar como uma criança “portadora” de dificuldades de
aprendizagem e de baixa-estima, razão pela qual teria abandonado os bancos
escolares, me surpreende de forma inteligente, não reconhecida por mim naquele
momento.
A ele eu exibia o cartão com a 5ª letra do nosso alfabeto, ou seja, a figura, a
forma dessa letra escrita em tamanho exacerbado e em cor luzente, a vogal E,
emitindo o som que a representa e fazendo com que o menino o reproduzisse como
se leitura fosse. Em seguida, fazia o mesmo com a 20ª letra do nosso alfabeto, a
vogal U. Após o exercício dessa pseudoleitura, eu solicitava ao Jairo, em tom
pausado, que escrevesse E e depois que escrevesse U, o viciado enunciado próprio
da técnica do ditado que, por sua vez, nutria-se do seu próprio vicio, mantendo o
circulo vicioso do ensino da linguagem escrita que a reduzia com fim em si mesma.
Em seguida lhe ordenava que escrevesse EU, mas com todo o vigor racional
Jairo escrevia OIA.
Professora: Jairo, preste atenção!
28
Que letra é esta (mostrando-lhe o cartão com a escrita “E”)
Jairo: “E”, professora!
Professora: E esta (cartão com a escrita “U”)
Jairo: “U”, professora!
Professora: Então, meu filho, escreva “EU”
Jairo: Esboçando um tímido sorrisinho nos cantos da boca diminuta,
sem pestanejar escrevia: OIA
Mais rapidamente eu intervinha: “eu não pedi para você escrever “OIA”, e sim
que escrevesse “EU”... “EU, Jairo. “EU”... E + U, entendeu?
Jairo: Eu escrevi, professora!
Professora: Não senhor! O senhor escreveu “OIA”. Por que você lê as duas
letras separadamente e não as junta na escrita, menino?
Como se pode observar, seguia-se uma sucessão de dissonâncias na
comunicação, e o exercício era repetido até a exaustão, fazendo angustiados o
aluno e a professora.
Mas o leitor já deve ter se dado conta de que o “OIA” do Jairo era “EU”, a
“professorinha” que ele e a mãe tanto prezavam, e que se chama O D I L A.
Como disse, à época atribuía-se uma importância acima de qualquer outra ao
“período preparatório”, concebendo-o como indiscutível construtor da base para a
aquisição competente da escrita, ou seja, a prontidão necessária para tal aquisição.
Ocorre, entretanto, que já nessa fase Jairo se mostrava visivelmente
contrariado frente à obrigatoriedade de realizar a enfadonha escrita das vogais.
Aliás, isso se dava desde o ano anterior. Encostava delicadamente o lápis no canto
carcomido da velha carteira, cruzava os magros bracinhos e emudecia. Nenhuma
palavra. Nenhum gesto, por mais que eu insistisse na suposta relevância do
exercício. De forma alguma e sob nenhum pretexto o menino se mostrava animado
para realizá-lo.
Porém, surpreendentemente vi um brilho nos seus olhinhos amendoados
quando anunciei à turma com tom solene que o “período preparatório” havia se
encerrado e que, dali para frente, eu ensinaria “a todos” a ler e a escrever.
29
Outra criança bastante aplicada aos estudos (filha dos caseiros dos
proprietários do sítio), na “inocência” também dos seus sete anos, apontou: “Ao Jairo
também, professora? Ele não está atrasado? Não é repetente?”.
Ao final daquele dia fui para casa, de parede de barro e telhado coberto de
junco, intrigada com o comportamento do Jairo e com a colocação provocativa da
sua coleguinha de classe, mas apostando no desenvolvimento e na aprendizagem
de Jairo, não obstante tivesse deixado de participar ativamente das aulas até então
desenvolvidas.
Dias depois pude perceber que a maior parte da sala escrevia conforme
apreendia sonoramente cada vogal, fato este que me punha tranquila quanto ao
sucesso da aprendizagem objetivada. Porém foi a escrita do Jairo que fez eclodir o
caso de ensino caracterizador do fato pedagógico ora resgatado e que, posto à luz
da concepção de alfabetização como sistema de representação da escrita, ganha
clareza linguística e definição científica.
Aquele Eu só podia dizer respeito à personalidade existencial de quem lhe
falava, à singularidade de minha pessoa, e por isso escrevia OIA, o meu nome ─
ODILA, a professora que lhe ensinava a escrever (e por suposto sabia ensinar) mas
que, para tanto, fazia uso daquela viciada técnica. Drasticamente, o que de fato fazia
era obstaculizar a aprendizagem da escrita do menino e retardar o seu processo de
escolarização básica, sobretudo o seu processo de pensamento reflexivo sobre a
linguagem falada e a linguagem escrita.
Tão notório quanto, é neste agora de minha existência como pessoa e como
profissional da educação, reconhecer que Jairo pensava e que Cagliari1 demonstrou
lucidez linguística e humana quando me alertou que o menino fazia isso “apesar de
mim”, ou seja, apesar de eu ter cortado as asas de seu pensamento, de eu não tê-lo
permitido voar livre os “espaços vazios do desconhecido”, voar sobre o que ainda
não sabia. Como nos ensina Rubem Alves, as escolas existem “[...] não para ensinar
as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar
sobre a terra firme. Mas somente as perguntas permitem entrar pelo mar do
desconhecido” (LAGO, 2004, p. 146).
1 Luiz Carlos Cagliari. Linguista da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
30
Ao invés disso, deixei de me encontrar e encontrar o Jairo, para que ele não
perdesse o desejo de aprender. Quiçá ele não tenha esquecido que, a despeito de
tudo e de todos, é preciso voar, livrar-se das amarras das trilhas batidas do
conhecimento já sabido.
Assim é que me consumia a interrogação: Jairo seria acometido de uma
“deficiência” ou “anomalia” cognitiva? [De imediato, pensei que sim] Ou eu teria me
deixado enganar por estranhos “ruídos” socioculturais que não me permitiam “vê-lo”
e “ouvi-lo” na sua capacidade de aprender? Pude eu, naquela ocasião, perceber-me
sendo no mundo e ao mundo concomitante à percepção de Jairo nesse mesmo
mundo? Perceber que “[...] há na educação todo um trabalho de educar os sentidos
e a partir deles: aprende-se a ouvir, a ver, a cheirar, a degustar, a sentir, como se
aprende também a lidar com a imaginação”, como nos orienta Rezende (1990, p.
52)?
Também não me foi possível ensinar nem ao Jairo nem a outros alunos
daquela turma ver o mundo físico e humano que eu mesma não via, ficando, dessa
forma, totalmente emperrada a compreensão e a caracterização do fato pedagógico
aqui exposto. Disso restou, por extensão, o emperramento da significação e da
relevância do próprio fato, cuja análise me possibilita, neste trabalho, a
movimentação entrecruzada do campo de pesquisa entre o processo de
alfabetização e a história de vida e formação da pesquisadora, assumindo os
pressupostos e princípios da interdisciplinaridade com os fundamentos da
fenomenologia da educação para circunstanciar e caracterizar o fenômeno educativo
exposto.
Muitos dos conceitos aqui abordados transcendem a completude de minha
consciência cognitiva, porém nenhum deles transcende o desejo ético e a vontade
política de compreendê-los na profundidade adequada. Trata-se de fundamentos
inalienáveis à sustentação teórica e à elucidação suficiente do antigo compromisso
com o conhecimento, com a prática educativa, com a docência e com a pesquisa em
educação.
À luz do pensamento interdisciplinar de Fazenda (1999, 2001, 2003, 2008,
2010, 2011, 2014) e fenomenológico, de Rezende (1990), mergulhei nesta
investigação confiando que “O homem não aprende somente com sua inteligência,
31
mas com seu corpo, suas vísceras, sua sensibilidade e imaginação” (REZENDE,
1990, p. 49).
Ousando um pouco, por acreditar que o conhecimento, em todos os seus
tópicos e dimensões, bem como as experiências educativas em todas as suas
peculiaridades, eu diria que devem servir como mecanismos impeditivos de
regressão, para exterminar toda e qualquer tentativa de prestigiar a animalidade do
homem, que o faz presa fácil da alienação que o pode levar à desumanidade.
Ao contrário, entendo que à ciência cabe a transcendência da estrutura do
fenômeno humano e da capacidade humana de aprender, isto é, de aplicar-se à
evolução do espírito e à dignificação da própria existência.
Essa tem sido a tônica da minha procura, que de certo modo se configura na
busca pelas respostas possíveis às perguntas intelectuais e às perguntas
existenciais impregnadas das antigas inquietações relacionadas à educação e ao
ensino de qualidade e à prática educativa significante, suficiente e compreensiva.
Para buscar a compreensão da realidade do fenômeno educativo manifesto
naquela sala de aula de roça, com o pequeno Jairo ─ protagonista e causa primeira
dessa história, que constitui a razão mais forte e o método deste trabalho –,
entreguei-me ao exercício da reflexão crítica de forma a penetrar, no limite permitido,
em cinco dos grandes territórios do conhecimento humano, quais sejam:
o conhecimento interdisciplinar;
o conhecimento linguístico;
o autoconhecimento;
o conhecimento fenomenológico;
o conhecimento artístico,
para então poder redimensionar os conhecimentos próprios do ofício do professor.
Com esse propósito, pus-me então às primeiras e contundentes
interrogações:
─ Quem sou eu?
─ Qual é a melhor forma de eu me conhecer melhor?
32
─ Por que fiz o que fiz com o Jairo?
─ Por que fiz como fiz?
─ O que é educação?
─ O que é ensino?
─ O que é interdisciplinaridade?
─ Que visão de mundo é requerida do educador interdisciplinar?
─ Qual é o aluno que está nos planos do educador interdisciplinar?
─ O que é fenomenologia? É possível uma interface da fenomenologia com a
interdisciplinaridade? Essa interface poderá revelar mutuamente os seus sentidos,
suas relações e significações próprias? Em que medida esses dois tópicos do
conhecimento humano podem assenhorar-me do fato pedagógico em estudo?
Àquela época, a então novata professora do ensino primário2 (muito mais a
normalista (APÊNDICE B) recém-habilitada para o magistério), orfanada da
totalidade do conhecimento indispensável para ensinar, pouco contava com a
apropriação dos elementos fundantes que lhe permitissem transcender a leitura
linear e difusa do fato pedagógico apresentada ao seu dever de fazê-la, o que aliás
teria evitado o reforço da vitimação causada ao pequeno Jairo e facultado a
liberação da professora para agir como constituinte na transformação da realidade
dada, sobretudo pelas veias do conhecimento linguístico.
Para além da habilidade didático-metodológica e da competência linguística,
faltou-lhe, para tanto, a compreensão global do mundo e, nele, a identificação do
lugar dela própria e do lugar do Jairo, expressos pelo conjunto da percepção e
representação de ambos desse mesmo mundo complexo e dialógico.
Por seu turno, a visão de educação amalgamada no Curso Normal3 que a
formara, guardava semelhança com o romantismo e o engodo da fantasia e da
magia daqueles chamados “anos dourados”4, que cunharam a década de 1960,
2 Ensino primário correspondente naquela época às quatro primeiras séries de escolarização
básica do aluno. Hoje, aos anos iniciais do Ensino Fundamental.
3 Curso Normal: Formação de Professores Primários. Instituto de Educação Júlio Prestes de
Albuquerque, Sorocaba/São Paulo, Brasil, 1967.
4 A expressão “anos dourados” aqui é utilizada para caracterizar uma época, dita ideologicamente
superadora das desigualdades sociais.
33
contraditoriamente em meio às atrocidades resultantes do movimento político e civil
que resultou o golpe militar de 1964 e que roubou o matiz dourado daquela época
para melhor rotulá-la de “anos rebeldes”. Aquele contexto fez malogrado o projeto de
renovação da educação brasileira, mas passaram neutralizados nos currículos
escolares oficiais e, por conseguinte, marcadamente despercebidos pelos
estudantes desprevenidos daquela frenética geração. Um processo de
neutralização, como na expressão de Joaquim Nabuco: “[...] neutralizar ainda mais o
poder neutro” (NABUCO, 1974, p. 110), para dizer do neutralismo, do monismo
neutro5 monárquico: “A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em [...]
neutralizar ainda mais o poder neutro” (NABUCO, in: FERREIRA, 2004, p. 1399)6.
Na década de 1960, num movimento ambíguo que oscilava entre a magia e a
rebeldia, grande parte dos conteúdos relevantes que deveriam ser compreensiva e
suficientemente ensinados às futuras professoras ficaram intencionalmente presos
atrás das grades curriculares que impediam (e impedem até hoje) a saída de quem
estava dentro da escola, com a mesma seletividade que impediam a entrada de
quem dela estava fora, não obstante os avanços significativos observados no
processo de democratização da educação básica em períodos históricos ulteriores.
Marco Antonio Villa7, historiador e autor do livro “Didática à Brasileira” (Ed.
Leya), oferece a repaginação histórica desse período conturbado da história político-
econômica brasileira.
O Brasil, segundo ele, em 1964 era um país politicamente repartido,
esfacelado e imobilizado pela inércia administrativa e pela grave crise econômica
que o assolava, conjunturas essas que endureciam ainda mais as ideias, posições e
intencionalidades radicais dos velhos inimigos da democracia.
5 Monismo neutro: (Filos) Teoria de William James, segundo a qual a natureza é formada por
substância única, que apresenta ora atributos psíquicos, ora atributos físicos, neutralismo. (FERREIRA, 2004, p. 1352). Monismo Neutro (Filosofia). A tese de que a mente e a matéria são apenas manifestações diferentes de uma única substância “neutra” que não pode ser reconhecida. Sin. Tese de duplo aspecto. Uma vez que por hipótese a substância neutra é incognoscível, a tese não pode ser expandida numa teoria nem posta à prova empírica. Ela, pois, estéril, como a maioria das tentativas de compromisso entre opostos. Problema mente-corpo (grifos do autor) (BUNGE, 2002, p. 251).
6 Joaquim Nabuco. Minha Formação, in: FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, 3. ed., rev. e atual. Curitiba: Positivo, 2004, p. 1399.
7 Marco Antonio Villa. Didática à Brasileira. Diretor UDEMO. Revista de Projeto Pedagógico,
mar./abr. 2014, p. 14.
34
Nesse quadro de antagonismos políticos, as forças Armadas acabam por
ocupar o centro da luta política. Aliados e adversários, dominantes e dominados
esperavam do então presidente João Goulart o necessário equilíbrio político que
nunca se deu, pois no Brasil a tradição antidemocrática nascida do positivismo no
final do Império está enraizada na própria cultura e sempre logrou sucesso em voz
elevada.
Como diz Villa (2014): “Num país sem memória, é muito fácil reescrever a
História” e assim (como naquele movimento) tememos todos até hoje “o debate, a
divergência, a pluralidade enfim, a democracia”, como historia com propriedade o
autor. Isso, explica, em parte, a herança rançosa de tornar espaço de guerra o
espaço próprio da política e, por extensão, o espaço do currículo escolar em espaço
de aprisionamento de pessoas, de conhecimento, de saberes e práticas educativas.
Ainda hoje, boa parte das escolas de formação de crianças, jovens e adultos
não tem reserva de espaços formativos da reflexão crítica, do pensamento
globalizado, da ética humana e da cidadania plena, o que deixa evidente que o
problema da educação escolar sempre esteve pautado nas velhas fórmulas, regras
e modos de interpretação e de intenção com o conhecimento do legado cultural da
humanidade. De forma fragmentada, sempre se viu insolúvel frente aos limites
impostos pela escola quanto ao que se objetiva ao aluno conhecer.
O entulho da ditadura continua minando os currículos, os cursos, os livros
didáticos, a forma de organização da escola e do ensino, tanto quanto as próprias
mentes reprimidas de muitos dos agentes educativos contemporâneos, não porque
eles queiram, acredito, mas porque fundamentalmente desconhecem ou não têm
livre acesso aos instrumentos de desconstrução desse estado de coisas.
Do movimento perverso de negação à vida da década de 1960, de
contraposição à liberdade e de retardamento do desenvolvimento humano, sobrou,
àquela jovem geração de formandas8 acríticas, a microvisão ora romântica, ora
preconceituosa, mas sempre incipiente sobre a relação homem/homem,
homem/mundo, homem/natureza, homem/trabalho. Sobre cultura/história e
sociedade, enfim, o conjunto de visões e percepções que se manifestavam na sala
8 Formandas: A restrição implícita no substitutivo feminino aqui empregado é para dizer que, na
década de 1960, era visível o endereçamento ideológico do Curso Normal exclusivamente para mulheres, o que explicava a presença de um corpo docente invariavelmente feminino.
35
de aula, se não fortalecidas nas matrizes do sectarismo ou do maniqueísmo9, com
alguma certeza carregavam marcas indeléveis da herança do autoritarismo.
O fato é que essas visões se mostravam, na prática educativa, mais que
suficientes para impulsionar os estímulos às resistentes dicotomias professor-aluno,
ensino-aprendizagem, teoria-prática, conteúdo-forma, principalmente funcionavam
fundamentalmente como elementos de obstaculização progressiva da eficiência
produtiva do professor e molduravam repressivamente a própria prática e, como tal,
a fazia apropriada o bastante para legitimar a imagem reprodutora do modelo de
subordinação imposto à fatia minoritária da sociedade “[...] politicamente dirigente e
economicamente dominante”, como assinalava Cortella10 (2000) em suas aulas ─
uma formação reforçadora das formas escamoteadas de seletividade e exclusão,
porém em conformidade com os valores e com a tradição da sociedade da época,
como se ela fosse constituída de coisas independentes umas das outras. Faltava-lhe
a consciência das questões políticas e sociais estruturais e estruturantes.
Trata-se, pois, da busca dos dados originários da experiência para, à luz das
teorias que a iluminam, processar a análise do fenômeno educativo, tentar encontrar
a fecundidade necessária para desvelá-lo em suas dimensões linguística, sócio-
histórica, cultural, político-pedagógica e metodológica.
Alcançar a clareza necessária nessas dimensões exige assumir o processo
de conceitualização mediado pela palavra enquanto prática social dialógica
intermediada pelo outro e pelos “outros de nós mesmos”, como escreve Cortella
(2007, p. 117), isto é, a palavra como meio insubstituível da caracterização e da
materialidade da existência do pensamento.
OS OBJETIVOS PRECÍPUOS DESTA PESQUISA
a) Tomar como objeto de estudo a experiência alfabetizadora vivida na
Escola de Emergência de zona rural, munícipio de Sete Barras, região sul
9 Maniqueísmo: Termo aqui empregado para dizer, p. ext., doutrina que se funda em princípios
opostos; bem e mal, dois princípios antagônicos e irredutíveis, Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo (FERREIRA, 2004, p. 1268).
10 Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado, 1999-2001. Programa Educação:
Currículo. PUC/SP, fev. 2000.
36
do Vale do Ribeira, Estado de São Paulo, no ano de 1968, enfocando o
resgate do fato pedagógico com o aluno Jairo;
b) Realizar análise crítica dos efeitos da ação alfabetizadora relacionada com
a formação disciplinar da docente iniciante;
c) Fecundar os elementos originários do fato pedagógico analisando os seus
traços mais salientes, nas dimensões epistemológica, metodológica e
político-pedagógica, confrontadas com a realidade educacional daquela
escola rural e a realidade pedagógica daquela memorada sala de aula;
d) Buscar o sentido do resgate daquele fato pedagógico e a possível
contribuição do estudo para a formação inicial e continuada das novas
gerações de professores.
O PROBLEMA (OU A INQUIETAÇÃO E A BUSCA PRIMEIRA)
─ Em que sentido a teoria interdisciplinar, tomada como iluminação
teórica do estudo do fato pedagógico, pode fundamentar a discussão da formação
disciplinar da professora (hoje, pesquisadora)? Pode explicitar a relação da
professora e do aluno Jairo com o saber? Pode fertilizar os caminhos da melhor
qualificação docente às novas gerações de educadores?
Desdobramentos do problema
─ De fato há omissão embutida no modelo de alfabetização da
professora? Se há, de que ordem é? De que natureza?
─ Qual é o traço marcante da formação da professora passível de
explicar o ensino da leitura e da escrita descontextualizado e pouco significativo para
o aluno Jairo?
37
─ Que contribuições pode a interdisciplinaridade oferecer para a
formação inicial e continuada de profissionais da educação, coerente com os
objetivos educacionais e conteúdos pautados nos desafios da contemporaneidade?
─ Para o enfrentamento dos entraves de natureza complexa e dimensões
multifacetadas no âmbito pessoal, profissional, sociocultural e político-pedagógico?
─ Até que ponto foi o conhecimento da teoria interdisciplinar o elemento
chave das novas posturas da professora diante do conhecimento escolar? Das
atitudes favoráveis ao ensino frente às questões de ordem pedagógica ao longo de
sua carreira do magistério? Da sedimentação da sua identidade profissional?
A JUSTIFICATIVA (OU O SENTIDO DAS BUSCAS NA PESQUISA)
O sujeito do método da pesquisa era apenas um aluno não importa, era o aluno. Era o meu Jairo! O Jairo que imprimiu sentido a esta investigação.
(Odila Amélia Veiga França)
É essencial que o estudo do fato pedagógico vivido com o Jairo sofra análise
crítica acostada em teorias que o possam fundamentar, considerando principalmente
a vinculação do fato com a história de vida e formação da pesquisadora.
É essencial tomar como objeto de estudo a experiência alfabetizadora vivida
na Escola de Emergência de zona rural, município de Sete Barras, região sul do
Vale do Ribeira, Estado de São Paulo, no ano de 1968, focada no resgate do fato
pedagógico aqui trazido à luz da ciência.
É essencial olhar criticamente para os efeitos da ação alfabetizadora calcada
na formação disciplinar da pesquisadora, àquela época mergulhada nos ritos e mitos
da iniciação docente. Por isso, é essencial fecundar os elementos originários do fato
pedagógico focado nos seus demarcadores mais salientes, nas dimensões
epistemológica, metodológica e político-pedagógica, confrontadas com a realidade
educacional daquela memorada sala de aula.
Não menos essencial é o referido resgate em função das contribuições do
estudo para a formação inicial e continuada das novas gerações de professores da
38
educação básica. Colocar a formação inicial da pesquisadora sob ótica
redimensionada é tomada de decisão não apenas desejável, mas necessária,
decisão esta em direção à conscientização de que o processo formativo deve
envolver o conhecimento que realmente importa, dado que é esse conhecimento
que forma o professor pensador, inquiridor e investigador da própria prática
pedagógica e da revisitação crítica da trajetória docente.
Defendo que o alcance dos resultados satisfatórios no ensino, na
aprendizagem e na avaliação do desempenho escolar dos alunos está intimamente
ligado à qualidade da formação do professor.
Juntem-se, às razões expostas, outras que para além delas buscam, em
verdade, permitir florescer as metáforas para que se explicitem nas buscas da
pesquisadora. Muitas buscas! Permitam a problematização e o levantamento de
perguntas. Muitas perguntas! Em síntese, caminhar pelos caminhos da ciência e “[...]
aprender a separar as perguntas intelectuais das perguntas existenciais”
(FAZENDA, 2001a, p. 17), tateando o ambíguo chão das possíveis respostas
“previsíveis e disciplinares” e das respostas “interdisciplinares” (p. 17) às perguntas
feitas.
Penso que neste trabalho não as encontrarei todas. Nem em qualquer outro a
ser feito, já que o conhecimento se dá num movimento incessante de múltiplos
trânsitos, que caracterizam o ir e vir, e o vir a ser do conhecimento:
Tese antítese síntese.
Sobre esse movimento contínuo, dinâmico e dialético, Espírito Santo (1996, p.
10), instigado pela leitura da obra “O Fenômeno Humano”, de Teilhard de Chardin
(1995) como ele próprio declara,
[...] Convida-nos a um permanente movimento de evolução no chamado processo de conscientização, ou seja, a um movimento de expansão da consciência do homem. É exatamente esse movimento contínuo de evolução que vai caracterizar o novo paradigma nas ciências em contraposição ao modelo cartesiano-newtoniano de um universo mecânico e estático (ESPÍRITO SANTO, 1996, p. 11).
39
Penetro na filosofia da ação, da ciência e da percepção alcançando a
concepção fenomenológica da educação, fazendo a fusão desse tópico do
conhecimento com a interdisciplinaridade. Nem por isso, entretanto, espere das
perguntas que eu puder encontrar crer que algumas delas poderá se apresentar em
estado de prontidão ou de completude.
Convenço-me da relevância teórico-prática e metodológica da pesquisa
interdisciplinar, que dá vez e voz a um ator que deseja autoria. Uma história de vida
que espera “vigiada” uma vida para ser escrita e que anseia pela inscrição na
história. Espera pela correção do erro disciplinar no ensino enclausurado na
disciplina e gerador do fato pedagógico vivido com o aluno Jairo. Por uma ação
pedagógica exercida que se abre à necessária elaboração teórica.
Uma pesquisa dirigida à então professora rural, hoje pesquisadora, cuja
pessoa exige ampliar o conhecimento de si, do mundo e sobretudo da educação, por
isso procura pelos contornos e perfis da docência exercida de Jairo até aqui. Um
processo analítico cuja descrição entrega-se à crítica, tanto quanto está entregue o
seu produto. Uma prática que deseja fortalecidos os laços com a teoria.
Enfim, uma docência que se quer repensada e requalificada e que, para tanto,
sonda os seus sentidos e significados primeiros e atuais.
Afinal, retomando uma das falas de Magda Soares, Fazenda, no transcorrer
da aula do dia 11 set. 2014, reafirmou que “pesquisar é perguntar”, e que a quebra
dos núcleos endurecidos da pesquisa está justamente na pergunta.
A RELEVÂNCIA TEÓRICO-CONCEITUAL, METODOLÓGICA, PEDAGÓGICA E
PESSOAL DA PESQUISA
A relevância teórico-conceitual, metodológica, político-pedagógica e pessoal
desta pesquisa interdisciplinar está em pesquisar a prática docente exercida na
Escola de Emergência de zona rural, a partir dos saberes da professora
pesquisadora construídos no então Curso Normal e entretecidos com os saberes
adquiridos na escola da vida, tendo em vista a requalificação desses saberes e
dessa prática ora analisada. Esse exercício crítico-reflexivo pode contribuir como um
40
espaço rico para a construção de modelos formativos favoráveis a uma educação e
a uma formação básica de qualidade.
Radicalidade e profundidade são atributos que podem testemunhar a
relevância teórico-conceitual desta pesquisa. Evidenciar a materialização da relação
de interdependência teoria e prática. Amplitude e abrangência são traços
característicos da pesquisa, que busca assegurar, não obstante a complexidade da
tarefa, a suficiência e a coerência interna das discussões, reflexões e análises dos
seus mais significativos achados. Reflete o genuíno interesse da pesquisadora no
alcance social dos resultados da pesquisa, na medida em que esses resultados
podem refletir a diversidade dos assuntos veiculados dentro dos grandes tópicos
abordados, tomados nos seus aspectos singulares e plurais, nos seus múltiplos
sentidos e significados, próprios de uma pesquisa interdisciplinar entretecida na
história de vida e formação da pesquisadora e imbricada nos fundamentos filosóficos
da fenomenologia da ação, da ciência, da percepção e da educação.
A experiência alfabetizadora e formadora, bem como a trajetória profissional e
acadêmica da pesquisadora, resgatada do passado remoto e analisada num
presente-passando11, faculta ao pesquisador prever e preparar o tempo vindouro.
São os balanços do passado e do presente-passando e dos retornos ao vivido que
oferecem ao pesquisador o retrato dos percursos e/ou dos desvios das rotas
pessoais e profissionais, permitindo-lhe que, ao mesmo tempo, ele se produza e
produza novas versões de si mesmo na produção da sua profissão.
Considera, pois, que o papel da educação é o tempo de transcender o uso do
passado, dado que, ao dele fazer uso, o fez com real possibilidade de transformá-lo
a favor dos homens e das mulheres que são no mundo e que são o mundo
(REZENDE, 1990) o que vale dizer, a favor da própria cultura e da própria qualidade
histórica dessa sociedade. Significa, pois, a possibilidade de alterar tudo aquilo que
não contribui para a harmonia, para a equidade, para a justiça e paz na sociedade.
Para tudo o que pode lesar a integridade do homem ferindo-lhe o caráter pela
11
A expressão presente-passando aqui empregada é para dizer da volatividade do tempo, já que o tempo da espera “vigiada” imprime ao homem o seu próprio ritmo, informando-o que a força do passado é mais forte que o futuro e, por isso, é mais fácil lembrar-se do que prever. Alertando-o de que, em educação, costuma-se agir sem o uso de rotatórias indicativas do caminho de volta à origem do problema ou da inquietação primeira, tampouco aos movimentos intermediários da caminhada em busca da resolução do problema.
41
subtração do seu direito ao exercício cidadão e de usufruir da igualdade de
condições e de oportunidades na sua existência concreta no seio dessa mesma
sociedade.
Sobre isso escrevo na minha dissertação de mestrado:
Esta forma de sublimar o passado, de inconscientemente amortecer o presente e negligenciar o futuro, traduz-se na fértil chance de não se retirar do hoje o devido proveito do que ontem já se fez, nem do que se faz, hoje, em favor de um melhor feito amanhã. E aí, muito do que se há por fazer, emaranha-se nos próprios tempos e fica sem ser feito por tempo demasiado (VEIGA, 2003, p. 5).
O resgate da vivência alfabetizadora na escola de zona rural e das vivências
formadoras ulteriores na educação básica paulista, trazidas à luz da ciência, permite
pensar e repensar a prática, potencializar ideias e revitalizar o caminho da
construção ética da escola de qualidade para todos. Um resgate que refuta posições
escapistas e irresponsáveis frente à árdua tarefa que se impõe no presente.
A factibilidade da narrativa dá a dimensão da tarefa objetivada.
Dessa forma, do Curso Normal concluído no ano de 1967, no Instituto de
Educação Júlio Prestes de Albuquerque, no município de Sorocaba, Estado de São
Paulo, à escola da vida e à experiência docente no ensino superior, o que quer esta
pesquisadora é o redimensionamento dos saberes adquiridos e a requalificação das
práticas docentes exercidas até então. Este é o fio condutor que a levará a se
redimir do erro cometido com o aluno Jairo no processo de alfabetização inicial e a
contribuir para a criação de modelos formativos favoráveis a uma educação e a uma
formação básica e superior de melhor qualidade ética, científica, metodológica e
político-pedagógica.
Advogo, ainda, que a contribuição que esta pesquisa pode dar à formação
das novas gerações de educadores é o conhecimento de si mesmo, do outro e do
mundo circundante.
42
AS HIPÓTESES
Pauto-me, nesta pesquisa, nas hipóteses que seguem:
a) A partir do estudo do fato pedagógico vivido com o Jairo, e sob a ótica
interdisciplinar, pode se chegar à reconstrução do ser professor e do ofício
assumido e alcançar a apropriação requerida do sentido e do significado
dos atos de ensinar e aprender, sobretudo no processo de alfabetização
inicial.
b) Assumir o estudo de um fato pedagógico fundamentado na teoria
interdisciplinar pode confirmar a relevância da investigação ao questionar
o sentido da formação (inicial e continuada) de formadores para a escola
básica.
c) A interdisciplinaridade pode ser a indutora da ampliação do olhar na
formação inicial e continuada do professor da escola básica e o
conhecimento necessário para o enfrentamento competente e ético frente
ao fato pedagógico vivido com o Jairo.
Para dar cabo à pesquisa e estruturá-la conforme os ditames de trabalhos
desta natureza, este está organizado em oito capítulos. O primeiro capítulo trata dos
caminhos metodológicos da pesquisa explicitados a definição do método, a
modalidade qualitativa da pesquisa, o traçado da linha de raciocínio e dos motivos
que levam a pesquisadora à escolha do tema.
Os aportes teóricos sustentadores da definição do método e da metodologia
são encontrados em Fazenda (2001b); Martins e Bicudo (2005); Bogdan; Biklen
(1994); Chizzotti (2010) e Lankshear; Knobel (2008).
No segundo capítulo está descrita a teia da verdade histórica da pesquisadora
em cujos fios é possível perceber os sonhos, os desejos, as lutas, os embates, as
perdas e os ganhos no exercício da profissão docente. Para além dessa percepção,
entretanto, explicitam-se as implicações da formação inicial disciplinar da
pesquisadora, os ritos da iniciação docente, o perfil do protagonista do fato
pedagógico, o Jairo; a descrição do suposto “erro” de Jairo; as múltiplas redes de
contato na formação em serviço, a formação de formadores na Secretaria de Estado
43
da Educação de São Paulo (SEE/SP), Universidade de Taubaté (UNITAU) e
Departamento de Educação e Cultura (DECE). Neste capítulo os fundamentos
teóricos estão concentrados nos autores: Fazenda (2001a, 2003); Freire (1996,
1998); Nóvoa (1991a,b); Jaeger (2001); Moreira José (2011); Dinorah (1990);
Rezende (1990) e Ferraço (2005).
As questões específicas da didática estão descritas no capítulo três o qual
trata do exercício da crítica, tecida pela autora numa “conversa” com o Jairo sobre o
fato pedagógico. Respaldam teoricamente as reflexões desenvolvidas neste capítulo
Rosa (2007); Antunes (2008); Hengemühle (2011); Freire (1992, 2000b, 2001);
Fazenda (2001a, 2003); Aranha (2010); Foucault (2008); Veiga (1993); Cordeiro
(2007).
A questão fulcral da alfabetização está discutida no capítulo quatro
encontrados os suportes teóricos em Cagliari (1998); Freire (1999, 2000b); Ferreiro
(1985); Antunes (2001); Alves (1997); Weisz (1995; 2000); Rezende (1990); e
Braggio (1992).
A reflexão teórica da interdisciplinaridade prática e práticas interdisciplinares
estão alicerçadas fundamentalmente em Fazenda (2003, 2011); Cordeiro (2007);
Freire (1986) e descritas no capítulo cinco.
O capítulo seis traz o fenômeno da eclosão de “Emília” em mim que se dá na
dinâmica da teatralização dos fundamentos fenomenológicos de Edmundo Husserl
entrecruzado com o mundo fenomênico de Lobato. Sustentam as reflexões feitas
neste capítulo os teóricos Husserl (2005), Morin (2013); Chauí (1997); Carmo (2004);
Fazenda (2001a, 2001b, 2003); Lyotard (1967); Weil (1987); Bourdieu (2000);
Rezende (1990) e Jaeger (2001).
A leitura interdisciplinar dos fundamentos fenomenológicos da educação, e a
abordagem dos conceitos de consciência e conscientização; palavra e liberdade;
teoria e prática; tempo e espaço que compõem o capítulo sete deste trabalho, foi
tecida nas bases teóricas de Freire (1996, 2000a, b, c) e Fazenda (2003),
principalmente.
A questão fundante do autoconhecimento encontra em Espírito Santo (1996,
1998, 2001, 2007, 2008); Freire (1996, 2000b); em Fazenda (2001a, 2008, 2011);
em Cortela (2007, 2013, 2014) e em Boff (2013), os aportes teóricos pertinentes. A
44
representação imagética da figura três “A Velha e a Moça”, busca a leitura
objetivada do conjunto das ideias, princípios e fundamentos sustentadoras desta
tese. Apresentada na composição poética quer significar o esforço de síntese
superadora das inquietações da pesquisadora, resultantes do fato pedagógico vivido
com o aluno Jairo, entretecido na sua história de vida e formação docente.
Enfim, esta pesquisadora pode dizer que, no limite de sua possibilidades e
realidade existencial, encontra, neste trabalho, as possíveis respostas às perguntas
intelectuais que a satisfazem provisoriamente, impondo-lhe, contudo, o
discernimento sobre a incompletude das respostas encontradas.
45
1 CAMINHOS METODOLÓGICOS
1.1 A definição do método de condução da pesquisa: a linha de raciocínio e os
motivos da escolha do tema
Eu procurei durante algum tempo pelas respostas... Parei! Desci desse bonde e tomei o voo da pesquisa!...
(Odila Amélia Veiga França)
Intento trazer para a narrativa escrita da pesquisa alguns dos recortes que
considero os mais significativos de minha vida na educação, enquanto, para mim,
projeto de vida por excelência: apoiar o ensino na pesquisa, concebendo-a como
inerente ao próprio ensino.
Para tanto, insisto na busca de um olhar deveras sensível sobre as múltiplas
dimensões do ser e sobre as múltiplas dimensões do aprender. Um olhar
interdisciplinar maduro o suficiente para revestir-se de alteridade e de cuidado com
os sentidos mais refinados de minha história de vida, delineada na esfera pessoal e
explicitada amiúde no exercício profissional docente. Uma história gestada e
fecundada no movimento dinâmico-dialético e, portanto, complexo, da autoformação
e da formação inicial e continuada de tantos outros pares de profissão.
Para dizer desses outros, tomo por empréstimo o sentido filosófico e o
fundamento ético de Cortella (2007), que escreve sobre “os outros de nós mesmos”,
e cuja concepção é impregnada da certeza de que,
[...] só somos humanos com outros humanos. A humanidade é compartilhada. Ser humano é ser junto. Isso significa que é preciso que saibamos que a nossa convivência exige uma noção especial de nossa igualdade de existência, o que nos obriga a afastar do ponto de partida, qualquer forma de arrogância (CORTELLA, 2007, p. 117).
Vê-se, pois, que o autor define a visão de alteridade como a “capacidade de
ver o outro como outro, e não como estranho”. Alter, ou seja, “o outro” difere
sobremaneira de “alius”, que indica “o estranho” e que, em português, esclarece os
46
derivados “alheio”, “alienígena”, que dizem daquele “[...] que não é como nós, aquele
que é, talvez, menos.” (CORTELLA, 2007, p. 118, grifo do autor).
Cortella indaga-se e indaga de forma provocativa aos seus leitores: “quem
são os outros de nós mesmos”? (CORTELLA, 2007, p. 119).
Com isso, leva-nos a refletir sobre as questões cruciais ligadas à ética
humana, sobretudo as que dizem respeito à “[...] capacidade de protegermos a
dignidade da vida coletiva” (CORTELLA, 2007, p. 117).
Por outro lado, o olhar que impregna o surgimento de uma epistemologia da
“alteridade” (FAZENDA, 2001b), ao historiar criticamente os estudos sobre
interdisciplinaridade nas décadas de 1970, 1980 e 1990, refere-se a
[...] uma epistemologia da “alteridade”, em que razão e sentimento se harmonizem, em que objetividade e subjetividade se complementem, em que corpo e intelecto convivam, em que ser e estar coabitem, em que tempo e espaço se intersubjetivem (FAZENDA, 2001b, p. 17, grifo do autor).
Ao evidenciar, entretanto, a preocupação com “alguns equívocos teóricos”
que permanecem, a autora faz com que essa preocupação seja acompanhada do
anúncio da “clarificação parcial” desses equívocos, [...] pela evolução de certas
teorias totalizantes, entre elas, por exemplo: uma dialética que se fundamenta no
concreto, uma fenomenologia que avança para o espírito e uma psicologia que
busca a transcendência (FAZENDA, 2001b, p. 17).
E afirma que se tornam “mais explícitas” as “hipóteses teóricas da
interdisciplinaridade” no próprio movimento de avanço dessas mesmas teorias
(FAZENDA, 2001b, p. 17).
Os olhares que definem o pensamento e os posicionamentos de Cortella
(2007) e de Fazenda (2001b) são os que basicamente me convencem a retecer
minha própria história de vida nos fios de uma história pedagógica interrompida no
ano de 1968 e posta à espera “vigiada” até a presente investigação, salvaguardados
os devidos cuidados com a reconciliação comigo mesma como ser em contínua
construção, reconstrução e permanente desconstrução, em função de novas e
necessárias construções. Em contínuo exercício de enfrentamento dos desafios de
superação e libertação das amarras pessoais e do rompimento com os limites e
47
estreitos fronteiriços do conhecimento científico para, enfim, compartilhar ideias,
experiências, convivências e práticas, aqui necessariamente colocadas na
linguagem escrita acadêmica sem, contudo, ocultar o que na realidade sou. Trata-se
de uma tarefa árdua, pois foram segregados nos seus espaços e tempos mais
íntimos os muitos equívocos, os medos e as inseguranças misturados às ousadias,
ambiguidades, contradições e inquietudes de ordens diversas inconfessas, mas que,
uma vez realizada, penso ser suficiente para apontar o sentido da vida e explicitar o
significado da existência.
A fundamentação interdisciplinar e o pensamento fenomenológico da
pesquisa desafiam-me a assumir, cada vez mais intensamente, a atitude de
caçadora de mim mesma e do muito ainda desconhecido. Desafiam-me a aprender
a partir da disciplina, a aprofundar o conhecimento da teoria interdisciplinar, a fazer o
encontro da razão com a emoção e com a espiritualidade, a fim de saber tratar das
coisas visíveis e do invisível aos olhos. Aprender o exercício do pensar, nele e com
ele, a tematizar e a teorizar a própria prática pedagógica no refinamento dos estudos
sobre a interdisciplinaridade teórica, prática, metodológica e profissional.
Inquietações e consciência política para romper com as chamadas zonas de
conforto atendem a esta modalidade de pesquisa interdisciplinar de natureza
qualitativa, que favorece ao pesquisador encontrar-se consigo mesmo, perceber o
outro e dar um sentido ao ser e ao estar no mundo e, nele e com ele, pensar, sentir
e agir. Enfrentar o desafio de saber descrever a própria prática nos seus
movimentos singulares e na sua razão de ser com o cuidado analítico,
acompanhado do rigor disciplinar e aliado ao imperativo categórico da
interdisciplinaridade.
Assim é que, neste trabalho, nada pode refletir a concretização de um objetivo
de formulação convencional, porque postula uma história de vida dinâmica e porque
a palavra é o gosto especial da interdisciplinaridade, o sentido humano da ciência. A
narrativa pauta-se tanto no intuitivo12 – o noético13, como no poiético14, e a partir do
12
Intuição: é a visão direta de algo individual existente que se mostra imediatamente em sua concreta plenitude, isto é, sem intervenção de outros conteúdos cognitivos (BRUGGER, p. 683, apud RIBEIRO JÚNIOR, 1991, p. 85).
13 Noético: Intuitivo, aprendido prediscursivamente, diretamente. Na fenomenologia, o noético é
infalível e oposto ao hilético ou material (BUNGE, 2002, p. 261). Na fenomenologia de Husserl, o aspecto subjetivo da experiência vivida, a aferrar o objeto, como o perceber, o lembrar, o imaginar, etc (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 683, apud RIBEIRO JÚNIOR, 1991, p. 86).
48
interior, experenciar a indagação em si, habitante desse interior em busca do
conhecimento num movimento indagativo que, por natureza, é sempre inacabado.
Lyotard (1967), citando Merleau-Ponty, a esse respeito salienta:
É preciso “ir às próprias coisas”, descrevê-las corretamente e elaborar sôbre essa descrição uma interpretação de seu sentido; é a única objetividade verdadeira. Tratar o homem como uma coisa, seja em psicologia como em sociologia, é afirmar a priori que o pretenso método natural vale de forma semelhante para os fenômenos físicos e os fenômenos humanos. [...] a significação do comportamento estudado, individual ou coletivo (LYOTARD, 1967, p. 79, grifo do autor).
Estas parecem ser razões suficientes que justificam que o caminho metódico
para realização desta pesquisa está nos princípios da teoria interdisciplinar e nas
orientações filosóficas da fenomenologia.
Diz Fazenda (2001b) que a busca de compreensão da realidade
[...] nas questões de alfabetização pressupõe um comprometimento com a totalidade isto é, quando se pensa na construção de um projeto interdisciplinar para a alfabetização, é necessário pensar-se na possibilidade de traçar uma linha de demarcação entre as pretensões ideológicas e a realidade de que é sintoma (FAZENDA, 2001b, p. 91, grifo do autor).
E mais adiante:
[...] o professor desestimulado a repensar sua prática, pois muitas vezes não lhe é explicado nem o como, nem o para quê. Atônito, perplexo ante a perspectiva de mudança, nosso navegador, torna-se um “náufrago sem rumo”, podendo muitas vezes, afogar-se, e com ele, todo o barco que conduz (seus alunos e sua sala de aula) (FAZENDA, 2001b, p. 91, grifo do autor).
14
Poiético: adjetivo. Relativo ou pertencente à criação. A definição de poiética afigura-se com definição dada em filosofia; trata-se de uma forma alternativa à poiesis, termo criado por Aristóteles. Se assim é, a definição de uma será também válida para a outra: “poiesis é a atividade de criar ou de fazer; produção artística.” (Dagobert D. Runes, Dicionário de Filosofia, Lisboa, Editorial Presença, 1990.) Fonte: Disponível em: <http://www.dicionarioglobal.com/portugues/ 151286-poietico. E http://poietica.wordpress.com/>. Acesso em: 23 fev. 2014.
49
Segundo Chizzotti (2000, p. 79), “[...] as ciências humanas têm sua
especificidade – o estudo do comportamento humano e social – o que faz dela
ciências específicas, com metodologia própria”.
A afirmação reflete o que o autor apresenta mais adiante:
A fenomenologia considera que a imersão no cotidiano e a familiaridade com as coisas tangíveis velam os fenômenos. É necessário ir além das manifestações imediatas para captá-los e desvelar o sentido oculto das impressões imediatas. O sujeito precisa ultrapassar as aparências para alcançar a essência dos fenômenos (CHIZZOTTI, 2000, p. 80).
De outra feita, Martins e Bicudo (2005), acadêmicos das áreas de Psicologia
da Educação e de Filosofia da Educação, robustecem os aclaramentos de Chizzotti
acima transcritos, ao afirmar que:
Na pesquisa fenomenológica, o investigador, de início, está preocupado com a natureza do que vai investigar, de tal modo que não existe, para ele, uma compreensão prévia do fenômeno. Ele não possui princípios explicativos, teorias ou qualquer indicação definidora do fenômeno. Inicia o seu trabalho interrogando o fenômeno. Isso quer dizer que ele não conhece as características essenciais do fenômeno que pretende estudar (MARTINS; BICUDO, 2005, p. 92, grifo do autor).
Nas questões específicas de aprendizagem, dizem estes últimos que os
pesquisadores fenomenólogos não tomam como ponto de partida teorias e
definições preexistentes, mas iniciam o processo investigatório questionando o
próprio objeto de pesquisa, interrogando o próprio conceito de aprendizagem: o que
é aprender e como se dá a aprendizagem. Movem-se com cuidado a fim de trazer à
consciência o sentido percebido por eles próprios sobre o fenômeno pesquisado, já
que são os significados o que lhes interessam por primeiro. “Os significados são os
aspectos do evento que o sujeito tematizou conscientemente”, ou seja, [...] “os
dados só existem enquanto resultado de significados atribuídos como resultado da
tematização do sujeito sobre o evento” (MARTINS; BICUDO, 2005, p. 94).
Dessa forma, a investigação é focada no fenômeno gerador do “fato
pedagógico” (FAZENDA, 2011) ocorrido no ensino da leitura e da escrita no
processo de alfabetização inicial com o aluno Jairo – um fato pedagógico específico
em estudo. Tal fenômeno é trazido à consciência e, aqui, submetido à análise
50
rigorosa, pela memória de história de vida e trajetória profissional da pesquisadora.
Ontem, apenas a intuição empírica da pesquisadora sobre o fenômeno; hoje, a
intuição primeira quer alcançar, nesta tese, a intuição intelectual, para que sua
experiência passada possa ser revisitada, repensada e redimensionada nas suas
especificidades e nas contradições desveladas, bem ao gosto da ciência. Em outras
palavras, o que busca a pesquisadora é a essência do fenômeno educativo que
deve ser encontrada na experiência concreta vivida ou no “fato pedagógico vivido”,
cuja análise rigorosa faz do vivido “o concreto científico”, como orienta Fazenda
(2011, p. 126). Adverte a autora que estudar a prática docente efetiva, assentada na
memória de história de vida, exige não apenas:
[...] amarrar os fragmentos da memória, pois a intenção não é simplesmente verificar a cronologia dos fatos, mas tentando compreender as implicações científicas que deram a esse caminhar uma especificidade própria [...] recorrer à memória, no sentido de verificar as recorrências, as coincidências, os traços comuns encontrados ao longo dessa história (FAZENDA, 2011, p. 126).
Assim sendo, a pesquisadora coloca-se como sujeito da pesquisa, isto é, a
que conhece. Jairo, o sujeito impulsionador do método. O fato pedagógico, o objeto
de estudo, o correlato do sujeito, aquilo que é conhecido, que é pensado. Juntos,
sujeitos, método e objeto de estudo, poderão gerar conhecimentos que, não só
satisfaçam a busca das possíveis respostas às perguntas intelectuais e às perguntas
existenciais, como também apontem caminhos para o apaziguamento das
inquietações desta pesquisadora, no enfrentamento dos desafios postos às
pesquisas em educação e a todos que a elas entregam o espírito.
Mas, o que houve, de fato, entre mim e o aluno Jairo, no ano de 1968, quando
ele queria aprender e eu queria ensiná-lo a ler e escrever? Como sujeito da
pesquisa, eu respondo provisoriamente ao sujeito impulsionador do método: o que
houve, de fato, foi a injusta e caótica reprovação de Jairo na primeira série,
reiterando o seu estado de repetente pela segunda vez, ao não me dar conta de
que ele verdadeiramente sabia ler e escrever, e que eu, lamentavelmente, não sabia
ler o seu escrito nem interpretar a leitura que ele fazia do próprio escrito. Um
lamentável evento, sobretudo causado por mim e, na presente pesquisa, com
(re)análise endereçada a mim mesma. Trata-se, na verdade, de uma autocrítica. O
51
estado crítico é essencialmente meu. Portanto, o estado de vitimação pode ter
restado, injustamente, somente ao Jairo. Naquele tempo eu nem desconfiava das
implicações de uma prática docente desapartada da teoria que a sustenta. Além do
mais, eu nunca mais soube de seu paradeiro, tampouco tenho elementos que me
sustentem no levantamento da hipótese, a mais tênue, a respeito de seu destino.
Não conto com a mínima condição de vislumbrar uma pista sequer, para saber se
existo ou não, na sua consciência, se habito suas lembranças, e que lembranças
seriam essas, caso ele as tenha guardadas. O que sei é que me eterniza a
perplexidade que me causa o fato pedagógico dado naquela sala de aula de roça,
com o meu pequeno Jairo.
Meados de março de 1968. O verão mostrava a sua força a todo o vapor.
Trinta e dois pequenos aprendizes se acotovelavam nas velhas carteiras carcomidas
e já gastas pelo uso prolongado... anos a fio. A lousa, minúscula e não afixada
apropriadamente na parede de madeira de baixa qualidade e também envelhecida.
O material básico para as crianças (caderno, lápis, borracha...) era adquirido com os
recursos próprios da professora, para garantir minimamente o aprendizado
elementar “das primeiras letras”. A penetração da iluminação natural era ruim, dado
que o prédio escolar era adaptado de uma residência mais que humilde. A água era
tirada do poço, e a merenda, adquirida e preparada pela professora... e por aí vai.
É imperioso requerer o pensamento político-pedagógico e a ética humana de
Freire (2000c), para ratificar a denúncia de tal realidade educacional:
[...] a comissão criminosa do Estado, as comunidades populares criam suas escolas, instalam-nas com um mínimo de material necessário, contratam suas professoras quase sempre pouco cientificamente formadas e conseguem que o Estado lhes repasse algumas verbas... (FREIRE, 2000c, p. 21).
Como já mencionado, “pouco cientificamente formada”, porém ingenuamente
convicta de que mais nada restava para aprender além do aprendido na Escola
Normal, berço de minha formação profissional, de avental de linho de um branco
luzente, feito pelas mãos caprichosas de minha guerreira mãe e que não cabia em
si, tal era o orgulho da filha professora, com o giz na mão direita, postura ereta
(àquela época eu pensava que esta era a única postura que favorecia o ensino e
que aquele era o único método de fazer aprender) e de frente para os alunos,
52
pensava ensinar “tudo a todos”. Nem desconfiava da relevância de estudar a
dimensão empírica da prática docente em função da iluminação teórica dessa
mesma prática, observemos a dicotomia teoria-prática no fato pedagógico
manifestado na atividade do ditado, cuja metodologia era alimentada pelas crenças
expostas. No ditado eu asseverava os alunos num tom de quem não duvida de que
sabe o que está fazendo: agora, vocês já conhecem as vogais, então, vamos
escrever “palavras” pequenas. É bem fácil! Prestem atenção: a letra A mais a
letra I gera a “palavra” AI; O mais I gera a “palavra” OI; A mais U é igual a AU; E
mais U, fica EU. Vamos escrever EU, ouviram”? E Jairo escrevia OIA..., o fato
pedagógico em questão: Jairo, na realidade escrevia o eu que me identifica, que me
nomeia, escrevia sim, O D I L A!
Desse disparate tenho EU sofrido as penas, e cheguei à academia pela força
da presença de Jairo e pela imperiosidade de realizar essa chegada em favor de
uma docência decente, e de uma prática alfabetizadora tão mais consciente quanto
mais consistente.
O que sei, desde lá, é que esse fato deixou marcas indeléveis na minha
trajetória profissional e lateja na minha consciência de pessoa e de educadora, tal
qual uma ferida aberta que espera, durante todo esse tempo, ser cicatrizada, de
forma essencialmente política e ética. E porque ético, é também dever realizá-la.
Jairo me impulsionou na carreira do magistério e esteve, em cada momento
de minha formação continuada, formal e informal, plantado na minha memória
docente. A cada curso realizado, congresso, ou mesmo no cotidiano da escola,
como gestora, coordenadora pedagógica, professora de primeira à quarta série (e
depois, em todos os graus e níveis da educação básica), nos gabinetes das
Secretarias de Educação do Estado de São Paulo, assessorias às Secretarias
Municipais de Educação, estava lá o Jairo, cabisbaixo, mudo, postura encolhida,
submisso, assustado, mas pensante!
Estava lá o Jairo toda vez que eu proferia uma palestra, participava de uma
mesa redonda, realizava a formação de professores na escola básica e no ensino
superior e, sobretudo, quando cuidava da minha própria formação, e frequentava os
cursos ou grupos de estudo coordenados por linguistas, pesquisadores da
aprendizagem e do desenvolvimento humano e teóricos da alfabetização, como
Emília Ferreiro, Ana Teberosky, Telma Weisz, Giron Matui, Elba Sá Barreto, Marília
53
Claret, Leila Alves, Magda Soares, Luiz Carlos Cagliari, Lino de Macedo, Marta Khol,
Elvira de Souza Lima e tantos outros...
Estava lá o Jairo quando assumi, na Secretaria de Estado da Educação de
São Paulo (SEE/SP), a implantação do Ciclo Básico, a discussão sobre o ensino
noturno, a reestruturação do Ensino Supletivo, hoje Educação de Jovens e Adultos
(EJA), a análise do livro didático inserido no Plano Nacional do Livro Didático
(PNLD), a implantação dos Centros Específicos de Formação para o Magistério
(CEFAM), os estudos desencadeados com professores e especialistas da Rede
Pública de Ensino sobre a implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de nº 5.692, de 1971, e de nº 9.394, de 1996, e os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN). Em todas essas vivências na educação básica contei com a
“presença” daquele menino cativante, daquele aprendiz que me leva a aprender até
hoje e a quem eu devo tanto.
Estava lá o Jairo quando ingressei no ensino superior (2004), na Universidade
de Taubaté, Estado de São Paulo, na regência de aulas das disciplinas Didática e
Prática de Ensino, em seguida, História da Educação, Metodologia, Gestão
Educacional e Estágio Curricular Supervisionado. Jairo hoje me acompanha nas
salas de aula dos cursos de Licenciatura (Pedagogia, Letras, Geografia, História,
Matemática e Física). Sua presença vigilante fala, ainda mais alto, quando discuto a
temática da alfabetização com os professores participantes do Plano Nacional de
Formação de Professores (PARFOR) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Nível Superior (CAPES). Muitos deles vivenciam a complexidade da
alfabetização no cotidiano de suas vidas de educadores e, com alguma certeza,
experimentam dia a dia a dor e a delícia do ofício de professor.
Enfim, é sempre no silêncio de sua ausência que eu ouço sua voz tímida
tentando me proteger de outros deslizes como aquele que eu cometi, quando o
reprovei devido ao meu não-saber que a interdisciplinaridade tem o seu ponto de
partida na disciplina, e que a sua finalidade última é gerar práticas pedagógicas
processuais e radicalmente comprometidas com a aprendizagem significativa do
aluno. Trata-se, pois, de um processo que requer seja exercido e vivido na sua
essencialidade, pois “[...] é a vivência da interdisciplinaridade que leva à
54
compreensão da teoria e da prática interdisciplinares que, por seu turno, leva ao
desenvolvimento autoral”15.
1.1.1 A Abordagem Qualitativa
Assim é que a metodologia nasceu da necessidade de transmitir, na íntegra, a complexidade das situações reais com as quais me confrontei todos os dias como professora alfabetizadora (no meu caso, dias lá no passado, hoje tão presentes).
(Odila Amélia Veiga França)
A pesquisa pedagógica fundamentada na teoria interdisciplinar e entretecida
na história de vida da pesquisadora parece ser, por natureza, qualitativa, sobretudo
tendo sua gênese num fato pedagógico gerador de profunda perplexidade, como é o
caso ora analisado.
Assim é que a escolha da metodologia surge da necessidade de transmitir, na
íntegra, a complexidade das situações reais com as quais me confrontei todos os
dias como professora alfabetizadora e como estudiosa desta temática e de tantas
outras temáticas da área educacional.
Bogdan e Biklen (1994) esclarecem que a abordagem qualitativa:
Exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para construir uma pista que nos permite estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 48).
Este pensamento aponta para o fato de que, na era do pós-modernismo, a
própria ciência acolhe a imprevisibilidade, tal é a complexidade que marca nosso
mundo pós-moderno. Um só raciocínio tem-se mostrado insuficiente para abordá-lo
na sua totalidade. Daí a relevância das pesquisas não convencionais, que “[...]
ampliam as possibilidades de análise e obtenção de respostas para o problema
posto” (SILVA; MENEZES, 2005, p. 28).
15
Pronunciamento da Professora Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda por ocasião de sua participação no Curso para Gestores Escolares, Módulo II. Diretoria Regional de Educação (Brasilândia e Freguesia do Ó). Coordenado pela Profa. Dra. Ana Maria Varella, São Paulo/Capital, 28 ago. 2014.
55
Na pesquisa qualitativa, o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito estão
ligadas, e os números nada ou quase nada dirão sobre isso. Nela, o essencial é a
interpretação dos fenômenos e a atribuição de seus significados. Ficam, assim,
dispensadas as técnicas estatísticas e privilegiado o ambiente natural em que o fato,
o fenômeno ou o acontecimento ocorrem, preservada a relação de interdependência
entre o mundo real e o sujeito. Sendo assim, a pesquisa é descritiva da experiência
tal como ela é. O pesquisador é o elemento-chave no processo de construção do
conhecimento; há preponderância do processo sem a minimização do produto, bem
como dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos, caso deles seja lançada mão
na análise do objeto de estudo. Possibilita a transcendência do visível e do
observável para além dos conteúdos manifestos.
Vê-se, pois, que a natureza, o gênero e a singularidade desta pesquisa por si
só justificam a sua filiação à abordagem qualitativa, engastada na trajetória
profissional da pesquisadora contida na sua história de vida pessoal.
Também para Martins16:
Na pesquisa qualitativa, uma questão metodológica importante é a que se refere ao fato de que não se pode insistir em procedimento (sic) sistemáticos que possam ser previstos, em passos ou sucessões como uma escada em direção à generalização. Pode-se já visualizar que uma teorização dedutiva está excluída das análises qualitativas (MARTINS, in: FAZENDA, 2010, p. 63).
É Vieira Pinto (1969) quem sinaliza que a pesquisa científica é o momento
culminante:
[...] de um processo de extrema amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial; aquele que dá conteúdo à sua essência de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la às suas necessidades. Este processo chama-se “conhecimento”... e se revela pelo surgimento de idéias na consciência humana (VIEIRA PINTO, 1969, p. 13, grifo do autor).
É Chizzotti (2000) quem nos ensina que a pesquisa qualitativa, ao questionar
o caráter hegemônico das pesquisas positivas que pretendem “[...] a estabilidade
16
Joel Martins. A pesquisa qualitativa. In: FAZENDA, I.C.A. (org.). Metodologia da Pesquisa Educacional. 12. ed., São Paulo: Cortez, 2010.
56
constante dos fenômenos humanos, a estrutura fixa das relações e a ordem
permanente dos vínculos sociais” acaba por mostrar que os “fenômenos singulares”
encerram complexidade e contradições, e que “relações interpessoais e sociais” são
marcadamente reconhecidas pela imprevisibilidade e originalidade criadoras.
O essencial na pesquisa qualitativa, segundo o autor, é a possibilidade de o
pesquisador dedicar-se “[...] à análise dos significados que os indivíduos dão às
suas ações... à compreensão do sentido dos atos e das decisões dos atores sociais”
(CHIZZOTTI, 2000, p. 78).
E completa: “O pesquisador é um ativo descobridor do significado das ações
e das relações que se ocultam nas estruturas sociais” (CHIZZOTTI, 2000, p. 80).
Com efeito, é requerido o mergulho do pesquisador no contexto de vida
observado, e são percebidas e consideradas as circunstâncias presentes e
passadas que condicionam o problema de pesquisa, orienta-nos o cientista da
educação.
Sobre isso, a fala norteadora de Fazenda17 ressalta a importância da
observação e da percepção “[...] da história do local, não apenas na sua dimensão
sociocultural e político-econômica, mas sobretudo no sentido da história e
caracterização do material humano desse local”.
1.1.2 Por uma pesquisa interdisciplinar e uma narrativa do tipo pedagógica
entretecida na história de vida e formação da pesquisadora resgatadas pela
memória
Curiosidade, criatividade, disciplina e especialmente paixão são algumas exigências para o desenvolvimento de um trabalho criterioso, baseado no confronto permanentemente entre o desejo e a realidade (GOLDENBERG, apud SILVA; MENEZES, 2005, p. 9).
Em que pesem os ingredientes incentivadores da citação acima, devo
confessar que é Fazenda (1999) que me instiga a escrever minha própria história e a
17
Pronunciamento da Professora Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda por ocasião de sua participação no Curso para Gestores Escolares. Módulo II. Diretoria Regional da Educação (Brasilândia e Freguesia do Ó). São Paulo/Capital, 28 ago. 2014.
57
expor as fraturas de minha prática pedagógica, de 1968 até a presente data,
sobretudo a prática alfabetizadora, objeto de estudo desta pesquisa.
A exemplo da pioneira dos estudos sobre a interdisciplinaridade no Brasil
desde o ano de 1969, para mim também:
[...] eram coisas que estavam muito dentro de mim e que eu tinha como algo banal. Até achava que nunca poderia ser objeto de tese, mas, de repente, porque me aventurei fazer disso a minha tese ─ ... percebi o quanto importante ela era para mim e o quanto importante também, poderia ser para meus pares (FAZENDA, 1999, p. 134).
Sua indagação lançada aos educadores sobre “[...] o que os levaria a
travarem suas penas, a esconderem suas vivências” e seu desafio ao testemunhar
que “[...] escrever sobre a própria prática é um ato de ousadia”, soaram-me como
uma convocação, um pacto e um compromisso ético e político-pedagógico para
interpenetrar no mundo da pesquisa e do conhecimento elaborado sobre a
interdisciplinaridade (FAZENDA, 1999, p. 134).
Assim, na escolha dos caminhos metodológicos soou mais forte falar sobre
aquilo que faço desde mocinha – ensinar – e, aqui, ensinar na educação formal
escolar, ensinar a ler e a escrever às crianças de zona rural no período inicial da
alfabetização.
Portanto, é a partir do meu hábitat que falo do “efetivo exercício do concreto”
(FAZENDA, 2011, p. 125). É nesse espaço experiencial que firmo a minha decisão.
Segundo Chizzotti (2010):
Os relatos ou ‘estórias’ de vida designam a história de uma vida contada a outrem, tal qual foi experienciada pela pessoa que a viveu, tomando o seu ponto de vista como referência fundamental, tendo como objetivo obter informações sobre eventos passados, vividos ou testemunhados pela pessoa e ainda não registrados (CHIZZOTTI, 2010, p. 102, grifo do autor).
Minha história de sala de aula é antiga, mas admito enfrentar dificuldades
para escrevê-la, não obstante os estudos realizados e as fundamentações teóricas
consolidadas.
58
Ademais, escrever exige esforço para superar a orfandade da escrita a que a
maioria dos profissionais da educação é submetida.
Fazenda (2001b) traz esta confissão bem clara:
As sobrecargas de trabalho que habitualmente assumimos costumam nos deixar órfãos da escrita. Foi preciso muito esforço para recuperar essa maternidade. Assim, decidi parar, para poder exercer o que mais gosto de fazer na minha profissão depois de dar aulas: escrever (FAZENDA, 2001b, p. 11).
Para descrever metodologicamente o fato pedagógico em estudo, vivido com
o aluno Jairo, a quem eu acreditava ensinar a ler e a escrever, faltam-me ideias de
como começar. Falha-me a memória neste presente angustiante frente ao
compromisso acadêmico de apresentar a tese para defesa pública. Paradoxalmente,
a própria memória não me permite descartar, pura e simplesmente, as inquietações
e desconfortos trazidos comigo durante toda a vida. Sinto-me acometida de uma
fragilidade emocional que torna abalada a capacidade intelectual para efetivar a
escolha da metodologia mais acertada para a análise do fato de especificidade
singular ligado àquela criança de olhar doce e postura tímida.
Jairo é o fato mais intrigante de minha ação docente, pois desencadeou as
várias reflexões temáticas18, despertou outros tantos momentos e vivências de
minha história profissional e marcou a minha formação identitária. Esteve sempre
presente na minha trajetória na educação básica do Estado de São Paulo e, por
isso, eu sou o sujeito de pesquisa, e ele, o sujeito do método para realizá-la.
Alivia-me esta convicção e também a de entender que as fragilidades
sentidas se devem à consagração dos modelos convencionais de pesquisa, cujos
parâmetros tendem à homogeneização e ao seu enquadramento na valoração
destes, quanto ao certo e ao errado, ao próprio e ao impróprio, ao falso e ao
verdadeiro. Tranquiliza-me, entretanto, o fato de que hoje são múltiplas as
possibilidades de escolha dos caminhos para o exame crítico do objeto de estudo,
sem necessariamente excluir as formas convencionais. Mais que isso, as novas
18
As várias reflexões temáticas despertadas por Jairo: alfabetização e letramento, dimensão social da educação, e função social do ensino; qualificação profissional, docência no ensino superior e, por fim, interdisciplinaridade e pesquisa da própria prática pedagógica, todas imbricadas neste trabalho.
59
possibilidades facultam ao pesquisador criar novas formas de investigar a realidade
com o ajuste da abordagem que melhor atenda aos seus interesses, aos
conhecimentos que ele tem da temática e dos assuntos envolvidos na pesquisa, a
sua capacidade inventiva, entre outras ordens de flexibilização.
A narrativa da história de vida, ou autobiografia, como a denominam alguns
autores, resgatada pela memória e no exercício de retorno ao vivido, no reencontro,
no reouvir e no redizer o objeto de estudo, que há muito me incomoda, traz
lembranças que me condenam como professora, mas que exigem sejam
exteriorizadas, apreendidos o sim e o não da prática pedagógica exercida.
A autobiografia, diz Chizzotti (2010),
É uma história de vida escrita pela própria pessoa sobre si mesma, ou registrada por outrem, concomitante com a vida descrita, na qual o narrador esforça-se para exprimir o conteúdo de sua experiência pessoal. O autor seleciona e analisa fatos, experiências, pessoas e estágios relevantes de sua vida, interpretando sua história pessoal, o contexto e as contingências do curso da própria vida, criando um texto no qual tem voz privilegiada, imprime uma tônica subjetiva dos fatos e pessoas, transita entre o real e o ficcional, inscreve-se de modo claro ou latente, em uma realidade social e se constrói como individualidade histórica (CHIZZOTTI, 2010, p. 103).
Por seu turno, é Ricoeur (1968) que, retomando Husserl, observa:
O exemplo de Husserl... é notável... esse pensador subjetivo por excelência, viu-se forçado pelos acontecimentos a interpretar-se historicamente... Eis a palavra suprema: o sentido. Pela história procura justificar o sentido de história “da” consciência (RICOEUR, 1968, p. 37, grifo do autor).
Esse sentido e a espera “vigiada” fizeram acontecer em mim a Odila
pesquisadora e impulsionaram-me a entrar na história – Jairo e eu representando
forças e ousadias interdisciplinares para a retomada interpretativa do que significou
o meu processo como alfabetizadora.
Sendo assim, a metodologia escolhida aponta para caminhos distendidos que
dão aos pesquisadores educacionais espaços de interlocução e de abordagens mais
abrangentes e orientados para essa prática.
60
Como afirmam Lankshear e Knobel (2008, p. 13), “A pesquisa pedagógica é
não quantitativa, não psicométrica, não positivista, não experimental”. Envolve
profissionais que pesquisam suas próprias salas de aula. Permite que eles
descrevam suas compreensões acerca da prática docente que desenvolvem (ou já
desenvolveram). O professor é o principal sujeito da pesquisa, como já apontado.
Defendem esses autores que os professores pesquisadores da própria
prática:
[...] baseiam-se em um cabedal de conhecimento profissional compartilhado e na experiência acumulada para conduzi-los, o mais longe possível, em situação específica. Quando precisam ir além dessa “sabedoria profissional” compartilhada, baseiam-se no conhecimento educacional especializado, na experiência, nas redes de contato e na sua competência para formular um julgamento autônomo e criterioso para tomar decisões sobre a melhor maneira de promover os objetivos de aprendizagem. E fazem isso caso a caso... (LANKSHEAR; KNOBEL, 2008, p. 15, grifo do autor).
Desse modo, penso que aprender, hoje, com a experiência alfabetizadora em
tempos iniciais de exercício no magistério, é reaprendê-la, é tornar-me mais
consciente acerca da contribuição para a pesquisa educacional. Ser vista como
aprendiz do conhecimento ainda não sabido e, ao mesmo tempo, ser considerada
produtora de conhecimento por meio da reflexão, percepções e interpretações sobre
o fato Jairo é, no meu entendimento, contribuir para melhorar o ensino, a formação
dos alunos e das novas gerações de professores alfabetizadores da escola básica
brasileira.
Lankshear e Knobel (2008) parecem sustentar esta minha ótica, quando
enfatizam que:
É por meio de sua própria pesquisa que os professores podem ficar atentos ao seu método de ensino, e detectar o que faz com que os alunos tenham um menor rendimento, aprendendo menos do que poderia. Com essa consciência, podem realizar mudanças criteriosas, colocá-las em prática e melhorar os resultados do ensino (LANKSHEAR; KNOBEL, 2008, p. 15).
Ademais, opto por esta metodologia porque nela podem se interpenetrar os
princípios da teoria interdisciplinar e os fundamentos e as bases epistemológicas da
fenomenologia que a sustentam, imbricados na abordagem qualitativa.
61
A meu ver, a pesquisa pedagógica desenvolvida nessas bases, nesses
princípios e em consonância com a abordagem apontada, pode realizar um ideal
maior, qual seja, o de problematizar a função social do ensino e a padronização dos
currículos formais, bem como da pedagogia orientada pelos princípios liberais
tecnicistas e/ou positivistas, o modelo de alfabetização como simples transcrição de
um código das partes sonoras para as partes gráficas e o modelo de formação
docente estritamente disciplinar.
Afinal, há que se concordar que na disciplina estanque fragmenta-se; na
multidisciplinaridade, encasula-se; e que é na interdisciplinaridade que se tem o uno
no múltiplo.
Há que se considerar, ainda, que a abordagem qualitativa de pesquisa
poderá, em maior profundidade, alcançar a complexidade do processo educacional
e, engendrado neste, a complexidade do processo de alfabetização e das teorias
mais recentes que o orientam, preparando o professor alfabetizador para, de forma
competente, abstrair e interpretar os processos de aprendizagem que ocorrem nas
salas de aula, conhecimento não apropriado por mim naquele contexto.
Trata-se, também, de tipo peculiar de pesquisa que pode trazer à tona a
problematização ampla da tendência atual de desqualificação dos professores e das
instituições formativas. Além disso, desvela a costumeira negligência com os
conhecimentos prévios dos alunos e com a sua capacidade de aprender. Isso em
decorrência da reflexão sobre as ações e intervenções pedagógicas realizadas, em
função do aprimoramento profissional, o qual requer, além de compromisso
competente, imaginação e criatividade, que se assegure o rigor metódico na análise
do fato pedagógico aqui assumido como o objeto de estudo.
62
2 A VERDADE HISTÓRICA DA PESQUISADORA
Na minha verdade histórica, Emília é minha mãe biológica, que curte o auge
das suas oitenta e nove primaveras. Maria Emília, minha neta nos seus lindos
dezoito meses de vida, e Maria Odila, minha neta de pouco mais de quatro anos de
idade.
Essa realidade existencial agraciou-me com o encontro de três seres,
criadores-criaturas que me encantam, três bênçãos, a “gênese das interações”, cuja
sensibilidade não me permite acreditá-las uma mera coincidência. Antes, novas
verdades, “[...] a história como fluxo dos acontecimentos, deve ser tal que, através
desse fluxo, o homem suceda, seja materializado num acontecer do homem”
(RICOEUR, 1968, p. 37, grifo do autor).
2.1 Quem é Odila? A que veio? Quer falar de quê?
O pensar interdisciplinar é despido de ingenuidade acerca da realidade dada. Impregnado da esperança do vir a ser. Coberto de inteligência e assegurado pela ousadia. A ousadia de tornar a realidade um sonho e o sonho, quiçá, virar realidade.
(Odila Amélia Veiga França)
Parafraseando Robert Frost19, quero confessar que não me envergonho das
minhas origens humildes, até porque venho do lugar certo do país.
Observo que, quando é perguntado a alguém “quem é você?”, a resposta é
esta: “Sou filha de fulano... meu pai é o médico tal... sou da família... ou, ainda, sou
engenheira casada com... minha família é tradicional daqui...”.
19
Robert Lee Frost: (São Francisco, Califórnia, 26 de março de 1874 — Boston, 29 de janeiro de 1963) foi um dos mais importantes poetas dos Estados Unidos do século XX. Frost recebeu quatro prêmios Pulitzer. Informação disponível em: http://www.itec-sde.net/pt/search_ results?search=%23Robert_Frost. Acesso em: 08 set. 2014.
63
Estou pronta hoje para a esta pergunta corresponder esta resposta: ─ Sou um
ser inacabado, imperfeito, finito e inconcluso, porém pensante, crítico e criativo.
Ando na estrada que liga o já sabido ao ainda não sabido e, cada vez que chego a
este último estado, ele não é mais o último, porque descubro o infinito a ser
conhecido. “Eu sou eu mais minhas circunstâncias”, como dizia Cortella (2000)20.
Sou e, e não ou. Certa e errada, justa e injusta, feia e bonita...
Adoro estudar, ler, escrever, apreciar boa música, representar, dançar, nadar,
cozinhar e arrasar num bom prato. Adoro fazer amigos, criar e manter laços de
amizade. Para mim, o prazer de escrever não repousa necessariamente no assunto
escrito, muito mais eu o encontro na beleza das palavras. Se pudesse, usaria livros
na cabeça, tanto quanto gostaria de ter vivido na década de 20, para fazer uso
daqueles graciosos chapeuzinhos femininos. Acredito que o amor pelos livros pode
contribuir para refazer o mundo. O ato da escrita me é sempre inusitado, difícil e
desafiador. Um verdadeiro exercício do potencial cognitivo e intelectual do autor e
sempre em respeito à complexidade do ato e dos limites do escritor.
Gostava muito de namorar, mas quando me vi sem o meu eterno namorado
perdi o gosto de conjugar este verbo. Mas não há mal nenhum nisso, porque ele
mesmo me fez ficar enamorada de tudo o que é bom e bonito. De tudo que é certo.
De tudo que é ético. Hoje sou enamorada das lembranças e das lições de vida e do
amor restados no meu coração. Namoro-as todos os dias!
Experimento a sensação de maravilhamento quando olho para Maria Odila e
Maria Emília, minhas netas. De amor e gratidão quando percebo os passos já
trôpegos de minha mãe. Quando tomo nos braços a geração nova continuando a
família. Quando reconheço o esforço dos sobrinhos e sobrinhas na luta por uma vida
feliz e quando rememoro a mesma luta enfrentada por seus pais, quando jovens e
na maturidade. Quando estou na sala de aula com meus alunos, cujo empenho para
estudar encontra ecos em minha própria luta quando estudante. Quando recebo dos
meus vizinhos e amigos um sorriso ou uma atenção inesperada e, com isso, posso
agradecer a todos os outros vizinhos e amigos de igual quilate, com os quais eu
pude contar e alguns dos quais estou fisicamente distante hoje. Insatisfeita com o
que sou como todo ser humano o é. Construtora de sentidos. Inventora de versos.
20
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP. 14 mar. 2000.
64
Amante dos sorrisos. Arrastada inexoravelmente pela curiosidade de conhecer.
Perplexa diante das próprias limitações: Como pode?
Como Freire, eu me apaixono pelo mundo e também pela curiosidade
incontida de conhecê-lo (FREIRE, 1996).
Como pessoa, sou nascida de um pai batalhador e de uma mãe que, se não
existisse, havia de ser feita.
Meu pai, homem trabalhador, carpinteiro e marceneiro de profissão. De resto,
tudo resolvia em casa e a quem o solicitasse: consertos de trincos, portas, portões,
rádios, ferros elétricos, chuveiros, serviços de pedreiro, mestre de obras... Durante
muitos anos foi o caseiro e barman dos Barbéro, estirpe que, junto com a de Ermírio
de Moraes, era de poder político-econômico imbatível em Sorocaba/SP, nos idos
tempos de 1960.
Minha mãe, mulher de fibra e de viva inteligência, de raciocínio lógico-
matemático assustador, entregou-se a vida toda ao trato com o lar e com a família,
aliado ao trabalho de governanta geral da residência dos Barbéro. De sorriso franco
e palavra rasgada, cozinhava, lavava e passava com primor. Seus quitutes, doces e
pratos quentes atiçavam a gula dos poderosos. Astúcia, flexibilidade, elasticidade
são suas virtudes. Resiliência, a sua metáfora existencial. Esperança, a sua
transcendência.
Aos 40 e poucos anos preparou-se sozinha para o Concurso Público na área
da Saúde, fez a prova, logrou sucesso e trabalhou no laboratório do Hospital
Regional de Sorocaba/SP por mais de 20 anos, tendo sido aposentada por força
desse tempo de trabalho, homenageada pelos médicos, paramédicos, funcionários e
colegas de trabalho. Batalhadora e de bem com a vida, enviuvou por três vezes e,
aos 89 anos de idade, faz planos para o futuro, espera por um novo amor, e assim
que ele acontecer, ela confessa: “Não vou dar chance a nenhum tipo de
desistência...”. Criou quatro filhos e mais três agregados, formando a todos,
incondicional e indistintamente. Dançarina como poucas, foi “Rainha da Primavera”,
“1ª Princesa da Saudade”, “Mãe do Ano”, “Miss Melhor Idade”, entre outros títulos e
homenagens dessa ordem. Dirigia até pouco tempo com proficiência, e porta-se com
elegância. Esperta como ninguém, brava como onça, amorosa como criança,
dengosa como gata. Assim é minha mãe. É o sagrado e só pode sê-lo!
65
Eu, irmã de muitos homens e segunda na ordem de nascimento, tive desde
muito cedo, aos treze anos de idade, de enfrentar o trabalho fabril – Indústrias
Têxteis Barbéro S/A, o que me exigia deixar os lençóis às quatro horas da
madrugada todos os dias.
Era acolhida na sociedade como “moça de boa família21”, apesar de não
atender a nenhum dos critérios básicos de status: comportamento social exemplar e
condição financeira satisfatória para os rigores da época.
Eu nunca entendi muito bem esses dois critérios porque, para o
conservadorismo e o puritanismo dos “anos dourados”, eu já demonstrava
comportamento transgressor de vanguarda frente a muitas das normas castradoras
do ser e uma condição financeira para além de modesta.
Nasci simples e na trajetória de vida estou me fazendo não simplista. Calma!
Não me terminei ainda... sei exatamente do quê e do quanto preciso para a
construção do desconhecido. Aprendi a ver-me e a reconhecer-me no outro. Tenho
hoje interiorizada a ousadia. Liberei-me para fazer tudo o que realmente gosto de
fazer. De ser e estar no mundo. Esse é o meu jeito de existir!
Quatro são meus parceiros de jornada: o amor, por quaisquer das formas de
vida, a ética pessoal e profissional, o compromisso com a docência e o gosto pela
pesquisa. São esses fiéis companheiros que visitaram a minha consciência e
exigiram de mim a verdade sobre o Jairo, e que essa verdade fosse assumida neste
meu trabalho, em função de que as memórias resgatadas e a sua completude não
sofram ausências, o que retardaria o resgate de mim mesma como pessoa e como
agente da educação e do ensino.
Sobretudo, penso como Foucault: “O novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2008, p. 26).
21
Moça de boa família: É uma expressão própria do contexto sociocultural para exprimir valores, normas, usos e costumes, enfim o comportamento da família brasileira, surgida nos anos 20 como “critérios aplicados pelas enfermeiras americanas na seleção das candidatas que desejavam ingressar na Escola de Enfermeiras Anna Nery e o perfil da moça de "boa família", no Rio de Janeiro” [...] “quando ocorreu o advento da implantação da Enfermagem Moderna no país” [...] analisados e interpretados segundo categorias: comportamento social, casamento e honestidade. Os resultados indicam que o conceito de "moça de boa família", apesar das ambiguidades que aparentemente encerra, é o que melhor se ajusta às exigências dos dirigentes da Escola à época (SENA et. al., 1998, p. 356).
66
Nesta tese o novo se mostra na sua inteireza para a autora, podendo seduzir
o provável leitor que se identificar com a sua inquietude e partilhar da sua sôfrega
busca de respostas às perguntas existenciais e às perguntas intelectuais.
É Freire (1996, p. 133) que me norteia na desafiante caça às respostas.
Uma das características da experiência existencial no mundo em comparação com a vida no suporte é a capacidade que mulheres e homens criamos de inteligir o mundo sobre o que e em que atuamos, o que se deu simultaneamente com a comunicabilidade do inteligido. Não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada.
É por isso que hoje
Quero falar de como esta experiência de trabalho tomou conta de mim De como e quanto me envolvi De quantas coisas vivi e senti Do muito que aprendi Do que pude ou não fazer Do quanto trago dentro de mim as marcas deste fazer e de cada um.
Quero falar um pouco do que
Carrego muito dentro de mim Tenho comigo as lembranças Das tentativas Dos ânimos e desânimos Das conquistas e das frustações Do jeito e do que pude aprender com cada um Dos bons momentos e das dificuldades Das brincadeiras gostosas e dos cansaços.
Falar de tudo o mais que
Carrego também As ideias As emoções As experiências compartilhadas Os rostos, os nomes, As vontades e os medos O querer e o não saber O fazer o que se pôde fazer As provocações que mesmo difíceis me ajudaram a crescer As certezas e ainda as dúvidas... (DESCONHECIDO
22).
Por fim, esta é a Odila. Esta realidade histórica sou eu.
22
Poema de autor desconhecido, consta do Caderno de Gestão Educacional da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo/SP.
67
2.2 Implicações da formação inicial disciplinar da pesquisadora no pensar
certo a educação (1967)
Contemplar o percurso paradoxal que o professor viveu em sua formação inicial exercida sua capacidade de confrontar paradigmas, de analisar com outros critérios suas práticas de sala de aula (SALVADOR, 2000). Essa sistemática tem diminuído muito o exercício de práticas espontaneístas e contribui bastante para um ensino mais livre e promissor (FAZENDA, 2001a, p. 20).
De cultura geral não tão expandida, eu desdobrava-me em mil para dar conta
dos estudos desde os tempos de “ginásio”, em função da melhoria da qualidade de
vida. Situava-me entre as melhores classificações no desempenho escolar: três
anos de Curso Normal e mais um de Especialização facultaram-me a titulação de
Professora Primária.
Na solenidade de colação de grau, o professor de Psicologia, que se tornou
minha referência no Curso, disse-me, ao passar-me às mãos o diploma: “Dileta
aluna, agora tudo começa!”. Por óbvio, na emoção daquele momento o seu dito
causou-me perplexidade. Entretanto, no decurso do tempo fui me apropriando do
sentido pleno daquela fala. O que ele quis me apontar, naquela noite festiva,
significava tão somente o longo caminho do conhecimento que se abria a minha
caminhada – uma visão e uma atitude interdisciplinar, a dele!
Contudo, em geral, considero que a Escola Normal que me formou professora
deixou escapar, talvez, a prática do pensar certo, no curso de minha formação.
Sobre o pensar certo, Freire (1996) assim se posiciona:
Pensar e fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez. [...] faz parte da exigência que a mim mesmo me faço de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto, pensar, por exemplo, que o pensar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. [...] Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos [...] não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferido mas co-participado... (FREIRE, 1996, p. 40-41, grifo do autor).
68
Penso ter deixado de aprender também que ensinar exige estabelecer ponte
entre os saberes que a escola privilegia no ensino aos alunos e a “experiência social
que eles têm como indivíduos” (FREIRE, 1996, p. 50).
Ademais, não aprendi sobre a razão de ser dos descasos com a escola do
pobre, até porque eu não reconhecia como tal a escola de minha formação.
Esconderam-me a diferença entre ingenuidade e criticidade, não me revelaram que
a curiosidade ingênua, ao se “criticizar”, torna-se “curiosidade epistemológica”. Que
a primeira está associada “ao saber do senso comum” e que só se transmuta na
segunda pela aproximação rigorosa “do objeto cognoscível” e, dessa forma, altera a
qualidade sem perder a essência (FREIRE, 1996, p. 34-35).
Também não foram objetos de aprendizagem os valores sociais da época
(1967), os quais impunham às professoras normalistas (APÊNDICE B) o modelo
de aluno padrão, não só desejado pela escola, mas também desenhado nela e por
ela, como legitimado pela sociedade dos “anos dourados”, assim rotulada a geração
dos anos 60:
Limpinho, obediente, quietinho, organizado, pronto para conhecer o conhecimento pronto e acabado de forma a mais inteligente. Sentado bonitinho nas primeiras fileiras de carteiras, da frente, de preferência, que nem gente!!! Livros encapados, nada de sujeira nem de grossas brincadeiras nada de mau odor e, durante as exposições, olhos grudados no professor pés calçados, ouvidos lavados, cabelos penteados. Tudo, tudo muito arrumadinho dentes tratados, sorriso branquinho gola engomada, roupa cheirosa, comida gostosa, fala controlada, porte elegante e assim por diante...
(Odila Amélia Veiga França)
Parênteses: vale ressaltar que minha mãe trabalhou duro para garantir a mim
e aos meus irmãos a satisfação dessas implacáveis exigências.
69
Transpondo tais considerações para o processo de minha formação, acredito
que este trabalho com história de vida tenha me convidado a revisitar as lembranças
afetivas imbricadas radicalmente nas concepções epistemológicas, para ajudar-me a
encontrar as possíveis respostas às perguntas intelectuais e existenciais que
persigo, desde àquela época até os dias atuais. Em inconteste busca de melhor
compreender e intervir em meu campo de trabalho, como explicita Jung (2006):
Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nela repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade. A fim de descrever esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como um problema científico (JUNG, 2006, p. 31).
Trata-se, portanto, de atitude interdisciplinar que permite a problematização
da realidade, considerada toda a força que lhe é própria e endereçada à
bricolagem23 dos fios da trama da minha história de vida pessoal e profissional a
partir da primeira situação-problema enfrentada na docência na Escola de
Emergência da zona rural. Uma atitude que busca o (re) encontro com os fios que
teceram aquela vivência, impulsionada pelas inquietações que me invadiram a
mente e o ser, no emergir de hipóteses intuitivas de solução, seguidas de tentativas
múltiplas de teorização da prática pedagógica exercida, para, enfim, retomados os
fatos e os feitos, elaborar hipóteses de solução com maior densidade teórica. Atitude
esta cujo processo dinâmico e dialético tem origem na realidade e cuja busca é a
volta a essa mesma realidade, agora repensada, o que vale dizer, um caminho e um
caminhar da teoria à prática em favor do aprofundamento e da melhoria de ambas.
Poder-se-ia dizer, uma atitude que deseja atender à convocação, ao retorno –
a volta do olhar ao passado remoto, capaz de fazer-me (re) elaboradora do presente
e, no presente, entregar-me confiante à inteireza dessa condição e poder
“esperançar” a renovação da prática, esperança essa que vive em cada sujeito
desses tempos de globalização não de todo globalizante.
23
Bricolagem: Vocábulo empregado para fazer uma analogia com trabalhos executados a mão e utilizados em peças ornamentais, de vestuários e outras (FERREIRA, 2004, p. 328).
70
[...] Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que se supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador (FREIRE, 1996, p. 43).
Mesmo diante da impossibilidade de não reconhecimento dos avanços
registrados na formação do professor em alguns dos estados brasileiros, sobretudo
nos estados das regiões sul e sudeste, é possível observar resquícios do descaso a
que se refere Nóvoa (1991a) nas linhas da própria História da Educação Brasileira.
Alguns desses resquícios são trazidos por Ronca e Terzi (1996) que, pelos
estudos da historiadora Ana Maria Araújo, encontra documentos cujos conteúdos,
para além da perplexidade, impele-nos a agir com a urgência requerida.
Observemos a data e o teor de um dos documentos encontrados pela historiadora
brasileira:
O presidente da província do Paraná, Polidoro Cezar Burlamaqui, em 1867, assim se pronunciou sobre o assunto das escolas normais: Reconheço a necessidade de uma escola normal; mas no Brasil elas têm sido plantas exóticas: nascem e morrem quase no mesmo dia. O professorado, entre nós, não está, nem estará tão cedo à altura de sua carreira, que estimule as ambições legítimas de quem quer que seja, e muito menos abra a porta a aspirantes distintos. Por via de regra só quer ser professor quem não pode ser outra cousa... Que perspectiva agradável se oferece ao aspirante ao magistério? Por todas estas considerações, não me inclino à adoção de uma escola normal na província. Falta aqui o gosto da instrução, faltam os incentivos para os mestres, falta o pessoal para escola desta categoria, a província é pobre no meio de uma imensa riqueza (RONCA; TERZI, 1996, p. 30).
Diante de tamanha temeridade, eu me pergunto:
Passado mais de um século daquela realidade, temos solucionados os
“incentivos para os mestres”, “a falta de pessoal para as escolas”, a pobreza “no
meio de uma imensa riqueza”? E hoje, “que perspectiva agradável se oferece ao
aspirante ao magistério”? Quem, hoje, realmente quer ser professor? Quais são as
semelhanças e as diferenças que se podem detectar entre o quadro educacional
daquele passado e o dos dias atuais? (p. 30).
71
Juntas, minhas indagações e as de Ronca e Terzi (1996), sobre “o fenômeno
do êxodo do professorado: a que se deve tal fenômeno? E que consequências
práticas emergem daí”? (p. 31). É evidente a atualidade do problema!
Ainda no ano de 1996 os autores avançam quatro anos à frente, preocupação
com o futuro da educação projetada ao ano 2000 e questionam: “Quem estará
ocupando a cátedra do ensino fundamental no ano 2000?” (RONCA; TERZI, 1996,
p. 32).
Passadas quase duas décadas dos questionamentos feitos por Ronca e Terzi
(1996), temos em Nóvoa24 (1991a) a seguinte expressão, ao tratar do
desenvolvimento pessoal do professor ou da produção de sua vida:
A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os meios de um pensamento autónomo e que facilite as dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projectos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional (NÓVOA, 1991a, p. 25).
O autor reporta-se ao pensamento de Nicholas Nias (1991), para dizer da
inseparabilidade dos elementos constituintes do fenômeno humano professor ↔
pessoa, tomada como parte importante da pessoa, o professor (NÓVOA, 1991a).
Dessa qualidade de inseparável, resulta a urgência de “[...] (re) encontrar
espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos
professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no
quadro das suas histórias de vida” (NÓVOA, 1991a, p. 25).
Não obstante, e até mesmo em descaso a essa urgência, constata-se que o
desenvolvimento na associação dos âmbitos profissional e pessoal, nos processos
de formação de professores, têm sido, também aqui no Brasil, perversamente
ignorados, a exemplo da realidade educacional portuguesa, apontada por Nóvoa
(1991a).
24
Antônio Nóvoa. Texto: Formação Contínua de Professores: Realidades e Perspectivas apresentado no I Congresso Nacional da Formação Contínua de Professores. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1991a.
72
De outra feita, ensina-nos Jaeger (2001) que a palavra alemã Bildung significa
formação, configuração, e que designa “[...] a essência da educação no sentido
grego e platônico” (JAEGER, 2001, p. 13).
No X Encontro de Pesquisadores do Programa Educação: Currículo, ocorrido
em junho de 2011, na PUC/SP, privilegiado o tema Qual conhecimento importa?,
Chizzotti (2011) afirma que a escola preocupada com a permanência e o sucesso do
aluno e seu bem-estar, nela e fora dela, é também preocupada com a valorização de
seus profissionais e, por conseguinte, com a qualidade de sua formação inicial e
continuada.
Valoriza os saberes docentes e discentes. Antes de tudo, valoriza a pessoa
do aluno e a pessoa do professor e, por isso mesmo, procura integrar a teoria à
prática e problematizar a realidade dada. Na ocasião, o filósofo retoma as ideias de
Santo Agostinho para dizer das três grandes paixões humanas ─ o desejo latente de
conhecer; o desenho natural de dominar e o desejo de garantir a conservação da
espécie.
A crítica à escola de currículo cristalizado é que a educação e a formação que
ela pode oferecer frustra, num só tempo, os três desejos naturais do homem. Os
desejos que o movem para o desenvolvimento, para a emancipação e para a
felicidade.
Assim, o pesquisador da PUC/SP entende que o currículo aberto valoriza o
saber científico enquanto parte do conhecimento comum na linha de uma formação
vinculada ao cotidiano dos alunos. A consideração do conhecimento comum e dos
saberes práticos dos estudantes que respondem aos fatos reais da vida são a razão
de ser e a fonte de felicidade dos alunos, que se sentem reconhecidos e
considerados na sua dimensão humano-subjetiva e, portanto, pessoal. E esse, por
natureza e dever ético para com o aluno é incontestavelmente um conhecimento que
importa, afirma Chizzotti (2011).
Nesse sentido, reconheço hoje que, mesmo sem contar com o
aprofundamento devido quanto aos conhecimentos filosóficos postergados pela
Escola Normal, lócus de minha formação docente, essa essência da educação
grega sempre rondou o meu campo intuitivo, levando-me agora a (re)conhecer que
“[...] o conhecimento essencial de formação grega constitui um fundamento
73
indispensável para todo o conhecimento ou intento de educação atual” (JAEGER,
2001, p. 18).
Faculta-me ainda a defender que, do modelo de formação que me habilitou
para o magistério, não se pode polarizar se era conservador ou omisso, tampouco
progressivo e libertador. Na verdade, falamos de um modelo tão conservador quanto
progressivo, se analisado do ponto de vista das exigências socioculturais e políticas
daquela época, imersa na cultura dos “anos dourados” e ao mesmo tempo
“rebeldes”, considerados os interesses políticos e econômicos contracenando com
as expectativas da sociedade burguesa, em relação à função social da educação
escolar.
A explicitação de Jaeger (2001, p. 5) sobre o “lugar dos gregos na história da
educação” respalda, ao menos em parte, a descrição do modelo de formação que
me preparou para o ofício de professor.
Assim se expressa o filósofo sobre isso:
[...] a educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual... e, uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história na educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade. À estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos fundamentos da educação (JAEGER, 2001, p. 4).
Dessas experiências de autoformação ou formação participativa, como a
conceitua Nóvoa (1991a), decorre o desafio enfrentado até hoje: estudar, pesquisar,
planejar e avaliar continuadamente a ação, a reflexão sobre a ação e a reflexão na
ação, numa circularidade contemplando aberturas e fechamentos de ciclos sem
perder a unidade na multiplicidade e na diversidade: de pessoas, de temas, de
assuntos e de novos desafios emersos do próprio movimento de formação.
A prática de pensar e repensar criticamente a prática alcança em Freire
(1996) o seu sentido pleno. Afirma Freire (1996) que,
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência
74
feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito (FREIRE, 1996, p. 43, grifo do autor).
A formação que considera a própria prática como fonte de conhecimento,
reconstrução e melhoria da ação docente considera também a relação de
interdependência que caracteriza o binômio ensino/pesquisa.
Freire (1996) já insistia a que o professor tomasse consciência dessa relação
no sentido de melhor explorá-la em favor de um ensino competente. Declara sobre
isso o educador:
Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 1996, p. 32).
Observemo-nos, no item 2.3, quanto às pedras do caminho e, no árduo
exercício da crítica, os fundamentos da história da educação e da prática
pedagógica alfabetizadora e seus desdobramentos na história de vida e formação da
pesquisadora.
2.3 As pedras do caminho e a primeira travessia guiada pela intuição mais que
pelo conhecimento elaborado (1968)
Então... o ano letivo de 1968 tinha início, e eu, entre o estado de graça
propiciado pela solenidade de formatura e a preocupação com o vazio aberto pelo
muito que se havia de fazer, não vislumbrava chance alguma de trabalho educativo
na região sorocabana e territórios circundantes. Meu pai, falecido havia pouco,
deixara a mim e a minha mãe a tarefa de continuar a lida, porquanto o irmão mais
velho se avizinhava dos tempos de “servir ao exército”, e os menores, dos tempos
de ainda viverem os folguedos da infância.
75
Ao lado de minha mãe, não me faltava a consciência de dar conta da tarefa
imposta; a consciência de que é a mudança de atitude a base de toda e qualquer
mudança. Na ambiguidade da trilogia dos sentimentos sofrimento / saudade /
esperança, que me ferviam o espírito, sentia-me pronta para pôr os pés na estrada,
E foi isso que eu fiz!
Consultando aqui e acolá, descobri que estava, na região do Vale do Ribeira,
a chance de iniciar no ofício de professor. Era final de janeiro daquele ano, e eu, de
malas humildes, mas prontas, rumei para lá! E nada me era familiar! E nada me foi
fácil! O ônibus fazia a linha Sorocaba/Registro, por dentro da serra que inspirava
tantos mistérios e que parecia sequestrar da minha mente as certezas incutidas na
Escola Normal. Levava de tudo, o ônibus: gente, coisas, comidas e até pequenos
animais. Parava de quando em quando e nos fazia engolir do pó que ele mesmo
levantava da estrada de terra, alguns dos seus trechos mais parecidos com sendas
torcidas, crivada de curvas acentuadas, ausência dos acostamentos devidos e
presença de buracos, aliás, tão conhecidos em muitas das estradas brasileiras, por
onde não trafegam aqueles que delas devem cuidar. Contudo, eu a enfrentei com a
coragem reconhecidamente herdada da bravura dos meus pais, mas desconhecia
que era tanto!
À medida que o carcomido ônibus rasgava a estrada acostumada a
empoeirar, mais e mais ficava para trás o meu universo de apego. Mais me
distanciava dos meus.
Paradoxalmente, a sensação de descortino de um novo modo de viver e de
lutar pela vida povoava o meus pensamentos e norteava-me os sentidos.
De forma difusa, eu já me sentia educadora convocada ao compromisso
comigo mesma, com os meus, com o outro e com a educação.
Não obstante a irrevogável decisão de fazer, esprimida na janela do canto
direito de uma poltrona avariada, eu variava em meio aos pensamentos
contraditórios e me perguntava: por que devia eu estar ali? E prontamente apontava-
me a consciência: “você está aqui por causa do desejo e da necessidade”. A crueza
da verdade tinha a morada naquele apontamento, pois, de fato, eu sempre acreditei
na capacidade humana e sempre depositei confiança no valor da educação. E, de
fato, moviam-me o desejo e a necessidade. Naquelas circunstâncias de vida era
76
imperioso mudar. Não se tratava de pura opção, mas também de uma questão
radical de sobrevivência. E diante da radicalidade que se impunha, resistir seria,
antes que um sinal de omissão reprovável, um indicativo de pensamento e de
tomada de decisão desinteligentes, antiéticos e apolíticos. Antiéticos porque
contrários à minha ética. À ética que norteia a minha particular conduta moral no dia
a dia.
Por oportuno, escreve sobre isso Cortella (2007, p. 109), que declara: “Quem
tem princípios e valores para decidir, avaliar e julgar está submetido ao campo da
ética”. Declara ainda o filósofo que, “[...] se você tem autonomia e liberdade, vive
dilemas éticos. Não tem como não vivê-los. E você a eles vai sobreviver melhor
quanto mais tiver claro quais são seus princípios e valores” (p. 111).
Dessa forma, entendo que é de acordo com os princípios e valores próprios
que cada indivíduo pauta suas decisões, seus julgamentos e suas avaliações, a fim
de, desse modo, conseguir ter em paz a consciência. E completa Cortella (2007), a
esse respeito:
Integridade é o princípio ético para não apequenar a vida, que já é curta [...] você (se carrega a virtude da sinceridade) obtém um pouco de sossego mental quando aquilo que você quer é também o que você deve e é aquilo que você pode. Quanto mais claros os princípios, mais fácil fica lidar com os dilemas (CORTELLA, 2007, p. 113).
Retomando a questão do desejo e da necessidade, forças que me moviam
naquela viagem ao Vale do Ribeira, eu a lembro hoje, situada entre o sonho de ser
professora e o sentimento do “ódio fraterno”25, por não ter sobrado para mim um
lugar ao sol perto dos meus.
Rosa (2007, p. 13), que estudou a relação desejo/necessidade, com especial
sensibilidade afirma: “[...] toda mudança nasce do casamento entre a necessidade e
25 “Ódio fraterno”: Expressão empregada por Fazenda, ao se referir ao sentimento que medeia a
necessidade de fazer algo e a resistência em fazê-lo. A resistência ao novo que desestabiliza a ordem posta, que mexe com o já sabido e com aquilo que há muito está desgastado. Registros de Memória de Aula no Curso de Doutorado. “Aula Aberta” com representantes de quatro particulares grupos de pesquisa da PUC/SP, numa reflexão interdisciplinar, a saber: Claudio Picollo - FAFLICA (Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes) – GEPI (Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares) - Projeto Pensar e Fazer Arte; Ruy Cezar do Espírito Santo – INTERESPE (Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação); Arnold José de Hoyos Guevara – NEF (Núcleo de Estudo do Futuro); Pedro Paulo Teixeira Manus - Dir. Faculdade de Direito da PUC/SP em: 18 set. 2014.
77
o desejo. Se, como estamos vendo, a necessidade já bateu em nossa porta, será
preciso despertar o desejo de começar a operá-la”.
De novo, foi exatamente isso que eu fiz! Escolhi agir de acordo com a
realidade enfrentada na época. Resolvi atender à intuição de uma história tão
criativa quanto desafiante e que apenas se anunciava.
Incorri, é claro, em vários deslizes educativos por inexperiência docente e por
firmar a docência na confiança das receitas prontas e infalíveis; arquétipos que nos
levam a acreditar que a criança vem para a escola sem conhecimento algum,
passando a tê-los somente com os modelos pré-fixados de ensinar e aprender.
Porém, tranquiliza-me sobremaneira as considerações de Cavaco (1991),
quanto aos deslizes cometidos no início da atividade profissional.
Diz a autora:
O início da actividade profissional é, para todos os indivíduos, um período contraditório. Se, por um lado, o ter encontrado um lugar, um espaço na vida activa, corresponde à confirmação da vida adulta, ao reconhecimento do valor da participação pessoal no universo do trabalho, à perspectiva da construção da autonomia, por outro lado, as estruturas ocupacionais raramente correspondem à identidade vocacional definida nos bancos da escola ou através das diferentes actividades socioculturais, ou modelada pelas expectativas familiares. Assim, é no jogo de procura de conciliação, entre aspirações e projectos e as estruturas profissionais, que o jovem professor tem de procurar o seu próprio equilíbrio dinâmico, reajustar mantendo, o sonho que dá sentido aos seus esforços (CAVACO
26, 1991, p.
137-138, grifo do autor, in: NÓVOA et. al., 1991b).
Contudo, eu não deixava de intuir sobre um tempo novo. Sobre um “tempo de
necessária humildade”, como alerta Rosa (2007, p. 103) e defende Fazenda
(2001a). Um tempo de ambiguidade em que num só tempo, imaginava eu o caminho
da construção de uma política pedagógica crítico-reflexiva, sendo eu a construtora
da própria prática e de mim mesma como pessoa e profissional.
A par de inúmeros outros valorosos educadores e atuando em diferentes
contextos e âmbitos educacionais, eu trilharia, a partir daquela escola de roça, os
caminhos da construção da competência docente e o exercício do compromisso
responsável com a educação.
26
Maria Helena Cavaco. Ofício do Professor: O tempo e as mudanças. In: NÓVOA, A. et. al., Profissão Professor. Porto Editora LDA: Portugal, 1991b.
78
Mal sabia eu que os caminhos a serem construídos seriam percorridos no
movimento mesmo da construção e me levariam pelas vivências, afora a experiência
da autoria e, sobretudo, da minha repaginação.
É importante aqui consignar que, de fato, não houve propriamente uma
omissão no processo de minha formação docente e, por conseguinte, não houve
tampouco delito no fenômeno educativo que originou o fato pedagógico dado com o
Jairo. Em verdade, eu poderia não ter chegado até aqui, não fosse o ocorrido e, por
certo, não tendo deixado a escuridão da caverna, não alcançaria tal experiência.
Nesse sentido, foi indispensável errar. O erro foi salutar.
Sobre os caminhos da experiência, posso valer-me da expressão de Moreira
José (2011, p. 113):
A autoria pode ser estimulada desde a formação inicial do professor. O docente, responsável por sua formação, necessita adquirir um olhar cuidadoso acerca do discurso individual do aluno, bem como de suas representações coletivas com seus pares e as expressões de seus grupos de trabalho, como pudemos comprovar.
Que os formadores do futuro permitam aos formandos deste século conhecer
o mundo para que possam ser-no-mundo. Que com mais vigor possam olhar e ver
de onde brota o impulso criador dos alunos. E que a relevância contributiva desta
tese possa lhes tocar o espírito de forma a não negarem a necessidade ontológica
de sermos mestres de nós mesmos e alunos até o apagar das luzes de nossa
existência. E, finalmente, que consigam transformar as futuras gerações em
gerações de autoria.
2.4 Quem é o Jairo?
Por que eu o encarava de forma acrítica?
Como era Jairo?
Quais eram os traços característicos da comunidade local em que Jairo vivia?
Por que desconsiderei o seu “saber de experiência feito”?
79
Não falo aqui de “verdades acabadas”, mas de “vestígios... lampejos de
verdade” (FAZENDA, 2001a, p. 22) reinterpretados e realinhados para intuir sobre o
caminho percorrido e sobre “o caminho a seguir” (p. 23).
E sobre o Jairo, tenho eu que me redimir.
Jairo... Jairo...
Menino franzino que vitimado
pelo meu engano
nos seus poucos
sete anos...
de pele parda
menino pobre
pobre menino
de uma competência
de escrita e leitura
doce criatura
escondida
por trás,
das múltiplas
carências sofridas...
O sentimento
de baixa estima
era o seu
companheiro
primeiro
o seu tormento!
que o assolava
de forma cruel!
seus olhinhos de mel
sempre abaixo
do queixo m-a-g-r-i-n-h-o...
ouvia de muita gente
e até de mim!!!
que pena!...
não aprende,
coitadinho!
A despeito de toda
desventura...
(Odila Amélia Veiga França)
80
Vê-se que a supremacia da ideia do aluno padrão, idealizado nos moldes
urbanos de classe média, levava-me a encará-lo de forma acrítica associada à
consciência ingênua acerca da realidade.
Como se constata, o Jairo não era o aluno padrão! Tampouco o seu contexto
de vida atendia ao modelo idealizado.
Mais ainda: eu, a professora, não tive, na formação para o Magistério, nada
que me habilitasse para a lida com as especificidades do contexto rural, menos
ainda em região cujo desenvolvimento industrial sequer ameaçava a vida simples e
humilde do povo caiçara ou do agricultor de subsistência, como era o caso da
comunidade em questão.
Poucos eram os assalariados, e estes recebiam o correspondente a um
salário mínimo, situação político-econômica suficientemente provocativa da
insuficiência do nível sociocultural daquela comunidade. Raramente ultrapassava a
quarta série do primeiro grau a escolarização dos pais dos alunos que revelavam
grandes dificuldades em acompanhar os filhos na escola.
Os alunos, seus pais e familiares eram de uma simplicidade que emocionava.
Eram humildes. De uma humildade que nada tinha a ver com “depreciação de si
nem falsa apreciação” (ALVES, in: FAZENDA, 2001a, p. 61)27. Uma humildade não
originária da ignorância de si mesmos; ao contrário, prenha do reconhecimento do
que eles não eram. Uma humildade originada do amor à verdade das coisas. Do
conhecimento das coisas como elas se apresentam de verdade, humildade – força
privada de “demonstração de superioridade”, justamente por conhecerem os
próprios limites (ALVES, in: FAZENDA, 2001a, p. 61). E eu não cheguei
perguntando absolutamente nada sobre eles. Quem eram, quais sonhos tinham,
como percebiam a escola... a “professorinha”... O que já sabiam fazendo parte do
“saber de experiência feito” (FREIRE, 2000b, p. 30).
Eu era a professora “formada” numa escola que imprimia zelo e profundidade
à ação formativa! Não havia dúvidas: uma escola que garantia às normalistas pleno
domínio dos conhecimentos a serem “transmitidos” aos alunos.
27
Claudio Alves. Humildade. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
81
A função docente, de pretensa neutralidade, não fixava o olhar “por dentro” da
realidade. Olhar para as potencialidades, aspirações, talentos, sentimentos e/ou
limitações dos alunos. Os saberes que os habilitava para o embate na vida real não
eram valorizados na escola. A orientação era a de que fosse colocada ênfase no
saber sistematizado e nos conteúdos disciplinares.
Os familiares de um lado, a escola de outro... e a política bem longe dela! A
materialização dessas ideias na sala de aula parecia brincadeira de infância “farei
tudo o que o seu mestre mandar...”.
Os caiçaras sabiam muito bem da lida com a terra e com o rio. Sabiam de
enchentes. De marés. De mangue. De épocas propícias para o plantio do milho e do
arroz nos terrenos encharcados. De ervas que curam e que também podem matar o
homem.
Eu não sabia que deles eu haveria de tirar lições para toda a vida. Saberes
que me fortaleceriam na carreira profissional e, principalmente, saberes existenciais.
Sabiam eles de opressão, de isolamento, de fé, de resiliência e, para além de
tudo isso, sabiam de superação. No entanto, os saberes deles, pensava eu, nada
tinham a ver comigo e com os meus saberes e, pior ainda, em nada poderiam
auxiliar-me na tarefa de educar e ensinar naquele fim de mundo.
Os caiçaras ribeirinhos sabiam contar causos engraçados e lendas cheias de
mistérios. Alguns juravam já terem visto o saci, a mãe d’água, a mula sem cabeça, o
lobisomem e outras figuras do folclore brasileiro.
Sabiam trançar o junco e a taboa, e essa arte manual lhes rendia algum
ganho e agradava aos forasteiros que vez em quando se entregavam ao sossego do
lugar.
De outro lado, os descendentes dos japoneses sabiam do trabalho sério e
sistemático iniciado no raiar do dia até o fim dele. Sabiam da obediência e respeito
aos pais, aos mais velhos e, sobretudo, do respeito ao professor. Entendiam de
mudez e de olhar observador. Sabiam salgar a manjuba e comercializá-la por meio
do “vapor”28 que rasgava as águas do Ribeira de Iguape. Sabiam do cultivo e dos
cuidados com os legumes, com as hortaliças, com as frutas, principalmente a
28
“Vapor”: Navio propelido por máquina de vapor. [Sin., bras., N.E., pop. (nesta acepç.): vapor do mar, vapor de água] (FERREIRA, 2004, p. 2035).
82
banana. Sabiam do culto às origens e do pouco que se misturavam com estranhos.
Conheciam a tecnologia do campo desenvolvida na época. Pouco se abriam aos
estreitamentos de laços de amizades fora dos seus. Tinham autoestima e atitudes
que preservavam os valores fundamentais à vida humana, como respeito,
responsabilidade, pontualidade, sinceridade, perseverança, tenacidade, entre muitos
outros. Discretos, esperavam dos brasileiros atitudes de prudência e de sobriedade,
e se mostravam tranquilos no meio deles.
As modalidades de lazer dos moradores do bairro não ultrapassavam os
arrasta-pés de sábado à noite, as cantigas de roda e os forrós realizados nos
“puxadinhos” de algumas das casas maiores e mais bem construídas, de chão
batido ou piso de tijolo cru, e que se arrastavam noite adentro até alcançarem o
amanhecer de domingo. E nem precisa dizer que eu estava lá, amanhecendo o novo
dia com eles! Até porque o lema infalível para todos era o de que “quem não dança
carrega criança”.
No raiar do novo dia era servido, numa ambiência de alegria geral e sob os
cuidados das cozinheiras de fogão de lenha, a banana da terra frita com paçoca de
carne seca ou frango assado com farofa, a pamonha, o curau, acompanhados com o
café “passado na hora” no coador de flanela fina, depois de tê-lo lavado na “água de
fervura”, como assim era chamado aquele “duvidoso” hábito higiênico. O café,
servido em canecas de ágata nem sempre sem descascados, tomado aos goles
quentes por todos, com gosto refletido nos “agardecidos cumpadre, comade”.
Talvez esteja em Dallari (1984) o pensamento político que pode melhor
descrever o reino de alegria que presenteava aquele reino de carências. “A
experiência tem demonstrado que entre as classes mais humildes, amadurecidas
pelo sofrimento, existe mais solidariedade e espírito comunitário do que entre as
classes mais ricas e socialmente privilegiadas” (DALLARI, 1984, p. 37-38).
Fora disso, era o jogo de “truco” que atiçava o gosto de um ou outro, algumas
vezes.
Lugar de honra, porém, ocupavam as missas realizadas na comunidade
quando, uma vez por mês, vinha até o bairro o pároco da igreja da cidadezinha de
Sete Barras. Era uma festa para os católicos que reinavam em absoluto, vez que
83
sobravam poucas pessoas seguidoras de outros credos religiosos. Rezas e novenas
também se faziam rotineiramente.
Duas fortes benzedeiras e uma parteira davam conta, em geral, dos cuidados
com a saúde dos membros da comunidade, incluindo, por certo, a estimada
“professorinha”, que se valia das receitas dos chás e preparados que, segundo elas,
eram “tiro e queda” contra noites mal dormidas, indisposições estomacais, dores
lombares, picadas de pernilongos, cólicas e quejandos.
Exceção feita aos expressivos produtores de chá, imigrantes japoneses, ou
de banana, pequenos sitiantes agricultores donos da terra, restava um grande
contingente de lavradores, os quais não contavam com a infraestrutura elementar
para o escoamento e comercialização adequados dos seus produtos (mandioca,
milho, arroz, feijão e, principalmente, legumes e hortaliças).
Por oportuno, só mesmo a visão crítica, o pensamento e a ação político-
pedagógica de Freire (1996) para fundamentar, com a necessária “rigorosidade
metódica” e a exigida ética humana, a análise daquele contexto sociocultural e,
portanto, da condição de Jairo:
Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres (FREIRE, 1996, p. 39-40).
À parte da pobreza material de Jairo, ele sabia pensar! Pensava certo,
independentemente de ser inferiorizado e subsumido. Sabia reconhecer, como
nenhum outro daquela turma, a sua mudez, pois que lhe tinha todo sentido. Quando
chamei a sua mãe à escola, para dizer das dificuldades de aprendizagem do filho,
ela se mostrou entre perplexa e frustrada, já que conhecia tão bem os “saberes da
experiência feito” (FREIRE, 1996) de Jairo e a desenvoltura com que resolvia, em
casa, os seus problemas, o dos pais e dos seus irmãos.
84
Lembro-me, como se fosse hoje, de seu olhar decepcionado e sobremaneira
envergonhado ao me dizer29:
─ “Nossa... fessorinha... lá cum nóis ele sabe tudo... é esperrrto que nem o
quê... vive com a carrrtilha que a senhora deu na mão e não disprega o zóio das
letra... Num dá pra intendê direito... fais conta co pai na cidade que percisava a
senhora vê...”.
Eu disse:
─ Será, Dona... (não me recordo o nome dela!), que ele não precisa ir ao
médico para um exame da vista, dos ouvidos... quem sabe não enxerga bem, não
ouve bem...
Ela expôs:
─ Médico? Fessorinha, ih... a senhora sabe... é tão difici, aqui ninguém vai no
médico... só lá no postinho de Sete Barras... mai...”
E eu retomei:
─ Eu vou tentar mais um pouco, para ver se ele aprende...
Ela disse:
─ Mas, quar é o pobrema?
Eu respondi:
─ O problema é que ele conhece as letras quando as vê, quando pega nas
mãos os cartões do alfabeto que eu faço em cartolina. Reconhece e lê... mas
quando eu mando escrever ele troca todas elas. Troca o lugar das letras... as letras
e a quantidade de letras na palavra... entende? Ele, quando escreve, “come” letras.
Por exemplo, (levei a pobre mãe até o quadro negro e fiz o que segue):
Eu mostro a letra E para o Jairo. Ele lê certinho: E.
Eu mostro a letra U. Ele lê U, direitinho...
Mas quando eu falo: Então, agora, Jairo, escreva EU.
29
Transcrição literal do diálogo com a mãe de Jairo, para manter fidelidade com a oralidade própria e a forma costumeira de expressão verbal.
85
Ele escreve assim: OIA
Veja a senhora: uma palavra tão curtinha e ele não consegue escrever!...
Ela se dirige ao filho que aguardava no cantinho da lousa e diz: “OIA num é
memo EU, fio... prestatenção na fessorinha...”
Jairo, acometido por um receio sem comparação com nada, balbuciou:
─ “Manhê... eu não escrevi a senhora, eu escrevi ela”, apontando o dedinho
trêmulo para mim.
Hoje me pergunto e pergunto ao leitor deste trabalho: ─ Por acaso, há
palavras que possam explicar a perplexidade causada por uma resposta dessas?!
E até eu aprender que
A criança na fase de alfabetização, more ela na favela ou no palácio, está na fase mágica, onde a lógica é uma ótica muitas vezes vesga, a tolher sua imaginação criadora [...] A lógica? É em nome dela que se cometem os maiores assassinatos na imaginação criadora das crianças! (DINORAH, 1990, p. 55-56).
E até eu aprender a ler a leitura silábica do Jairo e a leitura da palavra e do
mundo que ele realizava com propriedade ímpar, o ano letivo chegou ao fim e eu,
mesmo angustiada e intuindo sobre algo que me faltava, o reprovei na primeira
série, até porque se não o fizesse a Inspeção Escolar o faria no meu lugar. Nada
mais perverso para os dois sujeitos da aprendizagem e nada mais contrário aos
avanços do desempenho escolar de Jairo. Um drama de formação e formador
restados prejuízos de toda ordem ao menino e aos seus indefesos pais. Uma perda
irreparável para a educação, pois um brasileirinho a mais teve ultrajada a sua
capacidade de aprender!
Aponta Dallari (1984, p. 37) que “Evidentemente é muito difícil o indivíduo
marginalizado e dominado descobrir sozinho que dispõe de meios para reagir”.
Um oprimido sabendo-se como tal, porém sem qualquer instrumento de luta
que o tornasse livre da opressão. Não do opressor, porque este Jairo o amava!
Decididamente, uma lástima!
86
Apoiada em Fazenda (2003), eu percebo que naquelas circunstâncias não
poderia cumprir com minha tarefa, porque nem desconfiava que devesse insistir na
descoberta de como Jairo pensava, tal qual era o seu pensamento.
Não conseguiria captar a sua linguagem real, pois só tinha os olhos e os
ouvidos voltados para a linguagem ideal, formal, e, por isso, não percebia aquela
realidade. Nem em sonhos captava a relação entre linguagem e pensamento.
Foi me dado saber, muitos anos depois do Jairo, que na abordagem sócio-
histórica de Vygotsky (S.d.) o desenvolvimento cognitivo humano se dá na relação
entre linguagem e pensamento, considerado o ambiente social sobremaneira
relevante no desenvolvimento cognitivo. Para Vygotsky (S.d.), o conhecimento é
construído pelo indivíduo nas interações sociais. Tampouco me coloquei a
indagação, como o fez Fazenda: “Em que medida uma teoria do falar, ponto de vista
crítico, encontra uma teoria do educar, ponto de vista pedagógico? Em que medida a
palavra é comunicação? Em que medida a educação é comunicação?” (FAZENDA,
2003, p. 28).
Desse modo, Fazenda me fez compreender o que Gusdorf, em 197030, a fez
assenhorar-se da
[...] ambiguidade da palavra, palavra como engajamento, seja no individual ou no social, como elemento constitutivo do encontro. [...] diálogo na palavra escrita, chegando até a construção de uma ética da palavra onde a linguagem, como modo de ser, é constitutiva do mundo do ser (FAZENDA, 2003, p. 28).
Da mesma forma, Ricoeur (1971) a respalda na análise das “[...] relações
entre acontecimentos e sentido da palavra, concluindo com a importância de se
integrar, compreender, explicar e interpretar, para conhecer o interior da palavra
pronunciada” (FAZENDA, 2003, p. 28).
A escola era, para a comunidade, o lugar mais sagrado que podia haver
naquele rincão longínquo. A professora, mais sagrada ainda!
30
Georges Gusdorf. A fala. In: FAZENDA, I. C. A. (org.) Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003.
87
Se àquela época eu tivesse desenvolvido consciência sobre tudo isso, talvez
houvesse construído naquela sala de aula outra realidade, pois só a consciência
pode fazê-la
São estas as razões pelas quais tenho zelado pela lembrança viva do Jairo e
de sua escrita durante todos esses anos. Carreguei-a comigo por todo o chão pisado
de lá para cá. Aquele povo sabia dos segredos da vida.
2.5 A escrita de Jairo e a desestabilização do modelo convencional do ensino
da escrita: o sentido da história da consciência
E + U = OIA: um contraste agudo de compreensões que causou um choque
imobilizador do pensamento interpretativo e compreensivo do fato pedagógico; a
inviabilização do avanço de ambos ─ aluno e professora ─ roubando da ação
educativa a aparente segurança que até então a caracterizava.
Buscando saber o que é significação, ou seja, a noção do que as coisas
querem dizer, ou a natureza misteriosa da palavra e da expressão, conforme a
definição de Graham Allan, Fazenda (2003) oferece-nos importantes
esclarecimentos:
A maioria dos estudiosos colocam dois aspectos da significação: um chamado “sintático” quando um termo consiste inteiramente na série de regras sintáticas relativas ao referido termo; isto ocorre na linguagem formal, não interpretada. Outro, chamado “semântico” quando uma significação não se limita às regras sintáticas (FAZENDA, 2003, p. 21, grifo do autor).
Nesse sentido, Picollo (2012)31 fez o seguinte pronunciamento em aula na
PUC/SP: ... a forma padrão tem de ser aprendida... nada é mais difícil do que
escrever fácil. Escrever fácil é tarefa difícil no sentido de que a substantividade da
escrita simples há de trazer na sua interioridade a complexidade do teor escrito.
31
Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, jun. 2012.
88
E Varella (2012)32, naquela mesma aula, oportunamente intervém: ... e o que
é ler? É preciso desmistificar o que é ler. O sentido do sentido de ler. Quando nos
tornamos adultos o nosso olhar é endurecido. É preciso voltarmos a ler o mundo
com o olhar de criança... Duas categorias são fundamentais na leitura: o saber ouvir
─ a escuta sensível a que se refere Fazenda. Aprender a ouvir o que o outro tema
me dizer ─ pressupostos e subentendidos. Saber ler o outro é saber respeitar o
outro. Por segundo, é preciso saber dar a palavra ao outro, e aí, é requerida a
humildade, princípio forte da interdisciplinaridade... A linguagem é curativa. Ela cura
processos internos...
E Moreira José (2012)33, também naquela oportunidade, complementa: ...
Para formar pessoas é preciso que antes elas sejam tocadas. A linguagem trabalha
na tridimensionalidade: a leitura e a releitura de si mesmo e a reescrita de sua
própria história de vida. A palavra tem vida. Se você coloca com tanta intensidade
aquilo que você vive e sente, o outro (o leitor da sua palavra dita ou escrita), estando
em sintonia com você, sentirá o sentido pleno do sentido do escritor e da sua
palavra escrita.
Esses esclarecimentos levaram-me a analisar a escrita de Jairo sobre um
prisma reconfigurado, como resposta àquela atividade do ditado. Teria eu cobrado
daquele menino pensante somente o aspecto fonético, ao exigir-lhe que escrevesse
EU, e não OIA? Com a compreensão limitada, teria eu deixado escapar o sentido da
própria atividade e da produção do aluno, o que, por conseguinte, não me permitiu
apreender o significado do OIA de Jairo? Escapou-me à consciência a interpretação
daquela escrita pelo fato de eu ter me detido no aspecto formal da linguagem?
Na verdade foi mesmo cobrado do Jairo o aspecto fonético, pois queria eu
apenas que ele relacionasse fonemas com as respectivas letras. Nada, portanto,
intencionei relacionado ao aspecto do significado e do referente, pois objetivei
apenas que ele transformasse o fonema /e/ na letra E e o fonema /u/ na letra U. Em
momento algum desejei que ele relacionasse o vocábulo EU com a minha pessoa. O
que ele inteligentemente fez foi demonstrar a mim que ele pensou que, quando eu
dizia EU, estava me referindo a mim, Odila, e selecionou as vogais corretas de meu
32
Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, jun. 2012.
33 Idem.
89
nome O I A. E olhe que fez todas as transposições corretas, quando usou a letra O
para simbolizar o fonema /o/, a letra I, para simbolizar o fonema /i/ e a letra A para
simbolizar o fonema /a/. Ele entendeu o meu recado! Que menino esperto! Eu queria
que meus alunos relacionassem fonemas com as letras que os simbolizam. De
sintaxe, nessa história, talvez somente a ordem das letras. E isso o Jairo já sabia.
Naquele tempo não percebi isso, tendo como consequência o fato pedagógico em
estudo nesta tese.
No seu estudo sobre a questão da significação, Fazenda (2003) traz Kraft34
para nos dizer que:
[...] a linguagem é a representação de um campo de objetos mediante um sistema de signos, sobretudo mediante formas orais e escritas, mas também mediante gestos etc. Os signos têm um significado, e, precisamente por isso, são signos e não meramente sons ou figuras. A linguagem como sistema de signos pode considerar-se sob o aspecto semântico [...] Ater-se aos signos, à análise dos mesmos, é mover-se num círculo de meras palavras (KRAFT, 1966, apud FAZENDA, 2003, p. 21).
Ao restringir-me ao aspecto fonético e à forma do signo, findei por considerá-
lo somente no aspecto material? Às “propriedades estruturais formais da
linguagem”? (p. 21).
Penso hoje poder concluir que os esclarecimentos de Fazenda (2003) sobre o
que é significação mostram-se pertinentes para desvelar, salvo melhor juízo, a razão
de ser do raciocínio de Jairo quando relacionou EU com a minha pessoa, como da
mesma forma podem explicar a leitura equivocada feita por mim da produção escrita
do menino, razão pela qual eu o corrigia insistentemente no seu suposto “erro”,
dizendo-lhe: “EU”, Jairo; não OIA!...
Ademais, esse fato pedagógico, ainda trouxe à tona, para reexame, a lacuna
deixada na minha formação instável, no tocante ao conhecimento da língua e da
linguagem, sobretudo, às regras da linguagem, à função social da língua e às
diferentes dimensões de aprendê-la na sua totalidade linguística e social.
Com efeito, uma grave lacuna que pode ter tornado a relação do Jairo com a
escrita tão desconexa quanto o foram, naquela singular situação de ensino, as
34
Victor Kraft. El Círculo de Viena ─ versión espanhola de F. Garcia, Madrid: Taurino, 1966.
90
relações sujeito sujeito quem ensina quem aprende. O imediatismo obcecado e a
polarização certo/errado, próprios da herança positivista somada à tendência
pedagógica liberal tecnicista, resultou naquela atômica proposição. A esses fatores
se deve a injusta avaliação que fiz da produção escrita do Jairo, decorrente da
imprecisão e da aquisição incipiente das bases teóricas sobre a alfabetização,
acrescentada à inexperiência docente, muito mais que propriamente da capacidade
de aprender daquele menino de roça.
Por isso, de Jairo até aqui, tenho dedicado grande parte da minha tarefa
como eterna formanda, e há muito formadora de novos formadores e de novos
alfabetizadores, a que aos processos iniciais de formação nos cursos de
licenciatura, sobretudo no de Pedagogia, não me escape a atenção com o
conhecimento da língua e da linguagem. Isso para que possa assegurar, aos futuros
gestores da sala de aula e condutores do processo ensino-aprendizagem, nas
múltiplas e diferentes formas e dimensões do aprender, aquela que diz respeito ao
núcleo da aprendizagem da escrita e da leitura. Essa aprendizagem merece, da
parte do professor responsável pelo seu ensino e pelas intervenções pedagógicas
adequadas, especial atenção, refletida no cuidado esmerado com a relação teoria e
prática, com o conteúdo e a forma, com a comunicação professor e aluno; com a
relação ensino-aprendizagem, com o ensino e a pesquisa, com a relação escola-
sociedade, e com as intencionalidades, as finalidades e os objetivos da educação.
A Educação do século XXI não conseguirá, e nem isso pretende, por certo,
sustentar-se exclusivamente na tese de que o elemento distintivo do homem é a
racionalidade, porque é justamente por ser racional,
Mas também sensível é que o homem percebe, na relação direta com seus desejos, as insuficiências do mundo em que vive.
O hiato que separa o ideal da precariedade percebida é o motor que o impulsiona à ação. Sua insatisfação não é, assim, um vício, mas a virtude que o faz construtor de projetos (ROSA, 2007, p. 24).
Por outro lado, tenho de Dinorah (1990) o pensamento de Jacqueline Held,
trazido por ela em sua obra intitulada “Guardados de Afeto: Repensando a
91
Alfabetização”, para aqui entrecruzá-lo com o de Rosa (2007). Declara Jacqueline35
que “Os realistas referem tudo à experiência dos dias, esquecendo-se da
experiência das noites. Propomo-nos repor as imagens na dupla perspectiva dos
sonhos e dos pensamentos” (HELD, in: DINORAH, 1990, p. 65).
É Veiga (1993) que, ao discutir o sentido, os fundamentos e a prática da
Didática, inicia sua reflexão indagando-se e indagando ao leitor: Didática, que
disciplina é essa? Considerando ser uma “disciplina pedagógica de natureza teórico-
prática voltada para a compreensão do processo de ensino” (p. 79), a autora a
compreende como cerne das disciplinas que configuram o currículo dos cursos de
formação de professores.
Ao estudar os fundamentos e argumentos da autora, compreende-se que, por
ser a educação uma prática social por excelência, a prática pedagógica o é também,
por natureza e finalidade, uma prática teórico-prática. O primeiro elemento desse
binômio relacional e indissolúvel é guia do segundo. Em outras palavras, é a prática
fazendo-se valer como compreensão teórica.
As indagações e inquietações da prática são respondidas pela teoria, e nisso
reside a sua razão de ser, bem como o sentido da prática por ela iluminada. É esta
relação de interdependência que as mantêm vivas, vitalidade esta fundamental para
a construção do conhecimento.
Sobre a relação ensino-aprendizagem, diz Veiga (1993): “São dois
componentes de um mesmo processo” (p. 84) do que decorre, para o entendimento
da “dinâmica do processo de ensino” (p. 84), fazer interface com a dinâmica do
processo de aprendizagem. No entanto, esses componentes devem ser analisados
em separado, dadas as características e finalidades específicas de cada um dos
processos. Afirma a pesquisadora da Didática que,
35 Jacqueline Held. O Poder do Imaginário. In: DINORAH, M. Guardados de Afeto: Repensando a
Alfabetização. Belo Horizonte: Lê, 1990.
92
são, pois, as finalidades que, explícita ou implicitamente, determinam os atos de ensinar e aprender [...] Sem essa referência essencial, o ensinar e o aprender careceriam totalmente de significação e direção. Embora o ensino tenha seus próprios objetivos, estão, no entanto, subordinados às finalidades e objetivos da educação (VEIGA, in: OLIVEIRA, 1993, p. 84)
36.
Já na relação conteúdo-forma, a autora mostra que são aspectos unidos do
processo educativo na sua totalidade e que são indivisíveis, tanto quanto o são as
demais relações de interdependência aqui discutidas.
O conteúdo, enquanto conjunto de conhecimentos sistematizados e
organizados nas disciplinas e áreas do saber científico tornados conteúdos
escolares, deve ter, na escola, não o esforço concentrado na sua mera transmissão,
mas o esforço de compreensão dessa relação numa ótica mais ampla e crítica. É a
ideia do conteúdo escolar significando transmissão e memorização de informações
que leva a escola e, por conseguinte, os professores, à tendência viciada de
supervalorização de procedimentos e técnicas em detrimento do próprio conteúdo.
Ao contrário, esses conteúdos devem ter significado na vida concreta e
profissional dos alunos, vistos como ferramentas úteis na luta pela sobrevivência e
no prazer de viver. Trata-se, pois, da assimilação ativa e aplicação adequada desses
conteúdos na realidade existencial dos alunos.
Veiga (1993, p. 90) cita Vieira Pinto (1984, p. 43) para dizer que, se há o
esforço de que esses conteúdos atendam aos interesses da sociedade, e “[...] se
esta é democrática, os interesses dominantes têm que ser os do povo, e se
considerarmos um país em esforço de crescimento, tem que ser o de suas
populações que anseiam por modificar sua existência”.
Desse modo a forma, uma vez fundamentada “numa concepção de homem,
de educação e de sociedade” (VEIGA, 1993, p. 90-91), é a que contribuirá para a
manutenção ou para a conservação dessa sociedade, para superação ou não das
condições dadas, para o atendimento ou não das reais necessidades da sociedade
à qual serve a escola.
36
Ilma Passos Alencastro Veiga. A construção da didática numa perspectiva histórico-crítica de educação estudo introdutório. In: OLIVEIRA, M.R.N.S. (org.). Didática: ruptura, compromisso e pesquisa. Campinas/SP: Papirus, 1993. (Coleção magistério, formação e trabalho pedagógico).
93
A relação conteúdo-forma discutida por Veiga (1993) faz-me reportar à
consciência ético-político-pedagógica de Freire (1996, 2000b), quando reiterava: “[...]
ensinar o quê, contra quê e contra quem; a favor do quê e de quem; o como e o por
quê ensinar”. Reporta-me ainda a Ronca e Terzi (1995), autores que sugerem que
os professores têm que aprimorar o olhar sobre o quê e o como ensinam, sobre o
quê e o como aprendem as crianças. É preciso, segundo eles, que os professores
deixem a alma especular. “Aprimorar o olhar e ver por dentro... com o olhar de
aluno, de mestre, de cientista. E por que não, de poeta também?” (p. 49). O
aprimoramento do olhar leva o professor a interrogar-se sobre “[...] até que ponto,
pelo encaminhamento didático e pelo caminho metodológico escolhidos, os alunos
podem desenvolver diferentes e diversas operações e fazer uso delas de maneira
sistemática e ordenada?” (RONCA; TERZI, 1995, p. 50).
Declara Veiga (1993) que estudos apontam para a dissociação da relação
ensino-pesquisa. A dissociação apontada tem subtraído dos professores a
necessária percepção do vínculo básico que dá sentido a cada um dos elementos da
relação, mantido o respeito às especificidades de cada um em particular. Enquanto o
ensino visa que os alunos se apropriem e produzam conhecimentos, a pesquisa visa
que eles captem o ainda não conhecido, os aspectos da realidade ainda não
desvelados, mas que necessitam de desvelamento ─ “tornar visível o que não se vê
acerca da escola e da sala de aula” (VEIGA, 1993, p. 85).
O papel da pesquisa na sala de aula e na escola voltada para a reflexão da
prática exercida tem favorecido que o professor se compreenda como pessoa e
como sujeito de uma prática pedagógica que pode contribuir para a democratização
do ensino e para a explicitação da função social da escola. Assim se expressa a
autora, a esse respeito:
Os professores devem se empenhar em investigar, de tal forma que a pesquisa seja incorporada normalmente ao ensino. É preciso pesquisar o “que”, o “quando” e “quanto” ensinar a um determinado tipo de clientela, e quais as condições objetivas de trabalho e estudo que a escola pode oferecer (VEIGA, 1993, p. 86, grifo do autor).
Ademais, a pesquisa favorece a aproximação do professor e do aluno, na
medida em que incita ambos ao movimento de reciprocidade, forjando um maior
94
envolvimento dos sujeitos do conhecimento com as questões de ensino-
aprendizagem que lhes são naturalmente pertinentes.
Desse modo, a relação de interdependência ensino-pesquisa leva os dois
sujeitos do processo, aquele que ensina e aquele que aprende, a refletirem e
problematizarem a realidade escolar e social, extraindo elementos para a
transformação necessária.
Nesta via de raciocínio, Ferreira (2013) explícita suas compreensões:
Considerando a escola como o locus onde se desenvolve o processo de transmissão/assimilação do saber científico transformado em saber escolar, e, o/a professor (a), o/a principal agente deste processo, na relação direta com o/a aluno(a), entendo que o trabalho pedagógico abrange todas as formas de atuação científica dos/as profissionais da educação no exercício de suas funções, visando o pleno desenvolvimento do/a aluno/a em todas as dimensões, por meio de um novo saber que se constitua e se construa na aquisição dos conteúdos científicos, técnicos e éticos ─ conhecimento emancipação ─, alicerçado na solidariedade e na participação, permitindo, desta forma, o verdadeiro acesso ao mundo da cultura e sua inserção no processo de construção de uma nova sociedade, mais justa e humana (FERREIRA, 2013, p. 134, grifo do autor).
No tocante à relação pedagógica (professor-aluno), Veiga (1993) a situa
naturalmente entre os fenômenos humanos e, portanto, entre seres sociais.
Contudo, declara a estudiosa que “As relações interpessoais vivenciadas na sala de
aula, apesar de importantes são, no entanto, insuficientes para instaurar a
cooperação, a confiança, o respeito, a autonomia, a responsabilidade, o trabalho
coletivo, a democracia” (p. 94), princípios que, a meu ver, e não por acaso,
configuram os princípios e as categorias interdisciplinares. Princípios e
categorias, se não articulados com a tomada de consciência e conscientização e
com a dialogicidade freirianas e, ainda, se não engendradas numa vivência humana
tecida nas estruturas sociais, mostrar-se-ão, de fato, insuficientes para a construção
e interiorização desses mesmos princípios e dessas mesmas categorias.
Como já mencionado, segundo Veiga (1993) o trabalho educativo tem na
intencionalidade o seu ponto de partida, já que esta implica a determinação das
finalidades e dos objetivos da educação pretendida, o que redunda na definição de
prioridades e metas consideradas válidas pela escola.
95
Assim é que, ao olhar no espelho do passado vejo refletidas as lacunas
restadas de minha formação inicial. Ao vê-las, não consigo reanalisá-las sem
considerar a fidelidade que mantenho com o meu “ser-no-mundo e ser-ao-mundo”,
própria da práxis fenomenológica de Rezende (1990), que afirma:
O homem não é o mundo, o mundo não é o homem, mas um não se concebe sem o outro. É nesse sentido fundamental que a dialética se faz presente no seio mesmo da estrutura fenomenal. Por outro lado, tanto o homem como o mundo continuam sendo percebidos, cada qual a seu modo, como uma estrutura, e, no dizer de Merleau-Ponty, o fenômeno é, na verdade, uma estrutura de estruturas. O que faz a junção existencial das duas é a intencionalidade, isto é, a experiência fundamental de um ser-aberto-ao-mundo (REZENDE, 1990, p. 35-36).
É certo que cada ser humano, quando chega ao mundo, não enfrenta a
cobrança de tê-lo construído antes, mas, estando nele, lhe é cobrada a fidelidade a
esse mundo, no sentido de contribuir para que tudo o mais existente seja
efetivamente reconstruído na medida das exigências postas.
Como educadora e formadora de formadores, é contribuindo para a
construção da qualidade da educação e de um mundo melhor para se viver que
acredito realizar a minha razão de ser no mundo.
Vimos, em Veiga (1993), a defesa de que as relações mantidas pelos vários
elementos estruturantes do método didático, aqui descritas, não podem ser
analisadas e consideradas se não mantida a fidelidade com o seu significado social
real e com os fins e objetivos do ensino.
Nesse sentido, a tomada de consciência da teoria interdisciplinar fez-me
enfrentar o paradoxo de confluir para o “poder pessoal da ação” (ESPÍRITO SANTO,
1996, p. 7), ao fomentar a luta (mesmo que impregnada de pontos frágeis, lacunas e
hiatos), que impulsiona o movimento de superação que se manifesta na assunção
da própria inferioridade e impele a busca constante da força interior que, por sinal, é
a mais difícil busca, por se tratar da busca da força em si mesmo, como aclara
Fazenda, a autora brasileira da interdisciplinaridade.
Assim é que, diante do desafio de descrever a prática pedagógica e de
formação a partir do fato pedagógico vivido com Jairo, e engastada na análise
crítico-reflexiva de formação inicial e continuada entremeada nos inúmeros recortes
de minha história de vida pessoal e profissional, ou seja, em minha realidade
96
histórica e existencial, tenho a confessar, mais uma vez, que a prática alfabetizadora
exercida na escola de roça esteve longe de favorecer a construção de
aprendizagens dos alunos, sobretudo do Jairo. Nada foi feito para proporcionar aos
alunos, efetivamente, atribuição de sentido ao “quefazer” político-pedagógico da
“professorinha” ingressante no ofício de ensinar naquele contexto rural.
Contudo, paradoxalmente, foi aquela mesma prática que me impulsionou a
caminhar rumo à compreensão ampliada das exigências do ofício, permitindo-me
outras “janelas” do conhecimento desse ofício. Essas janelas me descortinaram os
novos caminhos, pontuados, sim, por acertos antes não pensados. A exemplo de
Espírito Santo37, eu diria que errei justamente por ser errante (tomando este
substantivo no sentido de “aquele que anda”) (ESPÍRITO SANTO, in: FAZENDA,
2008, p. 151).
Pois bem, se Jairo caminhou no raciocínio para escrever o EU que lhe ditava,
conforme pensava ser o correto, quanto à aquisição da escrita, eu caminhei dele até
aqui para escrever, não só a nossa história, mas a história que, após a tomada da
necessária distância tempo-espaço, interpenetrou a seara dos níveis mais altos de
compreensão e da integração dos saberes antes comandados pela prática
estritamente disciplinar, agora superando-a. Atendi aos sinais da dinamização dos
seus processos e relações vitais e, assim, abriram-se novos caminhos para a antiga
caminhante, postos a mim mesma para o devido enfrentamento ─ o ser caminhante
e errante ─ dos novos caminhos os quais não estarão livres de desacertos futuros,
mas, com certeza, estarão livres das amarras de muitas ignorâncias já dissipadas.
Contudo, minha natureza humana sinaliza que, por óbvio, não estou pronta,
tampouco acabada. Porém, com os teóricos e com as teorias estudadas eu me fiz
conhecida de mim mesma, tendo como fonte inspiradora do autoconhecimento as
bases teóricas estudadas. E isso me fez, neste momento de minha existência, uma
pessoa bastante melhorada, uma educadora interdisciplinar e, por isso, investidora
no próprio crescimento intelectual e profissional.
E o que neste momento eu desejo é que essa melhoria e crescimento sejam
infinitos enquanto durem.
37
Ruy Cezar do Espírito Santo. Autoconhecimento e consciência. In: FAZENDA, I. C. A. O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008.
97
2.6 Do conhecimento profissional compartilhado ao conhecimento educacional
especializado: as múltiplas redes de contato
Entre as políticas públicas educacionais, a formação de profissionais de
educação e a administração da educação existe um elo indissolúvel e de
fundamental importância que faz ressaltada a exigência do mundo contemporâneo
por uma educação de qualidade.
Ferreira (2013), ao refletir sobre esse mundo novo e sobre a exigência
impostergável por ele imposta, assim se expressa:
É um novo conhecimento que se afigura e configura como exigência. É uma competente e permanente capacitação que se impõe para homens e mulheres no sentido do enfrentamento da vida. É uma outra condição que se impõe para se sobreviver com dignidade [...] É num tempo como esse que nós, educadores e educadoras, nos vemos moralmente obrigados, mais do que nunca, a fazer perguntas cruciais e vitais sobre nosso trabalho e nossas responsabilidades, afim de respondê-las com propostas e ações coerentes e eficazes (FERREIRA, 2013, p. 127).
Associo-me ao pensamento de Ferreira (2013, p. 134), defendendo,
igualmente, que a: “[...] formação do profissional exige hoje, mais do que nunca uma
sólida formação humana e que esta relaciona-se diretamente com a sua
emancipação como indivíduo social, sujeito histórico em nossa sociedade”.
Temos em Rosa (2007, p. 24) a sinalização convergente às exigências
mencionadas. A autora insiste em que:
Toda mudança, nasce, assim, do casamento entre a necessidade e o desejo. Não há mudança, porém, sem uma necessidade e o desejo. Não há mudança, porém, sem uma certa dose de desobediência. Quem muda, subverte.
Por isso mesmo, choca e, invariavelmente, passa a ser alvo de críticas e até de punições. Não há facilidades para quem se lança a este desafio. Suportar as pressões externas ─ além das internas ─ faz parte do intento (ROSA, 2007, p. 24).
Nesses quase cinquenta anos de vivências na rede pública de ensino com
atuação na educação infantil, ensino fundamental e médio, participei de várias
frentes de trabalho de formação profissional em diferentes contextos educacionais,
98
lugares diversos, âmbitos da administração e projetos da Secretaria de Estado da
Educação de São Paulo.
De 1969 a 1971 continuei a experimentar-me na docência e prática
alfabetizadoras, tendo “armazenada”, nesses dois anos, a inquietação com o caso
Jairo.
De 1972 a 1974, por força dos movimentos de guerrilha armada e de disputas
de terras devolutas, o poder público passou a centralizar o olhar na estratégica
região do Vale do Ribeira, com interesse em medidas de desenvolvimento para a
região.
Uma dessas medidas foi a implantação das Unidades Escolares de Ação
Comunitária (UEAC), escolas rurais destinadas a desenvolver programação
específica que objetivava assegurar uma ação educativa voltada para a interação
escola/comunidade, abrangendo o ensino regular, a educação pré-escolar, o ensino
supletivo e as atividades comunitárias.
Sem conhecimento dos critérios de seleção, fui indicada pela cúpula
administrativa da SEE/SP para fazer parte da inusitada experiência. Rumei para a
cidade de Iguape – Ilha Comprida, Litoral Sul do Estado de São Paulo, para assumir
a função de Orientadora das UEAC daquele município, juntamente com mais duas
parceiras de jornada. Antes, passamos pelo processo de formação inicial, com
duração de dois meses, desenvolvido pela Escola Superior de Agricultura Luiz de
Queiroz (ESALQ), ligada à Universidade de São Paulo (USP) e situada no município
de Piracicaba, interior paulista.
Aquela foi uma experiência que, sozinha, constituiria outra tese, se resgatada
na sua inteireza, para análise.
Vale ressaltar, contudo, que a significância político-pedagógica da experiência
alcançou tal expressividade que se tornou referência para a ampliação do programa
em outras regiões do Estado de São Paulo, incluindo a região do Vale do Paraíba,
não obstante a aprendizagem de que há sempre um preço a pagar pela ousadia de
pensar, sentir e agir diferente. No entanto, justamente por isso, nenhum Orientador
de UEAC, naquela época, desistiu de fazê-la. Ao contrário, pagamos todos para ver
o sonho realizado.
99
Essa inclusão fez me sujeito de pesquisa da Profa. Dra. Delfina de Paiva
Villela, que realizou, no ano de 1980, o Estudo das Unidades Escolares de Ação
Comunitária implantadas posteriormente nas localidades rurais da referida região
onde há mais de vinte anos tenho minha morada.
Quis o destino que, naquele ano, eu tivesse aceitado enfrentar o desafio de
desempenhar a função de Assistente Técnica do 1º grau, no âmbito da
Coordenadoria do Interior (CEI), da Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo, respondendo pela expansão do Programa de Implantação das UEAC em
outras regiões do Estado. Talvez por isso, e pelas vozes dos querubins, encontrei o
então Delegado de Ensino de Guaratinguetá, prof. Genésio França, para com ele
viver mais de trinta anos a aventura humana da felicidade.
Experiências também significativas foram as vividas por mim quando, junto à
CEI, à CENP38 e à FDE39, e ao lado de nomes como Laurinda Ramalho, Telma
Weisz, Elba de Sá Barreto, Marília Claret, Leila Alves, Lino de Macedo e outros
pesquisadores, desenvolvi parcerias de formação dos profissionais da Educação do
Estado de São Paulo durante toda a década de 80, concomitantemente com a
formação dos profissionais da Educação da Delegacia de Ensino de Votorantim/SP,
hoje Divisão Regional de Ensino, já no cargo efetivo de Supervisora de Ensino.
Não menos significativas foram as experiências de formação desenvolvidas
na década de 90, junto à Oficina Pedagógica da Delegacia de Ensino de Taubaté/SP
(hoje Divisão Regional de Ensino) e junto ao Centro de Aperfeiçoamento de
Recursos Humanos (CARH), de São José dos Campos/SP, somadas ao movimento
de formação desenvolvido pelo Programa de Educação Continuada (PEC) da
Universidade de Taubaté (UNITAU) em parceria com a SEE/SP.
No entanto, pela forçosidade da delimitação deste trabalho, e valendo-me do
duplo exercício que a memória, segundo Fazenda (2001), nos possibilita, o
“retentivo”, que nos permite o “acesso à história compreendida em seu movimento
complexo e multidimensional” (PEREIRA, 1997, apud FAZENDA, 2001, p. 26) e o
“projetivo”, que nos possibilita “encontrar traços identitários na trilha da vida, [...]
38
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), órgão da SEE/SP, responsável pela Formação Continuada dos Profissionais da Educação da Secretaria de Estado da Educação.
39 Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), órgão vinculado à SEE e também
incumbida da tarefa de preparo e atualização profissional dos educadores paulistas da SEE/SP.
100
identificar a gama de universos de referência constituídos que compõem o conjunto
de uma existência, as matrizes de referência que traçam a marca de uma vida
profissional” (p. 26), seleciono, do conjunto das experiências vividas, para análise
mais detalhada, a experiência de formação da Construção da Rede Municipal de
Ensino de Taubaté, no quadriênio 1997-2000.
Essa experiência de formação de formadores em formação, de amplitude e
abrangência inimagináveis a priori, fez-se no bojo da minha própria história de vida e
formação e reflete o vivido, as vivências e o pensamento sobre a vida futura, numa
ocorrência histórica inédita, pois, segundo Nóvoa40, citando Damásio (in: JOSSO,
2002, p. 12), “[...] a consciência nasce quando interpretamos um objecto com o
nosso sentido autobiográfico, a nossa identidade e a nossa capacidade de
anteciparmos o que há- de vir”. Tomo-a, em análise, para descrever um pouco mais
da minha corrida atrás do conhecimento conforme a declaração feita ao Jairo, neste
trabalho.
Ao lado da educadora Maria Christina de Toledo Simões, assessora
pedagógica e formadora da FUTUREKIDS do Brasil, polo São José dos Campos/SP,
no período de 2001 a 2009, muitos foram os momentos vividos na formação de
educadores da educação básica das Secretarias da Educação dos municípios
paulistas de Bauru, Guaratinguetá, Lençóis Paulista, Lorena, Mairiporã, Paraibuna,
Taboão da Serra e Ubatuba. Com professores da educação infantil e ensino
fundamental desenvolvemos, juntamente com as demais equipes de trabalho da
empresa e do corpo técnico das prefeituras daquelas localidades, a formação em
educação tecnológica e iniciação científica com intervenções presenciais e/ou a
distância.
Os processos de formação profissional receberam ênfase na orientação
dirigida aos mediadores da informática educacional e houve especial atenção para o
uso adequado das tecnologias digitais e softwares educativos, sobretudo aqueles
destinados aos anos iniciais da escolarização básica. Os focos da formação
incidiram no impacto da imagem no processo de aprender, no uso da internet como
40 António Nóvoa. Prefácio. In: JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. / Marie-Christine
Josso; prefácio António Novoa; revisão científica, apresentação e notas à edição brasileira Cecília Warschauer; tradução José Claudino e Júlia Ferreira; adaptação à edição brasileira Maria Vianna, São Paulo: Cortez, 2004.
101
recurso facilitador da aprendizagem, na confecção de materiais para ambientes
virtuais de aprendizagem e no uso de videoconferência e fóruns virtuais nos
processos próprios da educação escolar.
A superação das ideias de reciclar, treinar e/ou capacitar profissionais para a
modernidade tecnológica configurou o fio condutor daquela experiência inovadora,
que se constituiu em formas eficientes de ação, muito embora, a meu juízo, ainda
restasse boa parte da caminhada até à criação de uma cultura tecnológica escolar.
Falo de uma cultura voltada para a introjeção das novas tecnologias de informação e
comunicação nos ambientes virtuais de aprendizagem, radicalmente assentadas no
pilar da emancipação dos sujeitos que aprendem. Entendíamos a cultura online
como possibilidade do cultivo de uma prática interdisciplinar ou da
interdisciplinaridade prática, com o compartilhamento de experiências e
aprendizagens colaborativas, num processo inacabado e, por isso mesmo, sempre
em movimento, exercitando os sujeitos nas suas potencialidades e capacidades de
aprender continuadamente.
A formação profissional procurou refletir com os docentes sobre o fato de que
todo o currículo escolar está num contexto social mais amplo e, portanto, o êxito
maior ou menor na educação e no ensino depende das condições e das
expectativas condizentes com a sua possível realização. Em outras palavras,
precisava-se de uma tomada de consciência de que a mudança no tratamento
curricular deve respeitar, antes de tudo, as reais expectativas e necessidades da
comunidade escolar.
O objetivo maior era que os professores compreendessem que o
desenvolvimento profissional depende do envolvimento do próprio professor na
análise e na reflexão coletiva sobre as práticas escolares que desenvolve. Depende
também da definição de quais formas de trabalho potencializadas pelo uso das
tecnologias devem ser tomadas como as mais adequadas para a aprendizagem dos
alunos, considerando cada realidade educacional.
Dessa forma, o trabalho com projetos e o projeto pedagógico da escola como
construção coletiva, bem como as teorias que subjazem às práticas docentes e à
sala de aula como espaço formativo, foram, juntamente com as questões do
cotidiano escolar, as preocupações centrais do processo de formação e
desenvolvimento dos professores das localidades aqui pontuadas.
102
Entendiam os propositores do programa que a tecnologia educacional tem
muito a contribuir para o não esvaziamento científico e cultural da educação
escolarizada e, desse entendimento, todos os envolvidos com aquele modelo
formativo mantinham acordo.
De outra feita, na capital catarinense participei da formação profissional dos
professores para a atuação no Programa Nacional de Juventude, instituído pela Lei
nº 11.129, de 30 de junho de 2005 (PROJOVEM URBANO). O processo de
formação propunha uma discussão sobre a juventude articulada com os seis
grandes campos de atuação e de produção humana, quais sejam: juventude e
cultura, juventude e cidade; juventude e trabalho; juventude e comunicação;
juventude e tecnologia e, por fim, juventude e cidadania.
Sem dúvida nenhuma, essas foram passagens da minha história de vida e
formação que ampliaram sobremaneira a minha visão de mundo e de educação,
bem como nortearam o meu fazer pedagógico tanto quanto as demais experiências
docentes vividas anteriormente, da escola de roça à universidade, o que vale dizer,
o meu “ser no mundo” e “ser ao mundo”.
Para Rezende (1990), o ser-no-mundo refere-se à
[...] experiência fundamental de um ser-aberto-ao mundo. A transcendência e a facticidade afetam essa relação de tal forma que não há facticidade sem transcendência, nem transcendência sem facticidade.
É o que leva a fenomenologia a ultrapassar, com a consciência engajada, a perspectiva de um sujeito transcendental, sem contudo negar ao homem sua condição de sujeito (REZENDE, 1990, p. 36).
Nesse sentido, Rezende (1990) orienta:
Em outras palavras, a adoção do ponto de vista estrutural da fenomenologia supõe e exige uma reformulação de todo o problema da consciência e da subjetividade, que não é somente inteligência, liberdade, espírito, nem só corporeidade, inconsciente, determinismo, mas tudo isso em constante relacionamento existencial dialético.
O mesmo deve ser dito a respeito da estrutura do mundo, ele não é somente matéria, produto, condicionamento, sentido, recebido, instituição, mas é um mundo humano, marcado, precisamente, pela presença do homem ao – mundo e no – mundo (REZENDE, 1990, p. 36).
103
Ensina-nos o autor que a fenomenologia voltada para o estudo do homem se
faz “antropologia estrutural”, com fins de, nesse estudo, não reduzir nenhuma de
suas dimensões: a individual, a social, a teórico-prática, a físico-espiritual, etc. Ao
contrário, a fenomenologia procura cuidar de todas elas em função da integridade e
da totalidade do homem.
2.7 A formação de formadores na educação municipal de Taubaté/SP
(1997/2000)
Quando me chamou eu vim Quando dei por mim tava aqui...
(A Primeira Vista. Chico César)
Como vimos, esta não é outra história de minha formação profissional. É,
antes, a história da pesquisadora em processo de formação. A história dela própria
como insistente caçadora do sentido da educação. A história, pois, da continuidade
de tantas outras realidades e vivências que se foram dando depois do Jairo.
Realidades e vivências as quais, como os rios, seguem a partir de suas
nascentes, correndo às margens que lhes configuram o curso e sempre em função
de um desaguar em águas mais caudalosas e profundas.
Era fevereiro de 1998. Nem bem saboreava eu os primeiros gostos da
aposentadoria da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, quando recebi o
convite, da então Secretária Municipal de Educação, para compor o quadro da
supervisão da Rede Municipal de Ensino de Taubaté/SP.
Compor ou ajudar a edificar? Rede ou construção dela? Quadro ou a força de
três ou quatro profissionais que lhe davam vida e lhe sopravam o fôlego?
E aí é que mais outra parte da história de formação da pesquisadora vai se
compondo. É a continuidade que recomeça, ou melhor, que segue seu curso a
exemplo dos rios.
E assim é que a experiência da Construção da Rede Municipal de Ensino de
Taubaté é tecida nos fios de seus começos de muito tempo atrás, mas que significou
104
um movimento político-educacional ímpar naquele contexto e tempo histórico. O
movimento sociopolítico e cultural desdobrou-se em quatro importantes frentes de
trabalho: a reorientação curricular em ação; a formação continuada dos profissionais
da educação (professores, coordenadores pedagógicos, gestores, mediadores de
projeto de informatização das escolas e supervisores de ensino, principalmente); a
requalificação da sistemática de avaliação do desempenho escolar do aluno; e, a
gestão participativa (a escola, a família e a comunidade).
Aquele movimento revolucionário preocupou-se, antes de tudo, com a
flexibilização do acesso à escola a todos os munícipes taubateanos. Representou o
carro-chefe do enfrentamento das inovações que se estenderam de forma incontida
aos atos de legalização das escolas, reelaboração, normatização e oficialização do
Regimento Escolar e dos colegiados e instituições escolares (Conselhos de Classe e
Série (hoje, Conselho de Classe e Ano), Conselhos de Escola, Associações de Pais
e Mestres e Grêmios Estudantis).
E tudo ia acontecendo em meio à urgência de providências e provimentos de
recursos de toda ordem (humanos, materiais, didático-pedagógicos e tecnológicos),
de natureza complexa e mergulhados no turbilhão de afazeres. Nem sempre, é
claro, sem os desgastes do enfrentamento corajoso e dos embates socioeconômicos
e político-pedagógicos próprios de trabalhos dessa natureza.
Basta imaginá-los no seio da criação de espaços para a participação efetiva
da comunidade nas decisões da escola que se queria construir. Buscaram-se novos
perfis profissionais e novos contornos da prática educativa mais consistente e
afinada com os propósitos da educação democrática. E afinada também com a
compreensão substantivada do projeto político-pedagógico das escolas de educação
básica do município.
Sem dúvida nenhuma, uma tarefa de envergadura, entregue às mãos de
profissionais em construção, não obstante prontos o suficiente para o enfrentamento
responsável da tarefa social que se lhes impunha. Tarefa aquela que, como todo e
qualquer empreendimento humano, não era isenta de incorreções. Havia vieses
expressos nas ambiguidades e contradições reveladas pelo próprio movimento, mas
também nos seus ganhos significativos e nas suas inevitáveis perdas. Mas,
sobretudo, uma prova irrefutável dos altos investimentos de energia humana e de
apoio público sem precedentes na história da educação municipal ─ investimentos
105
aplicados em favor da luta por uma escola pública de qualidade para todos; um
movimento multidimensional ─ mental, cognitivo e afetivo que, no limite possível,
deu conta de seduzir a maior parte dos seus profissionais para a proposta de
mudança, uma luta empenhada na requalificação da educação e do ensino
oferecidos. Pôde ser considerado um longo e fatigante exercício feito na
cotidianidade da escola, compromissada com a ciência, com a arte, com a cultura,
com a língua e com a linguagem e, na medida permitida, com a produção
acadêmico-científica. E isso tudo estava, expresso no projeto de vida de cada sujeito
construtor de sentidos e daquela nova realidade educacional que se anunciava no
bojo do movimento técnico-administrativo e político-pedagógico que marcou o
momento histórico 1997-2000.
Alterações qualitativas ocorrem, na transição do chamado senso comum para
a consciência crítica, a despeito dos desafios que se mostravam agigantados e não
confrontáveis, à primeira vista. Obstáculos que pareciam intransponíveis.
Resistências que se revelavam inquebrantáveis e outras barreiras de difíceis
ultrapassagens.
Construir sentidos e significados àquela tarefa socioeducativa era, em
determinados momentos, como mergulhar em águas profundas e desconhecidas.
Por vezes, o sentimento de solidão invadia-me a alma. Vozes dissonantes
chegavam-me aos ouvidos, ou atitudes de desapego à causa eram manifestadas.
Vivi momentos em que foi preciso respirar fundo e amparar o colega que, estafado,
ameaçava desistir da tarefa. Não raras vezes percebi, em alguns diretores de
escola, certo fraquejamento diante do desafio.
Contudo, não se podia pensar em construir o tempo vindouro num tempo a
perder de vista, dado que o tempo do mandato político é de apenas quatro anos,
diferentemente do tempo do educador, que é a eternidade, como sugeria Cortella
(2000)41, em suas aulas. Há, portanto, um tempo único em que urge fazer!
Sobre isso observemos a declaração de Batista42 (in: FAZENDA, 2001, p.
137): “[...] entendo formação como processo plural e singular, social e pessoal,
41
Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 2000.
42 Sylvia Helena Souza da Silva Batista. Formação. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em
Construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
106
permanente e vivido em momentos, humanamente presidido pelos valores, crenças
e saberes, humanamente transformador dos conhecimentos”.
Dessa forma, aquele tempo reclamava pelo estudo das questões básicas de
currículo, avaliação e planejamento escolar, questões específicas de ensino e
aprendizagem e desenvolvimento humano, interdisciplinaridade, gestão participativa
e, sobretudo, preparo competente dos profissionais da educação para atuar em
todas as searas da formação humana.
Com Ferraço (2005, s.p.), vimos que
[...] o currículo se tece em cada escola com a carga de seus ‘praticantes’, como aprendemos com o historiador Michel de Certeau, trazem para cada ação pedagógica de sua cultura e de sua memória de outras escolas e de outros cotidianos nos quais vive. É nessa grande rede cotidiana, formada de múltiplas redes de subjetividade, que cada um de nós é, como nos diz Boaventura de Souza Santos, que traçamos nossas histórias de aluno/aluna e de professora/professor. O grande tapete que é o currículo de cada escola, também sabemos todos, nos enreda com os outros formando tramas diferentes e mais belas ou menos belas, de acordo com as relações culturais que mantemos e do tipo de memória que nós mesmos temos de escola.
Iniciamos a empreitada pelo descarte da presunção de que o conhecimento
da realidade local e global já era do inteiro domínio das diferentes equipes de
trabalho (docentes, gestores, coordenadores e supervisores) e pelo estabelecimento
do compromisso com a intencionalidade democratizadora e com a busca da
qualidade docente e discente que, não só justificavam o investimento, como também
a ele davam sentido e significado.
Sobre a intencionalidade imprimida na ação que se quer realizar, Ferreira
(2013) assim expressa seu pensamento:
É a intencionalidade do que se quer fazer que define a direção da ação e as formas de organizar a execução. É a intencionalidade ─ que se expressa nos objetivos ─ que irá nortear aquilo que se apresenta como desejado e necessário. Isto implica a explicitação de determinada intenção de ações, da definição dos fins que se quer alcançar, que se sustentam naquilo que tem valor para uma coletividade em determinado momento histórico em uma dada sociedade (FERREIRA, 2013, p. 135).
Dessa forma, as bases e fundamentos da proposta configuravam-se nas
dimensões pedagógica, legal, ética, filosófica e política. A primeira dessas
107
dimensões objetivou a concretização dos pilares da educação do século XXI: o
aprender a aprender; o aprender a fazer; o aprender a ser e a conviver; o pensar
reflexivo, a relação dialógica do professor com o aprendiz; e, por fim, a apreensão
crítica do disposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Nessa dimensão, o
respeito ao direito de aprender do aluno foi a tônica da atitude pedagógica do
professor.
Esse respeito procurou, como Picollo (2005), citado por Moreira José (2011),
que o professor fosse fortalecido na coragem legitimada na humildade, considerada
a condição humana que o faz:
- falível porque não domina todos os campos do conhecimento; - igual ao aluno, porque sendo o aluno aprendiz, o professor também o é; - mais experiente que o aluno, porque estudou e viveu mais, mas isso também não invalida a existência da experiência do aluno em outros campos de conhecimentos ignorados pelo professor e dos quais ele apreende-aprende muito. [...] Se não há risco, não há proliferação de ideias criativas dentro do processo, não atuamos nele como seres pensantes e críticos (PICOLLO, 2005, apud MOREIRA JOSÉ, 2011, p. 84).
A segunda dimensão abrangia os estudos e reflexões acerca das condições
da aplicação competente dos dispositivos legais: Constituição Federal, Estadual,
Fundo de Valorização do Magistério, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei Orgânica do Município e, por fim, o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
A dimensão ética centrava-se prioritariamente na valorização do profissional
da educação, sobretudo nas condições de trabalho e na construção das
competências requeridas para o ofício e para o exercício da democracia cidadã.
De outro lado, as bases filosóficas guardavam preocupação com o ser social
e o seu direito de ser mais, de encontrar, na vida da escola e na vida na escola, o
sentido da vida individual e coletiva, as formas de entender o mundo, a história e a
cultura como obras humanas.
Por último, as bases políticas voltavam-se para a questão dos modelos
autoritários de gerir a escola e a sala de aula, em direção ao paradigma de gestão
autônoma, responsável e participativa.
108
A introdução da supervisão de ensino na rede visava que a construção do
novo paradigma de gestão ganhasse visibilidade cada vez maior, no sentido da
construção da escola necessária aos ditames dos tempos de globalização e
mudança.
Segundo Chaves43 (2006, in: ALMEIDA, F.; ALMEIDA, M., 2006, p. 22, grifo
do autor),
[...] a educação detém a chave de nosso futuro, esforçamo-nos por universalizar o acesso à escola e por melhorar a qualidade da educação ali ministrada, mas parece que não saímos do lugar.
[...] A chave, como disse, está não só na universalização da escolarização, mas na melhoria efetiva da qualidade da educação ministrada em nossas escolas [...] É necessário rever nossa visão da natureza da educação, da aprendizagem, da função da escola, do papel do professor e, naturalmente, do que significa gerir uma instituição que deve ser um ambiente privilegiado de aprendizagem, dentro de uma sociedade que já se concebe como Sociedade da Informação, do Conhecimento e da Aprendizagem ─ Learning Society, querendo dizer uma sociedade que não só estimula e favorece a aprendizagem, mas que, ela própria, aprende e evolui no processo.
Ganhavam força e expressão os Conselhos de Escola (CE), as Associações
de Pais e Mestres (APM) e os Grêmios Estudantis (GE), reestruturados em função
da dinamização da relação escola-família-comunidade.
Nessa perspectiva, a Reorientação Curricular em Ação e a Requalificação da
Avaliação de Desempenho Escolar (Normatização do Conselho de Classe e Série;
Normas e Procedimentos da Recuperação) significaram os estudos mais
intensificados no processo de Formação Continuada e refletiram o alargamento da
compreensão do currículo na travessia da visão técnico-linear à concepção filosófica
transformadora e emancipatória. Houve liberação do currículo dos limites estreitos
do espaço físico escola-sala de aula e das amarras dos “pacotes” prontos e
acabados, projetando-o para além das grades curriculares, cujo cariz lembrava
antes os fins tomados em si mesmos ou o rol de matérias estancadas da realidade
da ciência, do aluno e do mundo. A substituição do modelo de ensino por
transmissão para o modelo do ensino e da aprendizagem como construção e do
43 Eduardo O. C. Chaves. Alavanca para um salto de Qualidade. In: ALMEIDA, F.J.; ALMEIDA, M.
E. B. B. (Coords.). Liderança, gestão e tecnologias: para a melhoria da educação no Brasil. São Paulo: s.n., 2006.
109
tratamento cumulativo e condensado dos conteúdos escolares para a troca dinâmica
de saberes, experiências, vivências, deu-se por meio da análise crítico-reflexiva da
prática na prática.
Preocupamo-nos com o lugar de onde os professores se situavam, atentos a
suas dificuldades e necessidades reais na “busca do significado interior de suas
aprendizagens ou com o que aprendem com os seus erros” (FAZENDA, 2001a, p.
20).
Dessa forma, foi problematizado o “modelo mecanicista da aprendizagem
disciplinar”, questionada a “racionalidade dos ensinos ou didáticas”, analisados “os
processos, a afetividade, o efeito da força e a força dos efeitos, as dimensões
sociais e institucionais, as estratégias organizacionais, a articulação dos saberes, e
toda e qualquer proposição que tivesse a diversidade como princípio (FAZENDA,
2001a, p. 21).
Obviamente, a abertura dos caminhos construtivos da identidade da escola
municipal e da conquista gradativa da autonomia pedagógica de seus agentes
educativos exigiu de todos os profissionais envolvidos a superação das fragilidades
da formação inicial, com ênfase nos aspectos epistemológicos e teóricos, o que vale
dizer: o movimento de travessia do senso comum para um pensar, sentir e agir a
partir dele, mas com vistas a alcançar para além de seus limites e demarcações
fronteiriças. Isso se deu pelo incentivo aos estudos e aprofundamento dos
conhecimentos e experiências acumulados de cada um e no acostamento dos
saberes já adquiridos ao conhecimento sistematizado ─ a troca de paradigmas de
pensamento e ação da “educação bancária” (FREIRE, 2000b) para o crítico-
emancipatório, balizado na “pedagogia da pergunta” (FREIRE, 1990); da relação
hierarquizada e autoritária para a “relação dialógica” (SHOR; FREIRE, 1996), pelas
quais chegam juntos, ensinantes e aprendizes. Vivificada essa relação, anunciaram-
se as aberturas das brechas para o aprender a aprender e o aprender a fazer na
aprendizagem do ser e do conviver, numa modalidade dinâmica de construção
inacabada, mas já se mostrando irreversível e humanizadora.
O jogo das contradições, ora se explicitava, ora encontrava formas sutis de
dissimulação. Algo como o contrário da atitude de Picasso, que
110
[...] cuidou interdisciplinarmente de cada aspecto de sua liberdade pessoal, exercitou-se ao compor um conceito universal de liberdade. Ainda estamos por viver esse exercício nos educadores. Geralmente cuidamos da forma, negligenciando a função, a estética, a ética, o sagrado que colore o cotidiano de nossas proposições educativas ou de nossas pesquisas (FAZENDA, 2001a, p. 19).
Não foi pequena a luta dos educadores para a materialização de todas essas
buscas, fato inconteste dado em meio à tímida descentralização do poder decisório
ao Departamento de Educação, do acúmulo de funções e papéis dos seus dirigentes
e das pressões políticas, frente às mudanças que se operavam e que influenciavam
sobremaneira as ações concretas dos sujeitos, direta ou indiretamente, construtores
da mudança.
A formação continuada buscou a quebra das inconsistências das
fundamentações teóricas em que se pautavam as práticas docentes e gestoras,
voltadas à atenção para o encurtamento das distâncias entre o discurso e a prática
efetivamente realizada por seus agentes que, não obstante a complexidade da
tarefa socioeducativa, empregaram esforços no sentido de que as mudanças
desejadas não se desviassem dos compromissos assumidos com o coletivo.
Como declara Fazenda (2001a),
[...] um procedimento interdisciplinar de Educação envolve outras dimensões, como as da vontade, as normativas, as ideais, as práticas, as projetivas e as científicas. Tal procedimento também ajuda a discernir a que campo nos referimos (inicial, continuada, do sujeito, do cidadão, do profissional, etc.), a identificar o discurso (ético, normativo, voluntarista etc.), a escolher o processo ou objeto de pesquisa capaz de produzir nos moldes convencionais das teorias disciplinares (FAZENDA, 2001a, p. 21).
A trilha norteadora da avaliação do desempenho escolar dos estudantes
buscou recolocá-la em função do sentido da vida humana, minimizando-lhe o peso
do estigma do medo e da rotina enfadonha das provas, provinhas, provões,
simulados, vestibulinhos e congêneres. Procurou-se situá-la como elemento
integrador fundamental do processo ensino-aprendizagem, portanto com maior
significado para professores e alunos. Deu-se, assim, o estabelecimento da
avaliação de função diagnóstica, de ocorrência contínua e de cunho essencialmente
111
formativo, buscando a efetivação da preponderância dos aspectos qualitativos e
considerando a dimensão quantitativa da avaliação.
Nesse sentido, vale ressaltar que o que de fato se quis foi subtrair da prática
avaliativa a prática viciada da classificação com fins em si mesma. Isso exigiu de
todos os profissionais envolvidos a apropriação dos fundamentos e bases teóricas
da avaliação na exercitação da relação teoria e prática, respeitados os limites do
regime seriado, já que nessa forma de organização curricular se achavam plantadas
as raízes do ensino, da aprendizagem e, por conseguinte da própria avaliação. Nada
mais que o esforço dos professores, diretores, equipes de coordenação e supervisão
no sentido de que o direito do aluno de aprender não sofresse lesões por vias da
avaliação, tornada instrumento de poder, na escola e na sala de aula, sobre os
estudantes e/ou seus responsáveis.
Era de se esperar, porém, que se apontassem as contradições e resistências
da comunidade educativa e de parcela da sociedade mais ampla, que temiam que
as inovações acabassem por se traduzir na derrocada do ensino municipal,
supostamente de inquestionável qualidade comprovada. Por outro lado, houve
inquietação entre os propositores da mudança, em virtude da ênfase no seu
significado social e político-pedagógico.
Como Moreira José (2011), embora tratando da experiência docente e prática
pedagógica em contextos diferentes do vivido por mim na Rede Municipal de Ensino
de Taubaté, também nós, os agentes de mudança daquela rede, tornamo-nos
autores na medida em que construímos juntos a mudança desejada e que
assumimos, perante a comunidade educativa e a sociedade taubateana, os riscos e
os ganhos da experiência.
Sobre o investimento na mudança e nos resultados dela advindos, assim se
expressa Moreira José (2011, p. 88):
Acredito que a efetivação de um trabalho inovador na escola (e, por isso, de autoria) precisa estar repleta de bom senso e de respeito ao aluno e ao seu processo de aprendizagem. A dimensão ética de não negar-lhe o direito à pesquisa e ao acesso às ferramentas de que necessita deve ser privilegiada e possibilitada no concreto de cada aula.
112
Quanto à autoria, devo dizer que da participação ativa no movimento de
construção da Rede Municipal de Ensino de Taubaté resultou, da experiência vivida,
entre outros inúmeros ganhos, pessoais e profissionais, minha dissertação de
Mestrado intitulada “A Construção da Rede Municipal de Ensino em Taubaté (1997-
2000): uma Análise Crítica sob a Ótica de uma Supervisora de Ensino” – PUC/SP,
sob a orientação da Professora Dra. Mere Abramowicz. O objetivo precípuo foi
analisar criticamente, sob a ótica da ação supervisora, o próprio movimento na
dimensão mental, cognitiva e afetiva, e o sentido sociocultural e político-pedagógico
que lhe fora atribuído.
Também eu, como Moreira José (2011, p. 100), pude verificar a autoria de
meus pares construtores da rede:
[...] autor é aquele indivíduo capaz de reconhecer suas potencialidades e limites e que, ao se identificar, se distingue dos demais, ao mesmo tempo em que os considera e respeita. Da mesma forma, constrói suas ideias a partir do já existente, e se apropria de sua criação a tal ponto que garante a elas a legitimidade própria de quem possui autoridade sobre o objeto de sua criação.
Com efeito, com a mediação que pude realizar com os próprios pares da
supervisão de ensino, e por que não dizer, comigo mesma na ação e na interação
com o outro, fui percebendo o grau de compreensão e o acolhimento do processo de
formação pessoal e profissional de cada um de nós como agente daquela mudança,
como um percurso na ambiguidade e na incerteza, mas que atendia a um imperioso
chamado interior que gradativamente soltava a sua voz e se realizava nas esteiras
dos próprios fazeres já livres das amarras das receitas prontas e/ou dos modelos
pré-fixados. Esses fazeres foram se explicitando nas parcerias internas
estabelecidas entre os próprios agentes da inovação e também com órgãos e
instituições externas, porém correlatos e que comungavam objetivos comuns e
sonhos encontrados, começando pela Delegacia de Ensino (hoje, Divisão Regional)
e pela Universidade de Taubaté.
Com alguma chance de acerto, posso dizer que a experiência se realizou,
ainda que não revelada totalmente à consciência de seus fazedores, nas bases da
teoria interdisciplinar, sobretudo apoiada nos seus princípios de humildade,
coerência, espera, respeito e desapego.
113
[...] Gradativamente precisamos nos habituar ao exercício da ambigüidade, procedimento que rejeita a mediocridade das idéias, estimula a vitalidade espiritual, é radicalmente contrário ao hábito instaurado da subserviência, pois reconhece que este massacra as mentes e as vidas. A lógica que a interdisciplinaridade imprime é a da invenção, da descoberta, da pesquisa, da produção científica, porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em liberdade (FAZENDA, 2001a, p. 19).
O barco da tarefa empreendida navegou na ambiguidade entre a loucura e a
lucidez que a atividade interdisciplinar exige (FAZENDA, 2001a), a ambiguidade
que, segundo a autora:
Nasce de uma virtude guerreira, de uma força ética que naturalmente se apresenta, sem que haja necessidade de imposições ditatoriais (GUSDORF, 1967). A restauração da virtude ética que essa força pressupõe exigirá uma disciplina de ação muitas vezes até contrária à época em que vivemos. Essa ambigüidade exigirá a recuperação do que é próprio de cada um (FAZENDA, 2001a, p. 21-22).
Sobre essas ideias, rendo-me à pertinência das colocações de Fazenda
(2001a), que assegura:
Um processo de formação de professores que tenha a ambiguidade por procedimento procura colocar as rotinas do professor em movimento ─ desloca esse professor de seu tempo presente para um tempo passado ─ numa relação pretérita com o conhecimento, na tentativa de lançá-lo a um futuro mais promissor. Entretanto, a prática do professor é diversa e plural, povoada de paradigmas igualmente diversos e plurais. Seria absurdo negá-los; mas é preciso ter o cuidado de dirigi-los interdisciplinarmente para várias direções (FAZENDA, 2001a, p. 20).
Também Moreira José (2011), levada por preocupações semelhantes, trata,
em sua tese de doutoramento44, da atitude transgressora necessária e
invariavelmente tomada por aqueles que enfrentam os desafios da mudança em
educação e na transformação da prática pedagógica, cujos processos
transformadores são alimentados, via de regra, por processos da ousadia e da
reciprocidade operantes e se concretizam no exercício do bom senso encarnado no
corpo da curiosidade epistemológica.
44
Mariana Aranha Moreira José. De ator a autor do processo educativo: uma investigação
interdisciplinar. Tese Doutorado em Educação: Currículo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2011.
114
Pesquisas que enfrentam os desafios de ordem cotidiana submetem, pelo
diálogo, os referenciais teóricos adotados aos saberes e fazeres dos sujeitos
pesquisados, e não o contrário, os sujeitos submetidos aos referenciais teóricos
adotados. É a racionalidade científica considerando esses sujeitos eticamente
legítimos co-autores do conhecimento produzido ou resultante da pesquisa, ou seja,
o conhecimento que norteia a própria pesquisa e que lhe aponta os limites dos seus
referenciais teóricos. É a fala e o olhar do pesquisador com os sujeitos pesquisados,
e não sobre eles.
Pelas considerações feitas aqui, consistiria em incoerência, falta de
humildade, de bom senso e de lucidez de minha parte se me considerasse autora
exclusiva da experiência educativa vivida na Rede Municipal de Ensino de Taubaté,
no período de 1997 a 2000, tanto quanto se a proclamasse como que somente
exitosa. O fato é que a experiência imprimiu a força e o desejo dos educadores na
continuidade do processo de crescimento pessoal e profissional que se deu na
prática de estudos dentro e/ou fora das instituições de ensino e das academias.
Muitos dos profissionais envolvidos naquela experiência educacional já galgaram os
degraus do ensino superior, realizando o sonho de pesquisar e produzir
conhecimentos nos seus múltiplos tópicos, áreas e temáticas. Abraçaram a ideia da
interdisciplinaridade, não obstante os sentimentos de insegurança e medo que
frequentemente lhes invadia o espírito. Reconheciam faltar muito ainda para
aprender da vastidão teórico-conceitual e da complexidade da teoria interdisciplinar.
Eu juntava-me a eles, nesses medos, inseguranças e lacunas do conhecimento,
tanto quanto na ousadia e na coragem para administrar tais sentimentos,
desestabilizadores, diga-se de passagem.
Investigações como as de Ferraço (2005), aqui já contempladas, estão
voltadas para a compreensão de movimentos similares vividos pelo próprio autor,
que assim se manifesta sobre a complexidade da realidade educacional por ele
pesquisada:
Em nosso entender, não há outro modo possível de pesquisar a complexidade da realidade educacional se não nos dispusermos a estabelecer relações horizontais, democráticas e de compromisso e autoria dos conhecimentos tecidos nas pesquisas com os educadores e estudantes que habitam as escolas. [...] para os que se propõem o desafio da pesquisa no/do/com o cotidiano, são os referenciais teóricos adotados que precisam ser submetidos, numa permanente tentativa de diálogo, aos saberesfazeres
115
dos sujeitos pesquisados. Trata-se da tentativa de ampliar o que entendemos por racionalidade científica, tendo em vista que são esses sujeitos pesquisados, assumidos como co-autores do conhecimento produzido com a pesquisa, que apontarão os limites dos nossos “marcos teóricos” (FERRAÇO, 2005, p. 9-10).
Penso que, por causa da ousadia e da coragem, materializamos os princípios
interdisciplinares, ainda que sem a completude necessária. Mas não se pode negar
que o passo dado pelos educadores e administradores naquele período da história
da educação municipal taubateana foi, sem nenhuma dúvida, significativo para todos
que o deram e sobretudo para a população de Taubaté.
Moreira José (2011, p. 92) questiona em seu trabalho: “a autoria é inerente ao
professor ou ela pode ser formada? É possível cuidar da formação do professor para
que ele se transforme em autor?”
Completada a leitura de sua tese, a minha consciência pulsante, derivada da
minha mente e de meu corpo aprendentes, levou-me a responder à primeira questão
formulada pela autora: parece-me que se dá no seio do próprio movimento de
formação do professor (em construção sempre), o desvelamento da inerência a que
a autora se refere e que faculta ao professor a autoria que lhe é pertinente.
No caso da segunda questão formulada por Moreira José (2011), soa-me
coerente e razoável pensar que o cuidado com a formação do professor pode e deve
decorrer do cuidado, o mesmo que formador e formando têm com a própria
formação pessoal e profissional, com o cuidado dispensado às causas da educação,
o cuidado com o outro, com o meio em que vivem, com o mundo e com a vida
planetária.
Cuidado, nesse sentido, é a palavra-chave da ação transformadora
consciente, como ensinava Cortella (2000)45 em suas aulas.
Segundo Boff (2013, p. 31, 34-35, 63), só sairemos são e salvos da
complexidade das crises que assola os humanos se conseguirmos articular
sustentabilidade com o cuidado. Afinal, defende o autor que:
45
Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 2000.
116
Todos somos filhos e filhas do cuidado porque biologicamente somos seres carentes (Mangelwesen) sem possuir órgão específico que nos garanta, de saída, a sobrevivência (p. 31, grifo do autor).
[...] Cuidado é uma atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora para com a realidade, pessoal, social e ambiental (p. 34-35).
Metaforicamente podemos dizer que o cuidado é a mão aberta que se estende para a carícia essencial, para o aperto das mãos, os dedos que se entrelaçam com os outros para formar uma aliança de cooperação e união de forças (p. 35).
[...] Cuidar do Ser é a grande tarefa da vida (p. 63).
Entendo, como Boff (2013), que o cuidado é o paradigma emergente. Há
profunda reciprocidade e sentimento de pertença entre a Terra e os humanos que a
habitam, como, a meu juízo, deve existir entre o educador e o educando, entre o
pesquisador e o sujeito de pesquisa e entre o produtor (direto ou indireto) do
conhecimento e a legítima autoria.
O que estudei na PUC/SP46? Currículo é vida. É história. É cultura. É
percepção. É a geografia das gentes. É vivência. É ciência e existência.
O que aprendi? Que a interdisciplinaridade é uma categoria de ação
informada pelo conhecimento e que tudo começa no SER interdisciplinar. Ninguém
fica interdisciplinar. Aprende-se a sê-lo pelo desapego ao enraizamento disciplinar.
Esta jovem pesquisadora idosa tem a confessar que, no exíguo fôlego deste
trabalho, sua esperança reside que neles os prováveis leitores encontrem “os seus
achados mais nobres” (FAZENDA, 2001a, p. 28) e que se disponham a enriquecer
tudo o mais que restou pobre.
Um fato é inequívoco: alcancei o “limite máximo de minhas possibilidades”
(FAZENDA, 2001a, p. 27). Sim, porque esta tese matou-me um pouco a cada dia,
46 Pontifícia Universidade Católica. No Curso do Mestrado – Educação: Currículo, construí
conhecimentos nas áreas de: Currículo, Avaliação, Metodologia da Pesquisa Científica, Epistemologia da Educação, Filosofia da Educação, entre outras, além de frequentar por mais de dois semestres à Cátedra Paulo Freire, coordenada pela Profa. Dra. Ana Maria Saul. No Curso de Doutorado, Educação: Currículo, no cumprimento das disciplinas obrigatórias e opcionais, colhi do tempo do plantio e da própria colheita. Limpei as lentes opacas a que nos acostumaram a buscar unidirecionalmente a materialidade das coisas. Aprendi, sobretudo, a habitar os princípios angulares da interdisciplinaridade: humildade, coerência, espera, respeito e desapego.
117
para que a Odila do primeiro dia não mais existisse hoje. Hoje, existe a Odila que já
não sofre assombros com as metamorfoses cotidianas. Não estranha mais a morte
que só faz renascer. Está pronta para interpor-se e contrapor-se às formas mais
perversas de morte: o preconceito, a seletividade, a vaidade (sobretudo a
acadêmica), a omissão, a miséria, a falsidade, a arrogância, a indiferença, a
ignorância, a alienação...
Mas tenho muito ainda que aprender nos meus poucos sessenta e sete anos,
por isso estou quase pronta para a morte do último dia. Quase, porque me vejo em
perfeito descompasso com os avanços da ciência tecnológica, e o meu ser interior
caminha num ritmo por demais compassado para aprendê-la com a rapidez
necessária.
É uma Graça estar na PUC/SP e poder aproximar o conhecimento comum ao
conhecimento científico. E isso é tudo para poder caminhar! Gosto muito de estar na
PUC/SP. Orgulho-me da Instituição. Subtraídas as excentricidades técnico-
administrativas essencialmente disciplinares, sobram muitas alegrias partilhadas
com os mestres e doutores, com os pares de hoje e de ontem. Os cafés filosóficos
providenciados pelo próprio grupo, as brilhantes exposições, palestras, encontros
científicos, seminários e congressos, coordenados pelos mestres da casa e
convidados nacionais e internacionais, tudo muito bom! Além, é claro, da densidade
teórico-conceitual e do domínio do saber científico que cunham a qualidade das
atividades acadêmicas do GEPI47.
No GEPI, estamos a caminho da resposta à pergunta da mestra Ivani
Fazenda: “Interdisciplinaridade: qual o sentido?” Na realidade concreta temos nela
uma presença sustentada pela força da verdade dessa própria realidade, força esta
presente “no consciente coletivo do próprio GEPI – o projeto interdisciplinar de
47 O Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares (GEPI) representa um manancial de
possibilidades que têm-me auxiliado sobremaneira a deixar o lusco-fusco da caverna de Platão rumo às respostas das perguntas existenciais e às perguntas intelectuais. Partejou a Emília em mim. Sinalizou o caminho do reencontro com o Jairo num clima de cumplicidade com os meus sonhos e buscas, ou seja, trouxe à luz a tese da minha existência e apoiou-me, incondicionalmente, no difícil enfrentamento da escritura deste trabalho, encorajando-me a sair do anonimato e alertando-me sobre a exigência da cautela, da paciência e da espera. O GEPI nada tem a opor aos que pensam diferente dele. Deus salve a diversidade! Ela é a mola da criação. Fundamental mesmo é que a escola e a educação assumam a responsabilidade social e, juntos, convergentes e divergentes, nos entreguemos à construção de um novo mundo, onde diferentes olhares tenham a liberdade de se entrecruzar, fazendo com que eficiência, equidade e qualidade deem conta desse mundo novo que se espera mais sadio para as novas gerações.
118
Fazenda e de seus co-pesquisadores, os quais partilham de seu sonho e de suas
buscas na universidade” (FAZENDA, 1999, 2001, 2003, 2008, 2010, 2011, 2014).
Sobre isso, vejamos o que diz a insigne mestra:
Aprender a fazer a pesquisa, pesquisando, é próprio de uma educação interdisciplinar, que a nosso ver deveria iniciar-se desde a pré-escola.
Uma das possibilidades de execução de um projeto interdisciplinar na universidade é a pesquisa coletiva onde exista uma pesquisa nuclear que catalise as preocupações dos diferentes pesquisadores e pesquisas-satélites, onde cada um possa ter o seu pensar individual e solitário. Na pesquisa interdisciplinar, há a possibilidade de que cada pesquisador revele a sua própria potencialidade, a sua própria competência. Fazer pesquisa numa perspectiva interdisciplinar é a possibilidade de buscar a construção coletiva de um novo conhecimento, prático ou teórico, para os problemas da educação. Não é, em nenhuma hipótese, privilégio apenas dos doutores ou livre-docentes das universidades (FAZENDA, 2003, p. 73-74).
Em linhas gerais, e como vimos, a trajetória de minha Formação Continuada,
depois de Jairo, ocorreu nas Delegacias de Ensino de Registro, Votorantim,
Sorocaba; nas funções de assessoria técnico-pedagógica exercidas nos órgãos
centrais da Secretaria da Educação (CEI, CENP, FDE); no Centro de
Aperfeiçoamento de Recursos Humanos – São José dos Campos; na Delegacia de
Ensino de Taubaté; no Programa de Educação Continuada da Secretaria de Estado
da Educação de São Paulo junto à Universidade de Taubaté; junto ao Departamento
de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Taubaté, e por fim, um ensino
superior na mesma universidade.
2.8 Conversa com quem gosta de ensinar e aprender, dirigida aos formandos e
futuros formadores das gerações futuras
Reporto-me à alegoria da caverna de Platão (APÊNCIDE G), em sua obra
República48, para endereçar a minha fala aos moços e às moças que educarão as
gerações que ainda não vieram ao mundo e, portanto, que não ocupam ainda os
48
República: “obra central” e a “mais arquitetada de Platão”, em que expõe seu pensamento sobre o “problema do Estado” e sobre “pôr a descoberto o próprio processo do conhecimento”. In: Wemer Wilhelm Jaeger. Paidéia. A Formação do Homem Grego. 2001, p. 749-750.
119
bancos escolares, bem como às novas gerações de educadores e educadoras que
depositam confiança no futuro da educação deste país e já se lançam com coragem
e determinação na luta em prol desse futuro esperançado.
Que esses educadores do presente e do futuro que se avizinha na velocidade
da luz, e cuja formação é destinada aos novos rebentos da educação básica
brasileira, resistam a aprisionar os conhecimentos na mesma cela dos alunos, de
forma a vedar-lhes a comunicação e a interação entre eles, os conhecimentos e os
sujeitos deles, seus absolutos seres de direito, tornando-os mutuamente prisioneiros
do conhecimento de si mesmos, do conhecimento do outro e do conhecimento de
mundo. Completamente ilhados no mesmo espaço físico, porém em condições de
estranhamento que, impedidos vitalmente de dialogarem entre si e, por conseguinte,
de interagirem com os próprios conhecimentos. Algo como conhecimentos e sujeitos
do conhecimento, todos barrados nas limitações impostas pelas grades curriculares
e programas oficiais que os confinam, enquadram e/ou os algemam reciprocamente,
a exemplo da caverna de Platão que só se abria para a luz no limite estreito do
comprimento da galeria que a estruturava.
Assim, aquelas pobres criaturas nela encarceradas não contavam com outra
opção se não a de olhar apenas e tão somente para o interior, já que se achavam de
costas para a saída da caverna. A luz se lhes mostrava literalmente no fim do túnel,
e os clarões de uma fogueira que crepitava suas chamas longe deles eram
projetados acima de suas cabeças, e não se lhes possibilitava ver mais do que
sombras geradas por figuras de bonecos de madeira e de pedra, manobradas por
um operador que não se deixava ser visto. Cativos infortunados completamente
impedidos de voltar suas cabeças para a saída da caverna, movimento simples este
que por certo os faria enxergar para além dos clarões projetados da fogueira,
enxergar, sim, a verdadeira luz. Ocorre que os infelizes estavam, acima de tudo,
familiarizados com a “linguagem das sombras”, como descreve Jaeger (2001, p.
883). Dessa forma, não podiam perceber a perversidade escondida no sentido e na
real intencionalidade daquela linguagem que os condenava, sobretudo concebê-la
como única linguagem capaz de lhes falar sobre a realidade existente.
120
Por oportuno, vale lembrar a tônica de Fazenda49 (2000), sua observação
acurada sobre a relação de interdependência entre a disciplina e a
interdisciplinaridade. Sobre essa relação, insiste a mestra: “Não são as disciplinas
que dialogam... são as pessoas... do diálogo e do olhar interdisciplinares nasce a
luz.” Nesse sentido, sonho um sonho mais justo e humano para as nossas futuras
gerações. Que a elas seja concedida a liberdade de aprender, de aprender a
aprender, aprender a fazer, a conviver e sobretudo aprender a ser. Aprender o
mundo e a “ser-no-mundo e ao mundo”. “Ser no mundo” é também “ser-ao-mundo”,
sendo a intencionalidade uma experiência construtiva, como nos ensina Merleau-
Ponty, referido nos estudos de Rezende (1990). É somente esse aprender que nos
favorece ver “o mundo da luz... um mundo superior” (JAEGER, 2001, p. 883) ao
mundo que já conhecemos.
Ao lado das proposições de Rezende (1990) e de Jaeger (2001) são
consoantes as de Freire (1996) que, de forma recorrente em suas obras e ações,
demarcam o sentido de sua presença no mundo:
Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo (FREIRE, 1996, p. 21).
Seria um ponto de partida para as referências ainda não conhecidas, desde
que liberada a apreensão dos horizontes não visualizados, algo como dizer “ver as
próprias coisas” de forma direta e poder flagrá-las em seus múltiplos sentidos e
significados, bem como flagrar os sentidos e os significados de todas as coisas que
se apresentam e/ou se afiguram no mundo existencial concreto, a fim de preferirmos
“[...] ser o mais humilde jornaleiro do mundo da luz do espírito a ser o rei daquele
mundo de sombras” (JAEGER, 2001, p. 884). Que possamos, juntos, educadores e
educandos, criar e recriar “a obra de libertação do conhecimento”, a exemplo da “[...]
paidéia platônica elevada ao mais alto sentido da palavra” (JAEGER, 2001, p. 888),
aqui interpretada sob a ótica desta jovem pesquisadora idosa.
49
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP. 2000.
121
Para Cortella (2007), os termos “empresa espiritualizada” e “líder
espiritualizado” prenunciam a busca por modos novos de vida e convivência e uma
consciência mais clara da necessidade da espiritualidade no mundo do trabalho. O
filósofo contemporâneo pergunta e responde sobre isso, dizendo que espiritualidade
é a capacidade que o ser humano tem de olhar as coisas não com um fim em si
mesmas:
[...] aquilo que você faz, por exemplo, tem um sentido, um significado. Que a noção de humanidade é uma coisa mais coletiva, na qual se tem a idéia de pertencimento e que, portanto, o líder espiritualizado ─ mais do que aquele que fica fazendo meditações e orações ─ é aquele capaz de olhar o outro como outro, de inspirar, de elevar a obra, em vez de simplesmente rebaixar as pessoas (CORTELLA, 2007, p. 13).
Afirma o autor que aproximamos o tema da espiritualidade ao mundo do
trabalho se enxergamos um significado maior na vida, se respeitamos “o outro como
o outro e não como um estranho” e, se, em conjunto, somos capazes de edificar um
sentido que dê honradez a nossa existência (CORTELLA, 2007, p. 14).
Afinal, completa Cortella, “Eu me vejo naquilo que faço, não naquilo que
penso” [...] aquilo que construo, em que me vejo [...] a minha criação (CORTELLA,
2007, p. 20-21).
Ademais, como bem vem nos alertando João Mellão Neto50, há quase duas
décadas,
Se não nos apraz pastorear ovelhas, tampouco desejamos ser robôs que incensa o “progresso a qualquer custo”. Adentremos, então, o vale. Não há por que temê-lo, desde que munidos de duas sublimes convicções: a de que existe algo de sagrado e transcendente na psique humana e a de que a felicidade não é outra coisa senão o possuir “um sentido de vida”... (MELLÃO NETO, 1998, s.p, grifo do autor).
Aos moços e moças do mundo e da educação atual, confidencio que esta é a
tese resultante de “[...] uma longa e fatigosa “paideia” (JAEGER, 2001, p. 888, grifo
do autor). Significa o ideal buscado pela pesquisadora desde a aurora de sua vida
no magistério paulista, à frente da ferrenha luta por uma formação docente inicial e
50
João Mellão Neto, jornalista e (na época) deputado federal (PFL-SP). Jornal “O Estado de São Paulo”. Não há manual de instruções. 16 jan. 1998.
122
continuada de real qualidade, isto é, a formação do espírito e das aptidões do corpo,
a que finca raízes nas asas da imaginação ao mesmo tempo em que tem os pés
afirmados no solo social e político.
Por fim, devo dizer que a produção do conhecimento e da literatura é
imprescindível ao estudioso da formação docente, se colocada como força formativa
dos educadores das novas gerações, significando meio de torná-los verdadeiros
homens e verdadeiras mulheres que possam pensar, à moda do oleiro que tão bem
convive com a argila e a ela dá formas diferenciadas, à moda do escultor que, de
maneira amorosa, esculpe suas pedras, e, sobretudo como o jardineiro, que vive na
intimidade com o seu jardim e com ele experimenta o êxtase do Belo e do Bom.
Assim, os educadores também poderão esculpir a inteligência de seus alunos,
crianças, jovens e adultos, e, nesse sentido, entender a educação como processo
contínuo de construção consciente e partilhada, como se jardim e jardineiro se
ativessem a um único ponto de luz.
Quero crer que esta “conversa” direcionada aos educadores mais jovens
possa lhes instigar alguns caminhos, já que ela delimita o objetivo maior desta
investigação, qual seja, o de desvelar o fenômeno educativo imperecível e originário
do fato pedagógico imanado da escrita de Jairo e, sobretudo, decorrente do
aligeiramento que gerou a lacuna de conhecimento linguístico, sócio-histórico e
cultural limitada à capacidade crítica do modelo formativo privilegiado na década de
1960.
Na circularidade do vigor e da força propulsora da interdisciplinaridade de
Fazenda (1999, 2001, 2003, 2008, 2010, 2011, 2014), tanto quanto no compromisso
ético-político-pedagógico com a educação democrática, tentemos, como eles,
pensar que espécie de professor queremos formar, se não aquele:
[...] politicamente claro, tecnicamente competente, alguém que tenha sede por conhecer, alguém em processo de estar sendo [...] será fácil formar realmente bons cientistas sociais? Bons físicos? Bons médicos? Engenheiros? Matemáticos? Agrônomos? Bons educadores-professores?... Não... Não é fácil. A questão fundamental para mim é se é ou não possível. Se o é, é preciso saber se para agora ou amanhã... (FREIRE, 2000b, p.126).
123
Viabilizar os sonhos que se nos apresentam impossíveis na educação é uma
das tarefas políticas a serem assumidas por nós, educadores e, para tanto,
precisamos encurtar “a distância entre o sonho e sua materialização” (FREIRE,
2000b, p. 126).
Sabemos sobejamente que a educação sozinha está longe de ser a solução
dos problemas de ordem socioeconômica e político-pedagógica, também sabemos
que, isolada, não transformará a realidade como num passe de mágica. Contudo,
sabemos igualmente, que as “mudanças do mundo”, por natureza, têm na sua
essência um forte componente educativo.
Sabemos, ainda, que sonhar com a escola pública exige luta inadiável e
contínua. A “escola pública séria, competente, politicamente lúcida, alegre”
(FREIRE, 2000b, p.126) far-se-á com a condição essencial de poder contar com
professores cujos perfis sejam compatíveis com as buscas pela materialização
desse sonho, pois é justamente na fraqueza da educação que reside a sua força,
cabendo colocá-la “a serviço de nossos sonhos” (p.126). E cumpriremos isso
tornando o ensino-aprendizagem um processo verdadeiramente democrático e
compreendendo que,
Para a interdisciplinaridade começar, necessita de uma decisão pessoal, de se romper com as evidências estabelecidas, propondo-se a uma tarefa solitária de começar tudo de novo. Este momento de decisão na interdisciplinaridade impõe-se tanto ao filósofo quanto ao educador. Romper é ato de vontade, de coragem, uma vez que os obstáculos são muitos [...] Compreender é retomar a intenção total (FAZENDA, 2003, p. 47).
Escrevendo sobre Antropologia Existencial o sentido do fazer, no “estudo da
escola em sua mediação indivíduo-sociedade”, a autora reafirma a necessidade do
diálogo, levantada antes pela filosofia, e declara:
Nesse sentido, a história, vista sob a perspectiva interdisciplinar, deve ser
mais que simples ordenação seqüencial e manuseio de certos materiais
para consulta, deve plantar a “semente” do futuro pesquisador e do cidadão que luta por seus direitos e deveres, enfim, por sua liberdade” (FAZENDA, 2003, p. 61, grifo do autor).
Aos educadores mais jovens registro parte do meu sonho atual, como
educadora que sou, trazendo a público um testemunho da educação interdisciplinar
124
de Fazenda (2003), cuja força tem me movido na busca das possíveis respostas às
perguntas intelectuais e às perguntas existenciais, ou seja, na busca do
conhecimento.
Sobre ele, sinaliza Fazenda (2003):
[...] só a práxis dimensiona e direciona a aquisição dos conhecimentos em combinações adequadas ao enfrentamento das configurações de vida social: as historicamente concretas e as ideais, em termos de aspiração e procura. Mas a execução é tarefa pedagógica pelo exercício regular e sistemático do aprender e compreender para poder participar [...] Interdisciplinaridade não é categoria de conhecimento, mas de ação [...] aprender a fazer pesquisa, pesquisando, é próprio de uma educação interdisciplinar, que a nosso ver deveria iniciar desde a pré-escola... (FAZENDA, 2003, p. 64; 73).
Obriga-me a registrar, porém, o lamento de que essa busca não me tenha
iniciado desde a pré-escola e legitimada no Curso Normal que me habilitou para o
ofício de professor.
125
3 A CONVERSA INTERDISCIPLINAR COM JAIRO SOBRE O FATO
PEDAGÓGICO: O exercício da crítica
O exercício da crítica é também uma forma importante de participação política, pois fornece elementos para que cada indivíduo proceda conscientemente ao tomar suas próprias decisões e ajude as demais a formarem suas respectivas opiniões (DALLARI, 1984, p. 80).
Antes de mais nada, Jairo, quero lhe dizer que legitimei o seu retardamento
em dois anos de vida escolar, a despeito de você saber pensar. Submeti à sorte
toda a aprendizagem de que comprovadamente você tinha condição de realizar
naquele tempo situado. E, por certo em todos os outros tempos ulteriores. Hoje,
trago claro que não apenas o retardei, mas nos retardamos todos... em todas as
dimensões do ser, sobretudo a humana: vivência aqui assumida... experiência aqui
redimida, porque somente aquilo que é objeto do desejo fica impregnado na
memória.
Saudoso menino pensante, naquele tempo-espaço de alegria eu desconhecia
a natureza da sua fome, ou melhor, eu não via que a sua fome de saber era tão
intensa quanto a minha, exceto por um diferencial captado por mim só algum tempo
depois de você: você tinha fome de saber aprender e de mostrar-me o já sabido a
respeito da leitura e da escrita. Sua fome sabia-se de quê e para quê. Aprendi um
pouco mais tarde, com o educador Rubem Alves, que “Toda experiência de
aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. Fome é afeto. O pensamento
nasce do afeto, nasce da fome” (ALVES, apud LAGO, 2004, p. 31).
Em contrapartida, eu, Jairo, tinha fome de ensinar, porquanto a fome de
aprender pensava já ter sido saciada no Curso Normal – Formação para o
Magistério Primário, como já dissemos, feito no Instituto de Educação Júlio Prestes
de Albuquerque, em Sorocaba, cidade que ostentava status de progressista e cujo
desenvolvimento econômico-industrial aliado à proximidade geográfica com a capital
São Paulo a colocava entre as mais desenvolvidas do interior paulista. Seus
sistemas escolares e instituições formativas da educação básica eram tomados
como vanguardistas.
126
Acresce ainda que, àquele tempo, o Diploma de Professora Primária
representava o passaporte para a ascensão social, sobretudo quando essa
habilitação sobrevinha da excelência de formação resultada de notas altas dentro da
escala zero a dez e alcançadas por “moça de boa família”, não obstante de origem
humilde, da classe trabalhadora e de cultura fabril, como no meu caso. Na verdade
eu tinha fome de “ensinar tudo a todos”, bem aos moldes da premissa comeniana51
de sustentação teórica e prática pedagógica firmada na obra clássica intitulada
“Didática Magna”. A expressão obra clássica atribuída à “Didática Magna” de
Comenius (1592-1670) – século XVII pode abarcar sentidos duplos:
[...] clássico tem a ver com o que permanece, que resiste ao tempo e se mantêm vivo e significativo. Clássico é o reverso de efêmero, circunscrito. Por ter valor “universal”, por transcender tempo e espaço é que se refere a alguma coisa como clássica. Estaríamos falando por acaso do absoluto? Aí reside um equívoco. Resistir ao tempo, transcender ao presente, nada tem a ver com imutabilidade. As produções clássicas mantêm, sim, estreito vínculo com o seu tempo, mas não se restringem a ele. Porque, em alguma medida, tocam no essencial daquilo a que se refere é que permanece. Permanecem, transcendem por serem necessariamente transmutáveis: podem ser “lidas” e sentidas com o olhar atual sem, contudo, perderem seu sentido original (ROSA, 2007, p. 36-37, grifo do autor).
Nesse sentido, a autora defende que a escola tradicional mantenedora da
mentalidade pragmatista está superada, não propriamente pelos conteúdos que
ensina, mas pelo modo disciplinar como os aborda e pelo tratamento estéril a eles
dispensados no ato de ensiná-los. Pela ausência de percepção sobre o atributo da
sensibilidade própria da alma infantil e de como as crianças dela lançam mão na
aquisição do saber, objeto único de desejo que as fazem procurar a escola.
Repensar o modo disciplinar de ensinar é também ideia sugestiva de Antunes
(2008):
É importante às vezes acreditarmos que o “novo” em educação muitas vezes não é assim tão novo. Isto nos ensina que educar, em muitas circunstâncias é simplesmente fazer de maneira nova algumas coisas que há muito tempo se ensina (ANTUNES, 2008, p. 16).
51
A expressão premissa comeniana aqui empregada refere-se a Jan Amos Komensky, educador checo, nascido em 28 mar. 1592, na Morávia (hoje República Checa), região da Europa Central, pertencente ao Reino da Boêmia. O propositor da “Didática Magna”, também chamado de Comenius (COVELLO, 1999, p. 15).
127
De outra feita, a doutrina filosófica do pragmatismo é assim explicada por
Bunge (2002):
[...] a práxis (ação) é a fonte, o conteúdo, a medida e a meta de todo o conhecimento e valor. [...] Julgado a partir de um ponto de vista pragmatista, o pragmatismo é obviamente ambivalente. Por eliminar todas as ideias que não sejam práticas, é uma forma de filistinismo
52 e, assim, um inimigo da
cultura superior [...] embora seus pais fundadores, S. C. Peirce, W. James e J. Dewey, fossem tudo menos filisteus... (BUNGE, 2002, p. 291-292).
Já o professor e comeniólogo Sérgio Carlos Covello (1999), associado da
Universidade de São Paulo (USP), em sua obra intitulada “Comenius: A construção
da pedagogia”, considera ainda atuais as contribuições de Comenius em vários
países do mundo e as situa fundadas no humanismo e no espiritualismo cristão. A
Mestra e Doutoranda em Educação pela USP, Dora Incontri, acrescenta, à terceira
edição da referida obra de Covello, textos de Comenius por ela traduzidos, de cujos
extratos se pode ver que, além de oferecerem uma ideia geral sobre o pensamento
político-pedagógico do educador checo, oportunizam ao leitor a apreensão da
linguagem e das propostas de vanguarda desse defensor da educação para todos,
em pleno século XVII. Afirmam Covello e Incontri (1999) que Comenius é
considerado por muitos expoentes da literatura educacional como “o Galileu da
educação”; “o fundador da moderna pedagogia”; por outros, “o profeta da moderna
escola democrática”, ou, ainda, “o pai dos modernos métodos de ensino”. Entre
esses expoentes figuram nomes como Frederik Eby, Paul Monroe, Lorenzo
Luzuriaga, Jean Piaget, entre outros (COVELLO, 1999, p. 162).
De outra feita, e analisada do ponto de vista crítico, o professor, filósofo e
cientista social Cipriano Carlos Luckesi (1990, p. 39) considera a “Didática Magna:
tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos” fruto da concepção de educação
como redentora da sociedade, cuja função social do ensino está centrada na
“integração harmônica dos indivíduos no todo social já existente” (p. 38). Essa força
e poder atribuídos à educação e ao ensino confere a ambos um grau de autonomia
para além de sua concreta efetividade. Ao conceber a educação “exterior à
sociedade” (p. 38), num fixado mundo intramuros da sociedade e dela desapartado,
acaba por acreditá-la munida dos elementos necessários para o seu “ordenamento”
52
Filistinismo: c.f. Filisteu – FIG. expressão relacionada à ideia de “burguês de espírito estreito e vulgar” (FERREIRA, 2004, p. 2898).
128
e “equilíbrio permanentes” (p. 38). Nesse sentido, resta à educação o nobre, papel
de redutora dos males e desvios sociais, bem como o dever de garantir que todos os
indivíduos sejam integrados no todo social de forma verticalmente coesa, harmônica
e equilibrada. Comenius encontrava na finalidade da educação de sua época e
contexto sócio-histórico, político e religioso o poder de resgate e da re-ligação do
amor perdido pelos homens, pelo Criador e, por conseguinte, pela sociedade,
alimentando-se do desejo de restabelecimento do perdido pelas vias exclusivas da
educação e da fé. Assim, a educação, para ele, significava o meio mais eficaz para
redimir a sociedade desequilibrada e desintegrada, assentada na fé em Deus e nos
seus mandamentos e endereçada às gerações novas cujas mentes e corações
ainda não sofreram os estragos dos “vãos preceitos e costumes mundanos”
(DIDÁTICA MAGNA, 1657, apud LUCKESI, 1990, p. 40).
Essa concepção de educação e ensino, Jairo, atravessa, tão viva quanto
você, esses três séculos subsequentes ao século XVII e, porque não dizer, povoa
até hoje o imaginário pedagógico de muitos pedagogos e educadores da sociedade
contemporânea, chamada de pós-moderna, de sociedade da informação e do
conhecimento.
Também Hengemühle (2011) pauta seus questionamentos e análises críticas
relacionadas às concepções clássicas de educação e ensino a partir do seu olhar.
Vejamos o que nos diz o pesquisador sobre Sócrates, “o pensador grego”: [...] Ao
olhar Sócrates e tantos outros, me pergunto: Por que avançamos tão pouco na
educação? Por que somos tão resistentes em ver que nossas práticas não
contemplam a natureza do ser humano? (HENGEMÜHLE, 2011, p. 48).
Conta-nos o autor que no século V a.C. Sócrates já vivenciava uma
pedagogia da reflexão, levando seus discípulos a encontrarem respostas às
problematizações por ele postas. Traz Berbel (1998) para dizer que a metodologia
socrática convocava o próprio Sócrates a apresentar-se:
[...] Como homem que nada sabe interrogava sem cessar os atenienses, principalmente os jovens, para destruir a educação adquirida sem reflexão, os preconceitos dissimulados debaixo do disfarce da sofística, e para substituí-los por um saber extraído de dentro do ser humano (BERBEL, 1998, p. 7, apud HENGEMÜHLE, 2011, p. 49, grifo do autor).
129
Reporta-se, ainda ao caráter pedagógico das parábolas de Jesus Cristo, que
se valia de uma infinidade de estratégias para que letrados ou iletrados de seu
tempo pudessem apreender e compreender as suas mensagens.
[...] Conforme Bordenave... Jesus de Nazaré costumava ensinar apresentando situações problemáticas, como quando utilizou a parábola do Bom Samaritano para que seus ouvintes, compreendessem o conceito de próximo (BERBEL, 1998, p. 7, apud HENGEMÜHLE, 2011, p. 49).
Quanto a Comenius e sua Didática Magna, Hengemühle (2011) nos dá as
indicações de que “[...] o professor deve mostrar a utilidade e a aplicação do
conhecimento adquirido, e fazer referência à natureza e origem dos fenômenos
estudados, às suas causas. Por sinal, muito atual!” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 49,
grifo do autor), complementa o autor.
A educação comeniana tem o fim claro de fazer com que o educando aprenda
a “bem viver”, e “[...] adota como um dos critérios determinantes de suas opções
pedagógicas a utilidade para o aluno daquilo ‘que se lhe ensina’” (HENGEMÜHLE,
2011, p. 50, grifo do autor).
Enfim, de Comenius (1592-1670), Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778),
Basedow (1723-1790), Herbert (1746-1827), Pestalozzi (1746-1827), Fröbel (1782-
1852), Dewey (1859-1952), Montessori (1870-1952), Decroly (1871-1932), Freinet
(1896-1966), Wallon (1879-1962), Vygotsky (1896-1933), Piaget (1896-1980), Freire
(1921-1997), saindo em defesa da premissa do respeito à individualidade do
educando, alcançando, como se pode ver, Piaget e Freire, já mais contemporâneos,
podemos perceber o avanço da ciência sobre como pode aprender o ser humano.
Daí, as ricas contribuições de Piaget53 com a,
53
Jean Piaget (1896-1980) nasceu na Suíça. Seu primeiro livro, publicado em 1924, já demostrava seu interesse pela gênese do conhecimento: a linguagem e o pensamento na criança. Ocupou-se disso pelo resto de sua vida. O nascimento da inteligência na criança, a noção de número na criança, a construção do real na criança, a formação do símbolo na criança e dezenas de outros títulos compõem sua obra (cerca de 70 livros e mais de 300 artigos). Faleceu em Genebra. Em seu currículo, mais de 20 doutorados HONORIS CAUSA, conferidos por universidades de todo o mundo (LAGO, 2004, p. 54).
130
[...] descrição dos estágios de desenvolvimento da criança e do adolescente que oferece aos educadores o conhecimento sobre como planejar e entender a “distância” entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento próximo: entre aquilo que a criança já faz de forma independente e aquilo que para ser solucionado, requer o concurso de outros, considerados sempre como agentes de desenvolvimento. Esse conceito elucida bem a visão Vygotskiana de desenvolvimento: apropriação e internalização de instrumentos proporcionados por agentes culturais de interação, que levam à elaboração de funções psicológicas que estavam próximas de se completar e que em se completando, propicia-se novas aprendizagens [...] volta-se para o futuro, para aquilo que ainda não ocorreu, mas que, proximamente, ocorrerá [...] a interlocução que se dá na atividade (OLIVEIRA, 2005, p.48-49, grifo do autor)
54.
O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) de Vygotsky (2005),
remete ao papel do professor na mediação da aprendizagem do aluno: o professor
mediador é sujeito que realiza a conexão necessária: sujeito que ensina/objeto de
conhecimento/sujeito que aprende.
Ademais, não se pode duvidar da importância do pensamento pedagógico de
David Ausubel55, que informa sobre a relevância dos conhecimentos prévios dos
alunos, mostrando que “[...] conhecido o que o aluno já sabe, esse saber deve
ser tomado como ponto de partida do novo ensino” (HENGEMÜHLE, 2011, p.
51, grifo do autor).
Chegamos ao Brasil, Jairo, país de origem de Fazenda, que traz à tona o
sujeito e a educação interdisciplinares, expondo a fratura, a fragmentação
disciplinares hospedeiras da maioria das escolas brasileiras, segundo Hengemühle
(2011). Afinada com as ideias freirianas, representa pontos de referência fundantes
para a prática docente.
E assim, Jairo, alcancei o limiar da educação do século XXI, cuja volatilidade
exige dos educadores que apressem os passos da construção de um novo saber e
54 Marta Kohl de Oliveira. História, Consciência e Educação. In: VYGOTSKY, L. S. Vygotsky uma
educação dialética. Suplemento Especial: A Educação na Idade Média. Viver Mente & Cérebro. Editor Manuel da Costa Pinto. [colaboradores Adriana Lia Friszman... et. al.,] Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, Coleção Memória da Pedagogia. Edição especial n. 2, (S.d.).
55 David Ausubel destacou-se em educação pela ênfase com que trabalhou a expressão “aprendizagem significativa” desde a década de 60, quando nos Estados Unidos o Behaviorismo se encontrava em sua maior evidência e o ensino e a aprendizagem examinados como estímulos-respostas e reforços. [...] Para esse educador, a aprendizagem significativa é “o processo por meio do qual uma nova informação se relaciona de maneira substantiva e não arbitrária, a um aspecto relevante da estrutura cognitiva do aprendiz”... (ANTUNES, 2008, p. 65).
131
fazer docentes, e cujo eixo norteador desenha o perfil do aluno da nova geração,
que precisa, por meio de aprender a aprender, também aprender a fazer, aprender a
conviver, e aprender a ser56. Para isso, o educador há que estar centrado no
desenvolvimento de competências57, para o enfrentamento do mundo pós-moderno
em que vive.
Contudo, Jairo, não obstante a quantidade incontável de pesquisadores
oferecendo à humanidade histórica e culturalmente uma soma impagável de
relevantes descobertas científicas, ainda somos muitos a continuar pensando que a
disciplina tem em si, e de forma isolada, a verdade absoluta capaz de explicar a
totalidade dos fenômenos da natureza.
Ademais, essa concepção de ensino sustenta-se na ótica da “[...] sociedade
como um todo orgânico e harmonioso com desvios de grupos e indivíduos que ficam
à margem desse todo”, como aponta Luckesi (1990, p. 38), e de cuja ação
recuperativa e missão salvífica está incumbida a educação.
Assim é que eu me propunha ensinar-lhe tudo o que eu pensava tão bem
saber e acreditava que de tudo, tudo ou quase tudo, você desconhecia.
Pela condição sociocultural que o identificava e pela carência econômico-
financeira que lhe roubava até mesmo a saúde e a qualidade de vida, eu o via “à
margem do todo social” referido por Luckesi (1990). Logo, cabia a mim empregar
esforços para retirá-lo daquela situação de marginalidade, havendo de ser pela
educação e pelo ensino ministrados, como elucida Freire (2001): [...] “já que a
educação modela as almas, e recria os corações, ela é a alavanca das mudanças
sociais” (FREIRE, 2001, p. 28).
De sorte, Jairo, que eu não contava com a iluminação teórica e político-
pedagógico-crítica para trazer à luz a consciência imediata para reconhecer-me e
aceitar-me também faminta de aprender e de sanar a falta de profundidade analítica
56
Parâmetros para a Educação do Século XXI. Comissão Internacional para a Educação no Século XXI, criada pela UNESCO, sob a presidência de Jacques Delors. Sugere esses princípios para o processo de aprendizagem no alvorecer deste século. (2003). Esses parâmetros “originam-se de preocupações e necessidades globais que solicitam da educação contemporânea a formação de pessoas capazes de revitalizar a humanização da vida” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 42).
57 Competência: Philppe Perrenoud é o autor da obra Formando professores profissionais: quais
estratégias, quais competências? Trad. Fátima Murad e Eunice Gruman. 2. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2001.
132
que cegava a minha prática docente. Por isso, sentia desafiante dificuldade diante
de sua capacidade de entender, de forma lógica, o que eu mesma não entendia.
Eu era a professora com toda aquela cegueira epistemológica, linguística,
metodológica e político-pedagógica acompanhada do formalismo próprio da
ideologia positivista58, apesar do perfeito domínio do método que me exigia um
procedimento repetitivo e bem especificado – um receituário cartilhesco. Não
obstante ter claro na mente a terrível contradição de, de repente, você me ensinou
que Eu era a ODILA. Como entender a sujeição imposta pelo próprio método e
concepção de alfabetização trazidos da formação do Curso Normal? E como não
transferir a você essa mesma sujeição? Por que seria que você escrevia O / I / A
quando eu lhe ordenava arbitrariamente que escrevesse EU? Como entender o
sentido e a lógica que lhe definia a escrita? Como escalar tamanho edifício de
abstração?
Segundo Capelletti (2000),59 os positivistas concebem a ciência como um
quadro pronto e acabado de axiomas, postulados, descrições, definições, conceitos,
interpretações, teorias e leis aplicáveis ao conhecimento de parcela da realidade.
A meu ver, Jairo, aquela sua escrita convencionalmente parecia dizer da
terceira pessoa do singular, tempo presente do modo indicativo do verbo olhar,
escrito à moda roceira, o que era inconcebível de ser aprovado pela formalidade do
ensino escolar.
No entanto, você me mostrava uma leitura de mundo e uma leitura da palavra
distinta, em função também de nossas culturas distintas.
De Freire (2001) veio-me a clareza da “leitura” mais crítica da “leitura”, que
você lia com tamanha precisão lógica ao ouvir-me ditar o pronome EU e
correspondia com a escrita OIA, o meu nome Odila, como representativa daquele
58
Positivismo: “A família de doutrinas nas quais se exige que somente fatos “positivos” (experiências) sejam levados em conta, e em que se afirma que as teorias apenas sumariam dados e nos poupam pensamentos. Embora os positivistas preguem o cientismo, eles defendem uma epistemologia centrada no sujeito e cortam as asas da pesquisa científica ao exigir que ela deveria aferrar-se aos dados. Pretendem evitar a metafísica, mas efetivamente endossam o fenomenalismo, que é uma metafísica subjetivista. Principais expoentes: Ptolomeu, D’Alembert, Comte, Mill, Spencer, Mach [...] Os únicos positivistas praticantes encontram-se nos ramos atrasados das ciências social e natural, onde a principal ocupação é a caça e a coleta de dados” (BUNGE, 2002, p. 286, grifo do autor).
59 Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP.
14 mar. 2000.
133
texto e contexto que o encarnava. No entanto, sem a clareza atual eu tomava aquela
sua escrita como “uma compreensão diferente da sua indigência” e não como
resultante de um processo em que você não tinha qualquer ingerência (FREIRE,
2001, p. 21).
Sabe, Jairo, na Escola Normal eu aprendi a falar e quase nada aprendi sobre
o escutar. Eu nem desconfiava que é “escutando que aprendemos a falar”
(FREIRE, 1996, p. 127, grifo do autor) com os alunos. Para falar com o aluno e não
simplesmente ao aluno, é preciso aprender a escutar com paciência e atenção
crítica. Falar impositivamente, Jairo, é atitude do professor que não sabe escutar. É
também por isso que me submeti à padronização das fórmulas de avaliação da
aprendizagem em vigor naquela época e o reprovei de forma irreversível. Naqueles
tempos, Jairo, eu estava acometida do que Paulo Freire (1996, p. 128) chama de
“burocratização da mente”. Mas isso eu só vim a saber lá na década de 80, com
Ivani Fazenda. Eu me “autodemitia” (p. 128) do pensar certo e de assumir esse
pensar, e essa falta de tomada de consciência arrastou-se por um tempo que hoje
não digo perdido, porque entendo do processo de amadurecimento dos frutos. Ao
contrário, hoje sei, Jairo, que são muitos os estudiosos que tratam da escuta
sensível, aquela que obviamente “[...] vai mais além da possibilidade auditiva de
cada um”, aquela que “[...] significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito
que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do
outro” (FREIRE, 1996, p. 135).
Contudo Freire (2001) aclara sobre o universo de conhecimento ainda a ser
sabido pelo educador desavisado (como eu à época), apontando que:
[...] Na verdade, para que a afirmação “quem sabe, ensina a quem não sabe” se recupere de seu caráter autoritário, é preciso que quem sabe saiba sobretudo que ninguém sabe tudo e que ninguém tudo ignora. O educador, como quem sabe, precisa reconhecer, primeiro, nos educandos em processo de saber mais, os sujeitos, com ele, deste processo e não pacientes acomodados; segundo, reconhecer que o conhecimento não é um dado em si, algo imobilizado, concluído, terminado, a ser transferido por quem o adquiriu a quem ainda não o possui (FREIRE, 2001, p. 27-28, grifo do autor).
Vale ressaltar que a prática democrática e crítica inicia-se com a leitura do
mundo e a leitura da palavra como que “palavramundo”, como leituras inseparáveis,
134
dinâmicas e binômicas, segundo a visão freiriana. Sobre isso sinaliza o educador
pernambucano: “[...] o comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e
de termos significativos à experiência comum dos alfabetizandos, e não de palavras
e de termos ligados à experiência do educador” (FREIRE, 2001, p. 29).
Vejo hoje, Jairo, que você não poderia ter lido o real da maneira a mesma
com que eu o lia, e essas são algumas das razões pelas quais se mostrava
impossível de ser vislumbrada a sua insondável concepção de escrita, abalizada por
uma hipótese tão lógica quanto inteligente, racional e relacional, e, portanto,
prodigiosa. Você era o sujeito de si mesmo e de sua própria prática cognoscitiva.
Fazenda (2003), reportando-se à Freire, sobre isso adverte:
Em 1969, Freire nos fala da invasão cultural, onde metaforicamente nos convida a refletir que a palavra pronunciada possui o valor de comunicação e quando invadida mata a seiva do homem, assim como o mau agrônomo pode matar a planta. Freire começava então a dizer do educador e dos perigos de uma educação invasiva (FAZENDA, 2003, p. 29).
Dessa forma, eu experimentava um sentimento inexplicável de angústia, mais
do que medo e insegurança. A angústia, Jairo, para o filósofo contemporâneo Mario
Sérgio Cortella (2000)60, é o pior dos sentimentos, justamente por lhe faltar o objeto
próprio e definido. Paradoxalmente, é a possibilidade plena porque o sujeito só sente
o nada, e só quando sentimos o nada é que podemos escolher algo.
Em verdade, faltava-me o elemento sustentável que permitisse captar a base
da tessitura dos seus sons, dos seus gestos, expressões e sentimentos altivos,
porém sufocados, você sim, pelo medo de errar e de causar-me agravos e
desagrados. Eu não conseguia captar sua forma de representação da escrita e da
escuta sensível, tomando-as do seu ângulo de visão perceptiva – “um erro
disciplinado”, em que não havia, de minha parte, espaço favorável à
“permutabilidade” e à “intercambiabilidade” e, por conseguinte, nem “pertença
recíproca”, o que só poderia ter tornado aquela comunicação “inassimilável”, como
diria Foucault (2008, p. 42).
Assim é que, àquela época, eu não me fiz pensar como você, infortúnio esse
que me levou a considerá-lo lento na aprendizagem da escrita, não obstante o fato
60
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP. 28 fev. 2000.
135
comprovado de que você reconhecia verdadeiramente todas as letras do alfabeto.
Oficialmente neguei-lhe o saber ler e escrever, o saber refletir sobre as ações e
relações próprias e interdependentes dos atos de ler e escrever.
Ocorre que eu não interpenetrava o seu mundo interior, tampouco dialogava
com sua palavra oralizada arrastada por pesada timidez e insegurança, devido à
ineficácia da minha palavra dita, da minha expressão não dita e da minha escuta
deficiente – “uma barbárie humano-social.”61 (SANTOS, 2007).
Barbárie aquela aqui refletida na denúncia-anúncio de Arroyo (2000):
Começar por equacionar pedagogicamente os limites, as possibilidades vividas pelos educandos que temos, não que sonhamos e gostaríamos de ter. Se esses limites raiam as fronteiras da desumanização, entender que a primeira tarefa da escola e nossa tarefa é que o pouco tempo de escola não seja uma experiência a mais de desumanização, de trituração de suas esperanças roubadas de chegar a ser alguém. A escola pode ser menos desumanizadora do que a rua, a moradia, a fome, a violência, o trabalho forçado, mas reconheçamos, ainda, as estruturas, rituais, normas, disciplinas, reprovações e repetências na escola são desumanizadores (ARROYO, 2000, p. 59, apud ARANHA, 2010, p. 77).
Ao contrário de como eu lia sua escrita, esta buscava garantir a articulação da
sonoridade do EU, ditado autoritariamente por mim, comigo mesma, com a minha
identidade nominal – “O pronome pessoal da primeira pessoa do singular”, que
poderia ser considerado como “a individualidade metafísica da pessoa” (FERREIRA,
2004, p. 844), ou seja, o meu nome.
Você, meu desafiante aluno, trazia presa a língua e solta a mente; eu, ao
contrário, a trazia solta, mas a mente presa, acorrentada aos grilhões da única
concepção de educação e de ensino aprendida na Escola Normal: uma prova
extraordinária de perplexidade mergulhada numa completa ambiguidade – a ordem
na desordem – da comunicação e da linguagem e da compreensão da função social
da língua escrita e falada aprendida e ensinada na escola seletiva que punha à
margem os já excluídos dos bens sociais, materiais e ideais criados pelo homem na
61
Expressão empregada por Gaudêncio Frigotto na apresentação da obra de Boaventura de Souza Santos, Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. Tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.
136
história, na cultura e no trabalho e, portanto, devendo ser colocada à disposição de
todos os homens, indistintamente (CORTELLA, 1999, 2000)62.
Aranha (2010), no exame da questão crucial e recorrente do fracasso escolar,
e acostando suas concepções de Charlot63 (2000), explicita total concordância com
o educador francês, quando a discussão diz respeito à visão estreitada com que se
tem relacionado o fenômeno do fracasso escolar com as condições econômicas
precárias dos estudantes.
Charlot (2000) elege como categoria de desconstrução dessa ideia linear a
relação com o saber, e, sobre isso, assim se expressa:
Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também uma relação consigo mesmo e relação com os outros (CHARLOT, 2000, p. 63, apud ARANHA, 2010, in: OLIVEIRA, 2010, p. 78).
A fertilidade das ideias de Charlot (2000) e Aranha (2010) reportam à
relevância sociopolítica e científica e à especificidade e singularidade do ensino da
língua falada e escrita, sobretudo nas séries iniciais de alfabetização, pois um
período escolar requer do professor o cuidado (BOFF, 2013, p. 243-244), não só
com o próprio ensino na sua relação intrínseca com o sujeito da aprendizagem, mas
sobretudo com a pessoa desse mesmo sujeito – um sujeito histórico-sócio-cultural,
por condição humana.
Ao tratar do cuidado na educação, Boff (2013) norteia a que a educação desapegue-se da dimensão estritamente técnica para poder abrir-se a outra dimensão, qual seja:
[...] ser criativa, projetar inovações que aliviam a existência humana, por séculos imemoriais submetida a penúrias, doenças e constrangimentos impostos pela natureza.
Além de incorporar o saber do passado, importa acrescentar-lhe algo novo, nascido do diálogo do ser humano com a natureza e com a história. A nova tarefa da educação é suscitar criatividade e inventividade [...]
62
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP. 20 mar. 2000.
63 Bernard Charlot. Da relação como saber: elementos para uma teoria. 2000. In: ARANHA, A. V.
S. Gestão e organização do trabalho escolar: novos tempos e espaços de aprendizagem. In: OLIVEIRA, M. A. M. (org). Gestão Educacional: novos olhares, novas abordagens. 7 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010.
137
A educação se propõe suscitar nos estudantes a criatividade e a capacidade de descobrir novas conexões, inventar novas linguagens, criar novos símbolos e forjar modelos de aparatos e objetos para o uso humano ou para a extração de benefícios da natureza. Esta nova postura afeta de forma profunda os docentes. Eles não são mais os únicos depositários do saber; somam-se ao saber dos estudantes. Estimula-os para a invenção. Isso não é uma tarefa fácil, pois demanda desmontar hábitos professorais, assumir a postura de humildade de aprendente junto com os demais aprendentes, conviver com a contestação e com a apresentação de alternativas (BOFF, 2013, p. 243-244).
Sendo a língua, por excelência, formativa desse sujeito e construtora de sua
identidade individual e social, o seu ensino na escola deve ser endereçado a que os
sujeitos socioculturais sejam retirados da “subumanidade a que muitas vezes estão
submetidos” [...], e,
[...] assumir uma atitude democrática radical implica não retirar-lhes o estatuto da cidadania, do ser humano. São diferentes, sim, mas não inferiores. Suas culturas, seus hábitos, seus saberes são diferentes, mas existem realmente e os ajudam na difícil lida da sobrevivência (ARANHA, 2010, p. 77).
Os estudos e descobertas dos pesquisadores da educação fazem ampliada
minha consciência acerca do papel redimensionado do educador na sociedade em
mudança, como a nossa, e apontam para a emergência de que a escola e o
professor estabeleçam “o valor epistemológico do saber” detido pelos alunos
(ARANHA, 2010, p. 78).
Ao gosto analítico e na visão político-pedagógico-crítica de Foucault, você,
Jairo, ao “invés de tomar a palavra” era sim “envolvido por ela e levado bem além de
todo começo possível” (FOUCAULT, 2008, p. 5). Assim, o meu retumbante EU não
lhe soava apenas como junção fragmentada e caótica de duas, dentre as cinco
vogais, que eu fazia você e seus pares soletrarem canonicamente durante quase
todo o tempo de aula, para que as fixassem bem e para que, quando chegassem à
formação das “famílias silábicas”64, não enfrentassem dificuldades em associá-las às
64
Famílias silábicas: Características do método sintético da alfabetização – “parte das partes para o todo, isto é, da síntese para a análise. Apoia-se no behaviorismo que preconiza: a dedução é que a melhor maneira de dominar a leitura e a escrita é através de um processo que esteja de acordo com esta característica”. Na dimensão social acredita-se que este método é suficiente para atender “[...] a qualquer tipo de criança, principalmente as que têm dificuldade de aprendizagem e possuem um maior tempo de escolarização (repetentes)” (FRANCO, 1997, p. 52).
138
consoantes devidas, para enfim formarem as palavras, também, para vocês, tão
arbitrárias e abstratas quanto as vogais rotineiramente repetidas em uníssono na
sala de aula. Repetições aquelas desprovidas de sentido em si mesmas, resultadas
insignificativas aos seus ouvidos para, juntas, enfim, continuarem sem lhes dizer
absolutamente nada. A ordem, pois, era do significante sob minha ótica e do
significado sob a sua ótica.
Simultaneamente ao estado da arte da alfabetização que ganhava
materialidade na então precária sala de aula de roça, embora desprovida de nexos
de compreensão, solitários e ardilosos questionamentos povoavam minha mente de
forma ininterrupta, assentados num corpo físico que gozava a beleza singular dos
vinte e poucos anos de idade, mas distante mais de vinte quilômetros do meio social
letrado, na bucólica cidadezinha de caiçara Sete Barras.
Talvez não por acaso essa curiosa denominação, de sorte que o desafio de
um número de vezes bem maior que Sete Barras aguardava de mim o ousado
enfrentamento naquele contexto e tempo-espaço histórico-cultural, bem como em
tantos outros tempos àqueles sobrevindos.
No que concerne ao espaço concreto daquela sempre memorada sala de
aula, onde eu reinava com total falta de profundidade analítica, sou capaz, hoje, de
afirmar que “[...] Não haveria portanto começo; e em vez de ser aquele de quem
parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o
ponto de seu desaparecimento possível” (FOUCAULT, 2008, p. 6).
Aquele, Jairo, mais que um desacerto de natureza metodológica ocorrido na
obscuridade epistemológica e linguística, foi um procedimento de “interdição” que
lhe gerou, sem dúvida, um sentimento de frustração e de rejeição confirmado no
bojo do mecanismo da interioridade sem consciência de si – um fator gerador de
explícita e perversa exclusão (FOUCAULT, 2008, p. 9).
Como aponta Aranha (2010):
[...] Levar em conta o saber desses alunos, não estigmatizá-los simplesmente como errôneo, senso comum, etc., não se reduz apenas a um recurso metodológico para melhor introduzirmos o verdadeiro saber, o saber escolar, sistematizado. Não pode ser reduzido simplesmente a um mecanismo de motivação. Trata-se de uma questão epistemológica de reconhecimento e valorização de outros saberes. E, como todo saber, esse saber do aluno deve ser problematizado, historicizado e não idealizado. Mas
139
desconhecê-lo é em parte desumanizar o sujeito que o detém. E onde são construídos esses saberes? Nas relações e vivências que, muitas vezes, a escola desconhece e menospreza (ARANHA, 2010, p. 79).
Vale dizer, entretanto, que o fator gerador de explícita exclusão sobre o qual
faço referência nada teve de consciente, uma vez que eu não podia ter claro de que
poder estava eu fazendo uso e do que exatamente eu desejava ainda mais me
apoderar (FOUCAULT, 2008). Não pude, naquela oportunidade, intuir sobre a
acertabilidade em lhe incentivar a leitura oral da própria escrita, intervenção
pedagógica esta que, hoje já sabida, mais que desveladora da hipótese com a qual
você operava, poderia ter feito toda a diferença no curso dos fatos e dos seus feitos
no esforço consciente de aprender.
Mais que isso, Jairo, eu era ignorante ainda de que “[...] a avaliação feita a
respeito do aluno tem como contrapartida a avaliação de si mesmo com aprendiz
[...]” (LIMA, 2002, 2003, p. 9). Não sabia também que “[...] avaliar faz parte do
processo de desenvolvimento humano e se constitui naturalmente em vários
momentos da vivência escolar...” (LIMA, 2002, 2003, p. 9), e que “[...] Assim, mesmo
que o professor não esteja consciente, ou não perceba, o aluno estará
continuadamente construindo sua imagem como aprendiz a partir de todos os
indicadores que ele percebe em sala de aula” (LIMA, 2002, 2003, p. 9).
Intuindo sobre alguma lamentável certeza, aquele julgamento a que me
prestei fazer poderá estar “[...] sempre presente nas atividades de aprendizagem,
podendo causar rupturas, dificuldades e mesmo impedir o avanço do aluno em seus
conhecimentos” (LIMA, 2002, 2003, p. 9).
É notório o viés cometido, e qualquer fundamentação teórica a ele aportada
pode explicar, mas não justificar politicamente, o fato de terem se passado mais de
dez anos daquele exercício docente para que, somente na década de 80, eu viesse
a aprender que:
[...] considerar o erro como parte do pensamento em formação traz uma nova dimensão ao processo avaliativo: avaliação implica na identificação da dinâmica do conhecimento, através da articulação (dialética) entre os elementos adequados da resposta (geralmente referidos como acertos) e os elementos inadequados (geralmente referidos como erros) (LIMA, 2002, 2003, p. 17).
140
Entretanto, dessa tessitura fala com maior força e significação Paulo Freire
(2000b), que retomo para amparar-me na travessia iniciada nos finais da década de
1960 e inconclusa para todo o sempre: [...] “ninguém nasce educador, ninguém
nasce médico, engenheiro, professor. A gente vai se fazendo médico, professor,
engenheiro” (FREIRE, 2000b, p. 58).
Assumindo essa forma freiriana de entender a espera “vigiada” orientada por
Fazenda (2001, p. 18)65 na jornada construtiva do professor competente, ética e
politicamente correto, é que eu, Jairo, fui me fazendo professora.
Como se vê, Jairo, emergia daquele quadro de opacidade epistemológica
certo grau de aguçamento advindo da incipiência de conhecimento teórico próprio do
âmbito dos saberes docentes. A partir das problematizações a respeito dessa lacuna
aberta no processo de minha formação profissional, e à espera do tratamento
conceitual devido, é que eu fui abrindo espaços para o movimento dialético de
superação da totalidade do não-sabido.
Perguntava-me perplexa, naquele contexto:
Como havia eu de saber do anúncio das grandes transformações
econômicas, políticas e culturais que àquela época já se avizinhavam e que
tão logo invadiriam o cenário escolar brasileiro? Fariam rompidos os limites
estreitos da sala de aula?
Como planejar aulas como se sua “qualidade formal e qualidade política”
(DEMO, 1994, p. 14) dependessem única e exclusivamente de mim?
Como adivinhar o perfil dos alunos recém-acessados à escola? Perceber o
meu movimento próprio na docência cotidiana para aqueles aprendizes?
Se jamais eu ouvira a palavra crise e seus múltiplos e ambivalentes
significados, se eles nem me visitavam a consciência? Se a crise é nascida
para além dos muros da escola?
Como me conformar com alunos cujos hábitos, experiências, crenças e,
práticas mantinham distância abissal de mim e daqueles idealizados no
Curso Normal? Confortar-me com a presença do aluno concreto que não
65
Espera: princípio que subsidia a prática docente interdisciplinar. Espera “vigiada”: para dizer que não se trata da espera passiva.
141
aprendia? Alimentava-se mal? Cheirava e falava mal? Lia e escrevia (por
suposto) sem nenhuma proficiência?
Por acaso teria como serenizar minha ansiedade, afundada naquele mar
de contradições? Desempenhar bem o meu papel de professora?
Como abrigar indiferentemente a fragilidade da minha própria formação
profissional? Superar o isolamento e o anonimato que experimentava
naquele pedaço de chão brasileiro plantado naquele fim de mundo?
Por outro lado, feria-me o espírito a ideia de abandonar a luta sem ao menos
conhecer as armas necessárias para vencê-la. Sem aprender a problematizar as
relações de poder na educação e no ensino.
Por isso, como já lhe disse, fui atrás dos saberes para encontrá-los no
conhecimento científico, filosófico e linguístico. Encontrar as possíveis respostas às
perguntas intelectuais e existenciais como meu propósito de vida.
Por que a exemplo de Alves (2008, p. 36) eu também entendo que o caminho
das respostas não é o de achá-las prontas,
Não existe nada mais fatal para a inteligência que o ensino das respostas certas. As escolas deveriam se dedicar menos ao ensino das respostas certas, e mais ao ensino das perguntas inteligentes. As respostas certas nos permitem andar nos caminhos batidos. Somente as perguntas nos seduzem a entrar no mar desconhecido (ALVES, 2008, p. 36).
Há concertos de música. Por que não concertos de leitura? O adolescente se prepara para sair. A mãe pergunta: ‘Aonde você vai?’ ‘Vou a um concerto de leitura. Vai ser lido o conto ‘A terceira margem do rio’. Por que você não vem com o pai?’ Pai e mãe, envergonhados, desligam o ‘Jornal Nacional’ e vão se aprontar... (ALVES, 2008, p. 36-37).
Com Charlot (2000), citado por Aranha (2010), aprendi a considerar a
capacidade de aprender como uma condição humana. Tomada essa consideração
de Charlot como ponto de partida e chegada ao conhecimento, fui impelida a pensar
na relação de interdependência entre ensino/aprendizagem e entre professor/aluno,
(estes últimos, sujeitos do conhecimento e de saberes específicos), convocação
aquela já engastada na necessidade de mudança, pois:
142
[...] Se não incorporar a necessidade de mudança de sua prática docente o professor continuará repetindo aquilo que julga eficaz e suficiente para a aprendizagem dos seus alunos. Portanto há que se perguntar: como se operam as mudanças no trabalho docente? (ARANHA, 2010, p. 80, grifo nosso).
Aranha (2010) aporta-se ainda em Tardif (2002), para fazer desvelados os
mecanismos de valorização dos diferentes saberes dos professores:
[...] O saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com outros atores-escolares, etc (TARDIF, 2002, p. 11, apud ARANHA, 2010, p. 80).
Saberes estes interligados às situações concretas de seu trabalho, aos
condicionamentos e recursos com que pode contar, no dizer de Tardif, saberes “do
trabalho do seu trabalho”, heterogêneos e plurais, a diversidade do saber-fazer de
natureza e fontes variadas o “saber temporal” adquirido no contexto de sua história
de vida (TARDIF, 2002, p. 18, apud ARANHA, 2010, p. 81). Assim, o saber
experiencial é considerado, por Aranha (2012) e Tardif (2002) como resultante da
própria prática docente, fato este assim retratado por Tardif (2002): “[...] Os
professores não rejeitam os outros saberes totalmente, pelo contrário, eles os
incorporam à sua prática, retraduzindo-os, porém, em categorias de seu próprio
discurso” (TARDIF, 2002, p. 53, apud ARANHA, 2010, p. 81).
Ele próprio complementa: “[...] Nesse sentido, os saberes experienciais não
são saberes como os demais; são ao contrário, formados de todos os demais,
retraduzidos, polidos e submetidos às certezas construídas na prática e na
experiência” (TARDIF, 2002, p. 53, apud ARANHA, 2010, p. 81).
Pela exteriorização do meu diálogo interior, de forma progressiva e circular fui
aprendendo sobre os meus próprios saberes, aprendendo a reconhecer e a
problematizar o “saber de experiência feito” (FREIRE, 1992, p. 71; 2000b, p. 22) que
ainda não se assentava sobre bases estáveis. Por conseguinte, alcancei a
compreensão de que a praticidade aparente do conhecimento comum pode
enegrecer a praticidade real do conhecimento científico. Além do mais, aprendi que
143
se deve à inconsistência do conhecimento comum a prática pedagógica disciplinar
desprovida de cientificidade.
Dessa forma, Jairo, valorizar os conhecimentos e saberes construídos e
mobilizados pelos sujeitos que aprendem faz emergir a complexidade da nossa
“atividade docente”, ensina Aranha (2010). Sobre isso a autora assim se posiciona:
[...] Trata-se então, de, no ato de educar, estabelecer um diálogo entre saberes (do professor e do aluno). E não repetir a velha tradição da educação bancária tão denunciada por Paulo Freire que intenta incultar saberes previamente dignificados nos alunos. E dialogar não significa apresentar-lhes outros saberes, mas partir, como diz Freire “do saber de experiência feito” (ARANHA, 2010, p. 78, grifo do autor).
Vejamos a complementaridade desse pensamento de Freire (1992):
Não há como não repetir que ensinar não é a pura transmissão mecânica do perfil do conteúdo que o professor faz ao aluno, passivo e dócil. Como não há também como repetir que partir do saber que os educandos tenham não significa ficar girando em torno desse saber. Partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a outro e não ficar, permanecer. Jamais disse, como as vezes sugerem ou dizem que eu disse, que devíamos girar embevecidos em torno do saber dos educandos, como a mariposa em volta da luz. Partir do “saber da experiência feito” para superá-lo não é ficar nele (FREIRE, 1992, p. 70-71, grifo do autor).
Vale ressaltar, contudo, que, não é tão raro o valor real do saber advindo da
prática na prática passar despercebido desapercebido pelos professores dessa
mesma prática, o que provoca a sua desvinculação das necessidades e
possibilidades pedagógicas. Isso resulta no seu esvaziamento ou em sua
burocratização. Por conseguinte, sua desvinculação do trabalho pedagógico
efetivamente realizado, não podendo ser, portanto, apreendido e interiorizado pelos
sujeitos diretos do processo, ou seja, alunos e professores.
Desse quadro situacional permito-me deduzir sobre a importância da ação
interdisciplinar cujos elementos constitutivos favorecem a prática do diálogo, da
troca, da parceria, da cumplicidade numa escola que se deseja verdadeiramente
democrática.
A essa ideia dedutiva reitero a manifestação de Aranha (2010):
144
[...] Reconhecer os docentes como sujeitos do processo ensino-aprendizagem, como educadores em toda a dimensão do termo, é essencial. Mas, reconhecê-los também como gestores ou co-gestores do seu trabalho é a linha divisória entre uma mudança real ou fictícia no interior das escolas (ARANHA, 2010, p. 81).
Contudo, autores como Sorrato e Olivier-Heckler (1999), requeridos por
Aranha (2010), levantam a questão da “autonomia relativa” do professor frente ao
movimento de mudança e inovação pedagógica na escola, em especial a pública.
Aos questionamentos de Sorrato e Olivier-Heckler (1999) subjaz a dimensão
ética evidenciada na premissa de que, se é na sala de aula que a tessitura dos
saberes docentes há de se dar, de se desenvolver e de construir-se, esse mesmo
espaço sagrado deveria ser o palco da ação autônoma dos sujeitos responsáveis
diretos pela construção de conhecimento e trocas de saberes, não outros que
professores e alunos.
Ademais, é prudente observarmos o alerta que nos dão Sorrato e Olivier-
Heckler (1999), a esse respeito:
[...] Estamos diante de um trabalho que exige um papel de seu executor, que não só permite como impõe a criatividade para que a obrigação de cada dia seja cumprida. Podemos imaginar o trabalho de um professor sendo realizado de uma forma mecânica, apenas cumprindo as tarefas predefinidas seguindo uma definição protocolar de cada passo predefinido? (SORRATO; OLIVIER-HECKLER, 1999, p. 118-119, apud ARANHA, 2010, p. 81-82).
Aranha (2010) anuncia mais adiante a complementação das afirmações dos
autores sobre o questionamento feito: “[...] Temos, portanto, um trabalho cujo
controle é eminentemente do trabalhador e que não acontece se este não assumir
seu papel ativo no processo” (SORRATO; OLIVIER-HECKLER, 1999, p. 118-119,
apud ARANHA, 2010, p. 81-82).
Hoje, Jairo, bem sei que se educadores, legisladores da educação e o poder
público quiserem, de fato e de direito, um rico trabalho escolar, o pontapé inicial em
busca da riqueza proclamada há de ser dado pela atitude de respeito e de
valorização da experiência docente e pela inserção dos professores na gestão
político-pedagógica da escola, atitude esta vital para a concretização de um ensino
145
verdadeiramente de qualidade e para a requalificação do modelo organizacional da
escola em função da qualidade desejada.
Mas sei também, menino-pensante, que se trata de uma busca permanente e
vinculada de forma umbilical às relações de poder, à delimitação dos currículos
oficiais, à organização dos tempos/espaços escolares, às visões estritamente
disciplinares, aos tipos, formas e instrumentos de avaliação, ao modelo de regime
seriado assentado na lógica propedêutica, às disciplinas desconexas e
desarticuladas entre si, aos agrupamentos de alunos por nível de conhecimento,
enfim, a um conjunto expressivo de limitações de toda ordem. Talvez sejam estas as
razões que podem explicar as retaliações ao modelo emergente da organização
escolar por ciclos, que tem sido mais acolhido pelos sistemas particulares que pelos
sistemas públicos da educação básica nacional.
Percebe, agora, o drama de não ter entendido você, naqueles tempos
remotos, Jairo? O drama decorrente das lacunas do conhecimento comum?
Percorrendo as pegadas de Cortella (2000), posso hoje dizer:
[...] drama porque é criado voluntária e intencionalmente pelo homem e, portanto, não só poderia ser evitado como, uma vez criado, pode ser extirpado pela interferência do próprio homem no momento mesmo de sua ocorrência havendo, para tanto, vontade política e consciência ético-moral que lhe ditassem a tomada de decisão para fazê-lo engastada na atitude de fazê-lo (CORTELLA, 2000, s.p.).
66
Você me entendia. Só faltava mesmo eu entendê-lo! Eu não o entendia
porque não trazia claro da Escola Normal que, “as pessoas são ligadas a sua cultura
e esta lhes dá a referência ética. Daí que sobrepor uma cultura à outra causa
violência e, por isso, exige do educador cautela no agir e no lidar com o educando”
(CASALI, 2001)67. Daí também que o “erro disciplinado”, tomada a definição de
Foucault (2008), não se restringiu apenas à questão epistemológica, nem somente à
66
Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 27 mar. 2000.
67 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP
de 13 mar. 2001 – Professor Alípio Casali: Ética da liberdade na idade da globalização e da exclusão – Enrique Dussel.
146
esfera metodológica, mas, sobretudo parece estar situado no ethos68 da ética69, da
praxiologia70 e da filosofia política – as guias do comportamento humano.
Quando falamos de ethos, explica Casali (2001), falamos de uma
determinada morada e, mais diretamente, de seus moradores. Cada morada é um
conjunto de modo de ser coletivo. Daí que [...] “ethos não é uma ideia que flutua no
ar, mas um modo concreto de ser porque se realiza no modo de ser, de organizar-
se. Nesse sentido, o modo de ser e estar na sala de aula e a sua forma de
organização determina a posição do saber ali veiculado” (CASALI, 2001)71.
Todo ethos consiste numa materialidade, define as formas infraestruturais de
ser, “[...] há uma organização infraestrutural material cotidiana que dá forma as
nossas leis, cujo cumprimento ocorre de maneira impensada, inconsciente”
(CASALI, 2001)72.
Isso posto, Jairo, fica claro que eu não dava conta o suficiente da minha
inconclusão como sujeito e como profissional. Então, não sabia ainda dos limites e
possibilidades da transgressão, pondo-me em constante estado de autovigilância,
mas nem por isso percebendo as sutilezas das individualidades nas parcialidades e
na totalidade do ser e da realidade que configurava aquele contexto sócio-histórico-
cultural.
Não sabia, na medida exigida pelo ofício de professor, que “[...] fazer a
pedagogia ética requer a necessária opção política, tanto quanto acreditar no tempo,
no uso do tempo priorizado para aprender a defender aquilo em que se acredita”73.
Na lida, às vezes eu era um tanto quanto afoita; outras, a contragosto, bastante
arredia.
68
Ethos (do grego). De acordo com Casali (2001), originalmente significa morada ou abrigo. Na origem
era a caverna, a morada para se abrigar; habitação, o que prevalece dentro da habitação que corresponde às normas da casa, o que, não por acaso chamamos de costumes.
69 A ética, em última análise corresponde ao esforço crítico para pensar a relatividade dos
morais. Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP de 13 mar. 2001.
70 Praxiologia. Teoria da ação. Junto com a ética, um componente da filosofia prática [...] “é a
teoria da decisão de ajuda para planejar linhas de ação” (BUNGE, 2002, p. 292).
71 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP
de 13 mar. 2001 – Professor Alípio Casali: Ética da liberdade na idade da globalização e da exclusão – Enrique Dussel.
72 Idem.
73 Idem.
147
Percebe, Jairo, quanto tempo passado em aprender, pois foi no Mestrado
acadêmico que tive descortinado que “a vida é a fonte, o meio e o fim da ética”?.
Que “existem no ser humano as condições constitutivas” para essas aprendizagens
que, “[...] somadas aos temperos da própria vida, produzem os resultados da (com)
vivência com o meio”? O processo de produção e reprodução humana são, no limite,
o processo ético, Jairo (CASALI, 2001)74.
“O ser humano é programado para ser ético, portanto, para não ser antiético
precisa da racionalidade” (CASALI, 2001)75. Você, Jairo, fazia uso da racionalidade
quando não só entendia como atendia ao que eu lhe ditava, e como entendia de
gente adulta que, se ensina, é porque sabe. Sabe, não só aquilo que propõe a
ensinar, como também tudo o mais do que lhe relato agora.
Estas são razões indiscutíveis que me dão, hoje, a certeza de que a
concepção de ensino e aprendizagem que sustentava minha prática pedagógica
àquela época, não teria como sobreviver até aqui, tampouco satisfazer as exigências
da educação e da emergência de mudança que nos impõem a contemporaneidade.
Por isso, Jairo, a corrida atrás do conhecimento – a participação em inúmeros
cursos de aperfeiçoamento e especialização, seminários e congressos em
ambientes de trocas de experiências, partilhamento de vivências, estabelecimento
de parcerias, criação de laços, ampliação do repertório bibliográfico favorecedor de
um leque de aprendizagens teórico-conceituais, ricos momentos oferecidos nos
tempos da Faculdade de Pedagogia, de Administração Escolar e Supervisão de
Ensino, desenvolvimento de projetos da Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo, movimentos de formação continuada dos profissionais da educação básica
e, mais recentemente, como você sabe agora, os cursos de Mestrado e Doutorado.
Daí, a liberação da força interdisciplinar dada a conhecer por Fazenda (1999) deu
maturidade à condição existencial de eu ser “caçador de mim”, assim mesmo como
escrevem Sergio Magrão e Luiz Carlos Sá (1981) e como cantam e encantam, tanto
Simone, quanto Nascimento e o grupo Roupa Nova:
74
Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP de 13 mar. 2001 – Professor Alípio Casali: Ética da liberdade na idade da globalização e da exclusão – Enrique Dussel..
75 Idem.
148
Por tanto amor Por tanta emoção a vida me fez assim Doce ou atroz Manso ou feroz Eu caçador de mim Preso a canções Entregue a paixões Que nunca tiveram fim Vou me encontrar Longe do meu lugar Eu caçador de mim
Nada a temer senão O correr da luta Nada a fazer senão Esquecer o medo Abrir o peito à força Numa procura Fugir às armadilhas Da mata escura
Longe se vai Sonhando de mais Mas onde se chega assim Vou descobrir O que me faz sentir Eu caçador de mim
Esta é a condição explicativa do dinamismo que me levou a valer-me dessa
força para reconhecer a influência da pesquisa no processo de formação profissional
continuada, aqui referido, e na compreensão da relação de interdependência com o
ensino, como nos aponta Veiga (1993).
Sobre isso afirma a pesquisadora:
A tarefa principal e mais complexa do professor é garantir a unidade entre as relações: ensino e aprendizagem, ensino e pesquisa, conteúdo e forma, professor e aluno, teoria e prática, escola e sociedade, finalidades e objetivos. [...] cada uma delas, separadamente, não pode explicar e compreender a totalidade do processo de ensino (VEIGA, 1993, p. 82).
Tomemos o binômio ensino-pesquisa/pesquisa-ensino para o alcance da
compreensão da consequência de uma visão dicotômica sobre ele, a que forja o
repensar sobre a complementaridade que lhe é constitutiva.
Observemos o que Veiga (1993) afirma sobre essa complementaridade:
149
O ensino [...] tem como função primordial possibilitar aos alunos a apropriação e produção de conhecimentos. A pesquisa visa captar o não-conhecido da realidade e que precisa ser conhecido. Implica em tornar visível o que não se vê acerca da escola e da sala de aula. Desta forma, a pesquisa passa a estar mais voltada para a apreensão da organização e funcionamento da escola e da sala de aula já que [...] favorece a compreensão da função da escola e do papel do professor como sujeito de uma prática pedagógica que busca a democratização do ensino (VEIGA, 1993, in: OLIVEIRA, 1993, p. 85)
76.
A convicção da autora, Jairo, sobre a relevância da pesquisa e o valor da
postura da prática de pesquisar assumida pelo professor a leva a insistir que essa
prática “seja incorporada normalmente ao ensino”, levando o docente a ter clareza
sobre pesquisar o “que”, o “quando” e “quanto”; sobre o “como” ensinar a um
determinado tipo de clientela, e quais “as condições objetivas de trabalho e estudo
que a escola pode oferecer” (VEIGA, 1993, p. 86).
Não outro pesquisador que Fazenda (2003) há de ser aqui requerido para
dizer com precisão ímpar que “[...] aprender a fazer pesquisa, pesquisando, é
próprio de uma educação interdisciplinar, que a nosso ver deveria iniciar-se desde a
pré-escola” (FAZENDA, 2003, p. 73). Essa clareza, por seu turno, pode favorecer a
aproximação professor/aluno e revitalizar o envolvimento de ambos:
com as questões do ensino e da aprendizagem [...] refletir e contestar a realidade social e escolar [...] extrair os fundamentos teóricos necessários à criação de formas didáticas mais adequadas, a partir do exame concreto das situações de sala de aula [...] contribuir para uma ação mais consciente no que diz respeito às questões do ensinar e aprender... (VEIGA, 1993, p. 86).
Segundo Masetto (1994), quando a didática e a prática pedagógica refletem
sistematicamente sobre as questões próprias da escola e da sala de aula, abre-se
fértil espaço de possibilidades do encontro de respostas às perguntas sobre como
aprendem as crianças e os adolescentes, como é a atividade do professor em aula,
como os alunos se relacionam entre si e com o professor, qual é a influência do
poder público, das políticas educacionais estabelecidas e da sociedade sobre a
escola, como organizar o currículo da escola, o significado e o papel da avaliação
76
Ilma Passos Alencastro Veiga. A construção da didática numa perspectiva histórico-crítica de educação estudo introdutório. In: OLIVEIRA, M. R. N. S. (org.), Didática: ruptura, compromisso e pesquisa. Campinas/SP: Papirus, 1993. (Coleção magistério, formação e trabalho pedagógico).
150
escolar, como desenvolver a formação inicial e continuada dos professores, como
motivar os alunos à valorização da vida e da aprendizagem, e, sobretudo, quando
uma teoria pode ser considerada válida para resolver problemas do cotidiano da sala
de aula.
Como o autor, e peregrina do conhecimento, partilho das inúmeras verdades
sobre as buscas que habitam a música que dá início ao Capítulo 1 de sua obra e da
qual Masetto faz a transcrição literal, por mim repetida a ação:
Daquilo que eu sei77
Nem tudo me foi permitido Nem tudo me deu certeza; Daquilo que eu sei Nem tudo me foi possível Nem tudo foi concebido.
Não fechei os olhos, Não tapei os ouvidos. Cheirei, toquei, provei Ah! Eu usei todos os sentidos. (...) (MASETTO, 1994, p. 11).
Como já vimos, Jairo, a crise da educação brasileira, segundo Cortella (2000),
“[...] não é uma tragédia e sim, um drama e uma das fundamentais tarefas da
educação, se não a mais forte, é retirar das camadas populares a ideologia da
tragédia.”78
Opto, ainda, por apegar-me à premissa de Joel Martins, trazida por Cortella:
[...] “o existir humano é uma história que continua”, ao que Cortella (2000)
acrescenta: “O homem é um eterno construtor de sentido da existência [...] criador
de finalidades [...] um animal insatisfeito [...] inventor”79.
77
Daquilo que eu sei. Música de Ivan Lins e Vitor Martins.
78 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP,
27 mar. 2000.
79 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 28
fev. 2000.
151
Assim... “Existamos... criemos... inventemos formas de enfrentamento do
mundo e da natureza e de nos deixar, por ambos, ser enfrentados, até que
tenhamos claro o sentido da vida”80.
Portanto, conforme nos ensina Cortella (2000), vê-se que “Qualquer obra
humana é coletiva. Nenhum de nós é humano fora do coletivo” [...] “Você só
compara e reconhece identidade pela diferença” [...]. “A exemplo de Penélope à
espera de seu Ulisses teçamos e reteçamos nossa rede de conhecimento dia e noite
sem tomar a tarefa como tragédia ou drama, mas como obra” [...]. Recordemo-nos
de Paulo Freire: “A educação não pode tudo, mas, podendo alguma coisa, pode
muito” [...] e não nos esqueçamos, ela é “um bem ideal de cultura e como tal deve
ser franqueada a todos” [...] A utopia, então, é a de que “todos os homens se deem
as mãos e queiram reverter a luta homem/homem, substituindo-a pelo embate
homem/natureza em favor da vida com qualidade. Esta sim, uma luta que há de
contar por inteiro com as possibilidades da educação”81.
É óbvio, Jairo, que a utopia seguinte não seria outra senão a de desejarmos o
mergulho ousado nos “novos tempos e espaços escolares” dos quais nos fala
Aranha (2010) e tentarmos a ótica da superação da estrutura dominante das
escolas, criarmos o modo de trabalhar de forma eficaz o conteúdo escolar e
alargarmos os tempos-espaços de aprendizagens diversificadas.
Impossível qualquer desacordo com a afirmação de Maria Isabel Cunha a
esse respeito: “Somos ainda muito disciplinares, queremos construir conhecimento
dando sinal de cinquenta em cinquenta minutos” (CUNHA, apud HENGEMÜHLE,
2011, p. 183).
Por suplemento, lembra-nos Aranha (2010) que a gênese da burocracia e do
controle escolar, exacerbadas pela sôfrega competitividade de eficiência e eficácia e
da racionalização, está no processo de industrialização do país e na “consolidação
da sociedade capitalista” (p. 83). Esses fenômenos aumentaram “a demanda por
uma força de trabalho mais escolarizada”, fazendo emergir os grupos escolares de
então. Com eles, “[...] emergem o ensino seriado, a avaliação de final de ano, e toda
uma burocracia de controle escolar” (ARANHA, 2010, p. 83). Nesse ponto de suas
80
Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 13 mar 2000.
81 Idem.
152
defesas, Aranha toma Rodrigues (2001) para anunciar formas diversificadas de “[...]
enturmação e de organização do tempo escolar mais condizente com uma educação
enquanto processo de humanização, menos humilhante e desgastante para o aluno”
(RODRIGUES, 2001, apud ARANHA, 2010, s.p.).
O autor sugere como parâmetro “a enturmação baseada nos ciclos de vida
dos educandos”, acrescentando que:
[...] o seu desenvolvimento dá-se num processo contínuo, que podemos denominar CICLOS DE VIDA. Cada um desses ciclos apresenta características próprias do ponto de vista psicológico, biológico, moral, social. Educar integralmente alguém significa participar de sua formação, desde o ciclo de vida da criança, quando ela vive uma situação de dependência quase total dos adultos, até a sua plena estatura como sujeito autônomo, quando se torna capaz de dirigir a si mesmo, tanto no plano material, quanto no plano da vida cultural (RODRIGUES, 2001, p. 22, apud ARANHA, 2010, p. 84, grifo do autor).
Ao movimento de mudança de paradigma parece subjazer a forçosidade da
mudança de mentalidade como condição primeira e de múltiplas dimensões.
Assim é que aprendi a identificar relevâncias e irrelevâncias entre um terreno
já pronto para o plantio e um horizonte de possibilidades construtivas, entre um
campo minado por ideias cristalizadas e um espaço aberto a ser cultivado, entre a
visão fragmentada da realidade dada e o olhar redimensionado das inúmeras e
complexas realidades e culturas.
“Em camadas” (FAZENDA, 2013)82 fui me fazendo professora. Olhando para
mim mesma e olhando fundo, com o desejo de efetivamente ver o necessário e
urgente de ser visto, exercitando, pois, o olhar acurado, em busca da leitura e
releitura da totalidade do movimento da própria busca na qual não poupei
investimentos de ordem alguma.
Aprendi, então, a observar, a ouvir para escutar, a refletir e retomar a ação
refletida, a escrever de forma mais consistente, a trocar, registrar, comparar, avaliar,
82
“Em camadas”: como reitera Fazenda nas envolventes aulas e nos calorosos encontros do GEPI, cuja ambiência é dedicada às construções, desconstruções e reconstruções contínuas; a cada aula, a cada encontro um fervilhar de ideias, uma infinidade de trocas, de práticas, uma riqueza de sínteses interdisciplinares. Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 2013.
153
enfim, a analisar criticamente o movimento próprio do ofício de professor e do ato de
ensinar.
Olhei para mim durante todos esses anos, Jairo, e ainda olho concentrando a
atenção. Olhei para o outro quando me reconheci no meu eu, passei a olhar o outro
quando reuni as condições existenciais, intelectuais e espirituais para fazê-lo com
maior lucidez, maior prudência e com mais amorosidade, e hoje penso contar com
suportes de maior solidez para olhar e ver todo o ser humano que a mim se achega,
indistintamente.
Pelas inúmeras vezes que me fortaleci nas ideias de Arroyo (2000), hoje
tenho clareza de que:
O direito à educação e à cultura tem de superar a lógica do mercado e da sobrevivência. Devemos, sem dúvida, rever os conteúdos, readaptá-los ou ressignificá-los para a sua idade social, cultural, cognitiva mas sempre com o intuito de melhor garantir o seu direito ao saber e à cultura, e nunca com o intuito de repassar migalhas do saber, de dominar competências mínimas requeridas pelo mercado. O campo do mercado não é bom conselheiro para enfrentar problemas que tocam o campo dos direitos (ARROYO, 2000, p. 131, apud ARANHA, 2010, p. 78).
Fui, paulatinamente, a cada vivência e pelo exercício contínuo de reflexão e
ação na ação refletida, alargando espaços para virar a página da ingenuidade sobre
o ato político de educar. Pelo desapego ao culto e à prática da mesmice pedagógica,
caminhei até alcançar a lucidez necessária para ordenar aos meus pés que
refizessem as trilhas de pesquisadores, expoentes reconhecidos no país e
mundialmente, a fim de que alicerçassem a construção do meu ser-professora.
Ordenei ao meu pensamento que voltasse para si mesmo para favorecer-me
“agir sobre a realidade na realidade, via de acesso para pensar e fazer ciência em
função dos conhecimentos verdadeiros e dos que realmente importam. Isso graças
aos procedimentos rigorosos do pensamento, da atitude filosófica para dizer-me da
essência, da significação e da origem de todas as coisas – o que é, como é, porque
é, ou seja, a explicitação inequívoca da dialética das relações homem/mundo,
homem homem, homem trabalho, homem cultura”, como menciona Cortella (2000)83.
83
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP. 13 mar. 2000.
154
É Chauí (1997) quem acorda com o pensamento de Cortella (2000), ao
afirmar que o mundo existe antes do homem; no entanto, é o homem que, frente à
destinação de viver e conviver no mundo e com o mundo, se constrói sujeito do
conhecimento pela exigência existencial de compreender e dar sentido a esse
mesmo mundo existente antes dele.
Portanto, se quisermos conhecer de fato a tessitura da realidade vivida,
teremos que interpenetrar no seu tecido conjuntivo, retomando-a na perspectiva
crítico-reflexiva, privilegiado o enfoque globalizador e assumindo a forma indagativa
inegociável para esse fim.
Assim é que, Jairo, somente hoje e pelo desapego à ótica estritamente
disciplinar eu posso entender da fusão entre o ensinante e o ensinado sobremaneira
confusa naquele fato pedagógico, dado que o EU que eu lhe ditava entrava pelos
seus sentidos molhado de respeito e emoção e, por isso, o impedia de se revelar
leitor, não só da palavra dita oralmente, mas sobretudo de mim mesma. Você me via
e me desenhava com as letras as quais conhecia verdadeiramente, via-me, vendo o
tamanho do equívoco epistemológico em que eu incorria. Você viu e se deixou ver;
cega, eu nem vi nem me deixei ver. Aliás, percebia, mas não lhe captava o sentido
das grossas lágrimas que molhavam suas faces e que, mais que doídas, lhe
imputavam um sentimento de culpa que não lhe cabia absolutamente, sentimento
aquele gerado pela suposta incapacidade de se fazer entender para a admirada
“professorinha”, como de forma carinhosa a comunidade ribeirinha costumava me
chamar, como já vimos no diálogo com a sua pobre mãe.
Ocorre, meu pequeno-grande cidadão, que apesar de tudo trouxera comigo,
desde os tempos da Escola Normal, que a educação precisa muito das habilidades,
capacidades e competências intelectuais do professor, mas não sobrevive sem a
simplicidade, a ética e a lealdade à vida própria e a de outrem. Acho até que esse
princípio é nascido no berço por força do olhar a vida que tem a minha mãe até hoje,
às voltas com a velhice inexorável.
Em função da construção das competências requeridas e da busca de
coerência na vida pessoal e profissional é que persegui o conhecimento como
peregrina dele. Percorri o caminho das pedras e o da ponte. Para, enfim, do
conhecimento comum chegar à consciência filosófica até aproximar o limite
possível ao limite desejável do conhecimento científico, do otimismo ingênuo
155
escolanovista84-85 ao olhar crítico-reflexivo indagador da teoria pensada sobre a
prática e vivenciada na prática docente.
Corri mundos dantes nunca pensados, atrás do conhecimento ao qual nesta
história de vida faço referência, e retomo os fios e as teias que a teceram no
passado para que, no presente, com maior propriedade possa içar as redes
contributivas do futuro da educação das novas gerações do século XXI.
Não foi em vão que aquela experiência transformou-se na minha tese de
educação, se não fora sempre a própria, pois que nascida da inquietude em sentir
que algo mais era requerido de se fazer. Era preciso ser pensado e criado e com a
emergência que a própria experiência explicitava, abrigada no interior da espera
“vigiada”, decorrido o período de 1968-2014 de seu evento.
Aquele, Jairo, foi o mais importante dos paradoxos vivenciados por mim
durante toda a carreira do magistério – você, uma criança simples, submissa aos
comandos dos adultos e dos mais fortes, atada pela baixa estima, a quem me
incumbia ensinar, faz isso por mim e de uma forma resiliente, amorosa e resignada.
Uma presença-resposta permanentemente posta em jogo conflituoso de um maroto
esconde-esconde passado-presente-futuro, tempos e contratempos que me fizeram
reconhecer, entre o difuso e a clarividência, a gênese do meu desconhecimento da
língua e de sua função sociopolítica e humanizadora.
Como Japiassu (2012), eu diria que as transformações sucessivas do meu
pensar a educação e o ensino se deram pelas compreensões progressivas ou em
camadas, no reiterado dizer de Fazenda (2003), pelas contradições e ambiguidades,
pelo desvelamento do imaginário difuso sobre o meu saber disciplinar alfabetizador,
84
Na década de 1920 a efervescência na educação eclodia. “O professor Jorge Nagle considera característica dos anos 20 ‘o entusiasmo pela educação’ e o ‘otimismo pedagógico’... educadores da escola nova (grifo da autora) introduzem o pensamento liberal democrático, defendendo a escola pública para todos, a fim de se alcançar uma sociedade igualitária e sem privilégios [...] Dentre os escolanovistas, é notável a contribuição do filósofo Anísio Teixeira (1900-1971). Outro nome importante é o de Fernando de Azevedo (1894-1974), sociólogo que sofreu influência também de Durkhein. Ao lado de Lourenço Filho (1897-1970), participa dos movimentos de reforma do ensino e encabeça os documentos de 1932 – Manifesto dos Pioneiros [...] documento que defende a educação obrigatória, pública, gratuita e leiga como um dever do Estado a ser implantada em programa de âmbito nacional. [...] Educadores como Lourenço Filho, Almeida Júnior, Hermes Lima e Frota Pessoa trazem influência renovadora, apoiados em pedagogias como as de Kilpatrick, Decroly e Kerschensteiner” (ARANHA, 1996, p. 198).
85 Escola ativa. Pedagogia. Sistema pedagógico que se baseia na íntima correspondência entre o
físico e o psíquico e na participação ativa da criança, opondo-se aos métodos tradicionais de valores intelectuais e disciplinares (FERREIRA, 2004, p. 791).
156
até alcançar maior maturidade intelectual e, hoje, captar o fenômeno educativo
numa camada superior de compreensão.
Comecei com você, Jairo, e continuei a jornada de permanente aprendiz
amparada nos referenciais de pesquisadores e estudiosos cujo projeto de
construção da ciência tem a urdidura nos fios da trama da própria vida e nos quais
acosto a fundamentação teórica deste trabalho.
Ao ensiná-lo a ler e escrever, todos os referenciais eleitos hoje indicam-me
que iniciei a jornada caracterizada pelo movimento dinâmico e dialético do recomeço
do círculo virtuoso em 1968. De lá para cá, venho aprendendo que a disciplina
considerada e tratada em si mesma enverga sintonia com a demarcação de território
exclusivo, sequestrando a vitalidade e a liquidez que lhes são próprias e se
constituindo em elemento impeditivo do diálogo e do realinhamento com a forma de
pensar, sentir e agir interdisciplinares, constituindo-se obstáculo à internalização da
circularidade e à exteriorização da articulação específica de cada uma das
disciplinas integrantes dos currículos oficiais da educação básica do país.
Demarcado e interditado o território da disciplina, apresenta-se enfraquecida a
sua capacidade intrínseca de reverberação do conhecimento elaborado pela
humanidade que, uma vez tornado próprio também da escola, é o responsável direto
pela formação de crianças, jovens e adultos da escola básica brasileira.
Ademais, o ensino pautado na ótica essencialmente disciplinar que privilegia
o culto do eu individualista e competitivo parece subtrair do educando a
compreensão plena do objeto tomado por estudo, minimizada a relevância político-
pedagógica e sociocultural do objeto a ser apreendido e aprendido – o por quê (?),
para quê (?), a favor de quê (?), contra o quê (?) e contra quem (?). Noutras
palavras, a ligação do objeto com o mundo real e com aquilo que a escola emprega
esforços para fazer o estudante acreditar ser útil ou relevante para sua vida dentro e
fora dela.
Privilegiada a pedagogia da pergunta invariavelmente formulada pelo
professor, pronta e acabada, pois desacompanhada de desafios e provocações do
desejo de buscar respostas coerentes pelo aluno. Grande parte dos sujeitos que
aprendem não encontram, na escola, condições inteligíveis para efetivamente
aprender e, mesmo as encontrando, elas podem não ser reconhecidas pelos sujeitos
157
que ensinam, fato este que acaba por minar as próprias condições que poderiam
potencializar o ato pedagógico. Mesmo preparado, do ponto de vista da realidade
social e política e senhor do domínio dos conteúdos que ensina, o professor pode
deixar-se envolver pela relação horizontal sujeito-objeto-sujeito (S-O-S) e sofrer as
lancetadas das intervenções pedagógicas unidirecionadas e que não estão a salvo
de punir individualmente quaisquer dos alunos.
Do que dou testemunho posso entender como razoável aproximá-lo
novamente ao pensamento foucaulniano que nos explica sobre “a vontade de saber”
surgida sobretudo na sociedade inglesa, entre os séculos XVI e XVII, que “impunha
ao sujeito cognoscente” (e de certa forma antes de qualquer experiência) certa
posição, certo olhar e certa função (ver, em vez de ler, verificar, em vez de
comentar) (FOUCAULT, 2008, p. 16). Uma vontade que entendi como que
camuflada nas “práticas como a pedagogia” e refletida nos livros, no sistema de
edição, nas bibliotecas e laboratórios, de maneira coerciva, como sugere o autor.
Para melhor dizer desse olhar, faço a transcrição literal de um princípio
cultivado pelos antigos gregos, resgatado por Foucault (2008). Ele afirma:
[...] que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade (FOUCAULT, 2008, p. 18).
Mas foi com Fazenda, Jairo, que em 1982, na Fundação para o
Desenvolvimento da Educação86, quando a ouvi pela primeira vez, permiti-me
acreditar que os sonhos não envelhecem. Por causa disso eu posso, hoje, contar
sobre os caminhos e descaminhos, dos modos e da falta deles, pelos quais me
experimentei até compor uma nova canção – ouça-a, a distância, por favor, e mais
86
Fundação para o Desenvolvimento da Educação – Órgão da Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo incumbido, entre outros encargos, da formação continuada dos professores e especialistas da Rede Estadual de Ensino. A efervescência do processo formativo deu-se, sobretudo na década de 80, época em que a autora deste trabalho exercia o cargo efetivo de Supervisora de Ensino, na Delegacia de Ensino de Votorantim/SP. Na década de 90, o processo formativo foi descentralizado para as Divisões Regionais de Ensino, com a criação e instalação dos Centros de Aperfeiçoamento de Recursos Humanos – CARH. O CARH de São José dos Campos, entre outros profissionais, tinha a coordenação dos eventos de formação sob a responsabilidade da Professora Doutora Ana Maria dos Reis Taino.
158
uma vez contribua com o meu esforço para aprender sempre, pois só mesmo a
humildade pode contar o real tamanho da pessoa.
Você, meu caro aluno, me pôs na estrada do visível e do viável das minhas
próprias buscas, dos horizontes ainda não divisados àquela época e que, anos mais
tarde, foram descortinados por Fazenda (2001a), que me sinalizou a “[...] trilha
interdisciplinar que caminha do ator ao autor de uma história vivida, de uma ação
consciente exercida a uma elaboração teórica arduamente construída” (FAZENDA,
2001a, p. 15). Ela me ensinou com a necessária paciência–impaciente a falar do
vivido que não é falar de algo imaterial, porquanto o vivido só encontra efetividade
na esfera da materialidade no instante mesmo de sua ocorrência e no sujeito, este
sim, o ser histórico-cultural por condição humano-existencial.
Na impossibilidade de um ponto final, registro parte das reflexões,
experiências e vivências resgatadas de 1968 até aqui, pondo-me na espera “vigiada”
até me assenhorar mais da ciência. Por ora, reporto-me à citação de Capelletti
(2000), oportunidade em que a pesquisadora retoma um dos tópicos do paradigma
emergente de Boaventura de Souza Santos, para dizer que [...] “a gente deve fazer
um esforço prudente para viver uma vida decente”.87
Reitero o respaldo teórico em Foucault (2008), para amparar “minha prática
de confissão” (p. 61) e dizer-lhe, Jairo, que estas são as razões mais caras que me
fazem, hoje, assumi-lo como a minha tese de ciência e de existência; que me
impulsiona para o questionamento de “minha vontade de verdade”; que restituí ao
discurso atual o “caráter de acontecimento”, deixando em suspenso “a soberania do
significante” (p. 51). E esta continuará sendo a minha busca ininterrupta pelas
“significações ocultas” (p. 54), “a forma e o paradoxo da repetição” (p. 75). Não
cessarei de atar e desatar esses laços. Veio de você o “sentido e a possibilidade do
que faço” (p. 75), o esclarecimento por inteiro daquilo que, às cegas, eu fazia. Sou-
lhe infinita devedora. Você habita o meu ser.
Desde 1968, eu desconfiava de que, “se não há suspeita, não há ciência. Não
havendo ciência, é dogma”88, como me confirmou Cortella (2000) a exatos trinta e
87
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 21 mar. 2000.
88 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP,
em 03 abr. 2000.
159
dois anos depois de você, Jairo. Porque das implicações do olhar estritamente
disciplinar na organização arbitrária e na execução abstrata do currículo prescritivo,
o qual, no seu entendimento, busca o ajuste e a afinação com a didática normativa,
produzem-se a “sintaxe da escola” e a “gramática da sala de aula”, ambas apegadas
às marcas do tradicionalismo pedagógico.
É Cordeiro (2007) o autor desses dois conceitos aplicados à escola e à sala
de aula, por tão bem, segundo ele, refletirem as características organizacionais da
escola tradicional positivista e a forma cartesiana de pensá-la, restadas até hoje,
desde os séculos XVI e XVII e acompanhadas de sua expansão em meados do
século XVIII.
Para o didata brasileiro e professor da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP), essas características explicitam semelhanças
que fazem a escola reconhecida, em qualquer parte do planeta, pela uniformização
dos modos operacionais de funcionamento, tais como:
forma de organização curricular adotada;
modelo hegemônico dos sistemas de ensino;
estruturação física dos prédios escolares, sobretudo no aspecto estético e
físico;
distribuição fragmentada de matérias, cursos, horários;
escalonamento e graus de excelência no ensino e na avaliação;
agrupamentos não flexibilizados de turmas de alunos;
controle rígido das mentes e dos corpos;
exclusividade e supremacia de determinadas áreas do conhecimento em
detrimento de outras;
controle estatal das escolas;
planos de ensino e de aula burocratizados;
mecanismos de controle da produção e da avaliação escolares;
seleção arbitrária de livros, manuais escolares e outros reforços didáticos;
ensino propedêutico e aprendizagem mecânica dos estudantes;
160
formação aligeirada do profissional da educação;
mecanismos seletivos de acesso e de efetivo exercício do ofício de
professor;
busca desenfreada da eficiência e da eficácia nos moldes empresariais,
entre inúmeras outras similaridades formais próprias da escolarização
básica de massas.
Aponta Cordeiro (2007), a esse respeito, que no Brasil esse processo
massificador da educação e do ensino representa um dos fatores de fragilidade dos
níveis de alfabetização, sobretudo da população em idade escolar.
A respeito desse dramático quadro oriundo dos pensamentos e das ações
cristalizadas, o autor assim se expressa:
É como se houvesse um determinado arranjo obrigatório, como acontece numa frase sintaticamente bem estruturada, com sujeito, verbo e predicado. A ideia desses autores é que, embora haja algumas variações superficiais, a sintaxe da escola, essa gramática, por assim dizer, é praticamente invariável, tanto no tempo quanto no espaço (CORDEIRO, 2007, p. 15).
No “arranjo obrigatório” a que se refere Cordeiro (2007) parece habitar a ideia
de que, se é único o professor, se as matérias e os seus respectivos conteúdos são
os mesmos e ensinados a todos os alunos a um só tempo, não há razão para
qualquer tipo de suspeita, não há espaço para desconfiar da inverdade da suposta
homogeneidade de sujeitos, de saberes e de práticas na sala de aula.
Logo, não há razão nem espaço para refletir sobre a diversidade e sobre as
diferentes dimensões do aprender e, sobretudo, para contrapor-se ao alinhamento
da única forma de ver o conhecimento e sua produção. Não há por que intuir sobre a
possibilidade do divergente e do contraditório, ou até mesmo de pontos de vistas
diferentes.
Daí o fato de grande parte dos professores ainda aprisionar o pensamento
dos alunos nos limites do seu próprio pensamento, da sua forma peculiar de ver e de
ouvir o mundo e com ele interagir, como se esses limites fossem o ethos das
verdades, desconsiderando, portanto, as verdades dos sujeitos aprendentes a eles
confiados à mediação na ação de aprender.
161
Por uma questão de comodismo ou de apego à chamada zona de conforto, o
professor insiste, no ato pedagógico, que o aluno veja o que ele mesmo vê e
também na ordem e na sequência com que vê, nem que para tanto lhe seja forjada a
incorrência no “erro disciplinado” tratado por Foucault e abordado neste trabalho.
São incontáveis os impasses originados dessa forma de ser, pensar e agir na
sala de aula – professor e aluno, “cada qual em seu canto e em cada canto uma
dor”89, cada um com a sua ótica impondo, a cada qual, o seu ponto de vista, às
vezes divergente, outras vezes essencialmente antagônico, podendo gerar conflitos
de proporções inimagináveis que distanciam sobremaneira as possibilidades de
resolução.
[...] Hábitos, valores e atitudes sociais deixam de ser consideradas integrantes básicos da personalidade humana. Em seu lugar uma massa de conteúdos disformes que o professor aprendeu num livro-texto (usado como “bíblia”) e a exploração de exercícios padronizados que têm conduzido o aluno à reprodução parcial do aspecto particular de uma verdade relativa (FAZENDA, 2003, p. 61, grifo do autor).
Nesse sentido, a autora aponta para que o ensino, independente da disciplina
em que se liga,
deve procurar cultivar valores, atitudes e hábitos que libertem o indivíduo do isolamento cultural ao qual a civilização atual o condenou [...] deve plantar a “semente” do futuro pesquisador e de cidadão que luta por seus direitos e deveres, enfim por sua liberdade (FAZENDA, 2003, p. 61, grifo do autor).
Daquela prática pedagógica, Jairo, o que se pode colher é a fragmentação da
realidade no âmbito da proposta e da ação, é a amputação de culpa ao professor
e/ou à criança pelo fracasso escolar, é a insatisfação de expectativas não
confirmadas de alunos ávidos por aprender. E como sua mãe, Jairo, que acreditava
na escola enquanto instrumento determinante de mudança social, e dela, do que
buscava colheu só parcialidades, a exemplo do quadro descrito por Fazenda (2003).
Um desses impasses é gerado pelo não acolhimento da condição de
inconclusividade do ser humano movido pela necessidade de sempre saber tudo de
tudo, de sempre pensar-se acima de qualquer suspeita e dono das verdades
89
Estrofe da música: A Banda - Letra e música de Chico Buarque de Holanda.
162
absolutas. Isso, na docência, na produção e legitimação do conhecimento produzido,
representa sério e perverso entrave à apropriação desse conhecimento pelos alunos
e, por conseguinte, ao seu desenvolvimento integral, bem como à conquista da
cidadania plena.
A visão rigorosamente disciplinar não permite enxergar o que vê, o outro;
captar a forma com que pensa o outro, inviabiliza o entrecruzamento de olhares
díspares, instrumentos estes construtores do olhar interdisciplinar!
Na individualidade, no isolamento e na percepção difusa da realidade, não é
possível intuir sobre os resultados efetivos decorrentes da amplitude e da
abrangência desse olhar.
O olhar interdisciplinar é de cuidado. De cuidado consigo mesmo, com o
outro, com o ambiente, com o conhecimento e com suas formas de produção
humana. É um olhar que favorece o ouvir/escutar e, inclusive, a compreensão de
que não há interdisciplinaridade senão em relação de reciprocidade e de
complementaridade com a disciplina, e esta, se não vitalizada pela
interdisciplinaridade, esvazia-se, autoesteriliza-se e, se não morrer por inação, pode
morrer por inanição.
Sobre o conceito de inação, Bunge (2002) assim explicita o seu
entendimento:
A ausência de ação [...] a inação é má somente quando a ação é exigida. A inação é boa quando o melhor é deixar um processo benéfico entregue a si mesmo porque uma intervenção poderia desviar ou até deter o seu curso. A inação também é desejável quando não temos fundamentos sólidos para intervir de maneira racional com alguma probabilidade de êxito. Entretanto, o conceito de inação está ausente da maior parte das teorias da ação (BUNGE, 2002, p. 189).
Por seu turno, Ferreira (2004) assim define o termo inanição, aqui empregado
para dizer do “enfraquecimento extremo por falta de alimentação”, proveniente
daquilo que é “vazio, oco”, [...] “as características dominantes em vários desses
professores eram a palavra copiosa”, [...] “o intumescimento inane da ideia”
(HOMERO PIRES; JUNQUEIRA FREIRE, p. 192, apud FERREIRA, 2004, p. 1085,
grifo do autor).
163
Neste ponto das reflexões, tomo o artigo de Vitória Kachar (2001)90 sobre a
metáfora ponte, para dizer do olhar interdisciplinar na formação do professor
interdisciplinar.
Sobre essa formação, Kachar (2001) defende que:
O professor interdisciplinar visita situações novas e revisita velhas, transita entre os fragmentos da história e a memória educacional, faz elos, tece sua prática a cada dia. Ele faz ponte, oferece ao educando acesso ao conhecer, permite que ele passe, para um estado mais elevado de ser; para além do que é, superando-se. Propicia o encontro do outro, não só com o conhecimento, mas consigo mesmo, o encontrar-se. Precisamos do outro para sabermos de nós mesmos. Compete ao educador fornecer instrumentos ao aluno, construir seu caminho para o aprender e para a vida, tornando-o mais consciente de suas potencialidades e dos limites a serem enfrentados e superados (KACHAR, 2001, in: FAZENDA, 2001a, p. 77).
E de forma apropriada complementa sua defesa:
O professor construtor de pontes cria condição para a aprendizagem, num ambiente de multiplicação e de associação na relação entre o pensar individual e o coletivo, conhecer e ser, subjetivo e objetivo, teoria e prática, velho e novo. [...] instiga a complementaridade e o movimento contínuo de renovação da vida no sujeito. Como ritual de passagem, a ponte leva ao renascimento constante, desencadeando a transformação (KACHAR, 2001, in: FAZENDA, 2001a, p. 77-78).
De outra feita, trabalho com o artigo de Lucila M. P. Oliveira91 (2001, in:
FAZENDA, 2001a, p. 217) que problematiza sobre qual tem sido o olhar dos
formadores dos professores e que levanta a questão se as políticas de formação
estão, de fato, formando o professor reflexivo. Se o olhar dos formadores tem olhado
para o olhar plural dos educadores e para seus esquemas de representação das
novas tecnologias digitais de informação e comunicação, bem como para os
arranhões de seus usos e incorporações nas práticas docentes.
Acostando suas reflexões ao princípio interdisciplinar da coerência, a autora
procede à formulação sobre o uso dos recursos midiáticos, para verificar se eles têm
90
Vitória Kachar. Ponte. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
91 Lucilia M. Pesce de Oliveira. Olhar. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção:
Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
164
resultado na ressignificação do ensino, no favorecimento da aprendizagem
significativa. Enfim, sobre as mídias e hipermídias, verificar qual tem sido a
bricolagem, pois este é o foco de sua atenção.
A respeito dos formandos Oliveira aponta para o questionamento sobre o
olhar perceptivo que eles têm tido sobre si mesmos e sobre a auto-organização
evolutiva dos formadores e deles próprios, “acerca das novas tecnologias na
educação” (OLIVEIRA, in: FAZENDA, 2001a, p. 218)92.
É marcante o pensamento de Oliveira (2001) sobre a relevância da visão na
percepção do mundo, e assim se expressa, para bem dizer que:
É, sobretudo pelo olhar que se constrói a cosmovisão; é pelo olhar que o sujeito ergue-se como realizador de sua própria história, como construtor de um novo mundo. E é com esse mesmo olhar que se deve atentar para os educadores, num momento tão particular como o da apropriação do instrumental tecnológico e incorporação do mesmo à renovação de sua própria prática pedagógica (OLIVEIRA, in: FAZENDA, 2001a, p. 217).
O olhar interdisciplinar, segundo Fazenda (2013), ocorre “em camadas”.
Primeiramente, o redimensionamento do próprio olhar do pesquisador, depois o
(re)olhar o olhar do outro ou dos diversos olhares dos muitos outros – teóricos, pares
de jornada, superiores hierárquicos e tantos outros sujeitos envolvidos na trama93.
Valendo-me do olhar poético de Drummond, faço a narrativa do retorno ao
vivido:
Eu tropeço no possível Eu não desisto de fazer A descoberta do que tem Dentro da casca do impossível. (Carlos Drummond de Andrade)
92
Lucilia M. Pesce de Oliveira. Olhar. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
93 Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP,
2013.
165
Parafraseando o olhar poético de Drummond, acrescento:
Eu tropeço (mas não caio) no possível Eu não desisto (nunca) de fazer A descoberta (e a apropriação) do que tem Dentro (e fora, ao lado, abaixo, acima...) da casca do impossível.
(Carlos Drummond de Andrade, adaptado pela pesquisadora)
Hoje reconheço, Jairo, eu que nunca de nada desisti, desisti de você! Foi o
medo... a insegurança... só o que eu não tinha claro na consciência é que desisti de
você para não ter que desistir de mim. Sendo eu a professora, como não
compreender o seu olhar? Por que não olhei para dentro da casca do impossível?
Se olhasse, será que eu não teria visto o quanto afeto havia no seu olhar? Que o
seu EU, era eu? ...
E isso mudaria muita coisa, não é Jairo? Talvez você nem tivesse ido embora
da escola... Talvez não restasse nenhuma carteira vazia...
166
4 OS CAMINHOS APRENDENTES DA ALFABETIZAÇÃO: Pedaços
significativos da história de vida e formação da pesquisadora
Se Eva ou vovô viu a uva, não importa! O que importa é que isso só não basta! É preciso muito mais além disso. É preciso compreender porque a uva não chega à mesa de milhares de brasileiros; compreender as características e os problemas reais dos contextos sócio-político-econômicos e culturais em que vivem os Vovôs e as Evas que apenas veem a uva. Compreender, o que provoca essa situação!... Esse é o conhecimento que, de fato, importa, na alfabetização!
(Odila Amélia Veiga França)
Coerente com a vida que eu mesma dava à ousadia e que sempre me fora
internalizada, um importante olhar fez com que o meu olhar primeiro, ao mesmo
tempo, intuitivo e errante, vislumbrasse os demarcadores do aprofundamento
teórico-conceitual e metodológico que se revelavam necessários no campo da
alfabetização – sem dúvida, o olhar do linguista-pesquisador Luiz Carlos Cagliari, da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP). E assim começa essa
história!...
Rumo às férias de julho do ano letivo de 1970, eu alimentava a ideia de gozá-
las junto aos familiares dos quais me consumia a saudade. Afinal, não os via desde
o início das aulas do mês de fevereiro. Antes, porém, incumbia-me participar da
Reunião de Encerramento do Semestre94 e, na oportunidade, cumprir com a entrega
da Documentação Escolar de Rotina95 ao então Inspetor Escolar, hoje denominado
Supervisor de Ensino. Só depois de enfrentada a aridez da tarefa seria possível
pensar na volta para casa e finalmente desfrutar das delícias do lar doce lar!
Mas eis que o meu olhar curioso deteve-se num exemplar do Diário Oficial do
Estado de São Paulo (DOE), por certo deixado às soltas e esquecido aberto, por
algum desavisado, sobre a mesa do Diretor.
94
A alusão refere-se à costumeira reunião de final de semestre que era realizada no então Grupo Escolar, instância administrativa que sediava o comando regional das Escolas de Emergência e Escolas Agrupadas localizadas na zona rural dos municípios da área de abrangência de determinada Delegacia de Ensino (hoje, denominada Divisão Regional).
95 A documentação escolar compunha-se de um exército manuscrito de relatórios, atas, resumos e
justificativas em duas vias, o que requeria o uso de papel carbono. Notas e médias aritméticas e ponderadas que supostamente mediam o aproveitamento escolar dos alunos ao final de cada semestre letivo. Somavam-se à parafernália de papéis os boletins, os mapas e gráficos dos resultados finais da avaliação dos alunos.
167
Parênteses, para dizer do controle e da racionalidade técnica que
caracterizava o pensamento e as ações dos profissionais do alto comando naquele
contexto: à época, a consulta ao DOE era da alçada exclusiva do Diretor da Escola e
de seus assessores diretos, portanto leitura terminantemente proibida a qualquer
outro servidor ou usuário da escola, sobretudo ao professor iniciante não titular de
cargo por condição funcional – a exata função exercida por mim naquele início de
carreira: substituta eventual.
Naquele momento decidi pela transgressão às disposições do Diretor da
Escola sobre o proibitivo do DOE, pois o meu olhar “caçador de mim” foi tragado
pela sedutora manchete que anunciava um encontro de alfabetizadores na
Universidade Estadual de Campinas, cujo palestrante não era outro senão o
eminente professor Luiz Carlos Cagliari.
Impelida pelo desejo de saber mais a respeito do encontro anunciado, incorri
no ato da “infidelidade administrativa”96 do qual o significado político-pedagógico me
fora plantado na consciência passadas três décadas do ocorrido. Li o DOE, mesmo
sem a autorização do Diretor.
O episódio faz aqui reportar-me a um dos pontos marcantes da fala de
Boaventura de Souza Santos (2000), para com ele partilhar da ideia de que “as
ausências estão nas tradições marginalizadas”, a meu ver, geradoras das “ações
conformistas e das ações rebeldes”97.
Com alguma margem de acerto, posso declarar-me sujeito das “ações
rebeldes” que, se não justificam, ao menos descrever atos de transgressão.
Vejamos.
Ao adentrar sua sala e flagrar-me com o Diário Oficial nas mãos em pleno
gozo da leitura, o Diretor esbravejou comigo para além do que a aparente
96
Infidelidade administrativa: expressão empregada pelo professor Licínio Lima em Palestra proferida na PUC/SP em 19 abr. 2000, a meu ver, para explicar que a escola como organização administrativa guia-se pelas teorias de administração cujas raízes estão no modelo teórico empresarial: “[...] um lugar quase invisível dentro dos estudos e pesquisas”, “[...] a escola tem estado entre a espada e a parede... nunca se estudou a ESCOLA com e minúsculo, “[...] a escola brasileira, se é que existe” [...]. As perspectivas macro impediam a valorização dos atores da escola; a microssociologia, as relações pedagógicas entre professores e alunos e entre os poderes constituídos da escola”.
97 Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP,
Palestra proferida pelo Professor Boaventura de Souza Santos, em 08 mai. 2000.
168
desobediência pudesse significar e, com um pouco mais de poder, ele teria me
ceifado o direito às férias. O que valia naquele incidente não era o que eu desejava
saber e fazer, e sim concretizar a intenção de punir-me para que eu “aprendesse a
lição e não o desobedecesse jamais”.
É possível aceitar a referência feita à Boaventura ligada ao mesmo cunho
político-ideológico com a ingerência administrativa vivenciada por mim na leitura
atrevida daquele então fascinante Diário Oficial.
Se intercruzadas as referências de Boaventura (08 mai. 2000) à de Licínio
Lima (19 abr. 2000)98, podemos afirmar que ambas buscam espaço de afirmação de
que a mais grave deficiência de um sistema educacional repressor está na falta de
oportunidade sofrida pelos sujeitos que, via de regra, sentem-se acorrentados
invariavelmente à ingerência e ao autoritarismo dos seus comandantes.
Isso é fato, pois o que mais me intrigou naquela proibição descabida não foi a
proibição em si, mas sobretudo a concepção de que subalternos não encontrariam
naquele veículo de transmissão de informação impresso absolutamente nada que
pudesse lhes interessar ou que lhes dissesse respeito e, caso encontrassem algum
textos dessa natureza, dificilmente contariam com a proficiência leitora necessária
para dele apropriar-se compreensivamente.
Talvez tenha sido ali e naquele dramático momento em que eu, considerada
culpada pelo Diretor, porém sentindo-me vitimada por ele, tenha iniciado o processo
de autodesenvolvimento da individualidade identitária e intuído com maior vigor que
aquilo que é possível e desejável de se fazer é também dever de se fazer, ainda que
para tanto se enfrente o risco da repressão.
Sobre isso, Freire (1999) aponta que a mentalidade repressora admite que:
[...] castigo duro é aquele que faz a gente dura, capaz de enfrentar a crueza da vida. Pancada é que faz o homem macho. [...] Era como se família e escola, completamente subjugadas ao contexto maior da sociedade global nada pudessem fazer a não ser reproduzir a ideologia autoritária (FREIRE, 1999, p. 22).
98
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, Palestra proferida pelo Professor Licínio Lima, em 19 abr. 2000.
169
Graças a Fazenda (2001a), esta é “uma história que já adquiriu o conforto do
tempo”99, o tempo fundante a que complementa Freire (1999):
[...] pedaços de tempo que, de fato, se achavam em mim, desde quando os vivi, à espera do outro tempo, que até poderia não ter vivido como veio, em que aqueles se alongassem na composição da trama maior (FREIRE, 1999, p. 19). [...] às vezes, nós é que não percebemos o “parentesco” entre os tempos vividos e perdemos assim a possibilidade de “soldar” conhecimentos desligados e, ao fazê-lo, iluminar com os segundos, a precária claridade dos primeiros (FREIRE, 1999, p. 19, grifo do autor).
E finaliza: “[...] a educação e a escola: o tempo delas, o tempo que elas não
têm; o tempo que elas não respeitam; o tempo que elas menosprezam ou não
percebem” (FREIRE, 1999, p. 19).
E foi reconhecendo o tempo de saber e de fazer que a expectativa do gozo
das férias de julho daquele ano foi prazerosamente substituída pela vontade política
de participar do encontro de alfabetizadores informado pelo DOE. Pensava com
meus botões que, sendo de Sorocaba, havia de ser aceita no grupo de professores
convocados e convidados para o evento, ainda que minha figura fosse estranha à
equipe regional carpineira.
Em casa, mal abracei os meus e já rumei para Campinas, logrando sucesso
na realização da almejada participação no evento formativo.
4.1 O encontro com Cagliari no ano de 1970
E a participação100
ativa propiciou-me nova vivência, de novo, inusitada e atrevida, para construção de conhecimento novo...
(Odila Amélia Veiga França)
99
Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 20 mar. 2001.
100 Registro aqui que toda narrativa que intenta retratar minha participação ativa e os conhecimentos
construídores no encontro com o Professor Cagliari (1970), sustenta-se nos guardados escritos desta pesquisadora, que, naquela oportunidade, atenta e curiosa, procurou dar conta de um registro que assegurasse a limpidez e a essência do pensamento do palestrante. Há que se dizer que na década de 70 a exemplo das novas teorias educacionais, os recursos tecnológicos com os quais hoje podemos contar, nem eram cogitados.
170
Assim é que ele (Professor Cagliari) ficou sabendo que nas escolas rurais de
emergência as classes eram multisseriadas101, com recursos de toda ordem
perversamente escassos, a merenda escolar pobre e preparada com água tirada do
poço pela professora, que era engenheiro, mestre de obras e pedreiro, ao mesmo
tempo. E ficou sabendo também das crianças em grande parte acometidas pelas
doenças típicas da falta de saneamento básico e carências alimentares, do
isolamento da comunidade local, causado, entre outras razões, pela localização
geográfica distante do acanhado centro urbano, da ideologia do livro didático
imposto ao professor e ao aluno e, sobretudo da hegemonia do paradigma da
avaliação classificatória e excludente sobre o desempenho escolar dos aprendizes,
tão indefesos em meio a todas as mazelas socioculturais apontadas.
Assim é fiquei sabendo, num susto – diga-se de passagem –, que o Jairo
aprendera a ler e escrever apesar de mim, e não invariavelmente só comigo,
sentença essa me dada pelo competente linguista dentre um público seleto de
alfabetizadores, conforme detalhamento mais adiante neste trabalho.
O confronto entre minha própria prática de alfabetização desenvolvida
naquela escola de roça caiçara entrecruzada com a cultura japonesa traduziu-se
num movimento cognitivo dialético, cujas voltas e reviravoltas do pensamento crítico-
reflexivo que se formava mostravam ambiguidades de toda ordem que,
paulatinamente, propiciavam-me o entendimento do que mais tarde vim a aprender
com Fazenda (2001a, p.15): que “O encontro com o novo demanda o respeito ao
velho”, e que não há neutralidade na prática educativa. Há sim, a exigência do
“cuidado epistemológico e metodológico” voltado para o ensino em si e para o
conteúdo ensinado, para a linguagem usada pelo professor nas ações de ensinar e
de comunicar o conhecimento escolar ao aluno.
Procuro similitudes entre o pensamento pedagógico interdisciplinar de
Fazenda (2001a) e as encontro no pensamento político-pedagógico de Freire (1996)
que assim se expressa: “O velho que preserva sua validade ou que encarna uma
tradição ou marca uma presença no tempo continua novo” (FREIRE, 1996, p. 39).
101
Classes multisseriadas: compostas de alunos de diferentes faixas etárias, cursistas das séries da primeira a quarta, agrupados num único espaço físico e orientados por um só professor – o professor primário, assim denominado àquela época.
171
De toda forma, o conjunto das verdades desveladas naquele encontro deu-se
de maneira a causar impactos e descobertas impensadas previamente por mim,
acerca dos métodos clássicos de alfabetização.
Naquele contexto de formação profissional de profundidade teórica antes
nunca experimentada, vivenciei um estado de desestabilização conceitual e prática,
tanto quanto o fora o “erro disciplinado” cometido no julgamento da escrita de Jairo,
que provocado pela incompatibilidade entre o pensamento e a palavra dita da
professora e o pensamento e a palavra ouvida e escrita por aquele menino arredio,
porém, arretado102. Isso fazia com que eu remexesse toda a minha situação
existencial e todo o conhecimento comum que me levava a pensar já ter superado a
exigência de satisfatoriedade e, portanto, de sustentabilidade em relação ao
conhecimento científico.
Ledo engano, aquele! Vejamos as razões que podem aclará-lo:
Primeiramente, penso apropriado dar início ao aclaramento necessário com o
pensamento de Marcel Proust, que atesta que “A sabedoria não nos é dada. É
preciso descobri-la por nós mesmos, depois de uma viagem que ninguém nos pode
poupar ou fazer por nós” (PROUST103), somado à inquietação de Guimarães Rosa
quando confessa que “A cabeça da gente é um só, e as coisas que há e que estão
por haver são demais de muitas, diferentes, e a gente tem de necessitar de
aumentar a cabeça, para o total” (GUIMARÃES ROSA, 1994, p. 438).
Ouvimos, durante aproximadamente duas horas seguidas, sobre os
fundamentos teóricos e linguísticos do ensino da língua, que me levaram a perceber,
num primeiro momento, a fragilidade dos métodos clássicos de alfabetização
compostos por conjuntos de regras as quais o professor seguia sem objetar e sem
mesmo conhecer o processo. Quer seja, analítico ou sintético, o método centrava-se
na memorização sem a compreensão do objeto memorizado (sílabas, palavras,
fonemas, textos...). Atingida a silabação graduada (ba, ca, da, fa...) acreditava-se
102
Arretado: (adjetivo) – Palavra-ônibus (nordestina) que indica numerosas ideias apreciativas, equivalendo, por exemplo, a bonito, elegante, excelente [...] bacana, legal (FERREIRA, 2004, p. 198). Aqui empregada para dizer de Jairo, cujos atributos não incluíam nem o porte nem a roupa elegantes, excelentes ou bonitos, mas a essência humana, a inteligência viva, enfim, a boniteza do ser.
103 Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, mais
conhecido pela sua obra À la recherche du temps perdu, que foi publicada em sete partes entre 1913 e 1927. Disponível em: Frases - http://kdfrases.com. Acesso em: 05 set. 2014.
172
que a criança lia, memorizando a estruturação dos pseudos “famílias” silábicas. A
leitura e a escrita embora objetos conceituais e com vistos como mecânica
codificação e simples decodificação do código linguístico. Assim alfabetizar significa
treinamento motor, visual, auditivo, O ensino é centrado no professor, e a
aprendizagem significa a aquisição de uma técnica.
Grande parte das crianças que supostamente aprendem a ler e a escrever por
esses métodos se não desistem de aprender a ler, fracassam totalmente, na
competência leitora o fazem numa lentidão castradora, porque não compreendem o
que representa a escrita e a que uso social104 é destinada.
Para mim, foram descobertas excessivamente impactantes.
Sentindo-me ferida e humilhada no brio do ofício de professor, em meio
aquele público informado de alfabetizadores, busquei justificativas para o trabalho
desenvolvido naquela escola de roça, ousando explodir em defesa própria e
explicitar a indignação que me parecia tão justa quanto necessária de ser declarada.
Assim que aberta a palavra ao público, eu a solicitei, expondo:
─ Professor Cagliari, tudo o que aprendi em Didática, no meu Curso Normal,
foi cuidadosamente aplicado na minha sala de aula. O domínio do método
desenvolvido por mim é a prova do sucesso das crianças, pois, em setembro, a
maioria recebeu o primeiro livro de leitura. O que de tudo e tanto posso ter errado se
somente alguns poucos alunos não escreviam corretamente, embora lessem bem?
Especialmente um deles fazia uma confusão enorme, pois quando eu lhe ditava EU
104
Descobertas excessivamente impactantes e ocorridas numa década anterior à descoberta da pesquisadora argentina Emília Ferreiro sobre a psicogênese da língua escrita, vez que, conhecimento este só chegado aos alfabetizadores paulistas na década de 80. Sem dúvida, os resultados da pesquisa de Emília Ferreiro e os estudos posteriores desencadeados em parceria com inúmeros colaboradores, entre eles a brasileira Telma Weisz, fizeram desestabilizados as práticas de alfabetização; alterados os movimentos de formação continuada dos profissionais da educação da Secretaria de Educação de São Paulo – SEE; impeliram a que as políticas educacionais voltassem o olhar para o novo paradigma que emergia no ensino da leitura e da escrita, sobretudo nos primeiros anos da escolarização básica e, por fim, abriram-se espaço para uma nova modalidade de pesquisa pedagógica. Um novo caminho cujas chances pareciam reais para que o analfabetismo que assola o país fosse, ao menos, repensado à luz das novas teorias produzidas e socializados.
Vale ressaltar ainda que se as descobertas de Ferreiro aguardaram uma década para serem conhecidas pelos professores alfabetizadores, quando delas tomei conhecimento, já mais amadurecida desde Cagliari (1970) e Fazenda (1982), haviam se passado doze anos do “erro disciplinado” cometido com o Jairo, naquela escola de roça, gerador do fato pedagógico objeto de estudo desta tese.
173
ele escrevia OIA! Que me resta fazer, se ele é quem tinha dificuldade de
aprendizagem?!?
Com a serenidade dos sábios e a tolerância do pesquisador competente, que
coloca o conhecimento construído a serviço do crescimento do outro, o renomado
cientista da língua orientou-me:
– Cara Professora! Primeiramente lhe sugiro que coloque entre parênteses a
certeza de que aprendeu tudo na Escola Normal. Depois, que acolha a ideia de
que as crianças não aprendem só com a senhora, algumas delas aprendem
apesar da senhora!... Seu nome não é Odila? Não lhe passou pela cabeça que ele
era o EU do seu aluno?...
Nada pôde ser mais forte que aquela convocação séria, contundente e
sobretudo desafiadora! Nada foi mais chocante que a descoberta dos primeiros
sinais que me levariam à gênese da minha incompreensão sobre a escrita do Jairo.
Adepta, como se vê, da teoria fundada na aquisição de escrita como
transcrição do sonoro para o gráfico, senti avassaladora perplexidade frente ao
novo.
Hoje acosto aquele sentimento de ansiedade misturado à frustração
experimentada, naquele contexto, ao entendimento de que:
A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida; com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 1997, apud PERROTA, 2004, p. VIII).
Folgo em saber, entretanto, que também o eminente Professor Paulo Freire,
ainda muito jovem e em início de carreira no ensino da língua portuguesa, como eu,
naquele espaço/tempo histórico e naquela agridoce experiência docente, havia de
captar que “aprendemos ensinando-nos” (FREIRE, 2000b, p. 26), e que para tanto:
[...] O fundamental seria desafiar os alunos a perceber que aprender os conteúdos que lhes ensinava implicava que eles os apreendessem com os objetos de conhecimentos. A questão que se colocava não era a de descrever o conceito dos conteúdos mas desvelá-los para que os alunos assumissem diante deles a curiosidade radical de quem busca e de quem
174
quer conhecer. É bem verdade que, àquela época, em que este conhecimento do ato de ensinar, a que corresponde uma compreensão dinâmica e crítica do que é aprender começava a se dar, não me era possível ainda, falar dele como falo agora. Esta certeza gnosiológica, a de que aprender o objeto, o conteúdo, passa, pela apreensão do objeto pela assunção de sua razão de ser (FREIRE, 2000b, p. 59, grifo do autor).
Também como Freire, sei até hoje, do meu comando ainda insatisfatório dos
“mistérios da língua portuguesa” (FREIRE, 2000b, p. 101), porém, com a aguçada
clareza, percebo-me tão “apaixonada pelos problemas de linguagem” (p. 101)
quanto ele o foi a vida toda. A ideia de apreender para poder aprender sugere-me,
no presente, o engajamento na vida de maneira a mais corajosa possível, sabendo
empregar adequadamente os instrumentos da educação a serviço do
desenvolvimento humano, sabendo mobilizar as habilidades e capacidades
desenvolvidas na escola para enfrentar, de maneira competente, o mundo real
explicitado na convivência social dentro e/ou fora da instituição formativa. Até
porque, ensinar a ler e escrever exige engajamento. A tarefa de ensinar a ler e a
escrever não pode ser minimizada. Não pode, também, ser silenciosa ante nossa
presença no mundo. Se silenciada, invalida “nosso ser no mundo” e “ser ao mundo”
e estaremos assim contribuindo, não para a transformação das pessoas mas para a
adaptação delas na sociedade. Defende Freire (2000b) que “ensinar a alguém a ler
e a escrever é algo demasiado sério que exige de quem ensina um forte respeito por
quem está sendo ensinado” (FREIRE, 2000b, p. 117).
Hoje também, apegada aos marcos do memorial, considero relevante o
resgate da propriedade de explicação do professor Cagliari sobre o caráter bifásico
da língua portuguesa, em que a correspondência fonema/grafema nem sempre é
biunívoca, ou seja, em que “[...] cada elemento do primeiro conjunto corresponde a
apenas um elemento do segundo, e vice-versa” (FERREIRA, 2004, p. 303) de forma
homogênea e uníssona.
Afirmou o linguista, naquela oportunidade, que o grafema – “a menor unidade
contrastiva num sistema de escrita” (FERREIRA, 2004, p. 996) se faz distinto do
fonema – “unidade mínima distintiva no sistema sonoro de uma língua” (FERREIRA,
2004, p. 918), e, a partir daí, os exemplos postos à compreensão dos
alfabetizadores, naquele encontro, foram de inequívoca significação. Vejamos:
175
Na palavra CA VA LO temos a composição de seis letras representativas de
cada um dos fonemas correspondentes, uma a uma, aos seis dos seus grafemas, o
que vale dizer, seis letras compondo uma palavra de três sílabas.
Por oposto, a palavra TRA BA LHO é composta por oito letras, sendo
igualmente trissílaba, porém sua correspondência fonema/grafema não se dá de
forma biunívoca.
A meu ver, o professor Cagliari construiu um olhar interdisciplinar para nos
fazer ver a complexidade da língua portuguesa dentro da sua própria riqueza e as
implicações dessa complexidade no processo de alfabetização.
Incorre, portanto, em atitude no mínimo temerosa, que o professor, que ao
ensiná-la desapartado do seu elemento constitutivo complexo e ao tentar simplificá-
la para o ajuste da compreensão do aprendiz, não tão raramente, acaba por
banalizar o ensino, tornando-o reducionista, além do que, errôneo; pois procedente
de raciocínios viciados e carregados de desprezo aos “elementos necessários de
solução” (FERREIRO, 2004, p. 148).
Acrescentou a essas ideias o fato de ser o domínio da língua escrita uma
séria preocupação dos professores, dos pais e dos sujeitos que dela têm de se
apropriar. Disso decorre a exacerbação dos cuidados com a ortografia, a caligrafia, a
concordância precisa e a perfeita regência, entre outros aspectos nos quais incidem
as concepções de certo e errado.
E desse fato decorre também o fato de o aluno sentir-se, quase sempre,
incapaz de desenvolver a habilidade de escrita no grau de proficiência desejada na
escola e fora dela, passando despercebido ao professor que a forma fragmentada
com que o ensino da língua é realizado nas salas de aula, se não a causa primeira,
constitui uma das fortes razões pelas quais se justifica a sensação de fracasso dos
educadores no ensino e sobretudo dos educandos, na aprendizagem da língua. A
hierarquização da linguagem essencialmente técnica, os exercícios e os textos
descontextualizados (especialmente os pseudotextos cartilhescos – Vovô viu a uva,
por exemplo), a prática da codificação e decodificação da língua elevada à exaustão
no então chamado período preparatório, cujo foco é o treino motor, constituem a
gênese dos fatores da aludida sensação de fracasso.
176
Nesse contexto, o que se espera do aprendiz da língua é que ele aprenda por
insights105 e/ou generalizações, algumas delas muito próprias da lógica infantil, por
exemplo, a criança ouve: chover/choveu; bater/bateu; comer/comeu; logo,
caber/cabeu...
O ensino da gramática é outro exemplo da lógica formal dos exercícios de
ligar, completar, associar, como aplicação inadvertida do já sabido e memorizado
mecanicamente, em detrimento da compreensão dos princípios e regras que regem
a língua falada e escrita, ou seja, da apropriação significativa da complexidade
linguística.
As aulas sem qualquer interação do aluno com o objeto de conhecimento,
com os pares, com o professor, com o “saber de pura experiência feito” (FREIRE,
1996, p. 32) e com o mundo real, num silêncio imobilizador do pensamento reflexivo
e a partir da predeterminação do professor, pouco podem contribuir para o
desenvolvimento da inteligência linguística do aluno e da construção do
conhecimento léxico-gramatical.
A inexistência do dinamismo e da dialética que permitem o confronto de
escritas e o debate de ideias convergentes e divergentes, a falta de reflexão crítica
sobre as contradições tão próprias das relações sociais e sobre a problematização
da realidade são fatores impeditivos do desenvolvimento da linguagem. Acrescente-
se a incitação ao desprazer de escrever ou ao medo do enfrentamento das
dificuldades comuns que a língua escrita impõe às crianças, aos jovens e aos
adultos.
Por fim, o professor Cagliari apontou que, se o que a escola pretende
desenvolver (e tem o dever de fazer isso) é a competência da comunicação do
usuário da língua falada e escrita, há que, basicamente, instrumentalizar
competentemente o aluno para o alcance desse objetivo. Para isso, deve promover
a prática do uso da escrita em seus múltiplos sentidos, significados, dimensões e
formas convencionais de gêneros discursivos (publicidades e propagandas, rótulos,
revistas, jornais, textos informativos e formativos, literários, bulas, receitas, cartas, 105
Insights: é um termo muito usado na Psicologia, quer dizer uma ideia, uma "sacada", uma descoberta. "Tive um insight" significa dizer, tive uma ideia ou cheguei a alguma conclusão importante. Isso acontece muito durante a psicoterapia. Na sessão o paciente tem um "insight", ou seja, descobre, elucida algo. Fonte: http://answers.yahoo.com/ question/index?qid=20070529111324AA5YrIO. Acesso em: 20 jan. 2014.
177
poemas...), considerando que a prática do ensino da língua por meios dos repetitivos
exercícios padronizados e preestabelecidos pelo professor não faz do aluno o
intérprete e o produtor do seu próprio texto e, portanto, não o instrumentaliza,
enquanto cidadão, a ser o transformador daquilo que lhe é posto. Além do mais, não
se pode esquecer que o aluno é um ser pensante, um ser de mente ativa e de
atitude indagativa; que o pensamento reflexivo e crítico fomenta e é fomentado pela
atividade cognitiva sempre focada no objeto que se quer apropriado.
Isso posto, não restam dúvidas de que a função social da escola, no ensino
da língua e dos demais conteúdos escolares, deve acontecer em situações
concretas, vivas, planificadas, e não a partir e na permanência da prática de
atividades e exercícios prescritos, sendo evidente que se deve substituí-los por
situações reais de aprendizagem, as quais, por natureza, levam o aluno a pensar,
construir, reconstruir, analisar o próprio pensar e o próprio fazer e escolher novas
situações de aprendizagem, pelo experimento de novas hipóteses e tentativas ainda
não pensadas de solução.
Nisso eu vejo, hoje, a presença forte da atitude interdisciplinar favorecedora
da troca, da parceria, da dúvida, da incerteza que teriam me possibilitado solicitar ao
Jairo que fizesse a comparação do seu escrito com a de outro colega de turma,
confronto esse que, de forma convencional, poderia encaminhar a sua hipótese
primeira para uma elaboração superior, levando-o à compreensão sobre o
funcionamento da língua escrita e falada, ou seja, como se fala, como se lê e como
se escreve, o falado, o lido e o escrito.
Sobre isso Cagliari lembra que o cérebro humano descarta rápida e
inteligentemente a memorização mecânica daquilo tudo que não lhe faz sentido.
Para que nos lembremos de algo, é preciso que o tenhamos apreendido e
compreendido.
A língua não deve ser objeto de opressão, mas instrumento aberto em que o
sujeito possa criar e recriar, montar e desmontar, errar e acertar, avançar e recuar,
no esforço de aprendê-la. Enfim, possa ler e reler até alcançar a estrutura de
funcionamento da língua eleita como padrão – por que se fala de um modo e não de
178
outro, por que se escreve assim e não assim, condição sine qua non106 para a
formação de escritores e leitores proficientes e, dessa forma, colocar-se a serviço do
desenvolvimento da inteligência linguística acompanhada do prazer de aprendê-la,
ideia esta complementada sob a ótica de Antunes (2001):
[...] as crianças interpretam o ensino recebido, criando uma forma própria de escrever as palavras, diferente da escrita convencional do adulto e da maneira esperada pelo professor. Por exemplo, a palavra “cachorro” pode ser grafada como “caorro” ou, ainda, “K-xo-ro”. A lógica empregada pela criança não é a mesma usada pelo professor ao trabalhar com os signos; na realidade, baseia-se na apropriação que o aluno faz da linguagem oral e em como os sons podem se transformar em símbolos gráficos [...] É essencial criar, em sala de aula, situações experimentais que não impliquem apenas na rotineira e cansativa tarefa da “cópia” (ANTUNES, 2001, p. 30, grifo do autor).
De igual modo, ao referir-se à “capacidade de simbolização” da criança por
volta de seis ou sete anos de idade, o estudioso ensina que “[...] essa simbolização
não é uniforme; depende, e muito, da coloração cultural do ambiente que acolhe
essa criança como se os valores do adulto passassem a simbolizar a voz com que a
criança quer desenvolver seus esquemas de associação” (ANTUNES, 2001, p. 38).
À luz dessas reflexões retomo a fala de Cagliari para dizer que saber a língua
implica necessidade absoluta de saber ensiná-la, de saber sobretudo apreciá-la na
sua completude, saber acolhê-la nas suas variantes, diferenças, beleza e
complexidade.
À época do Jairo eu não sabia sabê-la e, por conseguinte, não sabia ensiná-
la. Apreciava-a desde os tempos de infância quando, sentada nos joelhos do meu
pai ou aconchegada no colo da minha mãe, eles liam para mim, e eu ouvia seus
causos e histórias factuais e imaginárias, e eles me desafiavam a criá-los também.
Porém, na docência, tratei-a com redução extremada, resultando em negligência
quanto a complexidade e em falta de cuidado em relação ao seu uso social, na
formação das crianças.
Uma pena, e faz valer a pena (re) aprendê-la nesta história de vida e numa
dimensão bem mais elaborada.
106
Sine qua non (latim): sem a qual não. Forma de expressão que indica uma cláusula ou condição sem a qual não se fará certa coisa (FERREIRA, 2004, p. 1852).
179
Contudo, eu, tive essa sorte! O Jairo pode ser que não! Não desenvolveu o
gosto pela leitura, nem comigo! Eu não li para ele, nem com ele. Eu o forçava a ler
uma leitura que lhe era estranha, esquisita, sem cor nem sabor, sem desenhos, sem
pinturas... Quem sabe, por isso, Jairo não escreva hoje! Meu Deus! Não tenha o
mesmo gosto que eu, de ler e escrever. Não tenha organizado o pensamento nem
as emoções e, com isso, não possa ver-se melhor...
Que histórias poderá o Jairo contar, se, como diz Allan Gurganus, “As
histórias só acontecem às pessoas que sabem contá-las” (AGUIAR, 2013, s.p.)? Ou
será que Jairo aprendeu com outros professores, a contá-las? Ou nem quer saber
mais das histórias de professor? Será que Jairo pode, hoje, inspirar-se com livros?
Ele nem chegou a receber o primeiro livro das minhas mãos, naquela escola de
roça! Será que se fez capaz, nesse tempo já passado, de rir com um deles? De
comover-se? Espantar-se? Encantar-se? Emocionar-se? Consolar-se? Ou revoltar-
se?...
Contudo, peço perdão ao Jairo, se não aprendi com ele sobre a cor da
tristeza e do fracasso, se não lhe ensinei sobre o barulho sadio da verdade. Mas,
por certo, devo ter lhe ensinado sobre a cor da saudade... Às vezes sonho com o
nosso reencontro, e outras vezes fujo desse sonho, temendo que, ao lhe oferecer “a
luz dos olhos meus”, ele me responda:
Tarde demais...
[...] A gente não quer só comida107
A gente quer comida, diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída para qualquer parte [...] A gente quer a vida como a vida quer [...] A gente quer prazer pra aliviar a dor A gente não quer só dinheiro A gente quer dinheiro e felicidade A gente não quer só dinheiro A gente quer inteiro e não pela metade (grifo nosso)
E talvez ainda se encorajasse a me enfrentar desafiando-me a responder se
nesse tempo eu já aprendi que:
107
Comida. Música e letra de Arnaldo Antunes para os Titãs, WEA, 1987.
180
[...] a alfabetização vista em profundidade não é apenas, nem pode rigorosamente ser, o momento em que mecanicamente a mente burocrática do educador inicia o “tratamento” burocratizante da mente dos alfabetizandos, recheando-a de frases, de palavras, de sílabas, de letras, de exclamações! A alfabetização enquanto aquisição, produção e reinvenção da linguagem escrita e necessariamente lida deve, por sua seriedade, constituir-se num tempo de introdução ao pensar certo. Respeitando o saber do senso comum começar a aproximar os alfabetizandos à compreensão mais profunda da linguagem, da raison d’être das suas dificuldades para superá-las (FREIRE, 2000b, p. 116, grifo do autor).
4.2 Um novo encontro e desta vez com Emília Ferreiro. Novo encontro e
novas lições: dose dupla de ensinamentos ─ Emília Ferreiro e Ana Teberosky
Só a ignorância, que nem sequer é santa, com relação ao significado da linguagem e portanto da alfabetização pode pretender reduzir esta aos puros bás, bés, bis, bós, bus (FREIRE, 2000b, p. 117).
Aprendi sobre isso e a pensar nisso a partir de Cagliari, em 1970, com
Ferreiro e Teberosky, em 1985, na Fundação para o Desenvolvimento da Educação
(FDE), no mesmo espaço físico onde ouvi Fazenda (1982) que me instilou a paixão
de conhecer, com a vida, com a rua, com a fazenda, todo dia, na academia.
Ferreiro e Teberosky (1985) apontaram-me por primeiro a distinção e a
correlação entre uma experiência de alfabetização e uma experiência de letramento,
fazendo-me entender que este último exige do sujeito, não apenas que lide com
materiais de leitura e escrita, mas que também, com esses materiais, envolva-se na
inteireza de si mesmo e dos próprios materiais com os quais lida.
Emília Ferreiro, em parceria com Ana Teberosky, coloca à disposição dos
educadores as ferramentas capazes de quebrar o círculo vicioso da alfabetização
entendida como transcrição do sonoro para o gráfico, capazes de desvendar o “erro
disciplinado” estudado por Foucault (2008), o que me leva a retomá-lo para dizer
daquela construção singular do Jairo e das intervenções pedagógicas inassimiláveis
feitas por mim.
181
Nas pesquisas feitas pelas duas investigadoras dos processos de aquisição
da linguagem escrita,
[...] foi possível comprovar a teoria geral do conhecimento e explicitar a lógica peculiar desenvolvida pelas crianças no processo de aquisição deste conhecimento específico. É fundamental que, além de conhecer o processo de construção do conhecimento e o seu desenvolvimento, o educador – sobretudo o alfabetizador – compreenda também o específico a que se refere à leitura e à escrita. E que perceba que não somente o aluno é o sujeito da ação pedagógica, mas também é o professor, enquanto coordenador do processo. Isto lhe confere autonomia e lhe exige cada vez mais, maiores conhecimentos psicopedagógicos e capacidade de adequação metodológica (ALVES, 1997, p. 35).
O processo de aquisição da leitura e da escrita envolve o pensamento
freiriano de que a leitura do mundo antecede a leitura da palavra. Envolve sobretudo
entender que grande parte das crianças que não têm familiaridade com o mundo da
leitura e da escrita, pouco ou quase nada compreendem acerca do sistema de
representação da língua e de seu uso social, e, também por isso, deixam os bancos
escolares antes mesmo de completar a 4ª série do 1º grau (hoje, o 4º ano do ensino
fundamental). Daí, as estatísticas apontarem índices elevados de evasão escolar
responsabilizando os próprios alunos e/ou seus familiares pelos números revelados.
O posicionamento de Freire (2000b), no entanto, não deixa dúvidas de que é
oposto a essa responsabilização. Ao ser entrevistado pela revista Escola Nova108 e
questionado sobre o que faria “diante da evasão escolar, que é muito grande”
(FREIRE, 2000b, p. 35), o autor assim se posiciona:
Em primeiro lugar, eu gostaria de recusar o conceito de evasão. As crianças populares brasileiras não se evadem da escola, não a deixam porque querem. As crianças populares brasileiras são expulsas da escola ─ não, obviamente, porque esta ou aquela professora, por uma questão de pura antipatia pessoal, expulse estes ou aqueles alunos ou os reprove. É uma estrutura mesma da sociedade que cria uma série de impasses e de dificuldades, uns em solidariedade com os outros, de que resultam obstáculos enormes para as crianças populares não só chegarem à escola, mas também, quando chegam, nela ficarem e nela fazerem o percurso a quem têm direito. Há razões, portanto, internas e externas à escola, que explicam a “expulsão” e a reprovação dos meninos populares (FREIRE, 2000b, p. 35, grifo do autor).
108
Entrevista cedida à revista Escola Nova em 26 fev. 1989, tendo Freire assumido a Secretaria Municipal da Educação de São Paulo em 1º de janeiro de 1989. In: FREIRE, P. A educação na cidade. 4. ed., São Paulo: Cortez, 2000b, p. 35.
182
E não a toa deixam a escola, completa o educador: “A realidade com que eles
têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais
um dado aí, desconectado do concreto” (FREIRE, 2000b, p. 30).
Arrematando suas argumentações Freire (2000b, p. 22) declara: “A
experiência dos meninos populares se dão preponderantemente não no domínio das
palavras escritas mas da carência das coisas, no dos fatos, no da ação direta”.
É óbvio, por exemplo, que crianças a quem falta a convivência com palavras escritas ou que com elas têm pequena relação, nas ruas e em casa, crianças cujos pais não lêem livros nem jornais, tem mais dificuldades em passar da linguagem oral à escrita. Isto não significa, porém, que a carência de tantas coisas com que vivem crie nelas uma “natureza” diferente, que determine sua incompetência absoluta (FREIRE, 2000b, p. 22-23, grifo do autor).
Já se sabe que da Escola Normal eu sai alimentada pela visão puramente
disciplinar e convicta de que:
[...] o processo de alfabetização começava e acabava entre as quatro paredes da sala de aula e que a aplicação correta do método adequado garantia ao professor o controle do processo de alfabetização dos alunos (WEISY, 1985; DUARTE, 2006, p. 28).
No entanto, ensina-me Ferreiro (1985), a partir do Seminário sobre
Alfabetização realizado na FDE, no ano de 1984, que:
[...] o processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende. Essa criança, se coloca problemas, constrói sistemas interpretativos, pensa, raciocina e inventa, buscando compreender esse objeto social particularmente complexo que é a escrita como ela existe em sociedade (FERREIRO, 1985, p. 7).
Como se vê, a afirmação é clara e objetiva, e passou a constituir-se no
arcabouço de minhas compreensões teórico-práticas no campo da alfabetização e,
nas décadas de 80 e 90, nos fundamentos dos movimentos de formação continuada
dos professores de primeira a quarta série do então primeiro grau (hoje, ensino
fundamental), sobretudo dos professores que, no ano de 1984, efetivavam a
implantação do Ciclo Básico - Programa da Secretaria de Estado da Educação de
183
São Paulo, centrado no período de escolarização no âmbito da primeira e segunda
séries.
Atualmente, a formação profissional dos educadores que atuam no Ensino
Fundamental e Médio da Educação Básica está posta sob a responsabilidade dos
mestres e doutores formadores do ensino superior.
Na oportunidade do Seminário referido, pude aprender sobre os três
importantes elementos do processo de aprendizagem – S – O – S: sobre quem
ensina, sobre quem aprende e sobre “a natureza do objeto de conhecimento
envolvendo esta aprendizagem” (FERREIRO, 1985, p. 9), os quais descartam
radicalmente a horizontalidade e a linearidade das relações entre eles.
Esses elementos que formam uma tríade (FERREIRO, 1985, p. 9), e não
mais concebidos como “entidade única” (p. 9) podem assim ser representados:
Figura 3 – Representação imagética da tríade dos elementos do processo de aprendizagem Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2014)
Atribuo ao olhar interdisciplinar a capacidade de hoje poder captar as
diferenças capilares entre conceber a escrita como “um código de transmissão
gráfica das unidades sonoras” (FERREIRO, 1985, p. 10), ou, como um “sistema de
representação da linguagem” (p. 10). Mais ainda, compreender as “consequências
pedagógicas” (p. 10) decorrentes desta e daquela concepção.
Sujeito que aprende
Sistema de
representação
alfabética
da
linguagem
Concepção de
linguagem
dos
professores
Concepção de
linguagem
dos
aprendizes
Objeto de
conhecimento
Sujeito que
ensina
184
Os estudos e pesquisas de Ferreiro (1985) e de seus seguidores têm-nos
mostrado que nenhuma representação é definidamente igual à realidade
representada. Sendo assim, quando a representação garante adequação com a
realidade representada, temos nisso indicadores de que, tanto uma quanto a outra
representação realidade possuem “algumas propriedades e relações” que indicam
a relação de pertinência contém/está contido, mutuamente encontradas nas suas
propriedades e relações.
Ocorre, entretanto, que uma dada realidade tem propriedades e relações
próprias assim como determinada forma de representá-la.
Desse modo, a visualização desse aspecto fundamental do processo de
alfabetização permitiu-me descortinar o mundo de condições contraditórias em que
estava mergulhada a minha concepção de escrita e a de Jairo.
Eu a pensava e a operava valendo-me da convicção de que se tratava de
mera apropriação do código linguístico da transcrição gráfica de suas unidades
sonoras.
Para o pequeno Jairo, entretanto, a escrita só poderia corresponder à
representação da linguagem falada – uma questão de lógica interna da maioria das
crianças iniciantes do processo de alfabetização, ou seja, a escrita mantendo
fidelidade indiscutível com os moldes da fala – nada mais natural e inteligente!
A guardiã implacável da língua – objeto social por excelência –, é a escola,
que submete o aluno em franco processo de aprendizagem ao modelo de ensino
adotado pela instituição, o qual não se deve nem tocar, quanto menos atuar sobre
ele. Pode sim, reproduzi-lo fielmente, sem a menor intenção de modificá-lo,
denuncia Ferreiro (1993).
Sobre essas duplas e contrárias visões, Ferreiro (1985) pondera:
[...] A diferença essencial é a seguinte: no caso da codificação, tanto os elementos como as relações já estão pré-determinados; o novo código não faz senão encontrar uma representação diferente para os mesmos elementos e as mesmas relações. No caso da criação de uma representação, nem os elementos nem as relações estão predeterminadas (FERREIRO, 1985, p. 12, grifo do autor).
185
A autora solidifica minhas compreensões sobre o fenômeno linguístico
quando estende o pensamento para: “[...] a construção de uma primeira forma de
representação costuma ser um longo processo histórico, até se obter uma forma
final de uso coletivo” (FERREIRO, 1985, p. 12).
Ao perceber a pertinência dos ensinamentos de Ferreiro, passei a refletir
sobre a intencionalidade das políticas de formação dos profissionais da educação e
a dialogar com o meu eu indagativo – queriam elas verdadeiramente que a todos os
professores desta ou daquela escola, chegassem, de fato e de direito, a esses
saberes? Esses instrumentos teóricos que podem iluminar suas práticas
pedagógicas?
Mergulhada nesses pensamentos, um sentimento de gratidão invadiu-me a
alma, por estar ali, como havia estado com Cagliari, e, ainda que um tanto tardio,
reportei-me ao meu Jairo, só para ter a certeza de vez que realmente ele escrevia e
lia!
Por ironia do destino, naquele tempo faltava-me saber que a invenção da
escrita tem uma milenar história de construção e que, portanto, antes de tomá-la
como um ato mecânico e predeterminado, é ético e politicamente correto pensá-la
como um sistema de representação da linguagem. Assim como o sistema de
representação da linguagem, também o dos números impõe dificuldades conceituais
às crianças, no início do processo de escolarização básica.
Num ou noutro sistema representativo, as crianças tentam trilhar os mesmos
caminhos percorridos pelos seus inventores, usando da faculdade intelectiva para
fazê-lo, ou seja, pensando acerca de – essa é a razão pela qual as crianças
empregam esforços cognitivos na reinvenção de ambos os sistemas, na tentativa
inteligente de apreendê-los processualmente para, então, aprendê-los
significativamente.
Ferreiro (1985) melhor elucida essa ideia com a seguinte afirmação:
Para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema (as crianças) devem compreender seu processo de construção e suas regras de produção, o que coloca o problema epistemológico fundamental: qual é a natureza da relação entre o real e a representação? (FERREIRO, 1985, p. 13, grifo nosso).
186
Dessa forma a autora, apoiada nos pressupostos da psicogênese
piagetiana109, foi então me fazendo ver a exigência de novas formas metodológicas
na lida com a construção da leitura e da escrita.
Esclarecendo-me que embora processos distintos, eles se explicitam, se
tangem e se efetivam pela complementaridade. Que o aluno não é objeto de
conhecimento, mas sujeito dele e, portanto, que é só na completude conceitual do
objeto a ser aprendido que o aluno pode se apropriar do conhecimento dele.
O professor deve exercer a função mediadora nesse processo interativo,
permitindo o conflito originado do confronto de ideias e das hipóteses formuladas
pela criança no esforço de apropriação do objeto de conhecimento – nada mais
interdisciplinar!
Isso me fez perceber novamente que, se naquele ato pedagógico eu tivesse
solicitado ao Jairo dizer do seu escrito teria aberto precioso espaço para o encontro
de nossas leituras – EU/OIA/ODILA e, portanto, não cairia na armadilha da
ignorância de ter recomendado a sua mãe que cuidasse do provável déficit de
audição e de visão do pequeno.
Melhor ainda, teria permitido ao Jairo dizer-se, rever-se, ser e vir a ser.
O véu que me foi retirado cobria a concepção e a prática tradicional de
alfabetização que privilegia o método em detrimento do sujeito da aprendizagem.
Este era o fato que me levava à primazia do desenvolvimento das habilidades
de escrita em substituição desastrosa da aprendizagem da língua escrita.
A concepção tradicional, como já percebera antes, com Cagliari, considera
importante as discriminações visuais e auditivas, as associações entre a grafia e a
sonorização, ou seja, entre sons e letras – os aspectos motores e preceptores – o
que redunda em conceber a aprendizagem como uma técnica, e não como um
processo dinâmico e de reconhecida complexidade.
Por isso minha insistência nos exercícios de cópia, ditado, fixação,
exacerbadas e aplicados também às tarefas a serem feitas em casa. Como?!
109
Psicogênese piagetiana: O construtivismo piagetiano parte do princípio de que o desenvolvimento da inteligência é determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio em que ele vive [...] a explicação de como a inteligência humana se desenvolve (LAGO, 2004, p. 55).
187
A teoria de Piaget é clara na recomendação de cuidados nas passagens do
aluno do estágio sensório-motor (raciocínio infantil que é capaz de aprender sobre a
função simbólica da linguagem) e a reversibilidade (raciocínio próprio das crianças
por volta dos sete/oito anos, que caracteriza a travessia do estágio pré-operatório
para o operatório concreto), foi “estudada” na Escola Normal, porém não
interiorizada na complexidade de seus conceitos, os quais, no processo de
desenvolvimento da inteligência, favorecem a apreensão do sentido e do significado
das letras e dos números.
Piaget afirma que “Para conhecer os objetos o sujeito deve agir sobre eles e,
portanto, transformá-los, deve deslocá-los, ligá-los, combiná-los, dissociá-los e reuni-
los novamente [...] Conhecer é, portanto, agir sobre os objetos e transformá-los”
(LOCH, 1995, p. 17).
Em síntese, os estudos e pesquisas de Ferreiro e de seus seguidores,
formados na base da teoria construtivista de Piaget, postulam a construção de
conhecimento pelo sujeito que aprende – o pôr a mão na massa, cujo processo de
interação com a linguagem escrita há que contar com as competências de saberes
docentes como um sistematizador e/ou estimulador desse mesmo processo.
O importante é o professor não se desapartar da ideia de que: “[...] enquanto
objeto a escrita se constrói a partir dos mesmos processos descritos por Piaget em
muitos outros domínios” (FERREIRO e TEBEROSKY, 1986, p. 28, apud SEBER,
1997, p. 73).
Declara o pessoal do Instituto ECOFUTURO do Programa “Ler é Preciso”:
Escrever a vida é coisa que começa muito cedo, com atividades como recortar, desenhar, segurar um lápis, pintar... Tudo isso prepara a criança para aprender a escrever. Se uma criança tem oportunidade de fazer isso em casa, e também tem a sorte de contar com adultos que lêem para ela, já tem boa parte do caminho andado para se alfabetizar bem (INSTITUTO ECOFUTURO, s.d., p. 12, grifo do autor).
Em face dos achados de Emília Ferreiro, de Madalena F. Weffort e antes
delas os estudiosos Piaget, Vygotsky, Luria e outros, defende Freire (2000b) que:
188
As questões principais na alfabetização são de natureza político-ideológica e científica a que se juntam aspectos técnicos necessários. O ponto de partida é a decisão, a vontade política de fazer, a arregimentação dos recursos, e a formação rigorosa dos educadores e das educadoras (FREIRE, 2000b, p. 118).
4.3 O fenômeno educativo caracterizado no fato pedagógico e fundamentado
na teoria linguística
Sendo a conscientização um processo-projeto, um constante reconfronto com
o mundo cultural, que possibilita ao homem perceber-se como ser-no-mundo e ao-
mundo, como nos lembra Rezende (1990), e apoiando-me em Freire (1996), é que
senti uma necessidade premente de compreender os sentidos do fenômeno
caracterizado no fato pedagógico vivido com o aluno Jairo.
[...] a conscientização é neste sentido, um teste da realidade. Quanto maior a conscientização, mais se des-vela a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto ante ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por essa razão a conscientização não consiste em estarmos diante da realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, isto é sem o ato de ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui de maneira permanente o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (REZENDE, 1990, p. 76).
Trabalho de tamanha envergadura tornou premente a necessidade do
discurso descritivo para a análise do fenômeno objeto de estudo desta pesquisa,
impondo à pesquisadora a necessidade de uma atitude descritiva frente ao referido
fato pedagógico, uma vez que esta é que “corresponde à densidade semântica do
fenômeno experimentado”.
Como aprendemos com Rezende (1990):
[...] a descrição supõe, ela própria, uma situação especial de presença, fora da qual não há possibilidade de percepção fenomenal. A atitude descritiva e o discurso a ela correspondente decorrem da “volta às próprias coisas” para redescobri-las num encontro original, anterior a todas as informações fornecidas pelas fontes secundárias e que, por isso mesmo, devem ser postas entre parênteses. Neste sentido, uma verdadeira descrição, supondo a consciência perceptiva, só pode ser feita por alguém que seja sujeito de seu próprio discurso e entre em contato com um mundo complexo tanto em sua constituição como em sua história (REZENDE, 1990, p.18).
189
Assim, a análise e a reflexão da própria prática pedagógica permite o
desvelamento de aspectos considerados importantes e sobre os quais nos alerta
Weisz (2000): por trás de toda prática pedagógica estão subjacentes algumas ideias,
teorias e concepções sobre o conteúdo a ser aprendido pelos alunos, sobre o
processo de aprendizagem e sobre como deve ser o ensino.
Braggio (1992) corrobora essas ideias, ao discutir como se constrói uma
concepção sobre o processo de alfabetização, tendo em vista uma prática de ensino
que permite a superação de concepções “ingênuas”.
O alerta da autora quanto à referida superação converge para um caminho
intrincado e árduo, como ela mesma faz questão de ressaltar:
[...] Intrincado porque implica numa visão de homem e de sociedade e numa consequente opção teórica sobre a natureza da linguagem e sua aquisição. Árduo, porque significa fazer frente às concepções ingênuas que pari passu com aquela concepção subsistem e resistem. Práticas que tolhem, alienam e massificam os indivíduos (BRAGGIO, 1992, p. 1, grifo do autor).
Braggio (1992), apoiada em Giroux (1986), lembra que, em uma análise mais
acurada sobre o contexto educacional, é possível observar que, se por um lado,
salvo raríssimas exceções, o processo de alfabetização e as questões a ele
atinentes se dissociam das forças mais amplas, de natureza social, histórica e
ideológica, por outro lado nunca dessas concepções se apartaram, mostrando, em
face delas, uma evidente relação intrínseca, haja vista os modelos de leitura e
escrita que se nos apresentam ao longo dos anos.
Para Braggio (1992), esses modelos permitem antever, não só o viés
filosófico predominante em uma determinada época, ou os que coexistem através de
várias épocas, mas também as concepções sobre o processo educacional visíveis
nas práticas observadas no cotidiano de uma sala de aula, pautadas numa didática
prescritiva.
Vale ressaltar, nesse contexto, o pensamento de Colello et. al., (2010) sobre
o fato de que as propostas pedagógicas, no interior da escola, não advêm de uma
única área de conhecimento, tampouco de uma teoria específica, como alguns
educadores supõem.
190
As intervenções de um professor alfabetizador são de natureza político-
ideológica, na medida em que desvelam suas concepções de homem, da sociedade
em que vive, de seu conceito sobre cidadania, da escrita e do próprio papel da
alfabetização no processo de constituição desta.
O desvelamento dessa natureza é que nos impõe uma análise que contemple
a complexidade estrutural do fenômeno educativo, ora caracterizado no fato
pedagógico vivido no período de alfabetização com o aluno Jairo.
Para tanto, como alerta Rezende (1990), temos que “discursar” sobre tal
fenômeno, uma vez que nele tratamos da linguagem, a fim de evitar os dois vícios
sobre os quais asseveram os estudos fenomenológicos e que se apresentam como
“derrogações de pertinência”, buscando compreendê-lo não apenas como um
conteúdo conceitual a ser definido, frente ao qual assumiríamos uma posição
falsamente intelectual.
Segundo Rezende (1990):
Dois vícios se apresentam como possíveis derrogações da pertinência: o reducionismo e o fenomenismo. O reducionismo consiste em insistir num aspecto em detrimento de outros, que acabam sendo deixados de lado, muito embora também sejam importantes para a significação plena do fenômeno. O fenomenismo, ao contrário, consiste em acumular toda e qualquer informação, em multiplicar os aspectos enumerados, sem discernimento fenomenológico, isto é sem cuidar se eles devem de fato ser apontados, tanto em nome da significância como da pertinência e da relevância (REZENDE, 1990, p. 21).
Nosso discurso não pode, dessa forma, alienar-se dos sentidos que o tecem e
que por nós são escolhidos para tecê-lo. Não de forma arbitrária, como sabemos de
antemão, posto que todo ele seja também discursivo da história humana, portanto
cultural e, como tal, constituinte da nossa subjetividade, subjetividade esta
construída no transcorrer de nossas vidas, desde o nosso nascimento neste mundo.
Esta tarefa nos impõe cuidar para que o nosso discurso seja pertinente como
convém ser a todo discurso fenomenológico. Isto é, o discurso que faz desvendados
todos os aspectos da estrutura significativa do fenômeno observado. Ele se
apresenta estruturado e, como tal, traz em seu bojo uma multiplicidade constitutiva
desvelando fios diversos, cujo sentido compõe a trama da situação existencial que
191
ora submetemos à análise, considerado o contexto sócio-histórico do fenômeno
observado.
Para essa análise, há que se rememorar o contexto educacional que serviu
de “pano de fundo” para o cenário em que se apresentam as concepções que dão
sustentação às metodologias utilizadas àquela época, no processo de alfabetização,
ora estudado.
A pedagogia tecnicista surgida nos Estados Unidos na segunda metade do
século XX encontra “terreno fértil no Brasil” nas décadas de 1960 e 1970, e suas
asserções proliferam no meio educacional um movimento que ficou conhecido como
“tecnicismo educacional”.
Alicerçada nos pressupostos da teoria behaviorista da aprendizagem e na
abordagem sistêmica do ensino, tal pedagogia corroborava a lógica prevalecente à
época no contexto social, lógica que primava por adequar a educação às exigências
de uma sociedade industrial e tecnológica.
Nos ditames de uma sociedade capitalista, a educação serve a um propósito
único, qual seja, formar indivíduos “competentes” para atuar no mercado de
trabalho, importando, para tanto, a tecnologia em detrimento do professor, o qual
seria apenas um elo entre a verdade científica e o aluno.
Ao estudar Ferreiro (2001, in: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, PROFA, 2001),
sobre “O direito de se alfabetizar na escola: um pouco de história”110, é possível
analisar a evolução das investigações e estudos sobre a alfabetização escolar no
século XX, a partir de um recorte denominado pela autora de o primeiro dos três
períodos, os quais marcaram tais investigações, e este é o que nos interessa, na
presente pesquisa.
Nesse período, que corresponde, aproximadamente, à primeira metade do
referido século, as discussões com foco tão somente no ensino tinham por objetivo a
escolha do melhor método para alfabetizar, haja vista que o fracasso escolar tão
presente na época, nas classes de alfabetização, se devia, ao que se supunha, ao
uso de métodos inadequados. Tal polêmica dividiu opiniões entre os defensores do
110
Emília Ferreiro. O direito de se alfabetizar na escola – um pouco de história. Extraído do documento de apresentação do PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Ministério da Educação – Secretaria da Educação Fundamental, 2001.
192
Método Global e os do método Fonético111 (FERREIRO, in: MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, PROFA, 2001).
No Brasil, segundo a autora, tal discussão caiu em desuso, na medida em
que muitos educadores adotaram o conhecido na época como método “misto” (p. 7,
grifo do autor), qual seja, “[...] nada mais que a nossa conhecida cartilha, baseada
em análise e síntese e estruturada a partir de um silabário” (p. 7).
A metodologia das Cartilhas, ainda muito utilizada no Brasil na década de
1970, é portanto a que serve de base para as práticas desenvolvidas nas classes de
alfabetização por muitos professores alfabetizadores no referido período, e também
a mim imputada para alfabetizar o aluno Jairo.
Ao analisar o processo de alfabetização, que lhe é próprio, fica muito clara a
concepção sobre a natureza da linguagem subjacente ao método por mim adotado,
bem como a visão de homem e de sociedade a ela intrinsecamente ligada.
Segundo Braggio (1992), essa concepção sobre a linguagem pode ser vista
com relação:
a) à sua natureza: Como um sistema fechado, autônomo, constituído de componentes
não relacionados entre si, onde sintaxe, morfologia, fonologia (gramática) e a semântica são tomadas à parte umas das outras; como se um dos seus componentes tivesse precedência sobre os demais, geralmente o da gramática sobre a semântica, sobre o significado, tomado este, por sua vez, como unilateral; unívoco, cristalizado; como fragmentável nos seus componentes constitutivos mínimos, fonemas e morfemas, “quebrando-a” e isolando-a da totalidade do fenômeno linguístico e como desvinculada do contexto sócio-histórico-cultural que lhe dá origem (BRAGGIO, 1992, p. 8). b) à sua aquisição:
Como uma habilidade a ser adquirida através da associação entre estímulo e respostas, habilidade esta que só requer do indivíduo a capacidade de fazer aquela associação de forma passiva, mecânica, repetitiva e imitativa. Há uma separação clara entre sujeito e objeto do conhecimento, a linguagem, sendo esta o foco de análise, reduzida, entretanto, a um produto da experiência sensorial, fisicamente mensurável e observável, onde o sujeito é considerado como tábula rasa, como um processador passivo do estímulo no ambiente (BRAGGIO, 1992, p. 8).
111
O método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o aluno tinha de aprender primeiro as letras ou sílabas, e o som das mesmas, para chegar a palavras ou frases (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, PROFA, 2001, p. 7).
193
No que diz respeito à concepção de homem e de sociedade: a) O homem é idealística e abstratamente concebido, entendido como um ser em isolamento da sociedade, passivo, acrítico, isto é, incapaz de experimentar contradições internas, de mudar a si mesmo e à sociedade que o circunda através de sua práxis (BRAGGIO, 1992, p. 8, grifo do autor). b) A sociedade também é idealística e abstratamente concebida, estática, homogênea e, portanto, também vazia de valores antagônicos, de luta de classes (BRAGGIO, 1992, p. 8).
Referindo-se ao linguista Bloomfield (1933, 1942), a autora lembra de que sua
proposta de trabalho com os métodos de base fônica para a alfabetização se
sustentam na teoria behaviorista ou comportamentalista, e que foram amplamente
adotados e divulgados. Portanto, ao analisar um, já podemos perceber o conteúdo e
alcance dos demais (BRAGGIO, 1992).
Estão entre os métodos de alfabetização tanto os considerados do tipo top-down, ou seja, que iniciam o processo das partes para o todo, como os do tipo bottom-up, ou seja, do todo para as partes. Entre os primeiros, podemos citar os métodos fônicos e silábicos mediados pela fônica e, entre os últimos, os métodos de palavração e os globais [...]. Sistematizados nas cartilhas de alfabetização, basta analisar um deles, já que a maioria dos pressupostos são comuns, para que tenhamos uma ideia de seu conteúdo e alcance (BRAGGIO, 1992, p. 8, grifo do autor).
Muito embora, esse estudioso tenha sido o responsável pelo estatuto da
Linguística como uma ciência autônoma, é pelo seu olhar e consideração, e do que
avalia como sendo “científico”, que, juntamente com seus seguidores, exclui do
campo da linguística os aspectos da linguagem que julga não passíveis de serem
tratados com o rigor e precisão científicos adequados, incluindo-se nessa seleção a
semântica.
Vale ressaltar que o científico, para Bloomfield, trazido por Braggio (1992),
não contempla o que não é observável ou mensurável, o que justifica sua adoção
pelo empirismo e behaviorismo112.
112
Behaviorismo: Escola psicológica que estuda somente o comportamento aberto. Sin. Psicologia E-R (estímulo-resposta). Apresenta duas variedades: metodológica e ontológica. A primeira não nega a ocorrência de processos mentais, mas não crê que não se possa estudá-los cientificamente. Em oposição, o behaviorismo ontológico nega a realidade do que é mental. Obviamente, a segunda implica logicamente a primeira. O que torna o behaviorismo interessante
194
Segundo Weisz (2000), tais referenciais teóricos que vêm amalgamando
historicamente as representações sociais dos professores sobre o que é ensinar,
como o aluno aprende, e o que e como se deve ensinar, “[...] se expressa em um
modelo de aprendizagem de base empirista conhecido como de ‘estímulo-resposta’”
(WEISZ, 2000, p. 7).
Frente a esse modelo, só caberia ao aluno a substituição da resposta errada
pela certa, devendo para tanto memorizar e fixar as informações passadas pelo
professor, das mais simples e parciais para as mais complexas.
O pressuposto subjacente a tal proposta é de que a língua escrita é vista
como transcrição da fala; supõe-se a escrita como espelho da língua que se fala.
Nesse contexto, fica claro que, quando eu pedia para Jairo que escrevesse EU e ele
escrevia OIA, minha expectativa era que ele demonstrasse ter aprendido do jeito
que eu lhe havia ensinado.
Como complementa Weisz (2000):
[...] na concepção empirista o conhecimento está “fora” do sujeito e é interiorizado através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito da aprendizagem seria “vazio” na sua origem, sendo preenchido pelas experiências que tem com o mundo. Criticando essa ideia de um ensino que se “deposita” na mente do aluno, Paulo Freire usava uma metáfora – “educação bancária” – para falar de uma escola em que se pretende “sacar” exatamente aquilo que se depositou na cabeça do aluno (WEISZ, 2000, p. 57, grifo do autor).
Nessa concepção, o sujeito que aprende vai juntando as informações que
lhes são passadas. Começa por aprender as vogais, depois aprende as consoantes,
para em seguida juntá-las formando sílabas e, na sequência, as famílias silábicas
(ma, me, mi, mo, mu). Depois forma palavras e, por último, os “textos”. Em geral, as
palavras-chave são usadas para montar frases como “o bebê baba na babá, o boi
bebe, Didi dá o dado a Dedé”.
do ponto de vista filosófico é o fato de ele ser inspirado no empirismo. Este modo de abordar a psicologia, vazio de organismo e de mente está agora inteiramente morto. Seus principais legados são o rigor experimental, a terapia behaviorista e a desconfiança no falatório vazio sobre a alma. Seu sucessor contemporâneo é o funcionalismo (BUNGE, 2002, p. 47).
195
Dessa forma, de acordo com Weisz (2000) o material apresentado numa
cartilha tem por objetivo que o aluno possa “desentranhar a regra de geração do
sistema alfabético: que b com a dá ba, e por aí afora”.
Numa proposta como esta, as atividades de ensino desenvolvidas para que
os alunos aprendam são de cunho mecanicista, investindo-se muito na cópia, na
escrita sob ditado, na memorização das sílabas, utilizando a memória de curto prazo
para recitá-las quando o professor toma a leitura.
Nesse contexto fica claro o que nos aponta Weisz (2000):
Assim, os três tipos de concepção [...] se articulam para produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo) como transcrição da fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino deve investir na memorização (WEISZ, 2000, p. 58).
Vale também ressaltar, em nossos estudos, o que nos aponta Cagliari (1998)
sobre a adoção do método das cartilhas para a alfabetização por parte dos
professores. Uma vez que esse material configura-se com a apresentação de
palavras-chave e de sílabas geradoras, ou seja, o ba, be, bi, bo, bu, nosso sistema
de escrita tem como base o sistema acrofônico associado às próprias letras. Daí
para o trabalho com palavras-chave é um pequeno pulo, como declara o autor:
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo ba-be-bi-bo-bu. É por isso que muitos professores não veem outra saída para ensinar a ler e a escrever a não ser com o ba-be-bi-bo-bu. No entanto, essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas ideias são organizadas em lições e passadas para os alunos (CAGLIARI, 1998, p. 81).
Para o autor, o grande problema está na forma como as cartilhas tratam a fala
e a escrita, como se a linguagem fosse uma “soma de tijolinhos” representados
pelas sílabas e palavras geradoras, confundindo as crianças que aprendem a falar
de outra maneira, participando de situações em que a linguagem se apresenta como
um todo organizado e com sentido.
196
Há, portanto, no uso desse material, um descompasso entre a vida e a
escola, no tratamento da linguagem, deixando de lado a “trama da linguagem” e
ficando apenas com o que é mais superficial. Assim é que o aluno passa a fazer uso
superficial da fala e da escrita, em situações escolares futuras.
Braggio (1992) aponta dois aspectos que, do ponto de vista bloomfieldiano,
convergem para as considerações feitas por Cagliari (1998), quando se trata da
linguagem e de seu aprendizado:
[...] a aquisição da linguagem é vista como um processo mecânico, no qual a criança aprende a falar quando estimulada a fazê-lo, isto é, a criança enuncia e repete sons vocais somente quando há um estímulo do ambiente. Isto resultaria num hábito que permite à criança repetir os sons que ela ouve cada vez que é estimulada a fazê-lo, ou seja, a aquisição da linguagem é vista como uma questão de formação de hábito ou de condicionamento pela pura imitação de um modelo.
No que diz respeito à natureza da linguagem, Bloomfield e outros linguistas estruturalistas americanos veem a linguagem como um sistema que pode ser “quebrado” em constituintes menores, sem levar em conta a maneira como estes constituintes interligados são usados em comunicações orais. Não se dá nenhum significado, aos usos e funções da linguagem, ao contexto onde é produzida (BRAGGIO, 1992, p. 9, grifo do autor).
O problema é que, ao tratar a linguagem dessa forma, põe-se de lado como
as pessoas aprendem a língua significativamente, impondo-se à criança, em seu
aprendizado, um padrão regular de correspondência entre som e soletração.
Mas como a história é construída por homens reais que viveram em suas
lutas toda sorte de vicissitudes enfrentadas ao longo de seu demorado
desenvolvimento filogenético, dificuldades essas que os impulsionaram para
conquistas, percebemos na trama dessa história muitos movimentos que me
permitiram mudanças, que me oportunizaram “outras leituras, outros olhares”
(BRAGGIO, 1992, p. 9).
As mudanças que ocorreram no contexto social europeu no século XVII nos
permite ver o surgimento da construção do conceito de infância a partir da
constituição de uma nova família.
197
No século XVII acontecem mudanças sensíveis. A centralização do poder em torno de um governo absolutista virá acompanhada do enfraquecimento dos grupos de parentesco, vinculados às grandes propriedades e à aristocracia fundiária. O Estado moderno, no processo de abolição do poder feudal, encontra na família nuclear seu sustentáculo maior, cabendo-lhe então reforçar e favorecer sua situação e estrutura, assim como sua universalidade. Vê-se, pois, que a mudança aponta para a aliança entre o poder político centralizador e a camada burguesa e capitalista, que se lança à expansão de sua ideologia familista, fundada no individualismo, na privacidade e na promoção do afeto: entre esposos, estimulando a instituição do casamento; e entre pais e filhos, por estar interessada na harmonia interior do núcleo familiar (ZILBERMAN, 2003, p. 37).
A partir disso, a criança não será mais considerada um adulto em miniatura,
sendo merecedora de cuidados da parte de seus pais, que passam a manifestar
também preocupações com sua educação.
Essa nova concepção de infância chega ao cenário educacional brasileiro nos
anos 20, como observa Weisz (2000):
Nos anos 20, chega ao Brasil a visão da criança não como um adulto em miniatura, mas como um ser com características cognitivas distintas – uma visão do aprendiz como um ser ativo que constrói seu próprio conhecimento.
Eram as ideias da Escola Ativa – aqui chamada de Escola Nova, nome que se deu aos vários movimentos dentro da educação que tiveram como pensadores importantes Dewey, Claparède, Decroly, Montessori e Freinet. Embora tivessem algumas divergências entre si, assumiam todos o mesmo princípio norteador: a valorização do indivíduo como ser livre, ativo e social (WEISZ, 2000, p. 29-30).
Tal princípio trouxe no seu bojo a premissa de que a necessidade é a mola
propulsora da ação inteligente.
Para Weisz (2000), tal pressuposto representou, na época, uma perspectiva
de que o aluno só aprenderia aquilo que convergisse para uma necessidade sua em
um determinado momento de sua vida e, portanto, aquilo que fosse de seu
interesse.
O grande problema que se apresentou ao grupo da escola ativa foi: “Como
suscitar a necessidade na escola, como fazer germinar na criança o interesse por
aquilo que se deseja ensinar”? (WEISZ, 2000, p. 29-30).
198
A solução encontrada pelos pensadores para responder a essa questão foi a
construção de um modelo113 de ensino que ficou conhecido como aprendizagem
pela descoberta (p. 30).
A ideia de autorregulação advinda de tal modelo também se apresentou
problemática, uma vez que as crianças deveriam aprender por si mesmas em
situações em que pudessem não ser ensinadas, desconsiderando assim a
instituição escola e sua função social.
A distorção de tais ideias acabou por incentivar, nesse contexto
escolanovista, muitas práticas pedagógicas espontaneístas. No afã de libertar-se
das amarras da escola tradicional, da imposição de uma aprendizagem puramente
memorística e sem sentido, o que se acabou fazendo foi “entortar a vara para outro
lado”.
[...] de uma situação em que o aluno deveria receber o conteúdo por pura transmissão, evoluiu-se para uma outra, na qual o conteúdo a ser aprendido deixava de ter importância. A ideia predominante era que o papel do ensino deveria ser o de criar possibilidades para que o aluno pudesse “aprender a aprender”, não importava exatamente o quê. [...] além desse “desinteresse” pelo produto da aprendizagem, os pressupostos da escola nova não funcionavam com eficiência para a aprendizagem escolar. As orientações ficavam geralmente no nível das recomendações gerais: é importante trabalhar em grupo, desenvolver a cooperação, a moralidade, a criatividade, estimular a curiosidade. Tudo muito genérico, e na hora em que o professor entrava na classe, tendo que ensinar leitura e escrita, as quatro operações e outros conhecimentos das áreas das ciências naturais e sociais, o que ele tinha como modelo de ensino de conteúdos específicos para por em prática vinha de um referencial teórico completamente diferente: o discurso era construtivista, mas a prática era – às claras ou disfarçadamente – empirista (WEISZ, 2000, p. 31-32, grifo do autor).
Segundo a autora, outras tentativas foram feitas tendo em vista a criação de
novas propostas pedagógicas. Algumas, como a de Maria Montessori (1870-1952),
centravam-se na percepção da criança, apresentando um método apoiado em uma
série de materiais caros e específicos para o ensino escolar.
113 Utiliza-se o termo “modelo” em modelo de ensino e em modelo de aprendizagem para explicitar o
fato de que se trata de construções teóricas cujo objetivo é interpretar o real sem confundir-se. Texto retirado da obra de Telma Weisz; Ana Sanchez. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. 2. ed., 3a imp., São Paulo: Ática, 2000.
199
Outros educadores, como Freinet (1896-1966), buscaram trazer para a escola
o mundo social, aliás contribuição valiosa, reiterando, como Dewey (1859-1952), o
papel educativo dos projetos e reconhecendo seu valor para o a atividade do jovem
aprendiz (WEISZ, 2000).
Apesar de todos os esforços envidados, o que se observou foi que tais
propostas centraram-se na Educação Infantil, espaço em que a preocupação com
relação à aprendizagem de conteúdos específicos era menor, secundarizando dessa
forma o ensino fundamental.
Para Weisz (2000), o professor de ensino fundamental inspirado no ideário
escolanovista vivia uma situação contraditória; tornou-se difícil para esse profissional
reconhecer que não tinha domínio dos saberes que deveria saber, que não
compreendia as implicações e consequências de suas ações, que não conseguia
corresponder aos desafios propostos para sua prática profissional. Reconhecia,
inclusive, ser insuficiente o conhecimento de que era detentor, principalmente
quando se tratava de realizar um trabalho de reconhecida importância social, como a
docência.
Na concepção de Weisz (2000), o sujeito a que se refere não é um sujeito
individual, e sim social, pois representa um conjunto de educadores com as mesmas
dificuldades compartilhando um pensamento educacional com muitas pessoas, o
que justificava a dificuldade de “[...] provocar mudanças na matriz desse
pensamento compartilhado, já que [...] ele se expressa em determinadas práticas
pedagógicas das quais é difícil recuar” (p. 32).
As buscas feitas por estudiosos por uma formatação de um novo modelo de
aprendizagem alcançou seu ápice no limiar do século XX. Essa busca encontrou
ressonância nos estudos desenvolvidos por Piaget, estudioso que mostrou que, para
conhecer, o sujeito aprendiz transforma o real, o mundo e a si mesmo. Contrariando
as ideias defendidas até então, de que a aprendizagem era uma impressão que o
mundo externo realizava na mente do sujeito, portanto de fora para dentro do
cérebro, o eminente estudioso “pôs de pé” uma epistemologia (WEISZ, 2000).
A epistemologia apresentada por Piaget tentava mostrar como se avança de
um conhecimento menos elaborado para um mais elaborado. Seus estudos
possibilitariam mais tarde a compreensão das bases teóricas para a construção de
200
conhecimentos específicos como fez Emília Ferreiro (1985), discípula de Piaget ao
investigar a psicogênese do sistema de escrita (WEISZ, 2000).
Abrem-se então, tanto para os pesquisadores da aprendizagem, quanto para
os educadores, novas perspectivas, mostrando que as bases do construtivismo, um
modelo geral da construção do conhecimento tal como formulado por Piaget e seu
grupo de Genebra, poderiam servir como uma “matriz” para os estudos mais
específicos relacionados à leitura e à escrita.
Segundo Weisz (2000), a partir dos estudos feitos por Ferreiro (1985) sobre
esse objeto escolar tão específico, foi possível pensar outros conteúdos escolares
sob o marco teórico piagetiano. O referencial teórico piagetiano oferece “[...] um
modelo epistemológico do qual é possível extrair consequências de natureza
psicológica”, como é o caso da psicogênese da língua escrita.
Os estudos realizados por Emília Ferreiro e Ana Teberosky na década de
1970, publicados na obra Psicogênese da Língua Escrita (1985), trouxeram-
contribuições enormes para a compreensão do processo de construção da escrita
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1985). Para compreendermos o que significa a
referência aos termos construção e construtivo, Ferreiro expõe-nos alguns conceitos
usados em seus estudos:
O termo construção, que uso para me referir à aquisição da língua escrita, não é muito comum; geralmente se fala em “aprendizagem”. Não é que aprendizagem seja um termo errôneo, porque efetivamente há um processo de aprendizagem, porém a história social dos termos tem impregnado o termo aprendizagem com uma forte conotação empirista que não é a que quero dar-lhe. O termo maturação está excluído, uma vez que não se trata de um processo puramente maturativo. [...] o termo aquisição é mais correto, já que não prejulga sobre mecanismos dessa aquisição. Porém sustento que se pode falar em sentido estrito de construção, usando este termo como Piaget o usou quando falou da construção do real na criança, ou seja: o real existe fora do sujeito, no entanto é preciso reconstruí-lo para conquistá-lo. É precisamente isto que as crianças fazem com a língua escrita: têm que reconstruí-la para poderem apropriar-se dela.
O termo construtivo não é sinônimo de ativo. Por certo que a criança, enquanto sujeito que constrói conhecimento, é um sujeito ativo, mas para a tradição pedagógica “ativo” pode querer dizer uma série de coisas que não estão necessariamente contidas no termo construtivo (e vice-versa) (FERREIRO, 2008, p. 78, grifo do autor).
201
As referências feitas pela autora vêm de suas observações em muitos
contextos educacionais em que, ao se falar de construção da escrita, ela é vista
como se partisse de algumas ideias curiosas, engenhosas e até mesmo
extraordinárias que as crianças possam ter sobre a escrita.
Esse processo é mais que isso, afirma a autora. Tampouco se trata de se
achar que algumas coisas se constroem e em seguida ocorre uma adição linear do
construído, como se no início se tratasse de um processo construtivista e em
seguida retornasse ao associacionismo (FERREIRO, 2008).
Das pesquisas realizadas por Ferreiro (1985), vimos emergir um sujeito que
se esforça por compreender a escrita passando por níveis sucessivos de
conceitualizações, como aponta a autora:
Num primeiro momento as crianças conceitualizam a escrita como um conjunto de formas arbitrárias, dispostas linearmente, que não representam os aspectos figurais do objeto – para isto serve o desenho – e que serve fundamentalmente para representar aquela propriedade importantíssima dos objetos que o desenho não consegue representar: o nome. Linearidade e arbitrariedade de formas são duas características mais facilmente aceitas de uma representação escrita.
Logo começam a elaborar as condições de interpretabilidade, ou seja, para que a escrita represente adequadamente algo, não basta que haja formas arbitrárias dispostas linearmente; faltam certas condições formais, de um caráter muito preciso: uma condição quantitativa e uma condição qualitativa. A quantitativa tem a ver com a quantidade mínima; a condição qualitativa com o que temos chamado de variedade intrafigural ou variedade interna.
A fonetização da escrita se inicia quando as crianças começam a buscar uma relação entre o que se escreve e os aspectos sonoros da fala (FERREIRO, 2008, p. 84-85).
Para se alfabetizar, a criança precisa construir respostas para duas questões:
1- O que a escrita representa?
2- Qual a estrutura do modo de representação da escrita?
Para compreender como se organiza o nosso sistema alfabético e dar
respostas a estas questões, a criança vai trabalhando com hipóteses que traduzem
uma lógica que se apresenta num nível conceitual, e não perceptual, como
supunham alguns educadores.
202
O fato pedagógico do aluno Jairo retrata fielmente o descompasso entre os
conhecimentos que eu possuía e as conceitualizações infantis sobre a escrita
explicitada por Ferreiro (2008), já que, quando eu pedia para que ele fosse à lousa e
escrevesse EU, porque eu já havia lhe ensinado as vogais, eu era incapaz de
perceber a lógica que estava sendo explicitada pelo meu aprendiz quando ele
escrevia OIA.
Isso remete ao alerta feito por Weisz (2001), de que a escola considera como
evidente que “a escrita é um sistema de signos que representa os sons da fala”, e
que isso já está garantido a priori para a criança.
A partir do terceiro nível, em que há a fonetização da escrita, as crianças
começam a estabelecer relação entre as pautas sonoras e os aspectos gráficos da
escrita, mediante três níveis evolutivos sucessivos: a hipótese silábica, a hipótese
silábico-alfabética e a hipótese alfabética.
Na hipótese silábica uma letra é usada para representar cada sílaba. Alguns
alunos podem representar inicialmente com letras que não correspondam ao valor
sonoro das letras que compõem a palavra, preocupando-se apenas com os
aspectos quantitativos. Progressivamente, o aluno vai buscando a correspondência
entre os aspectos sonoros que compõem a palavra, correspondência esta que
costuma ser constitutiva da escrita convencional.
Meu aluno Jairo apresentava-me justamente uma hipótese silábica de escrita.
Se eu estava a pedir-lhe que escrevesse EU, ele estava convicto de não estar
enganado, já que meu nome é ODILA; portanto, sua escrita OIA representava uma
escrita silábica estrita, como nos aponta Ferreiro (1985) citada por Weisz (2000).
Esta hipótese representa um salto qualitativo para a compreensão do sistema
alfabético, muito embora seja uma hipótese ao mesmo tempo falsa e necessária,
como nos sinaliza Weisz (2000):
A hipótese silábica é um salto qualitativo, uma daquelas “grandes reestruturações globais” de que nos fala Piaget. Um salto qualitativo tornado possível pelo acirramento das contradições entre as hipóteses anteriores da criança e as informações que a realidade lhe oferece.
O que caracteriza a hipótese silábica é a crença de que cada letra representa uma sílaba – a menor unidade de emissão sonora.
203
[...] supor que cada letra representa uma sílaba é falso com relação à concepção adulta da escrita, à convenção social que é alfabética. Mas não resta dúvida de que é muito mais verdadeira que as hipóteses anteriores. Ela dá uma resposta verdadeira à primeira questão: “O que a escrita representa”?” “O salto qualitativo é a descoberta de que a escrita representa os sons da fala. Junto com a compreensão da natureza do objeto representado emerge a necessidade de estabelecer um critério de correspondência. Não é mais possível à criança atribuir globalmente a palavra falada à sua escrita. Impõe-se a necessidade de partir tanto a fala, quanto a escrita, e fazer corresponder as duas séries de fragmentos. Nesse esforço, a criança comete um erro: supõe que a menor unidade da língua é a sílaba. Um “erro” aliás muito lógico, se pensarmos na impossibilidade de emitir um fonema isolado. A hipótese silábica é, então, parcialmente falsa, mas necessária. Necessária como são necessários “erros construtivos” no caminho em direção ao conhecimento objetivo (WEISZ, 2000, p. 3-5, grifo do autor).
Essa hipótese ainda vai gerar inúmeros conflitos no aluno, na medida em que
há um acirramento das contradições entre a sua escrita e as informações que
recebe do mundo exterior.
A partir das intervenções feitas pelo professor, da confrontação de sua escrita
com a escrita convencional presente na cultura escrita é que o aluno poderá
abandonar mais uma vez a hipótese silábica, assumindo outra hipótese rumo à
escrita alfabética, podendo nesse momento responder à segunda questão já
mencionada: Qual a estrutura do modo de representação da escrita?
Como nos lembra Weisz (2000): Por quais razões não conseguíamos ver em
outros períodos de nossa trajetória docente tais escritas em nossas salas de aula se
elas estavam lá?
A resposta é que não podíamos “ver” a escrita silábica por razões semelhantes à de que a humanidade não pôde rever a ideia de uma Terra plana enquanto não admitiu que esta é que girava em torno do sol, e não ao contrário. Foi necessária uma concepção dialética do processo de aprendizagem, uma concepção que permitisse ver a ação do aprendiz construindo o seu conhecimento, onde o professor aparece não mais como o que controla a aprendizagem do aluno, e sim como um mediador entre aquele e o conteúdo a ser aprendido. Só a partir desse novo referencial é possível imaginar que a criança aprende algo que não foi ensinado pelo professor (WEISZ, 2000, p. 6, grifo do autor).
Afinal, pensar dialeticamente requer de nós uma postura de volta ao tempo
que somente a memória nos permite, como ensina Fazenda (2001b):
204
Nessa volta ao tempo que somente a memória permite, tentamos encontrar o fio condutor da história do conhecimento, e eis que um primeiro símbolo nos é anunciado: Conhece-te a ti mesmo. Conhecer a si mesmo é conhecer a totalidade, interdisciplinarmente. Em Sócrates, a totalidade só é possível pela busca da interioridade. Quanto mais se interiorizar, mais certezas vai se adquirindo da ignorância, da limitação, da provisoriedade. A interioridade nos conduz a um profundo exercício da humildade (fundamento maior e primeiro da interdisciplinaridade). Da dúvida interior à dúvida exterior, do conhecimento de mim mesmo à procura do outro, do mundo. Da dúvida geradora de dúvidas, a primeira grande contradição e nela a possibilidade do conhecimento... Do conhecimento de mim mesmo ao conhecimento da totalidade (FAZENDA, 2001b, p. 15, grifo do autor).
A exemplo de Capostagno114 (2010), também trago claro que é chegada a
hora da resposta ao problema central de pesquisa:
Em que sentido a teoria interdisciplinar, tomada como iluminação teórica do
estudo do fato pedagógico, pode fundamentar a discussão da formação disciplinar
da professora (hoje, pesquisadora)? Pode explicitar a relação da professora e do
aluno Jairo com o saber? Pode fertilizar os caminhos da melhor qualificação docente
às novas gerações de educadores?
Se a interdisciplinaridade deve buscar o espaço de concretização em respeito
à própria disciplina, só mesmo a teoria interdisciplinar poderia sustentar a
fundamentação da formação disciplinar da pesquisadora e explicitar as relações dela
própria e do aluno Jairo com o saber.
Acredito que a fertilização dos caminhos da melhor qualificação docente às
novas gerações tem, na interdisciplinaridade, a iluminação teórica para uma
descrição do fato pedagógico, de forma a mais pertinente, significante, provocante,
suficiente e compreensiva possível (REZENDE, 1990), ou seja, o eterno processo
ação reflexão ação sobre a ação e, num só movimento, reflexão na ação.
Contudo, o tempo de concluir o trabalho deveria ser o de recomeçar, pois o
amadurecimento intelectual propiciado por esse tempo de conclusão seria ainda
mais suficiente para dar à pesquisa outros matizes e novas ideias que haveriam de
abrir outros caminhos da ciência não percorridos até aqui.
114
Cássia Elisa Lopes Capostagno; Tápias-Oliveira, Eveline Mattos (Orient.). Concepções e práticas relatadas sobre leitura de professores da EJA da Rede Municipal de Ensino de Taubaté. 2010. 130f Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Departamento de Ciências Sociais e Letras, Universidade de Taubaté, Taubaté, 2010.
205
A relevância da pesquisa, no entanto, está no fato de que aprendi a separar e
a distinguir as perguntas intelectuais das perguntas existenciais, e é justamente essa
aprendizagem que me possibilita continuar insistindo na construção de
conhecimentos ainda não sabidos.
O ir e o vir e o vir a ser do conhecimento experimentam dos múltiplos trânsitos
do movimento incessante:
Tese antítese síntese.
O processo racional. As oposições que se resolvem em unidades e sempre
provisoriamente. A união incessante dos contrários.
206
5 A INTERDISCIPLINARIDADE PRÁTICA E AS PRÁTICAS ESCOLARES
INTERDISCIPLINARES: o diálogo, a linguagem e a relação dialógica na prática
educativa sentidos e significados
Interdisciplinaridade não é categoria de conhecimento, mas de ação [...] A ação política assegurada contra a irrepreensível contingência do real (FAZENDA, 2003, p. 75).
Entre o discurso da interdisciplinaridade nas práticas escolares e a vivência
das práticas escolares interdisciplinares, não obstante os avanços conseguidos,
parece haver um fosso, derivado da compreensão eclipsada indicativa de um
sentido superficial da interdisciplinaridade e da amplitude e abrangência da ação
educativa interdisciplinar na escola e na sala de aula. Em outras palavras, falta de
apreensão da essência do fenômeno. Como se à escola e a seus agentes
educativos (a exemplo da própria pesquisadora da interdisciplinaridade no Brasil)
faltasse se perguntar: Interdisciplinaridade, qual o sentido?
Essa pergunta de Fazenda (2003) dá nome à obra requerida para as
reflexões que se sucedem, e das contextualizações feitas pela autora extraio alguns
fragmentos para dizer que se trata, segundo as expectativas filosóficas das décadas
de 60 e 70, da
busca de um sentido mais humano para a Educação... busca da compreensão do humano em outros aspectos que não apenas o racionais. A questão da Palavra, como ela se articula, o valor da palavra pronunciada, o cuidado no Dizer, a necessidade de Ouvir (FAZENDA, 2003, p. 5).
Do ponto de vista sociocultural década de 80 , os estudos interdisciplinares
apontam para a busca da “identidade pessoal, social e cultural” inclusos “[...] o
sentido de uma cultura brasileira, do que nos constitui povo. [...] o sentido da
história, a compreensão da Dialética como princípio e método” (FAZENDA, 2003, p.
6).
Inaugurada a atmosfera de mudanças, as questões sociais encontram
ancoragem na filosofia da história e, sob seu escudo, fomentam o movimento
revolucionário que, partindo do resgate do subjetivo, alcança a seara da “história das
207
ideias e das sociedades”, abrindo espaço para o toque decisivo na “historicidade
pessoal” alongada na autenticação das “histórias de vida” (FAZENDA, 2003, p. 6-7).
Essas mudanças favorecem o entendimento de que há, nos avanços da
ciência e nas indicações de possibilidades de superação dos problemas humanos,
vinculação dinâmica e construtiva com a própria história da humanidade.
A década de 90 dá lugar à exploração da subjetividade, ao poder por ela
exercido e à definição de seus territórios no bojo da reificação da fenomenologia
ainda sem “[...] a personificação do pensamento, a potencialização do pensamento
tornado ato” (p. 7). Disseminam-se os estudos sobre “[...] o sentido do ser a partir de
sua própria natureza biológica” (FAZENDA, 2003, p. 7).
Surgem os ensaios de “uma ética do existir”, a decifração de “símbolos e
metáforas”, a condução a uma “antropologia do sujeito”, impulsionada pela
necessidade de
uma interiorização que propicie a exteriorização. Caminha-se da leitura do eu para a leitura do nós. As histórias de vida adquirem importância como suporte e não como caminho [...] a tônica fica com outras coisas que antes pertenciam ao mundo da arte [...] a estética do existir, a beleza do ser que pensa e reflete esse ser que interfere e modifica (FAZENDA, 2003, p. 7).
“A palavra é soberana” [...]. A interdisciplinaridade busca,
[...] compreende-la em sua ambigüidade naquilo que diz e naquilo que cala. Tenta ouvir o silêncio. Tenta estabelecer as sinapses fragmentadas. Tenta ousar. Tenta criar, criar beleza da pedra bruta, diríamos como Michelângelo extraindo Moisés (FAZENDA, 2003, p. 7-8).
Com efeito, os tantos avanços nos estudos sobre a interdisciplinaridade,
sobretudo nas dimensões sociológica, filosófica, psicológica e linguística, fazem hoje
ressaltar aos olhos a obviedade da falta de apreensão do significado da atitude e da
ação interdisciplinares que evidenciam nas escolas, entre os educadores e na ação
docente, a ausência da apreensão da essência do fenômeno interdisciplinar, como
apontado na inicial.
Em que pese a gama desses estudos há tempos realizados, permanece a
lacuna verificada no conhecimento da dimensão teórico-prática da
208
interdisciplinaridade, que por certo está ligada a uma multiplicidade de diferentes
fatores, alguns deles mais facilmente identificados nas pesquisas realizadas nos
campos da Didática e do Currículo, principalmente, seguidas as trilhas da história da
educação brasileira, de cujo modelo educacional consagrado é possível testemunhar
as marcas indeléveis do ensino transmissivo. Esse tipo de ensino, fracionado em
seus conteúdos programáticos e fortemente influenciado pela herança do
tecnicismo, fica na contramão do pensamento autônomo, criativo, inventivo e crítico
de ensinantes e aprendizes, na contramão da palavra liberada ao diálogo que
comumente tem-se reduzido a um monólogo do professor, como apontam as
publicações dos inúmeros estudos realizados.
Por outro lado, são expressivas as investigações que têm visualizado as
escolas como instituições sociais descontextualizadas do meio social e, portanto,
alheias à realidade social dos alunos. Escolas fechadas em si mesmas e resistentes
ao diálogo, mantida a forma organizacional do currículo e do ensino de maneira a
consolidar a vinculação viciada do professor com a disciplina específica de sua
formação inicial, o que acaba por direcionar a percepção do aluno a vê-la tal qual
ela lhe é apresentada pelos educadores, ou seja, matéria por matéria sem qualquer
elo visível entre elas e, portanto, sem a suficiente clareza das relações existentes
entre uma e outra, e, o que é pior, sem a clarividência de suas relações com a
realidade mais ampla e com a vida e a existência concreta daqueles de cujas
relações devem tomar conhecimento ─ os estudantes.
Esse estado de coisas vem confirmando a ideia de que, realmente, o ensino,
em grande parte das escolas básicas brasileiras, tem-se dado consoante o modelo
plasmado na formação do professor, isto é, ensinamos da mesma forma como
fomos ensinados. Seguimos, pois, o fio condutor da aprendizagem que nos foi
permitida realizar na escola que nos habilitou para o ensino.
Um dos exames da relação pedagógica estabelecida entre os atores
escolares (professores – alunos) no processo de ensino e aprendizagem, tomada a
dimensão linguística do diálogo na sala de aula, é realizado por Cordeiro (2007), que
assim se expressa:
209
[...] o professor, até bem pouco tempo atrás, sempre se caracterizou por ser um profissional que ensinava aos alunos apenas aquilo para o qual ele tinha respostas. Portanto, todo o “jogo linguístico” nessa modalidade de ensino consiste na produção, pelo professor, de perguntas cujas respostas ele domina e também no controle do diálogo, de maneira a não deixar emergir as questões sem resposta, aquelas que operam sobre um campo de incerteza e de indeterminação e que são justamente as indagações que movem a produção do conhecimento na sociedade contemporânea cada vez mais envolvida com problemas sempre tidos como insolúveis seja pela ciência, seja pela filosofia (por exemplo a origem do universo, a produção de ordem e regularidade em meio ao caos, a origem precisa da vida etc.) (CORDEIRO, 2007, p. 100, grifo do autor).
Em seguida, o autor evidencia,
No exercício dessa comunicação, a linguagem do professor é muitas vezes usada para reforçar o seu papel social e a sua autoridade na sala de aula [...] Em grande parte das interações em sala de aula, os alunos tendem a permanecer no papel passivo, daquele que apresenta respostas às questões formuladas pelo professor (CORDEIRO, 2007, p. 99-100).
Colocada a mesma questão sob o prisma da dimensão pessoal, Cordeiro
(2007) aclara que os vínculos estabelecidos entre professor e alunos também
influenciam no modo de ensinar alterando os “padrões da relação pedagógica em
sala de aula”, pois sempre dependem do conhecimento que é reconhecido como
“socialmente válido e necessário” (CORDEIRO, 2007, p. 102).
Tanto para os mestres do “Oriente budista, taoísta ou hindu”, quanto para o
“conhece-te a ti mesmo” de Sócrates, o conhecimento que importa é o
“conhecimento do próprio eu”, da “interioridade” do ser, e não propriamente “de uma
apreensão mais precisa do mundo exterior”. Então, a relação pedagógica é aquela
do mestre que leva o discípulo a admitir a sua ignorância, reconhecendo-a pelo
“processo de introspeção e de descoberta de si mesmo”. Nesse sentido, o papel do
mestre é o de “reconduzir o aprendiz à sua devida posição”, e aí instaura-se uma
relação pedagógica fruto da “[...] autoridade reconhecida como natural (ou até
mesmo sobrenatural), resultante dos contatos profundos do mestre com a perfeição
e a transcendência” (CORDEIRO, 2007, p. 102-103).
Em contrapartida, a sociedade ocidental contemporânea reclama sobretudo
pelo conhecimento do mundo exterior, “fora da instância do puro eu”, embora não
abra mão do conhece-te a ti mesmo socrático. Isso faz com que a busca pelo
conhecimento se volte para “fora do sujeito que quer aprender” tanto quanto para o
210
exterior ao sujeito que ensina, mas não por isso eximidos ambos os sujeitos do
exercício da autorreflexão. Esse é o saber, portanto, que imprimiria sentido à relação
pedagógica estabelecida nas escolas dos tempos atuais, cujos vínculos mantidos
entre os atores escolares já não são mais da autoridade reconhecida
(mestre/discípulo), mas da autoridade instituída (professor/aluno). Assim, é uma
relação caracterizada como assimétrica, porquanto o conhecimento, o ensino e a
aprendizagem desse saber considerado relevante têm finalidades determinadas por
“objetivos externos às próprias relações” (CORDEIRO, 2007, p. 103).
De outra feita, sobre o estudo da relação pedagógica considerada a dimensão
cognitiva, isto é, as relações com o saber, o autor as apresenta como uma “relação
triádica”, já que envolve dois sujeitos ─ o que ensina e o que aprende – e um
elemento estruturante da relação, que é o próprio conhecimento a ser ensinado e
aprendido.
[...] Trata-se de admitir, que para além de (ou juntamente a) ser uma instituição destinada à socialização das crianças e dos jovens, a escola tem uma função bastante precisa de propiciar acesso ao saber. Para as pessoas provenientes dos setores mais pobres da sociedade, talvez esse seja o único lugar social em que elas poderão ser postas em contato com um conjunto de saberes, práticas, instrumentos e aparatos intelectuais que não costumam estar facilmente disponíveis em outras instituições: as ciências, a literatura, as artes, os livros, enfim, grande parte do patrimônio cultural acumulado que socialmente só costuma chegar à maioria das pessoas mediante aquilo que é apresentado na escola, durante o ensino fundamental e médio (CORDEIRO, 2007, p. 109).
Correntes sociológicas, um dos motes teóricos da interdisciplinaridade, têm
examinado essa função social da escola como disseminadora do saber acumulado
pela humanidade, apontando, porém, que à medida que as elites a ele ascendem
com facilidade, os indivíduos das classes menos favorecidas se veem desprovidos
dos mecanismos de acesso a esse mesmo patrimônio cultural, não obstante os
casos de sucessos nos estudos obtidos por crianças pobres.
Diz o pesquisador que entender como esses casos se produzem,
pode ajudar na invenção de práticas pedagógicas que possam contribuir para a atenuação das grandes desigualdades sociais reforçadas, em grande parte, pelas diferenças de trajetórias escolares numa sociedade como a brasileira (CORDEIRO, 2007, p. 110).
211
Cordeiro traz Charlot para dizer da marca social imprimida nas relações com
o saber. Essas relações carecem de ser analisadas sob a ótica, não só psicológica e
sociológica, mas também didática. Reconhecido o papel de reprodução social
exercido pela escola, cabe a ela dar conta da questão fundamental, qual seja, a de
“[...] perceber o que leva crianças e jovens para a escola, o que os faz permanecer
nela e tentar aprender e quais as relações que elas estabelecem com a própria
escola e com o saber” (p. 111), imbricados na percepção de duas razões que podem
aclarar “a mobilização para a escola e a mobilização na escola” (p. 111), para
descobrir, assim, o que faz com que os alunos estudem e obtenham o êxito ou o
fracasso escolar (CORDEIRO, 2007, p. 111).
Segundo Charlot, cabe à escola delinear precisamente se o motivo que as faz
estar nela é a “demanda familiar” ligada à expectativa de vida melhor e à imagem da
escola como “instituição redentora” e, portanto, “fornecedora de oportunidades” para
a ascensão social, ou por que vêm à escola considerando-a “caminho obrigatório”
para obtenção de certificados que lhes proporcionariam condição futura de
empregabilidade (CORDEIRO, 2007, p.111).
Sobre a “mobilização na escola”, Charlot observa que as diferentes trajetórias
escolares dos alunos vão-lhes dando os indicadores de satisfação ou de frustração
dentro dela, e que esses indicadores incidem no seu desempenho, na interação com
os pares, bem como nas suas preferências por este ou aquele professor ou por esta
ou aquela matéria, e, por fim, sobre os resultados obtidos pelos alunos. Contudo,
nem todos os resultados dependem estritamente da ação dos professores, pois
resta saber do papel ativo que o aluno deve exercer na relação pedagógica, que não
é controlada unicamente pelo sujeito que ensina. É preciso atentar para o fato de
que o aluno “[...] se constitui como sujeito e se torna capaz de atribuir sentidos àquilo
que faz na escola” (CORDEIRO, 2007, p. 172). Com base nos sentidos atribuídos,
ele constitui hierarquias daquilo que lhe soa interessante e importante e por isso
merecedor do seu empenho e investimento. Daí, entender que sentido tem a escola
para cada aluno e como cada aluno opera com o sentido que atribui à escola é a
forma mais acertada de operar sobre o conjunto dos sentidos atribuídos. Nesse
caso, ouso dizer que, mesmo não tendo formação filosófica e linguística, o professor
deve “[...] tentar descobrir o pensamento humano tal como é, e procurar
212
compreendê-lo” consoante o discurso de Fazenda (2003, p. 11) sobre o vínculo
“interdisciplinaridade e linguagem” no sentido do ser.
Para tanto, é preciso, segundo Cordeiro (2007), que o professor, no seu
processo de formação continuada, reflita com rigor sistemático sobre as suas
próprias formas de relação com o saber e sobre os sentidos dos conhecimentos que
domina e ensina, perguntando-se sobre a relevância desses mesmos conteúdos e o
que eles significam para ele próprio enquanto “sujeito-professor” e, sobretudo, o que
realmente dizem para os alunos aos quais ensina. Além do mais, perguntar-se sobre
os reais motivos que o levam à escola cotidianamente, sobre a profissão professor
– por ele escolhida, sobre a docência que desenvolve, enfim, processar o reexame
de sua relação com a profissão docente para encontrar algumas rotas de
ordenamento e ou reordenamento das trilhas seguintes ─ ação reflexão ação,
para entender a escola, o seu papel na escola e as possibilidades de outras
modalidades da sua relação com o saber e, por conseguinte, com a relação
pedagógica, até que compreenda em profundidade que:
Aprender e ensinar só são possíveis pela intervenção do outro. São, portanto, atividades que se desenvolvem por meio de uma relação. No caso da relação com o saber, ela é ao mesmo tempo relação consigo próprio, com o outro e com o mundo, na medida em que esse saber e essa relação ajudam a constituir a identidade do sujeito, a sua particularidade diante dos outros sujeitos e também permitam organizar, pôr em ordem, o mundo circundante (CORDEIRO, 2007, p. 113-114, grifo do autor).
Afinal, aponta o autor, tomar conhecimento desses conhecimentos
necessários, a partir do repensar de si e da prática educativa que exerce, não é algo
dado por “nenhuma força natural ou tendência histórica irreversível” (p. 114), pois a
construção dos “significados particulares de cada situação escolar específica” (p.
114) decorre invariavelmente da tomada de decisão dos agentes educativos
realmente voltados para a transformação das relações pedagógicas e, portanto, da
escola, da educação e do ensino oferecido (CORDEIRO, 2007, p. 114)
Contudo, no contexto das mudanças vertiginosas que cotidianamente se dão
no turbilhão da vida moderna, das grandes descobertas nas ciências, da
industrialização da produção, da descomunal explosão demográfica, dos sistemas
de comunicação de massa, do rápido crescimento urbano, do mercado capitalista
mundial em explosiva e contínua expansão, mantendo-se num perpétuo vir-a-ser,
213
emerge a premente necessidade de entendermos a interdisciplinaridade numa
perspectiva transgressora, transcendente, para além da especificidade da disciplina,
extrapolando a noção de interação, integração e/ou correlação entre elas.
Necessidade de, a partir do respeito pela própria disciplina e respeito pela
complexidade da interdisciplinaridade, tratar o conhecimento com ótica ampliada
sobre o desenvolvimento da racionalidade do aluno, bem como pelo respeito a sua
pessoa, a sua realidade e sobretudo a sua identidade histórico-social e cultural.
Este é o tratamento dispensado ao conhecimento que poderá desafiar o aluno
a aprender a aprendê-lo no âmbito das ideias, dos fatos, dos conceitos, dos
procedimentos, das atitudes, dos problemas pertinentes à ciência e interligados à
concretude de sua existência, respeitando inclusive a própria autenticidade dos fatos
e dos acontecimentos e o correspondente comprometimento com eles, até porque o
raciocínio linear ou causa-efeito sofreu alterações profundas, dado que os efeitos
não são mais ligados a uma só causa, e sim a uma diversidade de causas,
igualmente modificadas pelos efeitos que produzem. Assim, causas e efeitos estão
interligados de tal forma que cada ação realizada pelo homem, por mais simples que
seja, certamente provocará uma reação no universo, daí o pensamento linear
carecer de superação pelo pensamento complexo.
Tratando das verdades filosóficas como verdades lógicas, Fazenda (2003, p.
15) pondera que “A relação de causa e efeito não é um fato empírico, mas sim uma
proposição analítica”. Efetivada a leitura sobre “o processo da lógica” como
“processo analítico” descrito por Fazenda (2003, p. 24), facultei-me pensar, apoiada
em seus argumentos, que decorre da afirmação anterior da autora que a “concepção
abstrata do mundo”, não só permeou a minha formação docente, como também me
fez ver o mundo e os fatos desligados de mim mesma e da realidade dos alunos e
da comunidade daquela escola de roça. Impediu sobremaneira que eu identificasse
os problemas reais da escola, do ensino e da aprendizagem dos alunos, tanto
quanto inviabilizou a vivência de uma prática educativa consequente, capaz de se
fazer no pensar e no repensar a própria prática e, sobretudo, suficiente o bastante
para alavancar o adentramento necessário e rigoroso no campo da significação
daquela realidade específica e do mundo circundante tal qual se apresentava.
Negou-me a ilação sobre as diferenças individuais e socioculturais e sobre as
diferentes maneiras de pensar e de refazer o cotidiano escolar.
214
Ademais, impediu a compreensão inequívoca da complexidade da
interdisciplinaridade que, segundo Fazenda (2003), jamais deve ser feita de forma
acrítica. Diria eu jamais nem pensá-la sem os aportes teóricos dos pesquisadores
consagrados que a pensam desde longa data.
Dessa forma, resta ao professor criar certo campo sinergético de aberturas de
possibilidades para a reflexão e apreensão da complexidade da realidade vivida,
para apreensão mais lapidada da teia de relações ambíguas e contraditórias que as
conforma e que caracterizam sua composição estrutural.
O tratamento interdisciplinar dispensado aos conhecimentos favorece o
redimensionamento do olhar sobre a função social da escola, o que pode redundar
no redirecionamento da ação educativa e das formas de intervenção pedagógica
mediadoras da aprendizagem significativa do aluno.
A interdisciplinaridade prática não brota da prática, e sim da concepção que
se tem de interdisciplinaridade, no sentido de se saber qual é o sentido da própria
interdisciplinaridade. Pensá-la na prática exige, antes, a clareza desse sentido. Todo
iniciante estudioso da interdisciplinaridade deve colocar, como ponto de partida de
seus estudos, três questões que me parecem básicas para o percurso da
investigação: O que é interdisciplinaridade? O que é a interdisciplinaridade teórica?
O que é a interdisciplinaridade prática?
Nos significados e nos sentidos de cada uma e do conjunto de respostas
obtidas, será possível ao pesquisador perceber, por exemplo, que a
interdisciplinaridade teórica carrega na própria constituição uma energia conceitual
de tal força educativa que parece dela fluir a energia orientadora da prática
educativa ativa que a ela busca em função do testemunho vivo da veracidade e da
funcionalidade, tanto da própria teoria, quanto da prática cujos fundamentos a
orientam. No processo de busca do sentido da interdisciplinaridade são percebidos o
entretecimento, a reciprocidade, o encontro das várias disciplinas e áreas de estudo,
melhor dizendo, a fusão lógica, coerente e consistente das várias ciências.
No próprio sentido da interdisciplinaridade está a evidência do diálogo
permanente com os cinco princípios que a subsidiam: “humildade, coerência,
espera, respeito e desapego” (FAZENDA, 2001a, p. 11).
215
Com efeito, a interdisciplinaridade interpenetra a multiplicidade de tópicos
próprios do campo das ciências humanas, num diálogo entrecruzado com a natureza
e com as especificidades de cada um deles e do conjunto deles a dialogicidade
freiriana, ouso dizer.
Nesse sentido, pode se conceber a interdisciplinaridade como ponte segura
para a transposição didática do saber teórico em saber escolar.
A intencionalidade115, na minha apreciação, se correta, é um dos mais fortes
fundamentos da interdisciplinaridade e da fenomenologia. Aparece nesse trânsito
interdisciplinar entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, ganhando
legitimidade na apreensão inequívoca da relação de interdependência teoria e
prática, posto que a intencionalidade se funda na participação efetiva, na interação
do aluno com os objetos de conhecimento e em sua responsabilidade quanto ao
próprio processo de aprender.
São os aportes de Fazenda (2011) que dão eficácia a este meu
entendimento. Diz ela que:
[...] Um projeto interdisciplinar de trabalho ou de ensino consegue captar a profundidade das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. Neste sentido, precisa ser um projeto que não se oriente apenas para o produzir; mas que surja espontaneamente, no suceder diário da vida, de um ato de vontade. Nesse sentido, ele nunca poderá ser imposto, mas deverá surgir de uma proposição, de um ato de vontade frente a um projeto que procura conhecer melhor (FAZENDA, 2011, p. 17, grifo do autor).
Nessa perspectiva, tanto a interdisciplinaridade quanto a fenomenologia se
apresentam como um conjunto de proposições infinitas e abertas para multiplicidade
de deduções e aplicações no conjunto das ciências construídas pelo homem na
história e na cultura, inclusas todas as consequências lógicas de suas bases
epistêmicas e filosóficas.
Com efeito, o ato de vontade a que se refere Fazenda (1999, 2001, 2003,
2008, 2010, 2011, 2014) parece eclodir do encontro do olhar do interior para o
exterior da disciplina, e vice-versa, do interior da pessoa do professor para o exterior
115
Intencionalidade: Conceito privilegiado na fenomenologia de Edmundo Husserl e de sua visão filosófica centrada no mundo de consciência e de essência.
216
da melhor parte dessa pessoa que ele é116; olhares de convergência, de
simplicidade, de cuidado, de paixão, de vontade. O olhar repleto da atitude
interdisciplinar intimamente ligada à postura do professor, antes de tudo. Postura
afeiçoada à procura de caminhos e respostas possíveis de transformação da
realidade dada, de transformação do velho a partir dele mesmo e para além da
realidade observada, ou seja, postura de ação e reflexão sobre e na ação refletida,
o que vale dizer a reflexão sobre a relação teoria e prática voltadas para a vida e
baseada na vontade expressa de criação, de inovação e de mudança com pessoas
e objetos de conhecimento. Exigente do autoconhecimento, do encontro da arte com
a ciência, do desejo interativo, da capacidade do melhor uso do tempo, da
habilidade de lidar com o divergente, com o contraditório, com o antagônico e com
situações de conflito. Lidar com a incerteza e com o inesperado, entre outros
atributos.
Trata-se, então, da atitude e da vontade que dão sentido à relação dialógica e
que exigem respeito mútuo entre pessoas, ideias, fazeres e saberes, que exigem
reverter obrigatoriedade em espontaneidade, a noção de trabalho como castigo pela
noção de trabalho como obra (CORTELLA, 2000), a passividade e a submissão
convertidas na liberdade de aprender e ensinar. A vontade incitada pela razão,
movida pelo sentimento de aspiração e norteada pela capacidade de tomada de
decisão expressa na ação efetivada, na disposição espontânea do espírito para
realizar algo.
Por sua vez, a relação dialógica que dá luz à atitude e ao ato de vontade
trazidos por Fazenda (2011, p. 17) encontram, no diálogo de Freire e Shor (1986),
um engajamento tal que incita, com igual força e intensidade, não só a atitude, mas
também a própria vontade a que Fazenda dedica o olhar. E passam a falar, os três
autores, de uma permissão tácita para que possa, esta inquieta pesquisadora,
também falar, não apenas em nome deles, mas sobretudo falar com eles sobre o
conhecimento que genuinamente produzem. Essa permissão me parece indicativa
do quanto de sua existência representa a fonte de uma relação dialógica autêntica,
vivencial, na educação, no ensino e na vida, enfim, na práxis dialógica, como refere
Fazenda (2003), e entendida aqui como a palavra posta em ação. Dito de outro
116
Pronunciamento do Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto por ocasião da Formação de Professores da Rede Municipal de Campos do Jordão/SP, fev. 2001.
217
modo, a palavra tomada como referente do “método educacional”, uma vez que vem
a ganhar sentido na ação.
As importantes questões debatidas por Paulo Freire e Ira Shor (1986, p. 122-
123), sobre a relação dialógica na prática pedagógica contemporânea, têm em
Freire uma expressiva ponderação:
[...] o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. É parte do nosso progresso histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos [...] é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem.
Fica claro, na manifestação de Freire, que a diferença entre os humanos e os
não-humanos está na ação transformadora consciente, mais precisamente no fato
de sabermos que sabemos (e que não sabemos), o que, segundo o autor, é mais do
que apenas saber, tendo em vista que nos fazemos, na história e na cultura, seres
da comunicação oral e escrita.
Se sabem, os não-humanos não sabem que sabem, a menos que esse
fenômeno venha a ganhar status de observação científica. É por meio do diálogo,
portanto, que podemos juntos refletir sobre o sabido e o não sabido, que podemos
atuar de forma consciente e crítica na transformação da realidade dada.
Pelo fato de o ser humano conhecer não apenas na dimensão individual, não
obstante a importância dessa dimensão para o conhecimento, ela não é suficiente
para o processo de transformação, pois é socialmente que sabemos do
conhecimento da realidade que transformamos nas práticas dialógicas efetivamente
exercidas.
Como se pode ver, não são raros os estudos que mostram, por oposto e
malogro do ensino, que a relevância político-pedagógica do diálogo tem sido
minimizada em grande parte do trabalho docente nas escolas de educação básica
brasileira, minimização esta que remete à formação inicial do professor, para a qual
Shor (1986) nos dirige a atenção, ao apontar semelhantes marcos desse
minimalismo também na prática educativa exercida nas escolas públicas
americanas:
218
[...] Os estudantes e os professores só aprenderam uma única definição de rigor: a autoritária, a tradicional, que estrutura a educação mecanicamente e os desencoraja da responsabilidade de se recriarem, a si mesmos e à sua sociedade [...] lutar com amor, com paixão, é absolutamente rigoroso [...] rigor não é sinônimo de autoritarismo [...] não quer dizer rigidez... (SHOR, 1986, p. 98).
Daí é que ressalta a relevância político-pedagógica do diálogo na gestão da
escola e da sala de aula, já que é ele o elemento que “sela o relacionamento entre
os sujeitos cognitivos”, como coloca Freire no diálogo com Shor (1986, p. 123).
As ideias desses três117 pensadores da educação que testemunham a
liberdade do ser materializam-se, a meu ver, como que estruturantes de uma
unidade sistemática consistente de problematização crítica do conhecimento em
função da recriação da realidade, considerado o teor da linguagem enquanto
pensamento tornado ato e o condimento político-pedagógico característico dos
nexos entre o pensamento, o sentimento e a ação desses pesquisadores
contemporâneos. Algo como o “habitus” indicativo do conjunto de padrões próprio
das ações e práticas sociais concretas.
Exemplo concernente dessa conexão de ideias é visível na afirmação de
Fazenda (2003), sobre o diálogo:
O verdadeiro diálogo só existe no pensamento crítico, que é um pensar dinâmico que capta a realidade em seu devir e não a dicotomiza a si mesmo na ação. O que se pretende com esse diálogo é a problematização do próprio conhecimento (FAZENDA, 2003, p. 37).
Sobre a concepção de educação de Freire, a autora a refere como ação
cultural voltada para a liberdade na qual cabe ao aluno, por meio do diálogo com o
professor, assumir o seu papel de sujeito de conhecimento. Reforçando-lhe o
conceito de historicidade, Fazenda (2003) o coloca como sendo o “homem o sujeito
e o objeto de sua história” (p. 38), o que me faz reportar a Cortella (2000), que
reiterava em suas aulas118 que, por ser o homem sujeito e objeto da história, ele o é,
reciprocamente, produto e produtor dela.
117
Os três pensadores aos quais faço referências no corpo do texto são Fazenda, Freire e Shor.
118 Registro de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 2000.
219
Da mesma forma, para Fazenda (2003) Freire “[...] arquiteta uma educação
que corresponde ao modo humano do homem, de um homem enquanto protagonista
da história.” (p. 38).
O que se pretende investigar, diz a autora,
não são os homens como se fossem peças anatômicas, mas, o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de percepção dessa realidade, sua visão do mundo. Neste sentido, a real interdisciplinaridade se preocuparia não com a verdade de cada disciplina, mas sim com a verdade do homem enquanto ser do mundo. Se assim não for, teremos uma multidisciplinaridade (FAZENDA, 2003, p. 39).
Daí também não ser importante o tratamento do conteúdo de cada disciplina
de per si, por que assim fechada nela mesma, a disciplina não dá conta de educar,
podendo apenas instruir, ainda que o faça em grau de excelência. O conhecimento
que importa verdadeiramente é aquele fruto da educação como ação, como práxis
libertadora. “[...] uma ação cultural para a liberdade, não uma doutrinação, mas uma
ação que seja produto de uma adesão consciente. Uma educação coercitiva, apenas
transmissora, não transformadora, robotiza.” (FAZENDA, 2003, p. 40).
É na expressão da fala que o homem se efetiva, se faz sujeito da própria fala.
O verdadeiro diálogo só se dá no verdadeiro encontro e vice-versa. No autêntico
encontro [...] há a real interdisciplinaridade, ou melhor, educando e educador são
sujeitos de uma mesma situação e a eles em conjunto caberá a decifração do
mundo. Quando um fala o outro escuta, e nessa pausa, a espera (FAZENDA, 2003,
p. 39).
Da intrínseca conexão de ideias, temos em Shor (1986) a confirmação
enfática:
[...] o diálogo valida ou invalida as relações sociais das pessoas envolvidas nessa comunicação. Isto é, comunicar não é mero verbalismo, não é mero pingue-pongue de palavras e gestos. A comunicação afirma ou contesta as relações entre as pessoas que se comunicam, o objeto em torno do qual se relacionam, e a sociedade na qual estão. O diálogo libertador é uma comunicação democrática, que invalida a dominação e reduz a obscuridade, ao afirmar a liberdade dos participantes de refazer sua cultura. O discurso tradicional convalida as relações sociais dominantes e a forma herdada e oficial do conhecimento (SHOR, 1986, p. 123).
220
Com efeito, para tanto, impõe-se ao professor admitir que:
Há necessidade de o professor apropriar-se do conhecimento científico, de saber organizá-lo e articulá-lo, de ter competência. Mas essa competência, para o verdadeiro educador, deve estar impregnada de humildade, de simplicidade de atitudes. É necessário enxergar o outro, construir com ele o alicerce do conhecimento, não só para servir a sociedade, mas para enaltecer a vida. É necessário despojar-se de preconceitos, questionar valores arraigados no consciente, e transcender à busca do ser maior que está dentro de nós mesmos. É sentir-se livre para poder falar e, principalmente, ouvir. Ouvir, você e o outro. É assim que concebo o ato de educar. É assim que entendo o educador interdisciplinar (FAZENDA, 2011, p. 63, grifo do autor).
Ao que Freire não só manifesta irrestrita concordância como amplia
conceitualmente a relação dialógica pertinente à educação, pois, em não sendo o
conhecimento de posse única deste ou daquele sujeito, não o é, por conseguinte, de
posse exclusiva deste ou daquele professor. O aluno carece de benevolência do
professor para acessá-lo, já que “[...] o objeto a ser conhecido... na sua totalidade
medeia os dois sujeitos cognitivos” (p. 124), devendo ser conjunta a sua
investigação e não significando necessariamente que, pelo fato de o professor tê-lo
antes acessado o conheça verdadeiramente na sua totalidade. Em verdade,
responde Freire a Shor que “o educador refaz a sua “cognosibilidade” através da
“cognosibilidade” dos educandos”... nessa “conexão”, nessa “relação
epistemológica”, nessa vinculação dos “dois sujeitos cognitivos...” nesse movimento
dialético de conhecimento e reconhecimento conjunto do objeto de estudo. “Então,
em vez de transferir o conhecimento estaticamente, como se fosse uma posse “fixa”
do professor, o diálogo requer uma aproximação dinâmica na direção do objeto”
(SHOR; FREIRE, 1996, p. 124, grifo do autor).
Freire ensina que a educação dialógica não é uma invenção direcionada a
uma prática educativa estranha à concretude da vida. Ao contrário, é uma “posição
epistemológica” que pode ser confrontada com posições as mais diversas, desde
que não minimizada a sua essência, a qual jamais nega “o papel diretivo e
necessário do educador” (p. 125), assim como não permite ser desrespeitada na sua
epistemologia, tampouco destituída da sua função iluminadora do objeto a ser
conhecido.
221
Tecendo e retecendo o diálogo numa explícita vivência da relação dialógica,
responde-lhe Shor (1986) que, diferentemente de um curso tradicional de formação
saturado por longas bibliografias, recorrentes exposições verbais do professor
acompanhadas da formulação de enxurradas de perguntas postas às respostas dos
alunos e, sobretudo, sofrida a aplicação dos incondicionais exames finais de
avaliação do conhecimento, um curso assentado nos princípios da relação dialógica
“[...] onde o professor entra sabendo muito, mas sai do curso tendo “re-aprendido”
pela busca dialógica, pela redescoberta do material com os alunos [...] recobre o uso
do diálogo de um caráter democrático”. Nesse caso, a atividade social de aprender,
por si só refaz a autoridade...a autoridade é a forma do conhecimento existente, assim como do comportamento regente do professor [...] Esses desafios desmistificam o poder do professor, abrem-no para a mudança. Eles impõem humildade à ordem existente (SHOR, 1986, p. 126).
A humildade subjacente no discurso de Shor dialogando com Freire, se não
fundada, deve guardar certa cumplicidade epistemológica e metodológica com o
princípio da interdisciplinaridade de Fazenda que, junto com outros quatro
princípios119 (coerência, espera, respeito e desapego) forma o pentágono da teoria e
da prática educativa interdisciplinar, a qual tem como atributos a afetividade e a
ousadia e, por pressupostos, a metamorfose e a incerteza (FAZENDA, 2001a).
Falamos, portanto, da “atitude de humildade ante a limitação do próprio saber”
(FAZENDA, 2003, p. 75).
As afirmações que seguem exprimem a cumplicidade aludida:
A interdisciplinaridade leva todo especialista a reconhecer os limites de seu saber para acolher as contribuições de outras disciplinas [...] é uma exigência natural e interna das ciências, no sentido de uma melhor compreensão da realidade que elas nos fazem reconhecer. Impõe-se tanto à formação do homem quanto às necessidades da ação (FAZENDA, 2003, p. 45).
119 Esses cinco princípios configuram a interdisciplinaridade de Fazenda (1999, 2001, 2003, 2008,
2010, 2011, 2014) desde a década de 1960 ganhando reconhecidos espaços no Brasil e no estrangeiro, nos centros de referência de pesquisadores da interdisciplinaridade, nas comunicações orais e eventos acadêmicos, nas produções escritas e publicações de obras e resultados de estudos, sobretudo nas pesquisas que coordena na gestão do Grupo de Estudos e Pesquisas de Interdisciplinaridade (GEPI) – PUC/SP, grupo este por ela mesmo criado no ano de 1986, como já referimos.
222
Segundo a autora, assumir esse reconhecimento exige atitude de humildade.
Exige incorporar e vivenciar o diálogo, que não é espaço de ninguém, mas sempre
dos sujeitos aos quais cumpre atingir os objetivos da transformação, pois,
a dialogicidade pressupõe o conhecimento de que existe uma intersubjetividade, de que o pensamento do outro é tão válido para ele quanto o meu para mim. Suponho uma atitude aberta e receptiva, opondo-se ao bitolamento das posições fixadas nelas mesmas (FAZENDA, 2003, p. 45).
A atitude interdisciplinar “aberta e receptiva” é a que permite ao professor
“ensinar mais e melhor”, para que o aluno e ele próprio possam “conhecer mais e
melhor” a
atitude de reciprocidade que impele a troca, que impele ao diálogo, ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo [...] atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e com as pessoas neles envolvidas; atitude pois, de compromisso em construir sempre da melhor forma possível; atitude de responsabilidade, mas sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, enfim, de vida (FAZENDA, 2003, p. 45).
A busca do sentido da interdisciplinaridade: eis o sentido da atitude de
comprometimento e de envolvimento do professor com as causas da educação,
sabendo a em estado de crise constante, e, por isso mesmo, carecendo sempre de
investimento no pensar, sentir e agir integrados e de uma esmerada formação do
educador.
223
6 “EMÍLIA” EM MIM: A LIBERAÇÃO DE SUBJETIVIDADES NO DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR TECIDO NOS FIOS DA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL E
LOBATO: sentidos e significados
6.1 Os antecedentes da dinâmica da teatralização
Verdade é uma mentira empregada, da qual nem se desconfia.
(Lobato sobre Emília)
E menos ainda do encontro de tantas outras verdades... (Odila Amélia Veiga França)
Em verdade, a eclosão de Emília em mim se deve aos efeitos gradativos,
porém contundentes, de três dos momentos fundantes que desvendaram pontos
nodais da minha trajetória de vida na educação e que, até hoje, subsidiam minha
prática docente. Um autêntico processo de interiorização alongado por três décadas
de minha existência.
O primeiro deles, como já descrito, deu-se com o Professor Cagliari, linguista
renomado da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em julho de 1970. O
segundo foi o encontro com Fazenda (1982), e o terceiro, já no Curso de Doutorado,
foi o encontro com Chizzotti (2010).
Para a descrição mais aproximada da realidade, obrigo-me a quebrar o
protocolo acadêmico na retratação dos dois últimos encontros, porque não resisto
deles falar senão nos moldes dos contos infantis, tão mágicos quanto fenomênicos.
Licença! Era uma vez uma mestra tão interdisciplinar quanto fenomenológica,
dessas de que não se tem notícia de um só ato que lhe negasse a coerência do
discurso, e não se sabe de nenhum aluno que houvesse se esquecido de seus
tantos ensinamentos. E não há lembrança de que tenha separado do objeto de
conhecimento o sujeito que o conhece.
Quando a conheci, na Fundação para o Desenvolvimento da Educação
(FDE), ela falava sobre interdisciplinaridade para um contingente de Diretores de
224
Escola e Supervisores de Ensino da Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo. Os presentes acotovelavam-se no auditório, para ouvi-la.
Naquela oportunidade eu participava do Projeto de Formação Continuada dos
Especialistas de Educação, já no exercício do cargo Diretor de Escola; contudo,
antes daquele encontro, eu nem sonhava com a possibilidade de, mais de duas
décadas depois, tê-la como professora nos Cursos de Mestrado e de Doutorado na
PUC/SP.
Sabia eu lá a razão pela qual percorreria as trilhas de acesso a esta pesquisa
a que hoje dou sentido, sob a sua orientação?
Um privilégio acadêmico sem precedentes!
Ouçam bem! Eu disse antes... porque depois...
Havia na sua fala total ausência da sequidão própria dos academicismos na
exposição de conceitos ensaiados a priori e prontos para serem transmitidos (e não
dialogados), naquela circunstância oficial e protocolar. Não a intencionalidade de
tornar evidente, ao público seleto que a ouvia, a imensidão de teorias obrigadas no
completo domínio, mas a interdisciplinaridade no olhar, o olhar interdisciplinar que
olha para efetivamente ver, o ouvir que ouve para verdadeiramente escutar, o toque
que toca para de fato sentir.
A fala mansa e pautada por afirmações repletas de conhecimento e de
sabedoria fazia-me encontrar o meu eu e com ele travar diálogo intenso, ao mesmo
tempo em que me transportava para a minha cotidianidade docente.
Assim, nessa revelação de encanto, de vida, (FAZENDA, 2003, p. 75), volto
para mim mesma e me reencontro com o meu referencial como “professorinha” do
interior, iniciante, mas assumindo uma vida de compromisso e, sobretudo, uma vida
cunhada na apreensão do significado da docência construtiva, formadora do ser
humano do meu Jairo.
Volto-me ao passado/presente em minha memória, porque enquanto percurso
incita-me a responder a voz interior que inconscientemente se faz ouvida dentro de
mim. Por que OIA, e não Eu?
Havia uma espécie de contágio na sua fala, uma incrível vibração sinergética,
sensações, pensamentos e sentimentos que parecem, aqui, não caber na mais
225
esmerada tentativa de descrição. Algo como uma mistura harmoniosa, uma
bricolagem ética e estética, de conhecimento, desejo, vontade, curiosidade, numa só
efervescência.
Ouvindo-a eu fui rememorando a professora que fora, de Jairo até aquela
data. Tão certa de que tudo fazia certo, tão religiosa das minhas crenças... como se
ao preparar bem a aula a ser dada, passo a passo, mantendo-se fiel ao método e à
técnica de ensino, não houvesse absolutamente nada roubar-lhe a razão, ou seja,
não devia resultar em outra coisa que não a certeira aprendizagem do aluno.
Afinal, esse aluno não é um ser racional? Não é, por certo, essa racionalidade
que o identifica como ser humano que pensa, logo existe? Então, é só caprichar no
ensino, valer-se de material didático interessante e em grande quantidade, usar
corretamente o livro didático e a cartilha, passar de forma clara e precisa os
conteúdos programáticos do programa já preestabelecido, dar bastante tarefa para
ser feita em casa, exercícios de fixação e cópia...
Lembrem-se, eu disse antes, o que antes eu nem sonhava, não é mesmo?
Porque ao final do encontro eu já pensava de verdade que um dia eu haveria de
crescer naquela Fazenda120! ...
Essa mestra sequestrou-me de Descartes e, a exemplo de Carmo (2004),
inverteu a posição daquele cientista, no que se pode dizer que o “homem pensa
porque existe” (CARMO, 2004, p. 38). Ela distanciou-me, sobremaneira,
[...] da dissociação entre o sujeito (ego cogitans), remetido para a metafísica, e o objeto (res extensa), atributo da ciência. A exclusão do sujeito efetuou-se com base na concordância de que as experimentações e observações realizadas por diversos observadores permitiriam atingir um conhecimento objetivo (MORIN, 2013, p. 55-56).
E levou-me à compreensão de que:
A disjunção sujeito-objeto é um dos aspectos essenciais de um paradigma mais geral de disjunção-redução, pelo qual o pensamento científico separa realidades inseparáveis sem poder encarar a sua relação, ou identificá-las por redução da realidade mais complexa à realidade menos complexa (MORIN, 2013, p. 55-56).
120
Aqui fazendo referência à Profa. Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda.
226
Um sequestro sem pagamento de resgate foi aquele. E eu, sã e salva, pude,
de lá para cá, descortinar outros mundos do conhecimento elaborado, a partir da
revirada do baú que guardava os conhecimentos dos primeiros sequestradores –
Comenius, Descartes, Comte –, que me orientavam na prática da didática normativa
e prescritiva do ensino transmissivo e das certezas absolutas. Isso sem desprezar as
valiosas contribuições que deram esses pensadores à educação, contribuições que
até hoje são os sustentáculos da passagem do conhecimento científico para o
conhecimento escolar, e de tantas outras renovadas produções científicas, tanto no
corte do campo das chamadas ciências exatas quanto das denominadas ciências
humanas.
Era outra vez, agora no ano de 2010, e a história também se dá com um
professor desses que não há como esquecer, o Dr. Chizzotti.
Ele falava, na sala de aula da PUC/SP, sobre uma vastidão de tópicos do
conhecimento; no entanto, um deles, a fenomenologia, este sim, virou a minha
cabeça de vez.
Meus ouvidos atentos a sua fala fizeram sacudidas as minhas ideias
arraigadas em demasia, e dessa vez vieram mais incertezas sobre o conhecimento,
embora mantivesse viva a lembrança do divórcio com o absolutismo do penso, logo
existo, cartesiano.
Minhas ideias buscaram a força da vontade que, num só lapso, aliou-se
prontamente ao desejo natural de conhecer mais, de livrar-me sumariamente das
sombras da caverna platônica.
E aí meu espírito aguçou-se e minha curiosidade, mais que buliçosa, quis
penetrar na seara da fenomenologia e mergulhar mais fundo, melhor entender os
conceitos de intencionalidade, de essência, de subjetividade, do sujeito e do objeto
de conhecimento, entre outros princípios dedutíveis e operações lógicas e
abstrações husserlianas, sem dúvida impregnados de complexidade.
E foi assim que a ideia de encenar o Sítio do Pica-pau Amarelo foi ganhando
força, sopro e mais sopro. Enfim, ganhou corporeidade (eu, de Emília vestida e
ancorada na força e no conhecimento já mais apurado dos pares acadêmicos), e
trouxemos à cena os fundamentos da filosofia da ação de Husserl, entrelaçados no
227
mundo fenomênico de Lobato e encontrados sincronicamente na
interdisciplinaridade ativa de Fazenda.
Um desafio e tanto! Desenrolado fio a fio, em camadas, até alcançar os
primeiros clarões iluminadores da complexidade que caracterizava o tópico
abraçado.
E eu só sei que foi assim que se deu o nascimento de Emília em mim!
Amparada em Bourdieu (2000) arrisco-me a dizer que Emília nasce em mim
por força do poder simbólico que permeia a educação como prática social que é,
pela reorientação do olhar atento aos fenômenos de percepção social que, para o
pesquisador, o põem no controle de produção de sentido.
É só mesmo “uma caminhada reflexiva e crítica levando um olhar ao mesmo
tempo introspectivo e retroativo, mas, interativo no sentido profundo da sua
ambiguidade, permitiria o efetivo exercício da interdisciplinaridade” (FAZENDA,
2014, p. 18).
E agora a história continua, para narrar o diálogo interdisciplinar tecido nos
fios da fenomenologia de Husserl e Lobato e da arte de pôr em cena o diálogo e a
liberação de subjetividades, além de pontuar alguns conhecimentos construídos.
E então, de repente, alguém que chegou para a apresentação do Seminário
em hora bastante tardia, perguntou atonitamente: O que acontece aqui? Quem é a
Emília? De que verdade vocês tratam? Antes de qualquer resposta que pudesse ser
dada à interlocutora retardatária, eu mesma indaguei-me: Por que Emília em mim?
Esta história dá prosseguimento à contada por primeiro e tem assim o seu
começo:
Eu, Odila, verdade factual e produto da ciência e da realidade histórica e
provisória, dia certo entreguei-me à inspiração metafórica de uma das mais
intrigantes figuras de Lobato, Emília (APÊNDICE C), boneca de pano que ganhou
dupla vida – a que Lobato (APÊNDICE C) lhe dera no ato mesmo da criação e a
vida vivida no entrelaçamento com a minha própria vida, engastada na vida dos
outros tantos personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo (APÊNDICE C) e nos seus
múltiplos sentidos e significados.
228
Para os taubateanos e visitantes, o Sítio não é um objeto imaginado,
tampouco inanimado. Não é “mentira” nem “de mentira” (CHAUÍ, 1997, p. 11, grifo
do autor). Ele existe concretamente! É cheio de vida! Portanto, é percebido, tocado,
vivido, experimentado em seu chão firme e em sua ambiência de alegria,
gargalhadas e brincadeiras, colorindo a vida de todos que o visitam. O Sítio é um
mundo pleno de possibilidades e inovações, e sua existência põe-nos sempre à
procura das verdades.
Sobre a palavra “mentira”, Antunes (2000) descreve o seu olhar:
Como dispomos apenas da palavra “mentira” para designar o oposto à verdade ou a falta da mesma, com muita frequência a usamos como instrumento de censura e, nesse caso, como um valor negativo. Em geral, não gostamos que as pessoas mintam e, dessa forma, indiretamente estamos restringindo o uso do imaginário por toda criança (ANTUNES, 2000, p. 15).
E Emília, que não é “mentira” nem “de mentira”, ao procurar as verdades,
ocupa o seu lugar cativo no meu ser, para realizar contidas vontades, muitas e
velhas buscas, muitos desejos de verdade. Desperta o Jairo e toma-me por inteiro
para estetizar a verdade-engano de Lobato e substantificar a verdade racional de
Husserl, para levar o Sítio à PUC/SP pela fenomenologia e realizar a concretude da
intencionalidade, refletindo as essências pelas vias da arte da dramatização,
levando a efeito a interdisciplinaridade teórico-prática.
Mas, não me recusei a penetrar na minha verdadeira subjetividade
(RICOEUR, 1968, p. 36). Caminhei para dentro de mim, de meu percurso
profissional como “professorinha” dedicada e ávida de aprender. Aprender só com
os livros, não! Aprender comigo mesma e aprender o que refletia da minha própria
experiência.
E como um raio a oportunidade surge. Eis que se faz atraente e irrevogável a
incursão pelo mundo fenomênico de Lobato para vivificar a verdade literária ficcional
desse crítico, arguto e destacado escritor taubateano da Literatura Infantil Brasileira.
Assim é que aquela foi uma idealização deliberada com fins da teorização e
da apropriação dos fundamentos fenomenológicos de Edmund Husserl (APÊNDICE
D) (variante alemã) os quais, articulados ao pensamento de outros tantos cientistas
229
e correntes teóricas estudadas no Curso de Doutorado121, haviam de me oferecer,
não respostas prontas e acabadas, e nem todas as respostas às perguntas
intelectuais e existenciais postas por mim, há muito formuladas e perseguidas, mas,
com certeza, identificar os indicadores dos caminhos das pedras e das pontes que
favoreceriam a almejada travessia do conhecimento comum ao conhecimento
científico. Haviam de sinalizar os elementos constituintes da atividade filosófica
crítica para tornar consolidado o pensamento crítico. Permitir ao pensamento
interrogar-se a si mesmo para retornar a si mesmo – a ação reflexão ação e,
em outras palavras, o conhecimento do conhecimento sobre si, sobre a Natureza,
sobre o mundo e a vida, o quê, o como, e o porquê da ciência e da existência – o
sentido e a significação das coisas e das ideias, da estrutura e das relações entre
elas: por que existem coisas e ideias e por que são como são. Indagar sobre o
mundo vivido sobre o qual e no qual o homem pensa, sente, age e mantém as
relações que mantém, num movimento contínuo e interminável, como observa Chauí
(1997).
No limite do meu conhecimento sobre as ciências, a proposta de reflexão
acadêmica instigada pela epistemologia orientada pelo Prof. Chizzotti representou o
ponto de eclosão de assumir-me como Emília.
Esse fenômeno Lobateano de nome Emília é uma figura estonteante para as
crianças, e se ela tem medo da Cuca não o tem para desafiar-me a reconhecê-la na
minha subjetividade e assumi-la na minha exterioridade. Resoluta, aproxima-se de
Dona Benta e a convida a convencer-me a enfrentar tal desafio com a urgência
requerida. Travessa, nem tanto, mas curiosa até o fundo da dissecação das
verdades eidéticas. Meu epoché vibrava entre a abstração subjetiva e a
exterioridade do relacionamento cotidiano com os parceiros acadêmicos. O
pesquisar era a sinalização que se delineava: conhecer a mim mesma, desvendar o
meu intrigante caminho de alfabetizadora e o que se pronunciava a minha frente –
aprofundar e estudar academicamente, com método, com rigor científico, a partir do
fato pedagógico em análise que sempre me intrigou e que nunca se apagou de
minha inquietude:
121
Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. Disciplina: Epistemologia da Educação. Prof. Dr. Antônio Chizzotti. PUC/SP, 2010.
230
Foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o filósofo alemão Husserl a propor que a filosofia fosse o estudo e o conhecimento rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico, examinando os fundamentos, os métodos e os resultados das ciências. Foram também preocupações como essas que levaram filósofos como Bertrand Russel e Quine a estudar a linguagem científica, a discutir os problemas lógicos das ciências e a mostrar os paradoxos e os limites do conhecimento científico (CHAUÍ, 1997, p. 37).
Assim, discorrerei sobre as inquietudes, sobre as perguntas intelectuais e
existenciais postas, muitas das quais aguardam solução nas fronteiras das ciências
e, principalmente, nos limites do meu conhecimento sobre as ciências, aqui
confessado, não obstante a permanente necessidade de vínculo entre o
intelectual e o existencial122, como sinaliza Fazenda (2014) em uma das suas falas
na sala de aula da PUC/SP.
Vamos lá! Era outubro de 2010. Uma tarde de sábado, abrasada por um sol
estonteante, e o convite de fazer muitas coisas, menos estudar. Mas precisávamos
nos debruçar, eu e Marilda123, em tempo uno e bastante limitado, nos fundamentos
fenomenológicos de Husserl, como apontado na inicial. Com efeito, iríamos
apresentar o Seminário sobre o assunto aos diletos colegas, que antes nos haviam
presenteado com estudos sobre a Teoria dos Sistemas (APÊNDICE E), Modernismo
(APÊNDICE E) e Pós-modernismo (APÊNDICE E), Teoria da Complexidade
(APÊNDICE E) entre outros, todos de alta complexidade e de suma importância na
formação do pesquisador.
Uma montanha de livros e uma série de conceitos, até então sem muito
significado, apresentavam-se de uma forma inconsistente para nós. Precisávamos,
de fato, mais do que apresentar um Seminário. Deveríamos penetrar nos
fundamentos fenomenológicos incorporando os processos reflexivos e a significação
das experiências subjetivas, concordando, sobretudo, que “[...] todas as experiências
humanas são experiências do e no ‘mundo de vida’.” (SCHUTZ, 2012, p. 25, grifo do
autor).
122
Registro de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Fragmento da fala de Fazenda na aula de 05 nov. 2013, sobre a relevância de diário de bordo. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 2013.
123 Marilda Prado Yamamoto, Mestra e Doutora em Educação pela PUC/SP.
231
No calor das muitas leituras feitas, das trocas profusivas, dos inúmeros
apontamentos e esboços do pensamento e em meio a um turbilhão de ideias
firmadas na intenção de bem realizar a obra acadêmica, flui em nossas mentes, de
forma simultânea e sincronizada, a percepção clara e imediata do espaço de
representação simbólica, ou seja, a ideia de “pisar a cena”, como a designa Ferreira
(2004, p. 437), a verdade-engano, ponto nodal de Lobato, inserida no pensamento
fenomenológico de Husserl, entrecruzando os mundos fenomênicos desses dois
ilustres intelectuais literatos contemporâneos da filosofia fenomenológica e da
epistemologia.
A verdade-engano de Lobato fala dos sonhos das crianças e dos sonhos de
criança. Da criança que nós adultos não podemos banalizar. Lobato dá vida aos
amigos imaginários das crianças, alimenta o invisível, as imaginações fantásticas...
Considerando que o literato não diz, e sim, quer dizer, nesse sentido, não só
eu, a Emília, como eu na Emília, e todos demais acadêmicos participantes da
dinâmica da dramatização, não simplesmente nos fizemos portadores de suas ideias
mas, de certa forma, os revivenciamos na criação, nas criaturas e nas ideias.
6.2. A dinâmica da teatralização
Assim, não mais que num lampejo, Marilda intui sobre o eixo norteador do
trabalho: “O ‘Sítio’ vai à PUC SP pela Fenomenologia”. Coincidente com a sua
intuição, eu acrescento: Seria a verdade ficcional ou o “pseudofato” (BUNGE, 2002)
discutido pela teoria científica? Posta em cena para que a curiosidade aguçada
inflame nosso interesse investigativo e nos permita penetrar na “ciência das
essências”?
Naquele mágico clima de produção de conhecimento minha memória
educativa arrastou-me para o encontro com Cagliari (1970) e com Fazenda no ano
de 1982. Uma memória fenomênica aquela...
232
Com efeito, essa intuição,124 a estratégia de encenar o Sítio do Pica-pau
Amarelo, via de acesso à concretude do entrecruzamento Lobato/Husserl e
causadora da eclosão de Emília que, na oportunidade, é caracterizada por mim
(trajes, maquiagem, cabelos de fitas multicoloridas e outros acessórios; posturas,
linguagem singular, modos chistosos e reconhecidos de pronto, chegados a calhar
naquele contexto), e integrada às falas dos colegas doutorandos daquela memorada
turma, a saber: Celso (para representar o Dr. Caramujo); Juarez (o Pedrinho);
Marilda (a Dona Benta); Odila (a Emília); Sueli (a Tia Anastácia) e Telma125 (a
Narizinho), alguns dos ignescentes personagens do sítio nacionalmente
conhecidos.
E aí... o mundo de vida aflorou em nossa consciência. E qual é o mundo de
vida próximo e fenomenologicamente significativo para nós, se não aquele no qual
brincamos, nos sujamos de terra, chupamos mangas caídas do chão, com nossos
alunos, netos e familiares curiosos?
Em Bachelard (apud JAPIASSU, 1983, p. 23), encontramos a assertiva,
quando nos enfrenta, de que “Não vivo no infinito, porque no infinito não me sinto em
casa”. E como é a vida perto de nós? É a vida que consideramos real. É aquela na
qual podemos ficar, apalpar, sentir e intervir, porque para nós tem significado, tem
familiaridade e substância afetiva. Ela é a vida em que se produzindo nos produz.
Japiassu (1983) apropriadamente intervém: “A vida real e produtiva exige
124
Intuição: vocábulo aqui empregado para dizer da “habilidade de compreender ou produzir novas idéias instantaneamente sem elaboração racional anterior. Sin. Insight, visão. Assim, o “intuitivo” é oposto ao “racional” e, em particular, ao “exato” e ao “formal”. Entretanto, o intuitivo e o formal são apenas os extremos de uma ampla escala. Além disso, as intuições nunca saem do nada, mas culminam em processos de aprendizagem e pesquisa. E, se promissoras, poderão amiúde ser exatificadas. Isto prova que a intuição é em geral, a primeira etapa do processo da formação de conceitos. Ademais, a prática da razão fortalece a intuição: o estudioso experiente desenvolve um “sentimento intuitivo embora nunca infalível” (BUNGE, 2002, p. 203, grifo do autor).
125 Como Marilda (“Dona Benta”), Telma (“Narizinho”) é hoje titulada doutora. Ambas são
pesquisadoras no GEPI – Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade, que é formado por professores, mestrandos, doutorandos e alunos egressos do Programa de Pós-graduação em Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Esse grupo, estabelecido em 1986, sob a coordenação da Professora Doutora Ivani Catarina de Arantes Fazenda, tem promovido pesquisas a respeito da Interdisciplinaridade em várias áreas do conhecimento, além da educação, tais como: Arquitetura, Administração, Direito, Jornalismo, Artes Plásticas e Saúde. Fonte: Seminário Interdisciplinaridade Prática. Realização em 10/11/2011. Composto pelo grupo de acadêmicos composto por Adalzira Regina de Andrade Silva, Ana Luiza, Ana Maria Ruiz Tomazoni, Chrissandra Rebouças de Souza Lauar, Christine Syrgiannis, Fátima, Katia Regina Conrad Vieira, Marilda Prado Yamamoto, Marilice Pereira Ruiz de Amaral Mello e Odila Amélia Veiga França.
233
criatividade, não entra em seus planos. E exige que se faça um compromisso entre o
factual e o possível” (JAPIASSU, 1983, p. 11).
Descortina-se, assim, a realidade próxima de nós. O mundo fenomênico de
Lobato. Começamos a penetrar e entender o claro-escuro, a verdade-engano. O
“Saci”, por exemplo, é “saci” na nossa ideia, sem ser saci de verdade. E o Saci faz
parte dos fenômenos lobateanos126, como a Emília, a Narizinho, o Visconde de
Sabugosa, a Dona Benta, a Tia Anastácia e tantos outros.
Basta que observemos a pendenga presente no diálogo comum a muitas
pessoas:
─ É de mentira, o saci. Ele não pula numa perna só, coisa nenhuma.
─ Nada disso... Concordo com você. Ele não pula, nem trança crina de
cavalo algum...
─ Ele não existe!
─ Trança, sim senhor! Nós mesmos já o vimos aqui no sítio.
─ Viram, como?
─ Ora como... se a gente “imagina” que ele existe, é por que ele existe,
ora!
─ Existe mesmo só na cabeça de quem o imagina...
É o mundo dos objetos fixados que dão a impressão de serem condições
naturais e que só serão reconhecidos se lhe afixarmos uma explicação da
consciência de alguma coisa intencionalmente interpretada.
Em Merleau-Ponty, o “filósofo do corpo”, forma de chamá-lo sugerida por
Carmo (2004), vamos aprender que o agir humano não está separado do pensar. E
o filósofo esclarece que há um “pensamento” latente no próprio corpo que escapa do
crivo de pensar consciente (CARMO, 2004, p. 39).
Além do mais, sobre o binômio percepção/conhecimento na concepção de
Merleau-Ponty, o autor alerta:
126
Figuras de Lobato que retratam o cotidiano da vida de uma avó (“Dona Benta”), recebendo a visita de seus netos (“Narizinho” e “Pedrinho”) durante as férias escolares, em seu sítio (o Sítio do Pica-pau Amarelo).
234
A percepção não é um objeto tardio para a consciência. Ela é a forma originária e primeira do conhecimento. O percebido se transporta para uma consciência que, quando em estado de alerta, dá conta de sua manifestação. Toda percepção ocorre numa esfera difusa e escapa ao controle do sujeito, pois não é um ato de vontade, de decisão de uma consciência atenta, mas sim expressão de uma situação dada (CARMO, 2004, p. 41).
Em outras palavras, pode-se entender que a visão ingênua do mundo sofre,
em movimento posterior ao percebido, o crivo da reflexão. Daí o mundo vivido, em
primeira instância, não ser completamente compreensível para nós. Isso porque, diz
Carmo (2004, p. 41), “[...] se a consciência constituísse o mundo que ela percebe,
então não haveria distanciamento entre ela e o mundo percebido e todos os
problemas seriam solucionados”.
O mundo dos objetos fixados que percebemos é infindo para a nossa
consciência; por isso, para além da nossa consciência sempre haverá um
conhecimento segregado, oculto, não manifestado à consciência de pronto, fugido à
nossa percepção.
Sobre esse movimento de esconde-esconde, Carmo (2004) sinaliza que:
Assim, os objetos não nos são dados por inteiro; nós o vemos por perfis: uma parte se manifesta enquanto outra se esconde, numa relação figura-fundo. Apesar disso, nossas sensações se dão numa configuração global: ver é tocar, ouvir é ver, tocar é ver. Há uma unidade dos sentidos; eles se comunicam. É dessa maneira que Merleau-Ponty pode afirmar que “a música não está no espaço visível mas ela o penetra, ela o investiga, ela o desloca” (CARMO, 2004, p. 41-42, grifo do autor).
Da mesma forma que Alves (2000, p. 77) afirma que “[...] o que faz um quadro
não é a tinta: são as ideias que moram na cabeça do pintor. São as ideias dançantes
na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela”.
Também Espírito Santo (1996), ao referir-se à “obra de Rudolf Lanz
denominada Pedagogia Waldorf”, faz encontrar os olhares de Carmo (2004) e de
Alves (2000), afirmando que “A mais bela obra musical transforma-se em caricatura
hedionda quando executada por artistas incapazes, em instrumentos quebrados ou
totalmente desafinados” (ESPÍRITO SANTO, 1996, p. 39).
235
Daí, pode-se compreender a voz mansa de Fazenda. E o tom sério de
Chizzotti, que me fez, inicialmente, trêmula ao adentrar a sala caracterizada de
Emília.
Assim, naquele momento e num só olhar, percebi Emília em mim e tomei
consciência do ato intuitivo da minha própria essência. Minha alma encheu-se de um
prazer indescritível. Vali-me das asas da imaginação e sobrevoei os tempos de
criança, de mocinha, de “professorinha” da roça... Cheguei até mesmo a ouvir
Emília, naquela manhã da vivência do Seminário, fazer o anúncio à porta da sala de
aula do Dr. Chizzotti: já estou entrando! Abracei afetuosamente Emília enquanto lhe
segredava: e por falar em querer, onde andava você? Por que tardou? Um
sentimento de familiaridade com os fios com os quais Lobato teceu a Emília, tão
semelhante ao tecido da minha vida, tomou o meu ser. Uma sensação de alegria me
foi dada a experimentar, um sabor de casa de avó visitou-me o paladar. Um cheiro
de capim molhado e tantas outras delícias da vida simples daqueles tempos de
serenidade, matizados de cores que nos convencem a amar a vida.
Contudo, a racionalidade me acordou: Vamos lá Odila, Dona Benta é objetiva
e prática e gosta que tudo fique pronto no tempo acertado. Foi então que me veio à
consciência que o instante intuitivo ou “aquele único ato do espírito” (CHAUÍ, 1997,
p. 63) em que decidimos levar o Sítio à PUC/SP foi se fazendo entendido por mim,
na sua inteireza, no percurso das ações organizativas do Seminário, e só alcancei
suas múltiplas e complexas significações quando radicalmente envolvida na
atividade racional e quando postada de frente com “a verdade da coisa intuída”
(CHAUÍ, 1997, p. 64). Da mesma forma em que se dão a intuição empírica (ou
sensível) e a intuição intelectual, para cujo aprofundamento conceitual mantenho a
recorrência a Chauí (1997):
A intuição sensível ou empírica (do grego empeiria; experiência sensorial) é o conhecimento que temos a todo momento de nossa vida [...] A intuição empírica é o conhecimento direto e imediato das qualidades sensíveis do objeto externo: cores, sabores, odores, paladares, texturas, dimensões, distâncias. É também o conhecimento direto e imediato de estados internos ou mentais: lembranças, desejos, sentimentos, imagens [...] sensações e percepções são exclusivamente pessoais... a intuição empírica é psicológica e refere-se aos estados do sujeito do conhecimento enquanto um ser corporal e psíquico individual (CHAUÍ, 1997, p. 64, grifo do autor).
236
Vivenciando Emília, encarnei a distinção entre intuição empírica e intuição
intelectual. Enquanto a primeira compreende a verdade instantânea e globalmente, a
segunda compreende a universalidade. Daí a sua necessidade, e daí também a
necessidade de intercomplementaridade entre as duas formas de conhecimento:
A intuição intelectual é o conhecimento direto e imediato dos princípios da razão
127 (identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente), das
relações necessárias entre os seres ou entre as ideias, da verdade de uma ideia ou de um ser (CHAUÍ, 1997, p. 64).
O cogito cartesiano “[...] é o exemplo mais célebre da intuição intelectual [...] a
afirmação de Descartes: ‘Penso (cogito), logo existo’, como esclarece Chauí” (1997,
p. 64, grifo do autor).
Por outro lado, vale atentar para a afirmação de Trindade (2014)128:
A fé no modelo científico, fora do qual não há qualquer verdade foi o fator limitante da concepção cartesiana e, no entanto, é, ainda hoje, muito difundida. Seu método, baseado no raciocínio analítico, alavancou o desenvolvimento do pensamento científico, contudo, de um outro lado, acabou provocando uma profunda cisão no nosso modo de pensar, gerando o ensino disciplinar compartimentado (TRINDADE, in: FAZENDA, 2014, p. 45).
Contudo, foi aquele instante intuitivo, sem dúvida nenhuma, o ponto de
partida do processo cognitivo e do processo de pesquisa e construção de
conhecimento acerca dos assuntos abordados, além de nos ensinar a filosofar com
a substantividade necessária. E só mesmo uma figura inquieta, esperta, inquiridora e
127
Princípios racionais: Princípio da identidade – “O que é, é... é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar”. Refere-se à convocação da identidade da coisa que deve ser sempre preservada. Princípio da não contradição – “A é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo, não - A [...] uma coisa ou uma ideia que negam a si mesmas se autodestroem, desaparecem, deixam de existir”. Princípio do terceiro excluído – “cujo enunciado é: “Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade [...] ou faremos a guerra ou faremos a paz” [...] exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira”... Princípio da razão suficiente – “afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir ou para acontecer; e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela nossa razão”. O princípio da razão suficiente costuma ser chamado de princípio de causalidade para indicar que a razão afirma a existência de relação ou conexões entre as coisas, entre ações e acontecimentos (CHAUÍ, 1997, p. 60-61, grifo do autor).
128 Diamantino Fernandes Trindade. Ciência. In: FAZENDA, I. C. A. (org.). Interdisciplinaridade:
pensar, intervir e pesquisar. São Paulo: Cortez, 2014.
237
xereta poderia buscar atenção, ir fundo para aprender, interpretar e comunicar a
ciência das coisas e avançar na compreensão da ciência dos significados.
Nessas circunstâncias, Emília e as demais figuras lobateanas moradoras do
Sítio do Pica-pau Amarelo delineiam um esboço breve da história da fenomenologia,
articulando-a com a análise intencional – seu postulado fundamental. Discute o
papel da fenomenologia na intuição da essência, bem como as relações
empirismo/fenomenologia/racionalismo, culminando com as contribuições da
fenomenologia para as Ciências Humanas e Sociais, em especial a Educação, ou
seja, o mundo que se nos apresenta significativo, em que construímos
conhecimentos, trocamos saberes, partilhamos práticas, levantamos perguntas,
hipotetizamos e procuramos as respostas, vias de solução aos problemas postos e
tudo o mais. O mundo, enfim, que nos é próximo e sobre o qual cogitamos,
colocando-o continuadamente em dúvida, em estudo, em processo de investigação
rigorosa.
Com efeito, Emília ganha a forma da teoria e, numa abordagem pictórica de
linguagem, desencadeia o debate de ideias com os companheiros do Sítio, ali
representados, e não de outra maneira o descreve como um lugar ideal para se
viver, com janelas largas e portas gigantes, árvores seculares, palmeiras altivas,
comida gostosa feita no fogão de lenha e na panela de barro, pelas mãos mágicas
de Tia Anastácia, temperada com sua amorosidade e tudo o mais que a concretude
marxista129 aponta.
Confiando na arte da argumentação e de contra-argumentação, bem como no
gosto pela união incessante dos contrários, e objetivando extrair das ideias ali
discutidas as suas essências, Emília procura sustentação na força da razão que
bem caracteriza o seu perfil observador e dialogista130, e passa a descrever que,
129
Karl Marx (1818-1883), intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista moderna, que atuou como economista, filósofo, historiador, teórico político e jornalista (PEREIRA, 2010, p. 45).
130 Dialogismo: termo cunhado inicialmente pelo linguista russo Mikhail Bakhtin (apud BRAIT, 2005,
p. 106) e posteriormente utilizado na Teoria dos Sistemas, apresenta três características: a) como princípio geral do agir – só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença; b) como princípio da produção dos enunciados discursos, que advém “diálogos” retrospectivos com outros enunciados/discursos; c) como forma específica de composição de enunciados/discursos, opondo-se nesse caso à forma de composição monológica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nas duas outras acepções do conceito.
238
para a dialética marxista, “[...] o conhecimento é totalizante e a atividade humana,
em geral, é um processo de totalização que nunca alcança uma etapa definitiva”
(KONDER, 1990, p. 36).
O postulado marxista remete à imperiosidade de fazer avançar o
conhecimento e o aprofundamento interdisciplinar da investigação da realidade.
Esse é o esforço do homem que pode levá-lo a transcender as aparências e
adentrar na essência dos fenômenos, o que vale dizer que o meio de realização das
operações de síntese e análise podem elucidar duas das dimensões da realidade: a
dimensão imediata e a dimensão mediata das aparências. Realizadas as mediações
adequadas entre elas, desponta a possibilidade de flagrar as contradições
essenciais que as constituem.
Para Konder (1990), tem parte no todo qualquer objeto percebido ou criado
pelo homem, que se defronta com os problemas interligados em qualquer ação por
ele empreendida. Daí a necessidade da visão de conjunto, ou seja, da totalidade
para alcançar solução dos problemas postos pela realidade sempre em movimento,
considerando que “[...] a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que a
gente tem dela” (KONDER, 1990, p. 37).
Por certo, declara Konder (1990), foi o espírito dialético de Bertold Brecht que
pôde substanciar aquela reflexão, quando afirma: “[...] o que é, exatamente por ser
tal como é, não vai ficar tal como está” (KONDER, 1990, p. 86).
Dessa forma, Emília discorre sobre a fenomenologia como paradigma de
interpretação da realidade e de suas contribuições para o processo educacional,
mas não antes de me aproximar de Jairo, vestindo a sua coragem. Sem qualquer
apropriação131, primeiro retrucava, “não sei o que seria deste tapado sem mim”,
sempre recorrendo ao imaginário “Saci”, para com vida própria inspirar-me
metaforicamente.
Dá prosseguimento ao seu discurso amolecado puxando pelo significado da
palavra fenomenologia na sua gênese etimológica. Diz tratar-se do estudo daquilo
que é manifesto, daquilo que não escapa à sensibilidade, aos sentidos. Em síntese,
aponta a boneca de pano, é o estudo dos fenômenos. Explicação não é o objetivo
da fenomenologia; ela tão somente descreve o fenômeno tal como ele se mostra.
131
Apropriação aqui utilizada para significar ausência de qualquer atitude de hesitação.
239
Uma descrição, portanto, isenta de julgamento. Têm importância para a
fenomenologia, tanto a dimensão objetiva do humano quanto a subjetiva.
O movimento ao qual Emília se entrega inteira é próprio de uma abordagem
interdisciplinar que permite “[...] desenhar um quadro já vivido, em outras cores, em
outros contornos e formas”, agora já lapidado por uma espécie de seleção em favor
da “riqueza de subjetividade” (FAZENDA, 2003, p. 67). Considerado o propósito de:
[...] selecionar do quadro aquilo que mais marcou, aquilo que foi, ou que parece ter sido, mais significativo a ponto de tornar-se inesquecível ou inesgotável. Inesgotável porque, ao recuperar o vivido de forma diferente da que foi vivida, torna o ontem em hoje, ao mesmo tempo e ao mesmo espaço, com perspectiva de amanhã. Momento próprio de toda e qualquer produção de conhecimento. Movimento dialético próprio de um projeto interdisciplinar (ainda que não conclusivo) (FAZENDA, 2003, p.67).
Ademais, Fazenda incita a compreensão da atitude interdisciplinar,
expressando:
Entendemos por atitude interdisciplinar uma atitude ante alternativas para conhecer mais e melhor: atitude de espera ante os atos não consumados, atitude de reciprocidade que impele à troca, que impele ao diálogo, com pares idênticos, com pares anônimos e consigo mesmo... (FAZENDA, 2003, p. 75).
Para a fenomenologia, o homem é um constante devir. Um eterno caçador de
sentidos, um incorrigível caçador de si mesmo. Um ser inconcluso e em ação, um
ser de responsabilidade e de liberdade. Um ser livre, criativo e inventivo.
Tanto para a fenomenologia quanto para a interdisciplinaridade, o homem é
considerado um produtor de significados; a primeira, no referente à concepção, e a
segunda, no tocante à ação.
Pode se dizer, assim, que aquilo que é concebido pela fenomenologia pode
ser exercido pela interdisciplinaridade. Dessa forma, teoria e prática aproximam a
fenomenologia e a interdisciplinaridade: uma se coloca ao exercício da outra.
A essa altura da encenação, Emília informa aos seus interlocutores que no
Sítio há até a pseudoconcreticidade de que nos fala Karel Kosik (1976), e que, para
este, o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera
240
comum da vida humana, com sua regularidade e imediatismo, penetram na
consciência das pessoas e assumem um aspecto independente e natural,
constituindo o mundo da pseudoconcreticidade, mundo este descrito pela filosofia
radical de Husserl (2005), visivelmente marcada pela concretude das contradições,
ambiguidades e paradoxos da ciência e desse mesmo mundo.
Existem categorias, intervém Dona Benta, que definem a essência lógica de
um objeto, algo lá no fundo que exprime as propriedades necessárias e constitutivas
do objeto como tal. A essência torna os fatos possíveis; essência é o que uma coisa,
de fato, é, a substância da coisa, aquilo de que a coisa se constitui. É no conjunto de
propriedades do objeto que está a essência desse objeto, e é a essência que o faz
pertencer a sua categoria e/ou a sua espécie. A propriedade essencial do objeto
difere da propriedade acidental; sem a essência o objeto não existe como tal
(BUNGE, 2002).
Nesse sentido, Husserl “[...] dirá que existe, no interior de nossa consciência,
um conjunto de ‘sensações’ ainda opacas, que por si só não apontam, ainda, para
nenhum objeto. Essas sensações delimitam a região da ‘sensibilidade’ no sentido
estrito da palavra” (MOURA132, 2007, p. 11, grifo do autor). E consciência, sinaliza
Dona Benta com o dicionário de filosofia nas mãos, é sempre consciência de alguma
coisa, e aí é que a consciência tem a ver com a intencionalidade, ou seja, “[...] aquilo
que se refere ao pensamento... a feição essencial da mente em oposição à matéria”
(BRENTANO, apud BUNGE, 2002, p. 199-200). (APÊNDICE D).
A “estrutura da consciência enquanto intencionalidade” é o eixo norteador do
projeto fenomenológico de Husserl (2005, p. 7).
Emília, apropriada do conceito husserliano de intencionalidade, diz ser esse
conceito originário da filosofia medieval, significando “dirigir-se para, visar alguma
coisa” (p. 7). Continua a prosa informando sobre o que Husserl denomina noeses –
os atos de consciência como percepção, volição, paixão, imaginação, etc., – e
noema, aquilo que a consciência visa. Daí tornar-se possível entender que “toda
consciência é consciência de” (HUSSERL, 2005, p. 7).
132
Carlos Alberto Ribeiro de Moura é doutor e livre-docente em Filosofia da Universidade de São Paulo, instituição em que leciona.
241
A exemplo de Dona Benta, passa ligeira a mão no dicionário etimológico para
completar-lhe o dito, declarando que na perspectiva filosófica a intencionalidade é
concebida como “[...] caráter próprio da consciência pela qual cada ato de
consciência corresponde a um conteúdo de consciência, i. e, toda consciência é
consciência de” (FERREIRA, 2004, p. 1117). E segue com seu discurso valendo-se
das palavras, das ideias, da ciência, e não economizando os gestos para nos
apresentar Damásio (2008, apud ANTUNES, 2008) com uma indagação, no mínimo,
provocativa e correndo às soltas da reflexão: “O que poderia ser mais deslumbrante
do que perceber que é o fato de termos consciência que torna possíveis e mesmo
inevitáveis, nossas questões sobre a consciência?” (DAMÁSIO, apud ANTUNES,
2008, p. 75).
Consciência é, assim, a capacidade que tem o ser humano de conhecer, de
saber que conhece e o quê conhece; saber de si, das coisas e do mundo
circundante, ou seja, a consciência reflexiva – o conhecimento do conhecimento.
Colocado o conceito de consciência sob o prisma psicológico, vamos
entendê-la como o sentimento da própria identidade – o “eu” e todos os estados
psíquicos corporais e mentais do humano que, responsáveis pela memória do
passado, pela percepção do presente, acrescenta a espera e a imaginação do
futuro. Com efeito, são as vivências e o modo individual de cada um de senti-las e
compreendê-las – o que se dá no nosso corpo e o que se passa no mundo interior e
exterior vivido –, as formadoras da consciência psicológica, ou seja, do “eu”
(CHAUÍ, 1997).
Por outro lado, é a capacidade do sujeito para compreender e interpretar sua
condição humana e sua situação existencial nas suas múltiplas dimensões: social,
intelectual, histórica, cultural, física, mental, entre outras que dão o significado de
consciência na perspectiva ética e moral. A consciência tomada nessa perspectiva
diz respeito à vontade livre, à liberdade e à responsabilidade do sujeito para viver e
conviver, pensar, sentir, agir, respeitar, decidir, enfim, defender os valores
fundamentais à vida humana, dentre eles a ética como pedra fundamental dessa
defesa.
Essa ideia remete a outra que lhe parece ser interdependente, isto é, a ideia
de vivência como própria da singularidade – a vivência é de cada um, já o
conhecimento é próprio da universalidade. O conhecimento é de todos os sujeitos do
242
conhecimento (CHAUÍ, 1997). Remete igualmente à ideia de que não a toa que os
princípios e fins da educação nacional os definem como “direito público subjetivo,
dever da família e do Estado e inspirada nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana” (BRASIL, 1996, p. 1-2, grifo nosso).
Para Husserl (2005), a ciência natural exige que os dados da experiência
metodicamente sejam comprovados, questionados, criticados, para enfim serem
explicados. Por oposto, sinaliza o filósofo, a fenomenologia busca a descrição do
que a consciência é, ou seja, busca descrever os atos psíquicos da forma exata,
pura, em que eles se dão à consciência. É a intencionalidade inerente à consciência
o ponto forte da fenomenologia husserliana. A intencionalidade permite ao sujeito
atribuir sentido às coisas. Husserl (2005) inova justamente nesse ponto, pois sai da
explicação da consciência para a descrição da consciência vivente; para a descrição
do objeto a ela dado ou do fenômeno que a ela se apresenta, descartando da
descrição o propósito explicativo – a descrição sim, do mundo pensado e seus
múltiplos significados, do mundo do cogito e da consciência pura, em suma, o
mundo que é de imediato apresentado à consciência.
É Mazini (2010) quem esclarece a retomada de Husserl do “Conceito de
homem animal racional (sintetizado no cogito, ergo sum de Descartes)”, o que faz
revolucionada a orientação da teoria do conhecimento e da lógica privilegiada no
século XIX,
E mostra que nele o ser humano tem sua identidade assegurada por ser racional, em vez de a racionalidade ser vista como um modo de ser do humano. O cogito husserliano não é mais o de um conhecimento científico, matemático, fundado numa concepção de um ser que pensa e de algo que é pensado o que supõe a crença de que esse ser pensante pode separar-se de tudo que o rodeia como observador imparcial. O cogito de Husserl é uma volta ao mundo da vida, no confronto com o mundo de valores, crenças, ações conjuntas, pelo qual o ser humano se reconhece como aquele que pensa a partir desse fundo anônimo que aí está e aí se visualiza como protagonista, nesse mundo da vida. Amplia-se assim o conceito de verdade não mais de verdade objetivada advinda da concepção do ser racional. [...] A pesquisa fenomenológica propõe um retorno a essa totalidade no mundo vivido. Para isso propõe um caminho próprio o método fenomenológico (MASINI
133, in: FAZENDA, 2010, p. 67-68, grifo do
autor).
133
Elcie Masini. Enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In: FAZENDA, I. C. A. Metodologia da pesquisa educacional. 12. ed., São Paulo: Cortez, 2010.
243
Dessa forma, Husserl afirma que a consciência não está fechada nela
mesma, mas ligada diretamente ao mundo e, por isso, remete ao pensamento
concreto e à ação concreta do ser humano no mundo.
Esse é um dos pontos de convergência da interdisciplinaridade de Fazenda
com a fenomenologia, ou com a filosofia da ação, pois também a
interdisciplinaridade não tem estacionamento demarcado numa teoria abstrata, mas
é essencialmente uma categoria de ação consciente, um perfeito lançamento corpo
a corpo do sujeito no âmago do movimento da vida tal qual ela se processa,
considerando o homem, a um só tempo, sujeito e objeto de conhecimento.
O embate de ideias prossegue e, ao ser questionada sobre o conceito134 de
objeto135, Emília pontua como sendo tudo o que é conhecido, apreendido pelo
conhecimento, o que é realizável. O motor da ação do sujeito, que não é o sujeito
mas pode tornar-se objeto de sua consciência e percebido por quaisquer dos
sentidos. Com efeito, filosoficamente pode-se definir objeto como “na relação de
conhecimento, o correlato do sujeito, isto é, o que é conhecido em oposição ao que
conhece” (FERREIRA, 2004, p. 1421). Dito de outra forma, aquilo que é pensado e
que se opõe ao ser que pensa. A ideia, por exemplo, nada mais é do que uma
representação do objeto que é percebido pelo sujeito.
Emília recorre novamente a Lyotard, para buscar clareza a sua resposta à
ideia de objeto.
Declara Lyotard (1967), sobre essa ideia:
134 Conceito: Idéia simples, unidade de ↑ significado, tijolo de uma ↑proposição. Exemplos:
“indivíduo”, “espécie”, “duro”, “duríssimo”, “entre”. Todo conceito pode ser simbolizado por um termo, mas o inverso é falso (BUNGE, 2002, p. 65).
135 Objeto: Tudo o que pode existir, a cujo respeito se pode falar, pensar ou sobre o que se pode
atuar. É o mais básico, abstrato e geral de todos os conceitos filosóficos, portanto indefinível. A classe de todos os objetos é, assim, a espécie máxima. Objetos podem ser individuais ou coleções, concretos (materiais) ou abstratos (ideais), naturais ou artificiais. Por exemplo, sociedades são objetos concretos, ao passo que números são objetos abstratos; e as células são objetos naturais, enquanto as palavras são objetos artificiais. A. Meinong e alguns outros tentaram construir uma teoria única de objetos de todas as espécies, concretos e conceituais, possíveis e impossíveis. Esse projeto gorou porque objetos concretos possuem propriedades essenciais (como energia) que nenhum dos objetos conceituais tem, enquanto estes últimos possuem propriedades (como a forma lógica) que nenhum dos objetos materiais pode ter. Daí a divisão mais radical da classe dos objetos ser entre objetos materiais (ou concretos) e conceituais (ou formais) (BUNGE, 2002, p. 265).
244
O processo da variação imaginária dá-nos a própria essência, o ser do objeto. O objeto (objekt) é “uma coisa qualquer” por exemplo o número dois, a nota dò (sic), o círculo, uma proposição qualquer, um dado sensível (LYOTARD, 1967, p. 16, grifo do autor).
O ato reflexivo ganha força e maior impulso quando Dona Benta retorna ao
aspecto objetivo de vivência, ou seja, o vivido, o pensado, o imaginado e o criado –
segundo Ferreira (2004), a noema ou a objetivação de vivência e a noese, “o
aspecto subjetivo da vivência, constituída por todos os atos que tendem a apreender
o objeto” (FERREIRA, 2004, p. 1406). A noese é também chamada por Husserl de
apreensão (nous grego), para dizer do “momento específico do pensamento”
(MOURA, 2007, p. 11), como já abordado neste trabalho.
Absorta naquela vivência lúdica da atividade epistêmica, não me furtou à
consciência a minha verdade factual. No entanto, de tal forma ela se fez encontrada
na verdade literária ficcional do mundo fenomênico de Lobato, pleno de construções
mentais, que, a certa altura da encenação, quase cheguei a percebê-la na
totalidade, como uma existência real. Não mais que de repente, dei-me conta de que
falava, pela fala esfuziante da Emília, sobre ideias e conceitos husserlianos, e
pensei, antes da vivência estratégica da dramatização, não saber descrevê-los de
forma alguma, e menos ainda pelas vias próprias da exposição verbal e da
expressão corporal.
Sobre isso, aponta Rosa (2001)136, pesquisadora do GEPI, que o “[...]
silenciamento dos corpos realizado nos processos educativos tem resultado numa
negação de sua existência; isto é, em alguns casos, numa subjugação que leva ao
extermínio da qualidade do que poderia ser o mais humano no Ser Humano” (ROSA,
In: FAZENDA, 2001a, p. 185).
Encontro agora, em Almeida (2014)137, também pesquisadora do GEPI, uma
dimensão que completa a ideia anterior:
136
Miriam Suzete de Oliveira Rosa. Corporeidade. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001.
137 Telma Teixeira de Oliveira Almeida. Corpo. In: FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade: pensar
e intervir. São Paulo: Cortez, 2014.
245
A visão dualista despreza o fato que o homem é um ser que faz (corpo), um ser que pensa (mente) e, sobretudo, um ser que sente; a partir do momento em que ele possui sentimentos, começa a manifestá-los das mais diversas formas. Assim, os educadores precisam refletir e preparar melhor os alunos, oferecendo-lhes oportunidades de superar suas dificuldades e possibilitando-lhes espaço permitido de aprendizagem, envolvendo os caminhos de descoberta dos talentos que necessitam emergir (ALMEIDA, 2014, in: FAZENDA, 2014, p. 77).
A decisão de dar o sopro de vida, ainda que fictícia, à Emília, minha
inspiração metafórica, deve-se ao fato de a singular personagem lobateana imprimir
sentido às minhas inquietudes e fertilizar, com ludicidade, a descrição do fenômeno
educativo, aclarando a razão de ser e a gênese do fato pedagógico em estudo,
quando o meu pequeno aprendiz da escrita – o Jairo – repetia que E + U era igual a
OIA, o EU daquele menino pensador.
A escrita do Jairo significava para mim, como já mencionado, a terceira
pessoa do singular do presente do indicativo do verbo OLHAR que, afoita e
preconceituosamente, conclui, com base na cultura e situações existenciais daquele
contexto rural, ser o tipo de escrita à moda do analfabeto de roça.
No entanto, na ótica fenomenológica, sobretudo no tocante ao vivido e
percebido e trazido à consciência, hoje me pergunto: Era Jairo? Era Odila? Eram os
dois e, essencialmente, era EU, o OIA de Jairo? E ele, com seus olhinhos
amendoados, acesos e sem qualquer impertinência, encolhia-se todo, quando lhe
insistia exaustivamente: Não é OIA... é EU, Jairo... EU!!! Por isso Jairo é o símbolo
fundamental na elaboração das minhas ignorâncias.
Tenho hoje a certeza de que esse duplo sentido ou dupla leitura não
significava nada de eventual, transitório ou fortuito aos significados. Tenho certeza,
também, de que a aprendizagem do olhar se fez tardia. O olhar de que fala Espírito
Santo (1996), não obstante a paixão de fazer educação desde a Escola Normal
fosse habitante efetiva da minha alma, pois eu era consciente da própria paixão que
abrigava desde aquele primeiro ano de docência. Espírito Santo escreve que a
questão da paixão,
[...] Cuida da consciência de que o educador deve ter das várias leituras que o educando faz em sala de aula: ele faz uma leitura das palavras ouvidas, sem dúvida, mas faz também uma leitura dos olhos do educador e aí, evidente, transparecerá a emoção, que significará a paixão do educador na
246
sua tarefa de educar. Fará também uma leitura dos gestos daquele que fala e creio que não haja dúvida sobre a importância dessa linguagem não-verbal (ESPÍRITO SANTO, 1996, p. 14).
Ademais, não me canso de admitir que Emília, de certa forma, sempre
habitou o meu ser. Ela é o símbolo preexistente que apenas dormitava no meu
interior, tal qual o Jairo, o sujeito do método da pesquisa.
Emília é o faz-de-conta que me ajuda a dar conta do existencial, ou da vida
real,
Diz René Char, do Instituto ECOFUTURO: “Aquele que vem ao mundo para
nada perturbar não merece atenção, nem paciência” (s.d., s.p.). (APÊNDICE H)
Com efeito, Emília perturba-se e é perturbadora, porém assume com coragem
o mergulho coerente na piscina vazia, e o faz no movimento fidedigno do descobrir-
se perturbada e saber-se perturbadora. Por isso, parece merecer atenção e
paciência.
No evento da dramatização eu a escolhi para expressar o aprendizado gerado
pelo fato pedagógico aqui em questão e, por certo, pode ser este o fenômeno, ou
seja, o porquê de, durante todos esses anos (1968-2010), Emília e Jairo terem
ficado embrenhados na minha consciência de educadora e até hoje estarem
radicalmente entrelaçados nas malhas da minha verdade factual, histórica e
provisória, e nas minhas incertezas intelectuais e existenciais.
Com seu perfil de criatura marota, traquinas e agitada, sempre cunhou a
minha existência, muito embora não apresentada claramente à consciência. Seu
jeito atrevido, sua postura espevitada, suas tagarelices e trejeitos. Suas perguntas
sempre provocativas e suas respostas sempre desconcertantes, curiosidade
aguçada, autenticidade e ousadia misturadas à teimosia e à perseverança. Sua
sensibilidade à flor da pele sempre me causou trabalho, tanto quanto sua
amorosidade sem conta, e tudo isso emaranhado no gosto pela liberdade de
aprender, bem como na preferência pela leitura nas entrelinhas e pela captação do
não dito – a unidade na totalidade da minha subjetividade. Emília, sem dúvida
nenhuma, tem quase tudo a ver comigo. Ela é, assim, o evento da minha
interioridade, a analogia de mim mesma e, por isso, a sua revelação me agradou
sobremaneira, por certo pela sua leveza e originalidade. Não só por isso, mas
247
essencialmente por isso, porque é Emília quem me anima e dá sentido às
sensações até então opacas em relação ao aludido fato pedagógico em estudo,
sobretudo porque sacrificou o pequeno Jairo no desenvolvimento inteligente de seu
processo de aquisição da escrita como forma de representação da língua.
Assim, Emília demonstra-me que as sensações experimentadas no passado
longínquo, agora com sentido, trazem o objeto à consciência e clarificam o
fenômeno educativo dado.
Esta é a razão de ser de a Emília ter aflorado em minha consciência: ela
aprimora o caminho da intencionalidade e desperta o Jairo na essência de minha
existência, já assumida na sua dignidade.
Emília é, pois, a inspiração metafórica da minha verdade factual, histórica e
provisória. Jairo é, além de sujeito do método, a razão precípua desta pesquisa, o
símbolo racional da nova versão de mim mesma e a minha superação. E tudo isso é
forte presença! E até a morte do último dia nunca deixará de sê-lo. Tudo isso é
conhecer-se, conhecer o outro e o mundo circundante. Tudo isso é o encontro das
possíveis respostas às perguntas intelectuais e existenciais cuidadosamente
procuradas neste trabalho.
Emília é, assim, uma figura simbólica, fruto da intencionalidade imaginativa
de Lobato, mas não está fora da realidade, pois é sabido que ela existe
verdadeiramente, como a veem as crianças, principalmente.
Com efeito, sobre a histórica e emblemática Emília, assim como o saci:
Não se pode dizer que existe Não se pode dizer que não existe Não se pode dizer que existe e que não existe Não se pode dizer nem que existe nem que não existe
138 (WEIL, 1987, p.
111).
138
Linguagem paradoxal holística: Linguagem que permite exprimir as propriedades do Ser de um ponto de vista antropocêntrico. É uma linguagem contraditória inaugurada por Gautama, o Buda, quando este diz, a respeito dos fenômenos dos seres, pensamentos, conceitos, ego, sujeito-objeto etc... (WEIL, 1987, p. 110-111).
248
Isso me faculta aceitá-la, então, como meu referente: a ideia consciente que
encerra a significação do meu inconsciente vivido e do meu consciente agora
percebido.
Jairo é, por excelência, o sujeito impulsionador do método desta pesquisa,
finalmente trazido do passado pelas mãos de Emília para se apresentar num “[...]
presente vivo [...] um passado imediato e um futuro próximo”, como escreve Moura
(2007, p. 14).
Encontra-se com esse pensamento o de Lyotard (1967), quando diz que é
nossa própria história, o percurso histórico de Husserl, que teve sua fenomenologia
desabrochada na “crise do subjetivismo e do irracionalismo” (fim do século XIX,
começo do século XX) (LYOTARD, 1967, p. 7). O sujeito da ciência histórica é
também um ser histórico. Então, “como o objeto História surge à consciência?”
(LYOTARD, 1967, p. 95).
Sobre isso, o autor assim afirma: “[...] a consciência é um fluxo de vivências
(Erlebnisse139) que estão todas no presente” [...] (LYOTARD, 1967, p. 97, grifo do
autor). “O sujeito nada mais é que uma série de estados que se pensa a si mesmo”
(HUME, apud LYOTARD, 1967, p. 97).
De outro lado, se para Fazenda (2001) a metáfora que subsidia a
Interdisciplinaridade é a do olhar, eu arrisco dizer que é com esse olhar que acolho
Emília em mim, por percebê-la como quem me acende e me subsidia
permanentemente na formulação das perguntas intelectuais e das perguntas
existenciais, atribuindo sentido ao meu pensar, sentir e agir, porque vive entranhada
na minha cotidianidade e porque significa a existência real daquilo que eu concebo
no espírito.
É talvez por isso que eu, Odila, falo dela como se a própria fosse, o que pode
explicar que a criatura fenomênica de Lobato é a (re) criação da Odila, ou seja, de
mim mesma, que nunca pisei num palco de verdade, mas que vivi, no palco
imaginário, a Emília/Odila, interpretando-as subjetivamente e objetivando-as
concretamente – a materialização da ficção.
139
Erlebnisse: [...] A unidade dessa série seria dada por um ato do pensamento imanente a essa série; mas esse ato, como observa Husserl, se junta à série como um Erlebnisse suplementar para o qual seria preciso uma nova tomada sintética da série, isto é, uma nova vivência (LYOTARD, 1967, p. 97, grifo do autor).
249
Com igual sensibilidade Emília é vivificada por mim e, na cumplicidade que
nos fazem uma só, na sintonia de falas e de olhares, auxilia-me (tão mais tarde e
nunca tarde demais) a tirar o Jairo do sono que já durava anos.
Emília dormitou no meu interior à espera do milagre do beijo da vida para
então se apresentar, já desapegada do medo e da insegurança, não mais recuada
em meio às ambiguidades, nem temerosa diante das contradições e paradoxos que
às vezes inviabilizam o possível o desejável e o necessário de se fazer. Induzem ao
sono. Um sono parecido com o da Bela Adormecida de Ruy Cezar do Espirito Santo,
ao falar do autoconhecimento:
[...] Tem olhos e não vê... Ouvidos e não ouve... [...] O “Príncipe”, que pode alcançar a “bela adormecida” Pode e deve ser o educador... (se ainda não for um “belo
adormecido”...) Conduzindo-a à fonte interna de criatividade À “hospedar a beleza” da Vida... [...] Iniciar o jovem no conhecimento de si mesmo, [...] é a tarefa do novo milênio para a Educação: O autoconhecimento O desvelar da personalidade integral [...] Autoconhecimento que implica o “Nascer de Novo” No nascer também para o espírito, Para a consciência profunda Do sentido da vida (ESPÍRITO SANTO, in: FAZENDA, 2001a, p. 204-
205)140
.
É o espírito criador próprio do ser humano. É a revelação da liberdade de criar
e daquilo tudo que a alma abriga.
É Bourdieu (2000) quem aclara esse abrigo da alma:
Quando as coisas e os cérebros (ou as consciências) são concordantes, quer dizer, quando o olhar é produto do campo a que ele se refere, este, com todos os produtos que propõe, aparece-lhe de imediato dotado de sentido e de valor (BOURDIEU, 2000, p. 285).
140
Ruy Cezar do Espírito Santo. Auto-conhecimento. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
250
E como Gonçalves141 (2001), também acolho:
Somos forma objetiva que guarda, na subjetividade, a essência do processo transformador capaz de criar outras formas a revelar, assim, a dualidade existencial humana, “ser criado” e “ser criador”. O “ser criado” é acabado, finito, mas o “criador” é complexo, plural, dinâmico e transformador. (GONÇALVES, in: FAZENDA, 2001a, p. 214, grifo do autor).
Gonçalves leva-me a inferir que é a finitude do ser criado o motor que
impulsiona o ser criador; que busca, em si mesmo, compreender-se na
complexidade, na pluralidade e na dinamicidade de sua própria existência, para
enfim entendê-la como oportunidade única de realização, de transformação.
Gasparian142 (2001), por sua vez, com notável propriedade linguística, ensina:
A importância da linguagem é fundamental. As palavras que ligamos à nossa experiência se tornam a nossa experiência. O modo como nos sentimos com relação às coisas é determinado pelo significado que lhes associamos causam impacto poderoso sobre nossas emoções e as metáforas, extraordinário. As palavras que escolhemos para conscientes ou inconscientes, descrever uma situação mudam de imediato o que ela significa para nós e conseqüentemente o modo como nos sentimos [...] As palavras causam impacto poderoso sobre nossas emoções, e as metáforas, extraordinário efeito explosivo [...] frequentemente são mais intensas que a realidade. [...] é um procedimento de linguagem que, por substituição analógica, realiza transferência do sentido, de um termo concreto para um contexto subjetivo (GASPARIAN, in: FAZENDA, 2001a, p. 215-216).
A metáfora do olhar de Fazenda (2001), há pouco ressaltada, carrega
componentes de certa linguagem de um olhar que da singularidade alcança
pluralidades: o olhar que desvela, motiva, interage, vitaliza, enfim, olhar que se
redimensiona na circularidade – o olhar interdisciplinar que respalda a ação envolta
em toda ambiguidade, mas que a faz inclusa sempre. Libera o sujeito aprendente
das amarras da ignorância de toda ordem e dimensão para que, liberado, possa
libertar-se das diferentes formas de dependência, dominação, dos automatismos, do
paternalismo, do assistencialismo, ou seja, do estado de inconscientização que o faz
141
Maria Inês Diniz Gonçalves. Metáfora. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
142 Maria Cecilia Castro Gasparian. Metáfora. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção:
Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
251
ingênuo na relação com o outro, com a natureza, com o trabalho e com o mundo, e
alienado na totalidade dessas relações.
Um olhar inteligente, como postula Antunes: “[...] o olhar inteligente sobre a
paisagem, vê uma paisagem como poucos vêem; o olhar criativo sobre essa mesma
paisagem vê múltiplas paisagens onde os demais vêem apenas uma” (ANTUNES,
2001, p. 23).
Fazenda (2001) diz143 que quando olhamos para uma pessoa a olhamos
munidos de uma intenção – a intenção de com essa pessoa interagir. E esse
processo interativo ocorre “em um tempo único”. Se eu olhar fundo você, e você
olhar fixo para mim “[...] terei um instante em minha fase de vida onde a interação
entre mim (e você) será em um único sentido, em um único momento” por causa do
desejo de meu olhar, despertado em você, por mim mesma (FAZENDA, 2001a, p.
225).144
Trata-se de um movimento fenomênico e “transcendente” porque está fora de
nós, permitindo “[...] realizar coisas que estão além da fusão de nossos olhares,
coisas muito mais eternas. Talvez em uma breve fusão de olhares podemos cooptar
o olhar da humanidade toda” (FAZENDA145, 2001a, p. 225).
Diz mais ainda: “Estes instantes de transcendência são iluminados, são
fagulhas, ilhas de paz, que acontecem na vida das pessoas e podem remetê-los
para a paz mundial”146.
Confesso que, se soubesse de tudo isso antes, eu teria desejado saber muita
coisa sobre o Jairo, por exemplo, qual era realmente o significado que ele tinha para
mim naquele tempo marcado pela década de 60? O que exatamente Jairo via em
mim ou realmente pensava sobre mim, naquela época? O que eu não via nele? Qual
seria o sentimento a nos invadir, se nos encontrássemos hoje? Por que será que ele
me inquieta ainda? Por que preciso tanto do seu olhar de ontem e de hoje para
poder me olhar no passado-presente? Poderia ser considerado superficial o meu
olhar primeiro? Mas como, se ele faz, até hoje, parte de mim? Teria eu deixado de
143
Fazenda registra: “Esse texto é uma transcrição e adaptação da aula de 03 set. 1999, elaborado por Wagner Tufano”.
144 Idem.
145 Idem.
146 Idem.
252
alimentar a espera “vigiada” em cada aula desenvolvida naquela escola de roça que
me deixou marcas indeléveis? Fui cega a ponto de não perceber “a nova roupagem”
que o Jairo adquiria a cada encontro nosso? De onde vinha a nossa relação de
confiabilidade, se, apesar de mim (dito por Cagliari em 1970) e do meu “erro
disciplinado”, desvelado em Foucault (2008), Jairo escrevia e acreditava no meu
trabalho, enquanto eu negava o seu saber ler e escrever? Onde está a mão dupla de
que trata Fazenda (2003)? Se Jairo era tão frequente às aulas, por que, então, não
me apropriei do seu universo? Por que não retirei os véus de minha cegueira para
efetivamente vê-lo? E Emília... por que não fez com que eu me descobrisse já
naquele tempo? Onde estava ela? Por acaso adormecida como Jairo? Impossível!
Ela que sempre é tão indagativa!
E agora, toca-me a parte mais dolorosa daquilo tudo, que pode estar “por trás
da metáfora do olhar”, como explicita Fazenda (2001b):147
O segundo véu é tirado por intermédio da escrita. Com o decorrer das aulas o professor vai conhecendo melhor seus alunos, à medida que eles produzem textos [...] A escrita possibilita ao aluno revelar-se de uma forma diferente, com um outro olhar sobre ele mesmo. Por fim, o terceiro véu é tirado com a fala, ou seja, na hora em que o aluno fala, ele se expressa com todo o seu corpo o que está dentro dele. Desta forma, na primeira vez que o professor abraça um aluno, seu olhar mexe-se como o corpo todo. Temos um olhar interior, que vem de dentro, escondido, mas que durante a escrita é revelada (FAZENDA, 2001b, p. 225).
Com que olhar fiz o Jairo olhar sobre si mesmo? Como Jairo podia se
expressar, se lhe roubei a fala? E o meu abraço não foi só o da primeira vez! Eu o
abraçava tanto!
E Fazenda (2001b)148 impacta-me ainda mais:
Em terceiro, na fala, observamos que no decorrer de um curso as pessoas começam a se abrir e falar à medida que “destravam” o corpo e a escrita [...] E ele só solta esta fala à medida que adquire certezas maiores consigo mesmo (FAZENDA, 2001b, p. 225, grifo do autor).
147
Fazenda registra: “Esse texto é uma transcrição e adaptação da aula de 03 set. 1999, elaborado por Wagner Tufano”.
148 Idem.
253
O Jairo tinha presa a língua e solta a mente! Eu mesma já confessei isso!
O que mais me dói é que só eu falava! Verdade! Porém, falava com a alma
sem medo. Então, por que será que não percebi a tempo o meu papel? A espera
assim tão alongada pode ser considerada uma virtude? Ou esperou de mais?
O que sei de verdade, e que trago na alma, está expresso na letra e música
que ora transcrevo. Se hoje pudesse, eu a cantaria abraçadinha ao Jairo, e
transcenderia, encheria de luz e de encantamento o momento sonhado, garantiria a
fusão de olhares e talvez chegasse a “cooptar o olhar da humanidade toda”, ao
gosto esmerado de Fazenda (2001b) e para realizar o sonho meu.
Ouça você, parceiro, que, para a minha ansiedade, também tardou um pouco
para se dar a conhecer:
Quando a luz
149 dos olhos meus
E a luz dos olhos teus Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus Que frio que me dá O encontro desse olhar Mas se a luz dos olhos teus Resiste aos olhos meus Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus Me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus Que a luz dos olhos meus Já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus Na luz dos olhos teus Sem mais la ra ra ra
Pela luz dos olhos teus Eu acho, meu amor, que só se pode achar Que a luz dos olhos meus precisa se casar
(La ra ri ra ra ra) (La ra ri ra ra ra)
149
Vinícius de Moraes. Música: Pela luz dos olhos teus.
254
Quando a luz dos olhos meus E a luz dos olhos teus Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus Que frio que me dá O encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus Resiste aos olhos meus Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus Me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus Que a luz dos olhos meus Já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus Na luz dos olhos teus Sem mais la ra ra ra
Pela luz dos olhos teus Eu acho, meu amor, e só se pode achar Que a luz dos olhos meus precisa se casar Que a luz dos olhos meus precisa se casar Que a luz dos olhos meus precisa se casar Precisa se casar, precisa se casar
A mudança Jairo,
[...] vem quando saímos do mutismo que cria muros para o silêncio interior, que é um prelúdio à revelação, pois abre portas de compreensão. A mudança, com o olhar, também reflete. [...] Este talvez seja o desafio do professor. Ser gente da inquietação, do desconforto causado quando o seu olhar encontra o mundo do aluno, depois de um tempo, longo ou não (importa?) de espera vigiada (ARNT, in: FAZENDA, 2001, p. 74)
150.
Enfim, se pudesse, diria ao Jairo: Não o reencontrei pessoalmente. Não me
foi possibilitado reconhecê-lo adulto, mas o reencontrei dentro de mim. Reencontrei?
Ou sempre esteve comigo?
150
Rosamaria de Medeiros Arnt. Mudança. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em Construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a, p. 74.
255
Assim é que, naquela memorada manhã de reflexão, em que estivemos
radicalmente mergulhados na atividade lúdica de caráter estético e de poder
evocativo, plenos de sensação e estado de espírito enlevado, eu via a própria
encenação profundamente carregada de vivência pessoal e da capacidade de
expressar os sentimentos explicitando a arte de viver e de comunicar. Na falta dessa
capacidade, parece-me ficar truncada a existência de vida plena. Entendi o porquê
de, a par de Platão, Aristóteles, Descartes e Kant, Husserl ser considerado pelos
filósofos o mestre da razão, por excelência.
E assim é que, na esteira das lições de Chizzotti (2010), pudemos sair da
escuridão da caverna para contemplar o mundo iluminado e exterior a ela. Ele nos
fez percorrer o árduo caminho do conhecimento e nos levou a refletir que a ciência é
fruto desse profícuo embate. Ao estudarmos as ideias de Platão, por exemplo, vimos
que há uma dicotomia entre o mundo das ideias e o mundo sensível. O percurso
epistemológico do nosso curso, da Grécia antiga à contemporaneidade, propiciou-
nos a saída das trevas e o adentrar no mundo da luz, balizando os fundamentos dos
nossos projetos de pesquisa – “o conhecimento é mesmo uma paixão humana”,
dizia o mestre Chizzotti nas suas aulas (2010). Sobre seus sábios ensinamentos,
Emília e Dona Benta sempre confabulavam em tom confidencial na sala de aula: A
realidade do universo flui, como defende Heráclito de Éfeso? (aprox. 540-480 a.C.)
(KONDER, 1990, p. 8) Ou... são mutáveis, como ressalta Aristóteles (384-322 a.C)?
Seria verdadeira a aproximação de Platão (427-347 a.C.) e Lobato, que nos mostra,
o primeiro, que o mundo verdadeiro é constituído de ideias encimadas pela ideia do
BEM, e o segundo, que um país é construído por homens e livros? Ou a realidade
do universo está na água, como afirma Tales de Mileto? Ou no ar, infinito que tudo
sustenta?
A verdade, porém, é que o homem sempre procurou a origem das coisas, e
conhecemos tantas pessoas que se dedicam e se dedicaram ao conhecimento que
não nos é possível citar todas. Descartes, por exemplo, afirma que todo o
conhecimento submete-se à dúvida metódica, ou seja, a razão deve validar ou
refutar as argumentações que o fundamentam.
Contudo, Lyotard (1967) nos informa que Husserl denuncia a insuficiência da
dúvida cartesiana:
256
[...] a dúvida cartesiana relativa à coisa natural (pedaço de cêra) c) continua sendo em si mesma uma atitude mundana, sendo tão-sómente uma modificação dessa atitude sem corresponder portanto à exigência profunda de radicalidade [...]. À dúvida é preciso, portanto, opor uma atitude pela qual eu não tomo posição em relação ao mundo como existente, ainda que essa posição seja afirmação natural de existência ou dúvida cartesiana, etc. É claro que eu, como sujeito empírico e concreto, continuo a participar da posição natural do mundo “esta tese continua a ser algo de vivido”, mas, não faço dela nenhum uso. Fica suspensa, fora de jôgo, fora de circuito, entre parênteses; e por essa “redução” – (epoquê) – o mundo circundante não é mais simplesmente existente, mas “fenômeno de existência.” (LYOTARD, 1967, p. 23-24, grifo do autor).
Fica claro, assim, que Husserl, segundo a consideração de Lyotard (1967),
postula que a fenomenologia transcendental pauta sua análise num cogito
transcendental que envolve, não só o psicológico, mas também o mundo em sua
totalidade.
Em contrapartida, com Kant há a consideração das “condições a priori”
(CHAUÍ, 1997, p. 53) – se não existisse nada na nossa mente, nós não
aprenderíamos ou reconheceríamos qualquer experiência.
A essa ideia junta-se a afirmação de Konder (1990) que, com propriedade,
aclara a percepção Kantiana, ora apontada por Chauí (1997):
[...] Kant percebeu que a consciência humana não se limita a registrar passivamente impressões provenientes do mundo exterior, que ela é sempre consciência de um ser que interfere ativamente na realidade; e observou que isso complicava extraordinariamente o processo de conhecimento humano. Sustentou, então, que todas as filosofias até então vinham sendo ingênuas ou dogmáticas pois tentavam interpretar o que era realidade antes de ter resolvido uma questão prévia: o que é o conhecimento? [...] a questão da exata natureza e dos limites do conhecimento humano (KONDER, 1990, p. 21).
Entendemos, assim, que Kant pesquisou as condições a priori do
conhecimento, mas inclusa a hipótese de pré-julgamento da solução. Em
contrapartida, na fenomenologia de Husserl, aponta Lyotard (1967), não há inclusão
nem mesmo da referida hipótese Kantiana. E completa: “Daí seu estilo interrogativo,
seu radicalismo, seu inacabamento essencial”, como já apontado neste debate de
ideias (LYOTARD, 1967, p. 8).
257
Orienta ainda o estudioso que, para Husserl, o conhecimento é encarnado em
“ciência concreta” ou “empírica” (grifo do autor). A filosofia husserliana busca em que
instância esse conhecimento científico encontra apoio, estando, tanto o ponto de
partida quanto a raiz dessa procura, nos dados imediatos do conhecimento. Nesse
sentido, “[...] a filosofia é uma meditação lógica que visa ultrapassar as próprias
incertezas da lógica para e por uma linguagem ou logos que inclua a incerteza”
(LYOTARD, 1967).
[...] filosofia realmente e filosofia pós-Kantiana, pois procura evitar a sistematização metafísica; é uma filosofia do século XX que almeja restituir a este século sua missão científica fundando em novas bases as condições da ciência (LYOTARD, 1967, p. 8).
Como afirma o autor, a fenomenologia constitui o centro das ciências
humanas: “[...] foi a partir da crise do psicologismo, do sociologismo, do historicismo,
que Husserl pretendeu restituir à ciência em geral e às ciências humanas sua
validade” (LYOTARD, 1967, p. 49).
A lógica fundamental da fenomenologia busca “[...] como de fato existe a
verdade para nós: a experiência no sentido husserliano exprime êsse fato” [...]. É
preciso uma descrição que dê conta de descrever com exatidão as modificações da
consciência, se o que se busca é “apreender aquilo que é efetivamente vivido”
(LYOTARD, 1967, p. 50).
O tratamento da natureza do conhecimento verdadeiro tem em Chauí (1997)
a clareza e o rigor requeridos para dizer das diferentes concepções filosóficas que o
sustentam. Esclarece a autora, acerca disso:
[...] quando predomina a aletheia151
, considera-se que a verdade está nas próprias coisas ou na própria realidade e o conhecimento verdadeiro é a percepção intelectual e racional dessa verdade. A marca do conhecimento verdadeiro é a essência [...] o critério verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa ou da coisa ao nosso intelecto... (CHAUÍ, 1997, p. 100, grifo do autor).
151
Em grego, verdade se diz aletheia, significando não-oculto, não-escondido, não-dissimulado. O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito; a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro se opõe ao falso, pseudos, que é o encoberto, o escondido, o assimilado, o que parece ser e não é como parece. O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão... (CHAUÍ, 1997, p. 100, grifo do autor).
258
No domínio da veritas152:
[...] considera-se que a verdade depende do rigor e da precisão na criação e no uso de regras de linguagem, que devem exprimir, ao mesmo tempo, nosso pensamento ou nossas idéias e os acontecimentos ou fatos exteriores a nós e que nossas idéias relatam ou narram em nossa mente [...] o critério de verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica das idéias e das cadeias de idéias que formam um raciocínio [...] a marca do verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos (CHAUÍ, 1997, p. 100, grifo do autor).
Por fim, no predomínio...
Da emunah153
considera-se que a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança entre os pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro e que devem sempre ser respeitados por todos [...] verdade se funda no consenso e na confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores estudiosos (CHAUÍ, 1997, p. 100, grifo do autor).
De outra feita, na consideração da teoria pragmática, o conhecimento
verdadeiro é dado “[...] por resultados e suas aplicações práticas, sendo verificado
pela experimentação e pela experiência. A marca do verdadeiro é a verificabilidade
dos resultados” (CHAUÍ, 1997, p. 100).
Em suma, na aletheia são consideradas verdadeiras ou falsas as coisas e as
ideias; na veritas é a coerência interna e a coerência lógica das ideias que definem
a verdade; na emunah são as convenções universais (o consenso) que definem o
conhecimento verdadeiro; na teoria pragmática são os resultados que são
apontados como verdadeiros ou falsos.
Tem-se, portanto, a verdade como “o acordo entre o pensamento e a
realidade” (CHAUÍ, 1997, p. 100). Nas teorias, “aletheia” é pragmática, enquanto a
verdade é concebida, na “veritas” e na “emunah”, como “[...] o acordo do
152
Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu... Verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos... (CHAUÍ, 1997, p. 99, grifo do autor).
153 Em hebraico verdade se diz emunah e significa confiança. Agora são as pessoas e é Deus quem
são verdadeiros. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito, enfim, não traem a confiança [...] A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será ou virá... (CHAUÍ, 1997, p. 100, grifo do autor).
259
pensamento e da linguagem consigo mesmos, a partir de regras e princípios que o
pensamento e a linguagem deram a si mesmos, em conformidade com sua natureza
própria” (CHAUÍ, 1997, p. 100).
Com base no estudo da natureza do conhecimento verdadeiro, penso que
Emília154, a verdade-engano de Lobato, de fato não engana a ciência, não engana
nem a mim nem ao pessoal do Sítio. Ela não existe de verdade porque não existe
uma boneca de pano a que se tenha facultado o cogito. Ela não pensa, age.
Conhece e fala do que conhece no território do conhecimento intelectual de Husserl
e Lobato. No entanto, ela não é uma mentira, como já apontamos neste trabalho,
porquanto não ser mentira a existência dela em mim, mesmo porque eu, Odila, uma
verdade factual, de fato existo. Ademais, é tão verdadeira essa existência que
Emília tira Jairo do sono da vida, toma-me pelas mãos enchendo-me de coragem
para fundamentar, na teoria, as verdades aqui abordadas.
Lobato também não é mentira, tampouco sua obra de literatura infantil que
leva a criança (e tantos outros adultos) a encontrar fantasia e realidade, ensinando
lições de vida incontáveis. Para sorte desses adultos, “Toda lição é suscetível de
beleza” (DINORAH, 1990, p. 59). Acrescenta a autora que:
Literatura infantil não é assunto de criança. É de todos nós, adultos, que nos preocupamos com a degradação do homem, a robotização das atitudes, o desmantelamento da natureza, a violência e a guerra (DINORAH, 1990, p. 31). ...
É através da literatura (histórias, poesias e lendas), que a criança vai desenvolver suas aptidões mais plenas: imaginação criadora, sensibilidade, senso crítico, e ainda algo fundamental, que é aprender a língua. [...] uma luta de muitos e uma necessidade de quantos desejam ver o País sair do analfabetismo e da ignorância (DINORAH, 1990, p. 29).
Defende ainda que “As ideias germinam no cérebro, cristalizam-se no papel e
perenizam-se num livro” (p. 61). Portanto, “[...] criança sem livro, adulto sem leitura”
(p. 61). Ressalta o valor do livro e a relevância da leitura. “Um único livro pode, às
154
Como já referido, as três Emílias de minha própria história são: minha mãe Emília, minha neta mais nova Maria Emília e minha neta mais velha, Maria Odila; E, por herança, me pergunto: poderiam ser minhas netas também a Odila/Emília de Lobato? Não sei ao certo se a verdade-engano do saci as engana. O que sei é que a magia do Sítio as faz apreciar, no limite da compreensão permitida, a criação do escritor.
260
vezes, realizar o milagre do afeto onde ele menos parecia possível”, defende
Dinorah (1990, p. 40).
O Sítio do Pica-pau Amarelo também existe, como descrito anteriormente.
Tomado nesse prisma, não existe só o mundo fenomênico de Lobato, nem somente
a fenomenologia radical de Husserl, mas também são fenômenos, todos os
humanos que criam, recriam, constroem, desconstroem e/ou transformam o mundo
dado, na história e na cultura, pelas experiências e pelas ciências, num mundo
melhor para se viver. Todos os que mantêm a disposição de espírito de buscar a
verdade e que não se deixam acometer, nessa busca, pelo medo e pela
desconfiança, não obstante o enfrentamento penoso das contradições e
ambiguidades da realidade concreta, em detrimento da relevância, da necessidade e
da validade do conhecimento verdadeiro da ciência e da existência. Em outras
palavras, para compreender as formas e as causas dos fenômenos dessa existência
e, assim, ousar a alimentar a utopia necessária e bem colocá-las a serviço de defesa
da justiça e da paz no mundo real e, por conseguinte, na existência de todos os
seres humanos, não se prestando, sobretudo, à exploração e/ou à discriminação
entre os homens. E tudo nos limites da própria ciência.
Tomo de Chauí (1997) a ideia de que, se o nosso nascedouro família, lugar,
data e hora, classe social, etc. não depende de nossa escolha pessoal porque é a
nossa situação, e penso que essa escolha pode e deve ficar na dependência de
nossa consciência, vontade, ação e decisão sobre o que fazer com a situação dada,
no sentido de mantê-la ou mudá-la, quer na faceta frágil ou na faceta poderosa,
como nos ensina a autora. De verdade, o homem sempre insistiu e sempre insistirá
na busca do verdadeiro, porque o verdadeiro “[...] é o que dá sentido à existência
humana” (CHAUÍ, 1997, p. 61).
A filósofa traz Pascal155 para mostrar a fragilidade do desejo do verdadeiro
que coexiste, e no meu olhar, paradoxalmente, justifica a busca incessante do
homem pelo sentido da sua existência.
155
Desde a infância Blaise Pascal (1623-1662) demonstrou grande aptidão para as ciências exatas. Aos dezoito anos inventou a máquina de calcular. Filósofo francês do século XVII, autor da célebre frase “O coração tem razões que a própria razão desconhece” (CHAUÍ, 2002, p. 42-43).
261
O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo intenso se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nós devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar (PASCAL, apud CHAUÍ, 1997, p. 61).
Felizmente, hoje sei que, se o Universo nada sabe sobre mim enquanto eu
conheço a vantagem sobre ele, parece-me chegada a hora de eu reconhecer que,
não obstante Emília tenha sempre habitado o meu ser e nunca ter deixado de se
fazer habitante do meu espírito, o seu papel de guardiã de minha coragem e
liberadora de minha subjetividade mantém, sim, o sentido e o significado, porém
hoje sou eu em mim mesma, o eu que se movimenta de forma autônoma e recorre
às próprias possibilidades em total consciência e respeito aos próprios limites. O eu
que deseja e deve usufruir das potencialidades crítico-reflexivas, criativas e
operativas, até porque todas elas estão cabalmente capilarizadas nas
potencialidades de Emília.
É no processo dialógico com o factual e o ficcional, no movimento concreto
interpessoal e intertextual, bases do conceito de liberdade, em Freire (2000a) e
condição da prática e da atitude indisciplinar em Fazenda (1999, 2001, 2008, 2010,
2011, 2014), que hoje entendo, a exemplo de Rezende (1990), que [...] “A própria
existência tem sentido e toda significação é inseparável da existência” (REZENDE,
1990, p.17-18).
Considerando Emília no universo do seu mundo fenomênico, a sua
simbologia pode ser vista como um conjunto de signos articulados numa profusão
lúdica de sentidos e significados sobraçados no texto literário. No caso, na verdade
ficcional de Lobato, para cumprir a intencionalidade do autor de dizer de fato das
dimensões e implicações e dos problemas políticos, sociais, éticos, estéticos,
culturais e sobretudo educacionais do contexto histórico-político-social da época da
produção da obra, a despeito das polêmicas e controvérsias, presentes nas relações
humanas da sociedade contemporânea. A disposição do autor para criar imagens,
discutir mitos, denunciar preconceitos, alimentar sonhos e embalar imaginários
relacionados ao real e ao existencial é, no mínimo, contagiante e surpreendente. E
nisso têm razões as crianças, mais uma vez.
262
A cultura é, em essência, o acervo dinâmico de todos os símbolos de todas as
práticas e ritos sociais. Rezende (1990) analisa que símbolos nunca são unívocos,
ao contrário, são sempre polissêmicos.
Como explicita Rezende, essa polissemia dá sentido à cultura em que se
pode pensar o símbolo Emília e os outros moradores do Sítio do Pica-pau Amarelo
como parte não descartável da produção cultural brasileira e, sobretudo, da cultura
taubateana e valeparaibana.
A associação da Emília à ideia de liberdade (por exemplo: expressar-se
livremente, assumir e ousar na própria curiosidade, denunciar fatos, acontecimentos,
e/ou ideais que a incomodam, reivindicar o que lhe faz despertado o desejo e a
vontade, proclamar o que lhe chama a atenção ou lhe aguça o interesse, inquirir,
retrucar, pôr-se e contrapor-se a favor ou contra regras e formas de conduta e/ou
imposições arbitrárias de quaisquer ordens, valer-se de argumentos impactantes e
sagazes, enfim, ocupar efetivamente o seu lugar no mundo e assinalar a sua
presença nesse mesmo mundo) entusiasma sobremaneira muitos adultos e,
invariavelmente, todas as crianças que experimentam o imaginário e o real Sítio do
Pica-pau Amarelo. Um imaginário que pode ser comprovado e cuja existência pode
ser vivida na sua concretude156.
No Sítio moram Emílias em esculturas e Emílias vivas. Juntas, a Emília de
Lobato; minhas duas netas, Maria Odila e Maria Emília, autênticas taubateanas, e
eu, inventamos travessuras, fazemos eclodir risos e vivenciamos o contexto dos
mangueirais, das árvores centenárias, cujas raízes fincadas no solo entretecem-se
de forma a compor figuras fenomênicas.
Odila/Emília leram muito sobre esse mundo imaginário e o comprovaram com
existência real na cidade de Taubaté/SP, onde vivem. Leram tanto a ponto de poder,
com Dinorah (1990), concordar que “O livro é aquele brinquedo, por incrível que
pareça, que entre um mistério e um segredo, põe ideias na cabeça!” (DINORAH,
1990, p. 57).
156
É comum ouvir das crianças: Nossa! O “Sítio” existe de verdade! Não só nos livros, no folclore ou nas histórias que me contam em casa e na escola... estou nele... Nossa! A Emília é de verdade, todos são de verdade, tudo é de verdade... o casarão, os panelões da Tia Anastácia, as enormes mangueiras, a cara de medo da Cuca... Karel Kosic (1976) e as crianças estão certos: é a dialética do concreto!
263
Como fazem as crianças, fiz eu naquela encenação, no desempenho da
função amadora de atriz, figurando como símbolo da Emília e totalmente entregue
àquela vivência simbólica. No entanto, hoje tenho-me posto as seguintes
indagações:
Emília falou pela minha boca, ou eu, pela boca de Emília? Ou ainda: falamos
ambas pela boca de Lobato e Husserl? Se falamos, falamos todos sobre
consciência, conscientização, liberdade, essência, interdisciplinaridade,
fenomenologia, linguagem, teoria, prática? Falamos sobre arte, autoconhecimento,
transgressão, formação? Falamos todos juntos das ideias e conceitos de Fazenda,
Freire, Espírito Santo, Rezende e de todos os demais pensadores fazedores dos
fundamentos teórico-conceituais que sustentam esta minha tese?
E isso, o que é, senão o fenômeno da construção de conhecimento, vez que,
exceto alguns poucos desses pensadores, em sua maioria eles nem sabem do apoio
intelectual que me dão? Por que escreveram suas histórias e suas produções e
nelas puderam estar inscritos, podem, agora, sustentar a minha própria inscrição?
Por oportuno, mais uma pergunta: como uma humilde candidata ao título de
doutor poderia escrever a sua própria história inscrevendo-se nela, sem o alicerce
das histórias escritas e inscritas desses eminentes pesquisadores? Como não falar,
aqui, fundamentalmente pelas suas bocas?
No diálogo engajado que incitou problematizar a realidade e o conhecimento
científico nas bases fenomenológicas de Edmund Husserl e da relação de Lobato
com o seu tempo e com a força criadora, Emília (e eu na Emília), como todos os
demais acadêmicos participantes do evento, interpretamos Lobato e Husserl. Isso
quer dizer que, para além da mera representação do escritor e do fenomenólogo,
ambos personalidades marcantes da história e da cultura e produtores de
conhecimento e sujeitos mortais de seus tempos históricos, seus contextos de vida
verdadeiramente os revivenciamos nas suas criações e obras.
Nessa perspectiva eu me coloco a julgamento: Seria este o caminho racional
que levou Jairo a percorrer os caminhos já percorridos pela humanidade até chegar
à convenção da base alfabética própria da língua portuguesa? O que ocorreu com
Jairo poderia ser considerado por mim não próprio de uma produção racional ou de
um raciocínio inautêntico sobre a escrita? Poderia ser desprezado enquanto
264
recriação da escrita, cuja mutabilidade e transitoriedade, do ponto de vista
linguístico, não a permite estática e acabada?
De outra feita, Frank Tibold impacta ao dizer que “deveríamos ser ensinados
a não esperar por inspiração para começar algo. Ação sempre gera inspiração.
Inspiração raramente gera a ação” (TIBOLD, apud BRITO, 2013, p. 5).
Contudo, na observação acurada dessa afirmação de Brito, penso que de fato
não devo mesmo ter esperado pela inspiração de Emília para agir, haja vista que ela
se manifestou à minha consciência tão recentemente, não obstante sua vivacidade
espontânea de boneca falante.
A inspiração que me vem da Emília, nesse tempo de espera “vigiada” ou da
“paciência-impaciente”, nesse tempo de perseverança e de interiorização das
categorias interdisciplinares que compõem as especiarias das pesquisas de
Fazenda desde os anos de 1960, permite-me, neste agora de minha existência e da
tomada de consciência sobre elas, desfrutar do sentido das minhas buscas em
educação, apostando que decorre da apreensão desse sentido a liberação e a
libertação outrora requeridas para, enfim, poder provar de uma paz que, por não ser
gratuita, não se originou da sombra, mas da luz das teorias estudadas e sob o calor
do desejo de agir em função de que as ações já realizadas em educação possam
ser bases inspiradoras de ações educativas futuras, tanto mais quantitativas quanto
mais qualitativas.
Nesse sentido, foram as ações conscientes, desenvolvidas nesse tempo
dilatado, da formação inicial (1967) até os dias de hoje, as que se apresentam como
diretamente responsáveis pelo reconhecimento dessa figura lobateana em mim. E
nisso reside um novo fenômeno, visto que, tanto Emília, a verdade literária ficcional
de Lobato, quanto Jairo, a verdade factual existencial, sempre definiram juntos a
minha própria facticidade, fazendo explícita a relação de interdependência entre a
inspiração e a ação. Mais que isso, possibilitando a materialização daquele
momento inspirador que me projetou ao exercício docente desenvolvido naquela
escola de roça, longe do conhecimento elaborado e mais distante ainda do valor
intrínseco da arte na arte de ensinar, porém suficiente o bastante para trazer à tona
o fato pedagógico submetido hoje à análise nas dimensões epistemológica,
linguística, filosófica, ética, estética, político-pedagógica e metodológica.
265
Considero possibilidade ainda mais relevante entrelaçar a análise
fundamentada na teoria interdisciplinar e nos fundamentos fenomenológicos da
educação, engastada na minha própria história de vida e formação, articulação esta
inimaginável a priori da experiência vivida na pele da Emília para tratar de tópicos
de alta complexidade, como a interdisciplinaridade e a fenomenologia.
Como explicita Rezende (1990):
[...] Em sua etimologia, o sím-bolo significa precisamente a concentração semântica do sentido e dos sentidos, e sua articulação numa estrutura concreta, no interior da qual há também circulação de sentido. O símbolo apresenta, para a fenomenologia, dois aspectos principais: a encarnação e a polissemia. Não falamos de símbolos abstratos mas concretos: é a própria existência que é simbólica, é o próprio homem que é símbolo. [...] O símbolo só é símbolo porque é constituído por essas realidades humanas e não outras [...] A fenomenologia reconhece no símbolo a correspondência entre o homem e o sentido, ou, em termos mais técnicos, entre o significante e o(s) significado(s): há sentido no símbolo porque se trata do homem; há significantes porque há significados existencialmente vividos (REZENDE, 1990, p. 27, grifo do autor).
Sugestivamente, Lyotard (1967) diz que toda coisa dada “em pessoa” pode
também não ser nenhuma vivência dada “em pessoa”. “Esta lei é uma lei de
essência” (LYOTARD, 1967, p. 27).
Talvez quanto aos “significados existencialmente vividos” (REZENDE, 1990,
p. 27), eu tenha me atrasado um pouco para dar-me conta que a curiosidade é
ontológica, isto é, nasce em nós quando nascemos nós, e vai ganhando boniteza no
nosso “corpo consciente” que na prática social com outros corpos, também
conscientes, produz socialmente a linguagem e, por meio desta, vai reelaborando,
aprofundando a curiosidade na própria existência humana.
É na esteira desse mesmo movimento de produção, reprodução e
reelaboração do produzido em cada tempo e contexto sócio-histórico que passamos
da curiosidade ingênua (esta que nos faz ler o mundo acriticamente), para a
curiosidade exigente do rigor da leitura inteligível do mundo e da busca das
perguntas intelectuais e perguntas existenciais direcionadas a achados mais exatos.
O movimento que nos faz transcender a mera opinião sem, contudo desprezar os
conhecimentos derivados do senso comum tampouco absolutizar o conhecimento
científico.
266
Nesse sentido Emília impulsionou ainda mais o meu espírito (que
naturalmente aguçado) não só na “capacidade de apreender a razão de ser do
objeto da curiosidade” como fenomenologicamente impeliu-me trazer à luz o Jairo, o
sujeito essência do método e a razão de ser desta pesquisa.
Se para Lyotard (1967, p. 51-52) a fenomenologia “[...] é uma filosofia do
cogito [...] a ciência reveladora das ciências humanas”, para os acadêmicos a
questão central debatida no suposto palco era a seguinte: Por que, entre tantas
teorias já estudadas, estudar e debater também a fenomenologia? Por que
entrelaçá-la aos princípios da teoria interdisciplinar?
A resposta a esta pergunta, mal sabíamos nós, viria no bojo da encenação do
mundo fenomênico de Lobato perpassada pelos fundamentos fenomenológicos de
Husserl, e engastada nos princípios interdisciplinares como de fato se deu.
Com efeito, problematizada a realidade dada, descortinaram-se para nós a
historicidade, os fatos e os fenômenos que marcam a nossa existência e que nos
arrastam para o desejo de conhecer para além do conhecimento comum ou daquilo
que ordinariamente já conhecemos. Refletir sobre os fenômenos, objetos ou coisas
que surgem a nossa consciência frente à realidade que nos é posta leva-nos a
explorar as próprias coisas percebidas, das quais falamos, sobre as quais pensamos
e com as quais agimos. Dessa forma, prepara-nos para o enfrentamento da
realidade tal qual ela se nos apresenta e, portanto, já desapegada da interrogação
ingênua da ótica limitada e superficial.
De certa forma, estudar a fenomenologia significa exercitar certo “descrédito
da ciência”, a exemplo de Merleau-Ponty, que, na descrição de Lyotard (1967),
ganha esta expressão:
Assim se esboça no cerne da meditação fenomenológica um momento crítico, um “descrédito da ciência” (Merleau-Ponty) que consiste na recusa de passar à explicação: pois explicar o vermelho dêsse quebra-luz é precisamente abandoná-lo na medida em que êle é êste vermelho exposto neste quebra-luz, sob cuja órbita eu medito a respeito do vermelho; é colocá-lo como vibração de freqüência, de intensidade dadas, é colocar em seu lugar “alguma coisa”, o objeto para o físico que não é absolutamente “a própria coisa” para mim. Há sempre um pré-reflexivo, um irrefletido, um antepredicativo no qual se apóia a reflexão, a ciência, e que ela escamoteia sempre que quer justificar-se a si mesma (LYOTARD, 1967, p. 9, grifo do autor).
267
Assim é que o desafio de dizer sobre o enfoque fenomenológico da pesquisa
em educação, consideradas a gama de abordagens teóricas estudadas, nos dá
condição para afirmar que este não destrói os resultados das abordagens
empiristas, pelo contrário, as ciências dos fatos que têm os fundamentos na
experiência sensível devem recorrer à ciência das essências, que tem fundamentos
na intuição fenomenológica.
Na ciência dos fatos, como vimos, há a dúvida cartesiana, e nas ciências
eidéticas há a dúvida epoché. Um enfoque pode, assim, articular-se com o outro,
para evidenciar a encenação sobre os fundamentos fenomenológicos de Edmund
Husserl, aqui narrada.
A reflexão exaustiva sobre a importância e validade dos processos adotados
na abordagem fenomenológica funda-se na validação dos conceitos já pensados e
nas etapas de compreensão e interpretação dos fenômenos – uma nova visão
interpretativa, bem ao gosto de pesquisadores que buscam compreender, com a
profundidade requerida, a complexidade da condição humana e da situação humana
em particular.
Por fim, que possam a memória dos fatos e a capacidade de percebê-los e
analisá-los terem sido suficientes para balizar a narrativa e assegurar a fidelidade
das coisas tais como aconteceram, de forma a que o próprio relato seja ele mesmo
revelador da veracidade do que foi narrado. As coisas que são (aletheia), os fatos
que forem (veritas) e as ações e coisas que serão (emunah) parecem sintetizar a
verdade literária de Lobato, a verdade fenomenológica de Husserl e a minha
verdade factual, histórica e provisória. Que a narrativa possa ter transcendido a
própria experiência no sentido de fazê-la logicamente compreensível e
conceitualmente aprovável.
Pelas razões expostas, parece que à atividade lúdico-epistêmica efetivada
naquela manhã de outubro de 2010 não cabe comparação com fantasia
desbragada, pois tratou, sim, da simplificação da realidade, do sentido de verdade
para nós, atores – autores dela. E foi considerada, pelo professor e pelos pares
acadêmicos, realmente provocativa da reflexão objetivada. Penso termos aprendido
muitas lições, aqui expressas como vivência interdisciplinar.
268
6.3 A fenomenologia como paradigma de interpretação da realidade e
algumas contribuições para o processo educacional
[...] a própria existência tem sentido e toda significação é inseparável da existência (REZENDE, 1990, p. 17-18).
Rezende (1990) é enfático ao dizer que “[...] o método da fenomenologia é
discursivo e não apenas definitivo das essências” (p. 17). Discursivo por transcender
o conteúdo conceitual para alcançar radicalmente a “[...] significação de uma
essência existencial, que conota tal, deve ser descrita” (REZENDE, 1990, p. 17).
A fenomenologia vale-se, portanto, da integração de todas as
intencionalidades, não se limitando a nenhuma delas em particular, pois “A
preocupação da fenomenologia é dizer em que sentido há sentido, e mesmo em que
sentidos há sentidos. Mais ainda, nos fazer perceber que há sempre mais sentido
além de tudo aquilo que podemos dizer” (REZENDE, 1990, p. 17).
Chamada por Merleau-Ponty de “Filosofia da ambiguidade”, ou da “evidência”,
como informa Rezende (1990), a fenomenologia é, em essência, a superação do
cartesianismo e, em verdade, a aproximação com a filosofia da linguagem por certo,
pela clareza e distinção de suas ideias. Enquanto filosofia da linguagem, foca a
atenção nos problemas semânticos que habitam a arte da significação das palavras
e do estudo da relação de significação nos signos e da representação do sentido
dos enunciados.
O discurso existencial da fenomenologia define de pronto seu lugar na
existência de sentido, considerada a inseparabilidade da existência de sua própria
significação.
Aqui, o texto refere-se ao “[...] discurso cultural da humanidade, a
compreensão que os homens vão logrando alcançar de sua própria existência” (p.
30). Para mim, a busca das possíveis respostas às perguntas intelectuais e
existenciais e as razões e fatos que me farão apaziguada ante a problematização da
realidade de Jairo até ao contexto atual e à idade da jovem-pesquisadora-idosa, que
tem o seu lugar nesse contexto e tempo histórico ─ é o jeito que cada um de nós
269
tem de encarnar a obra, de compreender a cultura como “[...] maneira concreta de
ser dos homens através da história” (REZENDE, 1990, p. 30).
Nesse sentido, Rezende (1990) permite-me entender que a interpretação é
também fator de produção cultural. Creio que, a isso, Cortella (2000) referia-se em
suas aulas que o homem é produto e produtor de cultura (passado-presente-futuro).
Creio, ainda, tratar-se da mesma acepção de Freire (2000b, p. 90), quando defende
a história como possibilidade, ideias já abordadas neste trabalho..
Atentemos ao alerta de Rezende (1990), sobre essas ideias:
Uma cultura que não se interpreta a si mesma é simplesmente vivida e corre o risco de degradar para um nível inferior ao humano [...] É em função de todos esses aspectos simbólico estrutural, histórico, cultural, social, pessoa, num determinado contexto de mundo ─ que a experiência da interpretação se faz também na forma de um “conflito de interpretações”. Semelhante conflito é indispensável para que a interpretação se aproxime o mais possível da polissemia característica da estrutura simbólica do fenômeno e de sua compreensão. Como filosofia da ambiguidade, a fenomenologia exige o conflito como decorrência da densidade semântica do fenômeno existencial, e de suas diversas percepções (REZENDE, 1990, p. 31, grifo do autor).
Só mesmo a atitude prescritiva corresponde “à densidade do fenômeno
experimentado”, declara Rezende (1990, p. 18).
Descrever, ou a descrição propriamente dita, já supõe “uma situação especial
de presença” (p. 18). A volta “às próprias coisas” de que tratam os fenomenólogos,
para redescobri-las originalmente é atitude descritiva genuína.
Segundo Rezende (1990), a descrição há que atender aos rigores da
significância ─ descrição significante; da pertinência; descrição do fenômeno
estruturado; da relevância ─ descrição relevante; da referência ─ descrição
referente, da correspondência ─ descrição provocante; e, da suficiência ─ descrição
suficiente. Para abranger e satisfazer as origens impostas pelas modalidades de
descrição categorizadas pelo filósofo da ambiguidade é forçoso reconhecer a
imprescindibilidade do discurso interpretativo, com pena de se inviabilizar a
descrição compreensiva. Interpretar o que foi descrito é a chave para dizer da
verdade do vivido e/ou do percebido. De outro lado, descrever o vivido e/ou
percebido é “interpretar a existência” (REZENDE, 1990, p. 29).
270
É preciso interpretar para compreender o(s) sentido(s) e significado(s) do
símbolo, exercício que se pode fazer de imediato apenas quando só há um sentido
expresso, manifesto. Caso contrário, a ausência do exercício interpretativo poderá
inviabilizar a apreensão e a compreensão da polissemia inerente ao fenômeno. Além
do mais, há que ser uma interpretação que acompanhe “[...] a estruturação dos
diversos sentidos no interior do símbolo. Interpretar é analisar um fenômeno como
se analisa um texto [...] compreender o papel semântico que desempenham no
tecimento do texto em sua textura e configuração” (REZENDE, 1990, p. 30).
Exemplo de exigência aludida por Rezende (1990) pode ser apresentada em
relação ao conhecimento das normas gramaticais. Diz o autor que o conteúdo da
gramática é condição sine qua non “[...] para a interpretação semântica propriamente
dita, em suas diversas formas” (p. 31). Aponta para a insuficiência de conhecimento
gramatical com fim em si mesmo, desacompanhado da interpretação de seu sentido,
no que acrescento, social e político-pedagógico. É preciso senso de sentido e
sabedoria, “[...] no sentido que os antigos davam a essa palavra” (p. 31). E completa
o autor:
Os sábios é que sabem interpretar, descobrir sentido, sentidos e mais sentido na existência humana. Na expressão de Ricouer, a hermenêutica veio exertar-se na fenomenologia, isto quando dizer que do tronco primitivo brotou um novo ramo com características que tanto modificam o primeiro como o segundo. A fenomenologia de que estamos falando é ao mesmo tempo existencial e hermenêutica (REZENDE, 1990, p. 32).
Orienta o autor que, na fenomenologia da educação, a pesquisa “[...] tem
consequências importantes” (p. 70), porém a pesquisa será incompleta se lhe faltar
a interpretação crítica, uma vez que lhe estaria solapada a riqueza semântica.
[...] que só aparece no estabelecimento das múltiplas relações possíveis e necessárias no interior de uma dialética polissêmica. Um dado não interpretado não revela suas múltiplas significações. A hermenêutica acha-se no coração da pesquisa inspirada na fenomenologia (REZENDE, 1990, p. 71).
Consideradas as análises de Rezende (1990) temos que a promoção de
aprendizagem é trabalho tanto quanto o é a promoção de cultura. A promoção da
aprendizagem refuta a improvisação e a superficialidade. Preparar mão de obra
271
especializada é tão importante quanto a qualificação dos docentes, e esta última é
vista como “a geração da cultura pela transformação dos sujeitos humanos e da
sociedade” (REZENDE, 1990, p. 72).
O ensino-aprendizagem posto ao trabalho gerador de cultura precisa ensinar
como o trabalho educacional é visto pela sociedade. A comunidade rural da escola
do Jairo, por exemplo, não podia perceber, além da visão romanceada sobre a força
da escola e sobre o poder da formação ali desenvolvida pela “professorinha”
detentora do conhecimento, a “[...] coexistência do desenvolvimento econômico
industrial com o subdesenvolvimento cultural” (REZENDE, 1990, p. 72). No entanto,
a “professorinha” precisava ter aprendido na escola normal que um trabalho
educativo gerador de cultura implica socialização dessa mesma cultura produzida.
Nesse sentido, Rezende (1990, p. 73) sinaliza: “Uma ética de inspiração
fenomenológica nos levaria a reconhecer o direito fundamental das pessoas e
grupos ao sentido de sua existência”.
Assim, a pesquisa em educação deve englobar três sentidos: a realidade
constatada e descrita; o tratamento interpretativo da realidade constatada e a
projeção das consequências e alternativas possíveis. Procuram-se, assim, os
significados que habitam o mais fundo da complexa experiência existencial.
A isso me propus. Busquei conhecer o que é preciso conhecer, conservar o
que é preciso conservar, transformar o que é preciso transformar, mas consciente de
que o sentido pleno se manifesta no processo de busca, de construção, e não num
único ponto de chegada. Um processo que pressupõe a relação dialética homem-
mundo.
Não se pode obstar que os estudos dos fundamentos fenomenológicos de
Edmundo Husserl (2005) e teatralizados no mundo fenomênico de Lobato, foram de
extrema valia, pois apontam a existencialidade do fenômeno em função da
significação de sua existência para a consciência perceptiva e para a consciência
cognitiva.
Contudo, é de se notar que, influenciou-me sobremaneira a indicação do Prof.
Chizzotti – PUC/SP157, para que a análise do fenômeno educativo manifestado no
157
Prof. Chizzotti: A indicação a que me refiro derivou de um diálogo informal que num primeiro momento não revelou o tamanho de seu alcance, mas a orientação foi decisiva para a
272
fato pedagógico vivido com o Jairo fosse assentada nos referenciais
fenomenológicos de Rezende (1990), considerando que a intenção pedagógica
deste trabalho é a de desvelar os viéses cometidos no ensino da leitura e da escrita
desenvolvido com o aluno, em função da superação das equivocadas percepções
anteriores sobre a complexidade do processo de alfabetização e do(s) sentido(s) dos
enunciados.
Guiada por aquela orientação de Chizzotti e tomada a decisão pelos aportes
de Rezende (1990), percebi que o método fenomenológico sugerido pelo autor é
atento e inseparável dos conteúdos e que deriva da própria essência do fenômeno,
de maneira que a compreensão dos conteúdos concorre para a percepção da
essência do fenômeno.
Ademais, argumenta Rezende (1990) que a corrente filosófica da
fenomenologia é adequada para o estudo do fenômeno educação, muito embora
não tenha sido feita de forma explícita pelos consagrados fenomenólogos, até então.
Sobre isso aponta Rezende (1990):
[...] é difícil entender a fenomenologia, sem ver como os fenomenólogos trabalham, discursam, buscam o sentido. Aliás, esta é também uma característica da fenomenologia da educação para a qual o mestre desempenha um papel muito importante, pois a intenção pedagógica só pode ser vivida como uma experiência de encontro entre o educador e o educando (REZENDE, 1990, p. 14).
A prática da fenomenologia é impregnada de teor pedagógico, assim como o
é a prática interdisciplinar. Ambas as práticas refutam qualquer imposição externa ao
fenômeno, tampouco aceitam um caminho preestabelecido ao qual a reflexão deva
se curvar.
A temática da filosofia da educação contém objetos de conhecimento que
estão contidos na fenomenologia e na interdisciplinaridade, ou que delas são
próprios, independentemente da ação exterior.
Colocando tais características em termos didáticos emergem os
questionamentos:
apreensão e compreensão da pesquisadora sobre a complexidade dos fundamentos husserlianos.
273
Para as possíveis respostas a essas perguntas intelectuais, valho-me das
experiências existenciais.
─ Que fenômeno é o da EDUCAÇÃO?
Para sabê-lo é preciso considerar todos os aspectos observáveis à descrição.
─ Quais fenômenos são indispensáveis à descrição do fenômeno
EDUCAÇÃO?
a) a existencialidade do fenômeno;
b) a significação da existência para a consciência perceptiva e para a
consciência cognitiva;
c) a liberdade, o telos do sentido.
No domínio crítico-reflexivo da verdade literária ficcional na criação do mundo
fenomênico de Lobato ─ o Sítio do Pica-pau Amarelo, o literato parece confirmar a
“[...] omnipotência do olhar criador [...] o poder quase divino da transmutação”, de
que trata Bourdieu (2000, p. 296).
Esse poder onipotente anunciado por Bourdieu (2000) me estimula a
reconhecer uma identidade de relações e de funções, sob a autoridade do olhar
interdisciplinar de Fazenda (2001a), bem como a reconhecê-lo na força do
pensamento fenomenológico de Rezende (1990), forças-alicerces do sentido da
prática educativa comprometida com a captura plena da “estrutura do mundo e sua
complexidade” (Rezende, 1990, p. 88). É exigente, sem dúvida nenhuma, em
relação à “apreensão do sentido em todos os sentidos”, pois, não podendo olvidar
do fato de que a educação é um fenômeno social, é forçoso compreender, por
conseguinte, que “todo o fenômeno é denso de sentido” (p. 88). Assim sendo, a
educação só pode confirmar e ser confirmada na densidade do seu próprio sentido,
e, na referida autoridade e força, as que podem produzir mudanças na prática
pedagógica por significarem fontes originárias de ação.
Dessa forma, compreender a estrutura do fenômeno educativo implica render-
se ao mergulho na realidade complexa numa experiência de integração das muitas
intencionalidades que a tecem e a retecem na história e na cultura. Exige a
superação das concepções que sustentam as filosofias “das ideias claras e
distintas”, ao mesmo tempo que requer a aproximação com a “filosofia da
274
linguagem”, especialmente atenta aos problemas semânticos, como indica Ricoeur,
citado por Rezende (1990): ─ exige falar da “polissemia e densidade semântica do
símbolo” (REZENDE, 1990, p. 17).
Assim, impõem-se, ao sujeito que busca o sentido da ciência e da existência
e as respostas às perguntas existenciais e intelectuais, de saída, algumas questões
fundantes e propositivas: De que fenômeno ou objetos queremos falar? O que já
sabemos dele? Qual é a sua lógica? Por que queremos saber sobre ele? Qual é a
razão de ser desse conhecimento?
Ora, se alguém disser “esta caneta”, por certo estará fazendo referência a
uma descrição definitiva, isto é, a da caneta que está sendo apontada. O seu
sentido, no entanto, dirá tratar-se de um instrumento com o qual se pode escrever a
tinta. Vê-se, pois, que quando a procura é pelo sentido, a complexidade da resposta
(ou das respostas) possível de serem obtidas é de natureza múltipla, pois implica
conotação, ou seja, “sentido translato, ou subjacente, às vezes de teor subjetivo”,
que uma palavra ou expressão pode “apresentar paralelamente à acepção em que é
empregada” (FERREIRA, 2004, p. 527). Exige, ainda, a busca pela apreensão e
compreensão do “conceito, imagem mental ou informação que o signo transmite ao
seu usuário”, isto é, a referência que, por seu turno, requer a interpretação e o
raciocínio denotativo do objeto analisado. A conotação ─ o sentido, e a denotação ─
a referência, vão dar o significado da coisa, do objeto, do fato, do acontecimento
etc., que se quer desvendado.
Com efeito, se aceitarmos que toda coisa concreta apresenta diferentes
propriedades e diferentes predicados, é forçoso, evidentemente, admitir que
conotação e denotação sejam tomadas em conjunto para análise, pois, se tomadas
em separado, somente a propriedade ou somente os predicados, seria posta em
risco a totalidade da coisa analisada.
Entendo, assim, que, como na arte, a análise mais aprofundada do fenômeno
educativo requer semelhante exigência, o que vale dizer que a complexidade
semântica do fenômeno humano parece conter e estar contido na complexidade
semântica do fenômeno educativo, manifesto nas relações de interdependência
discutidas por Veiga (1993) e já abordadas neste trabalho.
275
Ademais, a obra literária de Lobato parece validar a ideia de que há sempre
uma implicação visível entre a relação social, a obra de arte, o espaço social e a
trajetória do autor no seu campo específico de luta e atuação, semelhante à
implicação explicitada por Bourdieu:
Essa genealogia, que se tornaria sem dúvida um pouco fastidiosa pelas voltas e pelas repetições ligadas, frequentemente de maneira indiscernível, à imitação consciente ou inconsciente ou à reinvenção, constituiria a mais segura e a mais radical exploração desse inconsciente que todos os homens cultivados, porque o têm em comum, estão dispostos a considerar como uma forma universal (a priori) de conhecimento (BOURDIEU, 1996, p. 329).
Ou talvez semelhante a outra afirmação do mesmo autor, sobre o lugar, as
manifestações e as implicações das relações de forças de poder simbólico no existir
humano. Assim se expressa Bourdieu (2000):
[...] Mauss quando, no seu Essai sur la magie, ao interrogar-se acerca do princípio da eficácia mágica, se viu obrigado a passar dos instrumentos utilizados pelo feiticeiro para o próprio feiticeiro e deste para a crença dos seus clientes e, gradualmente, para todo o universo social no interior do qual se elabora e se exerce a magia (BOURDIEU, 2000, p. 287, grifo do autor).
Assegura o autor ser necessário regressar à gênese do universo para
reencontrar o valor da obra de arte, , reencontrar o campo artístico (o de sua
produção). Esse reencontro a retirará do esquecimento e será o resgate que
permitirá a compreensão do “milagre da transubstanciação que está na origem da
exigência da obra de arte” (p. 288). Mas, para tanto, diz o autor, outra necessidade
emerge, qual seja, a de “[...] substituir a questão ontológica pela questão histórica”
(p. 288), o caminho e a forma de se chegar à gênese a que se refere Bourdieu
(2000).
Amparada no pensamento de Rezende (1990) e de Bourdieu (1996, 2000),
ouso afirmar que a arte permite o diálogo com o que há de mais profundo no ser
humano e em sua educação, porque imprime um sopro de espiritualidade e “fala” de
certo anseio sentido e não sabido a priori que encontra eco no espírito do educador
caçador de si mesmo e das respostas às perguntas, tanto as intelectuais como as
existenciais, conduzindo o ser à origem e à (re) descoberta de suas inquietações.
276
Nesse sentido é que arrisco dizer dos componentes de ligação entre a
fenomenologia e a interdisciplinaridade e o universo da expressão artística geradora
sempre de impulso emocional capaz de mover o ser humano no cumprimento do
seu destino de “ser mais”, como descreve Freire (1996), ou seja, de elevá-lo
espiritualmente. Há uma força vital, um efeito consciente que faz o homem
apreender, ao mesmo tempo, a realidade da vida e do mundo, a reflexão filosófica e
a plenitude do sentido da interdisciplinaridade, o que lhe permite interpenetrar na
essência das coisas e dos fenômenos que as podem descrever.
Penso que foi a vitalidade da arte da teatralização que permitiu engastar a
reflexão dos fundamentos fenomenológicos de Husserl entretecidos na história de
vida e formação da pesquisadora e com os princípios da interdisciplinaridade, na
fantasia criadora de Lobato, cuja atração sobre o leitor e a leitura, e sobre os
visitantes do Sítio, só podem ser descritos, nunca explicados.
O elemento de idealidade do gênero literário de Lobato está na sensibilidade
e no refinamento das bases do seu pensamento sociopolítico e dos problemas que
atingem o homem na sua vida concreta, cotidiana, e nisso reside uma função
educadora relevante e o elemento extraordinário de sua criação.
O mundo fenomênico de Lobato contém em si um significado normativo, e é
educativo, quando se vale da comparação da vida social e política real com a vida
fictícia, a verdade literária ficcional do Sítio do Pica-pau Amarelo e a verdade
histórica da pesquisadora e dos “outros dela mesma, como declara Cortella (2007).
A originalidade de Emília, por exemplo, tem parte intuitiva e lúdica, na mesma
raiz de consciência de Lobato acerca dos problemas reais da vida humana, dos
antagonismos de interesses, do jogo de poder exercido sobre os jogadores que
desse poder são excluídos, da fragilidade dos que se veem impedidos de acesso
aos bens ideais e que ignoram as leis que governam a sociedade.
Lobato é, assim, a corporificação das crises, dos acontecimentos, fatos e
fenômenos sociais de sua época refletidos na globalização desses novos tempos.
Na educação, essa nova visão poderá nortear a formação do professor
investigador, pesquisador de si mesmo e de sua prática, com o fito de torná-la mais
e mais uma prática docente passível de desenvolver um ensino de qualidade.
277
Um ensino de qualidade considera os aprendizes e os “outros de nós
mesmos” (CORTELLA, 2007), portanto, todos como sujeitos passíveis de
experiências diversas, tanto quanto o são os seus professores. Valorizadas as
experiências discentes, os professores ensinarão os seus alunos a ressignificá-las e,
assim, a dar sentido, atribuir significados e materialidade aos conteúdos escolares
que aqueles ensinam e estes aprendem ─ um olhar interdisciplinar sobre os saberes
e práticas de um e de outro (professor/aluno), um olhar dos educadores dispostos a
“educar na e para a inteireza” (SANTOS NETO, 2007, p. 12).
Entendo ser esta uma contribuição de fundamental importância, pois,
apropriados da essência e da radicalidade dessas ideias, os professores poderão
fazer escolhas mais conscientes e optar por intervenções pedagógicas mais
eficazes, de forma a testemunharem a qualidade desejada e produzirem ensino que
se traduza em efetividade e funcionalidade pessoal, social e profissional. Esses são
os professores candidatos a fazer a diferença na educação, pois, levados à
verdadeira identidade, alcançarão a dimensão ética e o significado político-
pedagógico daquilo que verdadeiramente fazem na escola e na sala de aula.
Apresentam-se como uma possibilidade fértil para romper os limites que dificultam
uma prática pedagógica competente para ultrapassar as fronteiras das ignorâncias
restadas da formação inicial, olhando-se a si mesmos para penetrar no universo
complexo da própria existência. A existência, que sempre nos impõe a
imperiosidade de escolher: destruir ou construir vidas; cultuar e cultivar, ou não,
valores fundamentais à vida humana; ensinar ou transmitir o conhecimento
elaborado; educar ou adestrar; formar ou formatar o sujeito do conhecimento.
A defesa da ideia de que os professores devem, quanto mais puderem,
tornar-se conscientes para realizar escolhas, preparados para fazer a travessia do
conhecimento comum ao conhecimento científico, tem, nesta pesquisadora, o sujeito
que, ao longo de sua história de vida e formação, lutou arduamente para torná-la
concreta, e da luta não desistirá jamais.
Por isso interessou-me, na interpretação e reinterpretação do mundo
fenomênico de Lobato e da fenomenologia de Husserl, não apenas compreender o
conceito de intencionalidade, mas também captar o seu autêntico sentido e o seu
valor originário na tarefa da educação. Isso porque entendo que só assim se pode
apreender na inteireza as verdadeiras intencionalidades das políticas, das propostas
278
e dos modelos educacionais diretivos da prática pedagógica na escola e na sala de
aula.
Ademais, buscando o redimensionamento do olhar sobre o tópico ora em
análise, a pesquisadora deve apropriar-se da abordagem de Bourdieu (2000),
considerando que esse autor o abaliza na esfera do simbólico e à luz das regras
próprias da arte (BOURDIEU, 1996).
Intuir a intuição das regras que governam a estrutura dos fundamentos
husserlianos foi o fator desencadeador da consciência sobre a veracidade e a
legalidade das coisas. Entretanto, trato aqui de uma intuição que, em primeira
instância, parece não conter o elemento racional que nos faz pensar antes de agir,
ou acreditar que o simples pensar dá conta de resolver os mistérios e impasses da
existência concreta. Refere-se muito mais a um gênero intuitivo que levou os
acadêmicos sujeitos daquela representação teatral à apreensão dos objetos de
conhecimento na sua forma viva e do jeito que os vimos. Isso nos deu uma posição
e um sentido de todos os conceitos abordados no curso da dramatização, como que
compondo um todo amplo e complexo dos fundamentos fenomenológicos de
Husserl. Foi como se, a priori, esses fundamentos já se encontrassem nas
intencionalidades literárias e fenomênicas de Lobato. Recorro a Jaeger (2001) para
dizer que a tomada de consciência, no curso daquela dramatização, hoje já se
manifesta expandida e se reporta aos limites e às possibilidades da educação
escolar consciente. Sobre isso assim se manifesta Jaeger (2001):
[...] Uma educação consciente pode até mudar a natureza física do homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espirito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana (JAEGER, 2001, p. 3).
Segundo o autor, o homem “[...] consegue conservar e propagar a sua forma
de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer,
por meio da verdade consciente e da razão” (JAEGER, 2001, p. 3).
279
Assim, parece ter havido, nos dois momentos158 e contextos diferenciados da
interpretação teatral sobre os fundamentos fenomenológicos de Edmund Husserl e
Lobato, entrecruzados aos fundamentos e princípios da interdisciplinaridade de
Fazenda, a interação adequada entre os conteúdos conceituais, a ideia formal e a
forma artística eleita para dizê-los. Isso, preservando a raiz comum que une esses
dois tópicos do conhecimento enlevados pela essência fenomênica que os
caracteriza. A meu ver, houve, assim, possibilidade de desconstrução das formas
convencionais de tratá-los e de interpretá-los, salvaguardado o rigor acadêmico
exigido.
Ao mundo fenomênico de Lobato devo particular amizade e gratidão. Ele me
fez falar, não apenas sobre a ciência, mas sobretudo de ciência. Falar da ciência e
de suas verdades filosóficas e, principalmente, falar da verdade de mim mesma. Da
verdade de minha existência. Da verdade do meu limite intelectual. Da verdade do
meu potencial criativo e crítico, e de tantas outras verdades.
Assim é que Odila, o sujeito da pesquisa, Emília, a criação tomada como
inspiração metafórica, e o Jairo, o sujeito do método, têm em Rezende (1990) o
aclaramento da trilogia que dá sentido à dinâmica da teatralização do mundo
fenomênico de Lobato entrecruzado com os fundamentos fenomenológicos de
Husserl (2005). Rezende (1990) os situa no contexto existencial e permite ao leitor a
captação da objetividade e da validade do método discursivo da fenomenologia, a
filosofia da ambiguidade.
Por fim, devo dizer que o enfoque fenomenológico permitiu-me revisitar o
mundo cotidiano da escola de roça de Jairo e, a partir dele, rever todo o percurso no
magistério paulista: usos, hábitos e linguagem do senso comum.
Desmontei a caminhada para poder montá-la novamente e, agora, em outros
moldes. Não sem antes descobrir-me, antes, indiscutivelmente cartesiana. Pensar
certo era pensar como eu, para chegar a qualquer conhecimento. O que me parecia
familiar, na verdade, era totalmente estranho. Como vimos, no Curso Normal pensei
ter aprendido tudo o que precisava para ser professora e ensinar. Crença.
158
Dois momentos: A “Emília”, mais tarde, e sempre acompanhada pelos seus amigos do Sítio, num segundo momento teatralizam o mundo fenomênico de Lobato, para dizer dos ciclos de aprendizagem, pesquisas e publicações da interdisciplinaridade aprendida na PUC/SP com a Profa. Dra. Ivani Catarina Arantes Fazenda, coordenadora do GEPI, no evento de aniversário de sua criação. PUC/SP, 15 set. 2011.
280
Conhecimento banhado a senso comum e posto à espera “vigiada” para tornar
conhecimento científico. E tudo para que a pesquisadora, caçadora de si mesma,
pudesse efetivar suas buscas e realizar os seus sonhos.
Figura 4 – Emília ficcional de Lobato Fonte: Arquivo pessoal
Figura 5 - Emília, verdade factual da Odila, no seu primeiro momento de teatralização na PUC/SP, nov. 2010 Fonte: Arquivo pessoal
281
7 TECENDO A LEITURA INTERDISCIPLINAR DOS FUNDAMENTOS
FENOMENOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO ─ Consciência e conscientização,
palavra e liberdade, teoria e prática, tempo e espera: interrelações, sentidos e
significados
O gosto e a paixão pela liberdade “coexistem com as tradições e as práticas autoritárias de que decorre uma de nossas ambigüidades” (FREIRE, 2000b, p. 124, grifo do autor). A imposição e o radicalismo são princípios de autoridade que estão, para a Educação, como projétil para a estrela (DINORAH, 1990, p. 41).
Só me foi possível apreender o sentido e o significado humano, sociocultural
e político-pedagógico configurado na palavra liberdade quando a aproximei do
sentimento de liberdade que sustenta a prática educativa libertadora de Freire
(2000b). Essa aproximação não se deu de pronto pelos apelos da teoria, nem teria
se dado nos primórdios da profissão docente, mas sobretudo pelos ditames da
prática exercida de 1968 até aqui, expressos na necessidade da “tomada de
consciência” e da “conscientização” da natureza sociopolítica dessa prática.
Em realidade, a apreensão da ideia de liberdade, nesses termos, exigiu desta
pesquisadora, outrora perplexa diante do “fato pedagógico” caracterizado na escrita
do aluno Jairo (1968), que no transcurso desse alargado arco temporal aprendesse,
por primeiro a atitude da autorreflexão sobre seu tempo e seu espaço. Deveria
desapegar-se da marca autoritária, diretiva e massificadora da prática de
alfabetização exercida naquela escola de roça, não por acaso constituinte exitosa do
fortalecimento dos mecanismos de naturalização e de conservação das
desigualdades sociais e da marginalização política que assolavam aquela sofrida
comunidade ribeirinha. Crédula e inerme, e portanto iludível, depositava nas
palavras educação, escola e professora (palavras-chave e vias de sucesso
garantido na escola e na vida fora dela, ao olhar daquela comunidade) as poucas
esperanças restadas numa vida de melhor qualidade, não obstante lhe faltasse o
reconhecimento da opressão que a fazia sucumbida.
Por outro lado, naquele tempo não apagado pelo tempo, não havia tomado
consciência da “possibilidade de desvendar novos saberes” (FAZENDA, 2003, p.
282
75), porquanto os saberes adquiridos na Escola Normal eram acreditados suficientes
para ensinar o básico da formação primária. Hoje, esses saberes constituem um
dos pilares estruturantes na educação básica.
Por segundo, impus-me compreender que “[...] minha liberdade, ou seja, o
poder que tenho de realizar minhas experiências, é antes limitada por minha
inserção no mundo, pois já me encontro engajado num mundo físico e social”
(FAZENDA, 2003, p. 33).
Compreender, no entanto, o mundo físico e social no qual eu estava inserida
na década de 1960, implicava antes compreender os mecanismos da perversa
repressão que tão fortemente a marcou, como bem analisa Weffort (2000)159:
[...] Democracia sim, mas para os privilegiados, pois os dominados não têm condições para participar democraticamente [...] E a consciência transitiva ingênua, esta condição de disponibilidade sem objetivos autônomos claros, é, em verdade, a matéria-prima da manipulação elitária (WEFFORT, in: FREIRE, 2000a, p. 22-25).
Ainda hoje me pergunto, tomada de igual perplexidade, sobre como ter sabido
naquele tempo que a:
Interdisciplinaridade é uma exigência natural e interna das ciências, no sentido de uma melhor compreensão da realidade que elas nos fazem conhecer. Impõe-se tanto à formação do homem quanto às necessidades de ação (FAZENDA, 2003, p. 43).
Como alcançar clareza sobre a complexidade do real, quando o olhar sobre o
mundo é ingênuo e a ciência é aprendida em recortes isolados? E quando o “desafio
ante o novo” não alça para o redimensionamento do velho, dado o suposto estado
de prontidão deste velho? (p. 75).
É sobre isso que Fazenda (2003) endereça a reflexão, sinalizando que:
159
Francisco C. Weffort. Educação permanente e as cidades educativas. In: FREIRE, P. Política e Educação: ensaios. 4. ed., São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção Questões de Bossa Época).
283
Reivindicar para qualquer ciência a primazia no trato dos problemas educacionais é uma atitude ingênua e pré-crítica, dado o grau de complexidade da realidade educacional, que não comporta abordagens isoladas (FAZENDA, 2002, p. 43).
De outra feita, diz Freire (2000b) que, para o sujeito produzir e construir
conhecimentos sobre a realidade dada, tem antes que aprender a “tomar distância”
dos objetos a serem conhecidos, cujo pressuposto é a percepção dos objetos e das
relações estabelecidas entre si. Esse movimento aparentemente contraditório, Freire
(2000b) o denomina “tomada de consciência”. O segundo movimento contínuo é o
que possibilita ao sujeito alcançar o patamar acurado da “conscientização” do
problema, ou seja, o aprofundamento consequente, sério, comprometido e rigoroso
das exigências postas no desvelamento da realidade.
Neste sentido, Freire (2000b) insiste em dizer:
[...] Não há conscientização sem a tomada de consciência, mas nem toda tomada de consciência se alonga obrigatoriamente em conscientização. É neste sentido que a pura tomada de consciência a que falte a curiosidade cautelosa, mas arriscada, a reflexão crítica, a rigorosidade dos procedimentos de aproximação ao objeto fica no nível do “senso comum”. A conscientização, por isso mesmo, não pode dar-se numa prática a que falte a seriedade indispensável a quem quer conhecer rigorosamente. Mas, quem quer conhecer rigorosamente sabe também que o processo de conhecer nem é neutro nem é indiferente [...] Mais ainda, a prática conscientizadora verdadeira, precisamente por que não dicotomiza a leitura do texto da leitura do contexto a que o texto se refere ou a que se pretende aplicar o texto, jamais aceita ser reduzida a simples discurso “militante”, vazio, autoritário, ineficaz. Porque é mais do que exclusiva tomada de consciência da realidade, a conscientização exige sua rigorosa compreensão. Por isso mesmo não é possível conscientização real no ensino neutro, “esterilizado”, do conteúdo (FREIRE, 2000b, p. 112-113, grifo do autor).
Nenhum outro além de Freire (2000b) me parece ter elevado ao grau de
excelência a veracidade dos conceitos de “tomada de consciência” e de
“conscientização”, ambos materializados na prática exercida na desocultação dos
problemas sociais reais da produção e convivência humana, em função da vida
plena e fazendo concretos o pensamento e a ação, com especial habilidade.
Igualmente, na esteira desse grau de excelência atingido, permito-me
entrecruzar a “tomada de distância” em Freire (2000b) com o princípio da espera
“vigiada” em Fazenda (2003), porquanto interfaces que guardam, em si, conotações
284
e semelhanças, pois o primeiro movimento exige, de quem se dispõe a conhecer, o
distanciamento estratégico dos objetos a serem conhecidos, precisamente o
distanciamento que assegura conhecê-los na totalidade de sua concretude,
enquanto o segundo movimento, parece constituir-se essencialmente da virtude da
prudência necessária ao ato de conhecer, como trata Fazenda (2003):
[...] O encontro só tem sentido na distância. O homem é um ser que se retira da situação para se fazer presente. É na medida da negatividade que a presença se faz. Assim o valor de um conteúdo programático está na crítica. A crítica só tem sentido na retirada da situação. O diálogo, na equipe disciplinar, promove essa crítica, pois nenhum tema do conhecimento, restringe-se a um campo delimitado de especialização e, é na opinião crítica do outro que afirmarei a minha. Na multidisciplinaridade, o encasulamento (FAZENDA, 2003, p. 40-41).
Vê-se, então, que se trata de uma espera como “palavra em movimento”
(FREIRE, 1997, p.11), a espera que não espera acontecer, por isso mesmo uma
espera “vigiada”, isto é, aquela que, ao permitir-se esperar, prepara com cuidado o
próprio acontecimento, preparando-se, com confiança, nele e para ele de forma
dinâmica e dialética, atenta à dilatação do tempo da própria espera. O tempo
semelhante ao da espera que se espera pelo fruto amadurecido, o tempo natural,
que não é livre do paradoxo e da ambiguidade na construção do ser e do
conhecimento do ser. Tempo de vivência de dúvidas e incertezas, o tempo do medo
e da ousadia, que não se mostra à primeira vista nem se define de pronto, ao
mesmo tempo em que, em movimento contínuo de busca, em nada lembra
imobilismo ou estagnação. Longe do tempo do nada ou do vazio, mas atento ao
tempo de transformação da realidade constatada, pois que um tempo que recusa a
“domesticação e o futuro pré-dado”. O tempo que reconhece “[...] a importância da
subjetividade na história” (FREIRE, 1997, p. 17).
Faz-se imperioso, portanto, o reconhecimento de que também nenhum outro
pesquisador da interdisciplinaridade, como Fazenda (2003), comprova haver
incorporado com convicção e precisa boniteza o cariz dessa espera singular.
Diz a autora:
A humanidade está toda por fazer-se. Não teremos jamais parado de falar. Toda obra é aberta. Conclui-se então, que não existe conhecimento absoluto, o homem é um constante vir a ser, e como tal, numa
285
temporalidade cronos e kairológica e numa historicidade. Um programa escolar que não leve em conta esta dinamicidade do homem, um programa centrado em objetos fixos, um programa inflexível, seria desumano [...] (FAZENDA, 2003, p. 39-40).
A caracterização “desumano”, na afirmação de Fazenda, refere-se a um
programa que admite a dicotomia (ciências exatas versus ciências humanas) e que,
por isso, “apenas informa meios-homens”, podendo encontrar, entretanto, o seu
ponto de superação na interdisciplinaridade (FAZENDA, 2003, p. 40).
Tal compreensão remete à visão de Freire (2000c) sobre a singularidade
política do ser humano que, embora finito e inconcluso, é “um ser vocacionado para
ser mais”; porém, perdendo o seu endereço na história, ele pode distorcer essa
vocação e, com isso, vir a “desumanizar-se”.
A desumanização por isso mesmo, não é vocação mas distorção da vocação para o ser mais. Por isso [...] toda prática, pedagógica ou não, que trabalhe contra este núcleo da natureza humana é imoral (FREIRE, 2000c, p. 10, grifo do autor).
Por juízo concebido, para que o “ser mais” possa realizar-se, é preciso o
revigoramento dos espaços de decisão, das oportunidades de escolha, o que, por
seu turno, requer a devida liberdade para pensar, agir, sentir e fazer, o único
caminho para a construção da autonomia que permite ao ser humano a conquista da
cidadania plena, ou seja, a efetiva participação política na sociedade. Esta é a razão
de ser da “qualidade ética da prática educativa libertadora” (FREIRE, 2000c, p. 91)
que, segundo o autor,
[...] vem das entranhas mesmas do fenômeno humano, da natureza humana constituindo-se na História, como vocação para o ser mais. Trabalhar contra esta vocação é trair a razão de ser de nossa presença no mundo, que terminamos por alongar em presença com o mundo. A exploração e a dominação dos seres humanos, como indivíduo e como classes, negados o seu direito de estar sendo, é imoralidade das mais gritantes (FREIRE, 2000c, p. 91, grifo do autor).
Dessa forma, a espera “vigiada” parece conter e estar contida num tempo de
paciência, de sabedoria, de ponderação, de apropriação e incorporação cautelosas
286
dos objetos dados ao conhecimento. É mesmo, tanto um tempo kairós quanto um
tempo cronos, este último o tempo do relógio, de natureza quantitativa, tempo da
demarcação dos segundos, minutos, horas, dias, meses e anos de nossa existência
e do que fazemos dela, a exemplo do alerta que nos faz Mario Quintana160 (1970, in:
MOREIRA JOSÉ, 2011, p. 130-131):
A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira... Quando se vê, já terminou o ano... Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê, já se passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado. Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas. Desta forma, eu digo: não deixe de fazer algo de que gosta devido a falta de tempo; a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.
Em paralelo, o tempo kairós, de natureza transcendental mais subjetivo que
objetivo, segundo Alberto (2013) revela o momento certo para a coisa certa.
Simboliza o instante singular que guarda a melhor oportunidade; é o momento crítico
para agir, a ocasião certa, a estação apropriada... não podendo ser medido mas
somente vivido. Tempo de mansidão, de fé. Demarca um momento indeterminado
no tempo em que algo especial acontece... (ALBERTO, 2013).161
Segundo a expressão de Fazenda na aula de 11 set. 2014162, trata-se da
“espera cuja humildade leva-me a compreender a rotina, mas não pode seduzir-me
a ficar nela... fugir às regras canônicas da pesquisa com a coragem protegida por
uma espera vigiada”.
160
Mario Quintana. O tempo. In: MOREIRA JOSÉ, M. A. De ator a autor do processo educativo:
uma investigação interdisciplinar. Tese Doutorado em Educação: Currículo. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2011. 161 Caio Alberto. O tempo é chronos ou kairós? Publicado no vlog em 16 set. 2013. Disponível no
https://www.youtube.com/watch?v=4AiGWrep94c. Acesso em: 16 set. 2014.
162 Registros de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. Aula da
Profa. Ivani Catarina Arantes Fazenda. PUC/SP, 11 Set. 2014.
287
Segundo Alves (2001, p. 64)163:
A humildade facilita o conhecimento, uma vez que este não tem fronteiras sagradas, zonas obscuras. A pesquisa, a aprendizagem sempre apontam para todos os lados, no espaço e no tempo. Quando alguém julga que aprendeu é porque não aprendeu nada, está ainda começando, pois sequer sabe que não sabe. O verdadeiro sábio, o humildade aprendiz é aquele que, tendo feito tudo o que julga necessário e pertinente, é capaz de dizer, parafraseando o Evangelho: Sou um servo inútil. E até mais, como diziam os latinos: Fiz o que pude. Façam mais e melhor os que puderem.
Sobre o mistério e a beleza do tempo, vale inserir aqui um recorte da fala
impactante de Sebastião Salgado (APÊNDICE F), numa das entrevistas que
concedeu a uma rede televisiva.164 Com dose precisa de racionalidade técnica e de
sensibilidade ímpar, o mundialmente famoso fotógrafo enche de afetividade o seu
depoimento, revestindo-o do cuidado e do olhar amoroso próprio da pessoa que
imprime ao que faz o gosto, o comprometimento e a arte de fazer (no seu caso, a
arte de fotografar o real com real beleza). A essência das colocações feitas ao
entrevistador pode ser assim interpretada: há que se dar o tempo da fotografia. A
beleza dela está na capacidade do fotógrafo de aguardar o seu melhor instante. O
fotógrafo precisa estar dela embebido, pleno do sentimento de pertencimento, e
antecipar-lhe a beleza. O tempo da fotografia é o tempo da vida.
Neste trabalho posso tomá-lo como o tempo de alcançar as possíveis
respostas às perguntas intelectuais e às perguntas existenciais, ou seja, o tempo da
experiência do resgate das experiências e vivências de tempos já passados e agora
colocados em análise crítica. Tempo do autoconhecimento, do conhecimento do
outro reconhecendo-me nele, do conhecimento da ciência e da sua razão de ser na
existência, isto é, tempo de transcender o conhecimento comum e de ascender ao
conhecimento científico. Tempo de vivenciar a liberdade criteriosa e crítica de
ensinar e de aprender e de captar as implicações da liberdade, não só na
aprendizagem de conteúdos específicos, mas sobretudo na realização do ser.
Particularmente, para mim é o tempo do encontro comigo mesma no encontro com o
outro, no que resulta definir-me como uma jovem pesquisadora idosa. É sempre
163
Cláudio Alves. Humildade. In: Fazenda, I. C. A. (Org.) Dicionário em Construção: Interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001a.
164 Programa Roberto D´Avila, Globo News, exibido em 20 ago. 2014, às 15 horas.
288
tempo de... Afinal, reiterando Fazenda (2003, p. 40), “A humanidade está toda por
fazer” e, sendo eu parte da humanidade, estou no mundo e com o mundo, e nele
sou educadora comprometida com a transformação desse mesmo mundo. É esse
comprometimento que impulsiona minhas buscas em educação, objetos de reflexão
desta tese.
Ainda nessa perspectiva, Freire (2000a, p. 49, grifo do autor) afirma que: “O
homem existe ─ existere ─ no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora.
Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o
esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se”.
Com a propriedade que lhe é peculiar e considerando a obra de Erich Kahler,
“História Universal del Hombre”, o criador da pedagogia libertadora assim se
expressa:
Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura (FREIRE, 2000a, p. 49).
Observo mais uma vez que aprender a filosofia existencial de Freire (2000a) e
praticar a liberdade por ele concebida impôs, de forma inapelável, à então
“professorinha” daquela gente humilde do Vale do Ribeira, durante treze anos para
além de 1968 (e até hoje, em outros contextos), o compromisso de administrar o
medo e mediar a ousadia no enfrentamento do desafio da transformação da prática
educativa, até alcançar o entendimento do sentido da liberdade em Freire (2000),
manifesto na prática crítico-reflexiva, participativa e problematizadora da realidade.
Aquela que só pode ser feita e refeita se mediada pelo diálogo e pelo respeito à
palavra do outro, à palavra do aluno, por excelência. Não, portanto, a palavra
escondida, dissimulada, imposta, ensaiada e/ou repetida, mas aquela reveladora do
sentido de suas genuínas buscas, de seus reais anseios, sonhos e desejos, de suas
vitais necessidades e de suas formas de percepção e representação do “ser-no-
mundo e ser-ao-mundo”, como descreve Rezende (1990, p. 35), e à semelhança do
pensamento de Fazenda (2003, p. 38-39), sincrônico ao de Freire e refletido nas
duas expressões que seguem: “Se a palavra tem sentido, se falar é falar a alguém, é
289
comunicar, se a palavra que não tem sentido se esvazia, um programa de ensino
linear que configure disciplinas isoladas, incomunicáveis, não tem sentido, é vazio”.
E mais,
A palavra está a serviço da ação, na medida em que o pensamento é ela própria. Ela vale o que vale nosso ser... “o ato de educar, a educação como ação, uma ação que executa e espera”... (FAZENDA, 2003, p. 40, grifo do autor).
Vê-se, então, que se trata, aqui, da ação que realmente pode educar, da
palavra que desvela ao aluno o sentido dele mesmo enquanto ser humano ─ pessoa
concreta em processo formativo concreto; com existência concreta e o estar no
mundo concreto; do sentido da existência da escola situada histórico-social e
politicamente; do sentido da educação formal escolar, bem como dos saberes que
ele traz antes do ingresso no processo de escolarização. O sentido dos conteúdos
curriculares e de seu ensino na escola, tanto quanto o sentido da aprendizagem e do
desenvolvimento humano e tantos outros sentidos até então não lhe revelados, até
que possa, com a mediação docente, ir alcançando o sentido da vida e da existência
de cada um de nós individualmente e dos “outros de nós mesmos”. Como nos
ensina Cortella (2007) e como defende Freire (2000b), o sentido da,
[...] escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica... a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, científico, mediados pelas experiências no mundo (FREIRE, 2000b, p. 83).
Para melhor dizer da força da palavra e do significado da prática educativa
libertadora de Freire, recorro ao pensamento de Weffort (2000), que as descreve de
forma a mais pertinente e adequada:
[...] Quando alguém diz que a educação é afirmação da liberdade e toma as palavras a sério ─ isto é, quando as toma por sua significação real ─ se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta pela libertação (WEFFORT, 2000, in: FREIRE, 2000a, p. 15).
290
Freire (2000b) explicita o compartilhamento dessa visão quando assim se
expressa:
[...] Trabalhar, portanto, numa postura conscientizadora, não importa se com camponeses brasileiros, ou hispano-americanos, ou africanos ou se com universitários de qualquer dos mundos, é procurar, com rigor, com humildade, sem a arrogância dos sectários demasiados certos de suas certezas universais, desocultar as verdades escondidas pelas ideologias tão mais vivas quanto delas se diz que estão mortas (FREIRE, 2000b, p. 113).
À alocução de Freire, Weffort (2000)165, acrescenta: “O Estado e as palavras
são igualmente expressões da prática dos homens, e conscientizar é assumir a
consciência deste fato” (WEFFORT, in: FREIRE, 2000a, p. 21).
Precisamente porque a palavra liberada ao debate corajoso não é
exclusividade desta ou daquela pessoa, porque aberta a todos que a ela têm direito,
é que ela só pode significar “um modo de expressão de uma situação real, de uma
situação desafiadora”, como categoriza Freire (2000a, p. 14), aqui destacado
novamente por Weffort.
Dessa forma, palavra e significação soam-me como um composto que atesta
a existência da própria palavra sempre encarnada numa situação determinada.
Dizê-la como expressão da verdade é a práxis, é a transformação do mundo,
segundo Freire (1986), mesmo porque a palavra sem sentido tem
consequentemente o seu “aspecto sensível” sequestrado.
Atentemos às palavras de Fazenda (2003), sobre isso:
A palavra só tem sentido na ação. A palavra tem um sentido, e impondo-a ao objeto, tenho consciência de atingir o objeto. [...] Pensar e falar são duas atividades correlacionadas, assim, é através da palavra que, poderemos conhecer o ser. Só conhecemos nosso ser em nossos atos; e esses atos traduzem-se na comunicação com o outro, nos encontros (FAZENDA, 2003, p. 32).
Nesse sentido, pode-se também dizer que ensinar é essencialmente
conscientizar, desvelar o sentido e o significado das coisas, de todas as coisas tais
quais se apresentam na realidade, de tal forma que a palavra oca e
165
Op. cit.
291
descontextualizada acarreta perda do sentido da teoria que se quer materializada na
prática, tanto quanto a perda da razão de ser da entrega da prática à suficiência
teórica. Essas perdas, por conseguinte, tornam comprometida a finalidade última do
ensino, que é reverter-se na aprendizagem significativa do aluno. O ensino capaz
de, pela conscientização, realizar a tarefa fundamental da educação realmente
libertadora, a educação respeitadora do aluno como pessoa, antes de tudo e
considerando que ensinar e aprender são atos próprios
da existência humana histórica e social, como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia (FREIRE, 2000c, p. 19).
Freire (1992, p. 81-82), em sua obra: “Pedagogia da Esperança: um
reencontro com a pedagogia do oprimido”, adverte sobre a “finalidade última do
ensino”:
[...] ensinar é assim a forma que toma o ato de conhecimento que o(a) professor(a) necessariamente faz na busca de saber o que ensina para provocar nos alunos seu ato de conhecimento também, por isso, ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico. A curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em ação, se encontra na base do ensinar-aprender [...] mas, assim como não é possível ensinar a aprender, sem ensinar um certo conteúdo através de cujo conhecimento se aprende a aprender, não se ensina igualmente a disciplina de que estou falando a não ser na e pela prática cognoscente de que os educandos vão se tornando sujeitos cada vez mais críticos (FREIRE, 1992, p. 81-82).
Nesse sentido, também para Dinorah (1990) “Ensinar é um pouco mais do
que transmitir conhecimentos. É fazer brotar de cada silêncio a verdade e a magia
do tempo, em compromisso de amanhãs” (DINORAH, 1990, p. 51).
Ademais, é na relação de interdependência de ensino-pesquisa que se pode
apreender outra especial razão de ser do ensino, e novamente Freire (1996) é quem
explica:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo (FREIRE, 1996, p. 32).
292
Desse modo, cabe reconhecer que são muitos os estudiosos que nos dão
lições acerca do sentido da presença e da formação do homem no mundo. Do
conjunto delas é possível extrair a riqueza da ideia segundo a qual a existência
humana (justamente por ser humana) não pode se alimentar de falsas palavras,
tampouco de mudos silêncios. Tanto a prática da falsa palavra quanto o exercício da
mudez perniciosa comprovam não sustentar a própria existência, tornando-a, sim,
adulterada e inútil. Em outras palavras, não há existência que possa manter-se
íntegra na prática de falsear e/ou de ficar mergulhada no mudo silêncio.
É Freire (1996) quem reitera a boa palavra:
O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do “faça o que mando e não faça o que eu faço”. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo (FREIRE, 1996, p. 28, grifo do autor).
Disso decorre que o homem só pode pronunciar e transformar o mundo no
exercício de palavras verdadeiras. Problematizar o mundo exige autenticidade, e só
assim o mundo problematizado pode voltar-se ao sujeito que o pronuncia e dele
espera novos pronunciamentos. Isso porque qualquer definição de transformação, a
meu ver, traz implícita a ideia de participação ativa e de ação efetiva no mundo e
com o mundo.
Cortella (2013), diz que:
Freire, desde 2012 oficialmente o Patrono da educação brasileira, afirmava, e nós retomamos: É preciso ter esperança, mas tem de ser esperança do verbo “esperançar”, porque tem gente que tem esperança do verbo “esperar”, e essa não é esperança, é pura espera [...] um mero aguardar passivo. Esperançar é ir atrás, é se juntar, é não desistir; esperançar é procurar em nós e à nossa volta as sementes que urge exterminar, de forma a limpar terreno para proteger o Futuro e acolher a Vida com mais plenitude (CORTELLA, 2013, p. 15-16, grifo do autor).
Por isso, o ato de nos assumirmos como sujeitos éticos é decisivo para nossa
assunção como sujeitos da busca, como sujeitos da opção, enfim, como sujeitos
293
históricos e transformadores. Por essa razão, não podemos olvidar que a luta pela
liberdade e pela transformação exige, sobretudo, a vivência ética.
A esse respeito, vale rememorar o alerta do autor sobre a relação teoria e
prática, comumente mal interpretada no meio escolar, nem encarar a prática como
prioridade e tampouco caracterizar a teoria como algo estéril, muito embora
necessário. Teoria e prática não são, em si mesmas, autossuficientes. Uma sem a
outra, na prática socioeducativa, torna o estar no mundo das pessoas despido de
sentido e de significação, justamente porque não se deve tomar como teoria a
aptidão pela palavra vazia e descompromissada com a realidade.
Por sua vez, a prática autossuficiente restringe-se à mera técnica, podendo
perder até o sentido de nos mostrar o como fazer, prescrever os passos
necessários à realização da tarefa, tornando-nos mais autômatos que autônomos,
pois, limitados à prática, ficamos reféns da técnica e nos legitimamos eficientes
repetidores da palavra, verbosos, palavrescos. Tomadas a teoria e a prática
independentes entre si, condenamos ambas ao imobilismo e à inércia, isto é, nada
há que se fazer além de repetir o já feito, o já conhecido, numa reprodução
mecânica, porque impensada e acrítica (FREIRE, 2000a).
A teoria leva-nos a entender as abstrações da realidade, aproximando-nos
das dimensões do real, mas o ensino dela desapartado impõe uma aprendizagem
mecânica e memorística, fazendo, em separado e sem sentido, a realização de parte
ínfima da totalidade da obra de ensinar e aprender.
É Dinorah (1990, p. 29) quem diz que “o desenvolvimento do pensamento
reflexivo deve ter raízes na liberdade de opinar sobre o que se vê, sente e lê”.
Sobre a relação da interdependência teoria e prática, Freire (2000b) reitera:
“Praticar implica programar e avaliar a prática. E a prática de programar, que se
alonga na de avaliar a prática, é uma prática teórica” (FREIRE, 2000b, p. 109).
Tomando o pensamento de Freire (2000b) permito-me pensar que a teoria
ilumina os processos de criação; a prática, os experimenta.
Em amplo espectro, entendo que conceber a liberdade por este ângulo é
também admitir que a dimensão prática da teoria contém e está contida na
dimensão teórica da prática, apostando na recíproca tão verdadeira quanto o
294
postulado primeiro: teoria e prática, pois, inexistem sem a palavra, dado que
inexistem sem os sujeitos da palavra e sem os seus significados reais.
Para Freire (2000b),
[...] toda leitura da palavra é sempre precedida de uma certa leitura de mundo [...] (leitura que é social e de classe) [...] a leitura da palavra remete o leitor à leitura prévia do mundo, que é, no fundo, uma releitura. A palavra, a frase, o discurso articulado não se dão no ar. São históricos e sociais... O que não me parece possível é fazer a leitura da palavra sem relação com a leitura do mundo dos educandos [...] um quefazer político conscientizador... (FREIRE, 2000b, p. 63).
É novamente Weffort (2000) quem remete o pensamento ao “princípio
humanista” da “maiêutica socrática”, para reiterar a relevância social e político-
pedagógica do método de Freire (2000b). Compara ele: Sócrates levava seus
discípulos ao conhecimento por meio do “exercício livre das consciências” (p. 15),
princípio este claramente perceptível na prática educativa verdadeiramente
democrática testemunhada pelo memorável educador pernambucano.
Resta reconhecer, contudo, que a significação particular da maiêutica
freiriana não se dava com homens aristocratas da Grécia Antiga, mas com homens
do povo, da era moderna, cuja condição socioeconômica e cultural se assemelha ao
dos alunos reais a quem se destinam as instituições de ensino básico. E
principalmente aos usuários das escolas públicas, onde grande parte deles
representa a autêntica parcela da sociedade, não obstante o corte social que a
apresenta como de desprestigiada condição nessa mesma sociedade, a exemplo
das caracterizações passadas.
Assim é que têm sentido para eles as palavras que dizem respeito à própria
situação social que ocupam e que lhes desfavorece sobremaneira o acesso aos
bens ideais como educação e cultura.
[...] Daí que esta maiêutica para as massas comprometa desde o início o educando, e também o educador, como homens concretos e que não possa limitar-se jamais ao estrito aprendizado de técnicas ou noções abstratas (WEFFORT, 2000, in: FREIRE, 2000a, p. 15)
166.
166
Registros de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 08 abr. 2000.
295
Além disso, penso que essa “maiêutica” deve estar escrita para poder
inscrever-se na história dos alunos e dos educadores, sujeitos concretos da história
da própria educação básica brasileira. Dessa feita, uma inscrição para além da
condição de espectadores ou de atores, mas na condição de protagonistas, autores
daquela história. Para tanto, educadores e educandos, no seio do movimento da
educação escolar, devem dialeticamente aprender, não apenas o significante, mas
sobretudo o significado de todas as palavras, começando pelas palavras
consciência, conscientização, palavra e liberdade, saídas da teoria e efetivadas na
prática, para apreenderem o sentido da libertação de suas amarras como pessoas
fazedoras de sua própria história, da história de seu grupo-classe social e da história
de superação da opressão real que experimentam cotidianamente. Nisso reside167 a
imprescindibilidade da teoria na transformação do mundo:
Sem teoria, na verdade, nós nos perdemos no meio do caminho. Mas, por outro lado, sem prática, nós nos perdemos no ar. Só na relação dialética, contraditória, prática-teoria, nós nos encontramos e, se nos perdemos, às vezes, nos reencontramos por fim (FREIRE, 2000b, p. 135).
Entretanto, não se escreve e se inscreve nessa história sem intensificar “o
gosto de ouvir e a vontade de falar” em função do reconhecimento dos próprios
limites e possibilidades. Há que se respeitar a palavra do outro na busca do seu
sentido e do seu significado, atento à ratificação de Freire (2000b), de que “aprender
o objeto, o conteúdo, passa pela apreensão do objeto, pela assunção de sua razão
de ser” (FREIRE, 2000b, p. 59, grifo do autor). Isso, sobretudo se o que se quer é a
educação para o desenvolvimento humano e para a democracia cidadã, estando
esta também em aprendizagem, no sentido das emergências, das necessidades e
das exigências educacionais emersas das condições novas da atualidade, não
obstante o contraponto das heranças ditatoriais que insistem em vivificar a prática
educativa essencialmente antidemocrática e que privilegiam a teoria em detrimento
da prática ou, ao contrário, que sublimam a prática em total desprezo à teoria.
Enfim, há que ser mais uma vez requerida a fala de Cortella, recomendada
aos mestrandos do idos tempos de 2000. Dizia ele: “Caros alunos... chega-se ao fim
167
Registros de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP, 08 abr. 2000.
296
de uma história e não da história. E lembrem-se, sempre, que o tempo do burocrata
é a aposentadoria; o tempo do político, o mandato; o do poeta, o futuro e o tempo do
educador, a eternidade! Junta-se essa fala ao questionamento intrigante de Servant-
Schreiber (1991, p.15): “Se for preciso escolher a mais simples definição de tempo,
não poderíamos dizer que é aquilo que mede uma transformação?”
297
8 O AUTOCONHECIMENTO: o encontro do sentido pela leitura interdisciplinar
e fenomenológica
Por que o autoconhecimento?
Por fim, não se chega ao fim do conhecimento... não se esgota o eterno caminhar do homem na procura de conhecer-se a si mesmo. Na caçada do sentido da ciência e da existência. Na procura das possíveis respostas às perguntas intelectuais e perguntas existenciais.
O homem é mesmo um eterno caçador de sentidos!!!
(Odila Amélia Veiga França)
Por que o autoconhecimento na educação?
É urgente que se resgate o potencial imaginativo da criança, tão afogado hoje em estereótipos, imagens prontas e processos alienatórios de aprendizagens.
(Maria Dinorah)168
Licença, para a minha incontida inquietude e para a minha irrefreável
inclinação para a poetização. Aqui, o poema de Dinorah (1990, p. 5):
Eu gosto tanto de brincar de infância que esqueço, às vezes, o apagar dos dias; Como se a vida, a derramar distância, Fosse um brinquedo em minhas mãos vazias. Eu sofro tanto com a desimportância que dão à infância as realidades frias, que esqueço, às vezes, sufocada de ânsia, a infância azul das minhas fantasias. E entre a lembrança do passado-ausência e do presente, feito de violência, temo um futuro, onde a desesperança faça do homem este ser de espanto, em cujos passos emudeça o canto que o fez tão grande, quando foi criança!
(Maria Dinorah)169
168
Maria Dinorah. Guardados de Afeto: repensando a alfabetização. Belo Horizonte: Lê, 1990, p. 5.
169 Idem.
298
Não impossível, mas difícil crer que Dinorah (1990) não seja um ser humano
que se conhece como pessoa e como educadora. Difícil imaginar que a sua poesia
não tenha se levantado do mais fundo do seu ser, do mais recôndito de sua alma,
educadora. A meu juízo, a autora poetiza o seu “ser-no-mundo” da educação e o seu
“ser-o-mundo” (REZENDE, 1990) na consciência ética e estética.
Na leitura intertextual de sua poesia sou capaz de ouvir uma voz firme e
prudente, impregnada do sentido da espera “vigiada”. Uma voz que se levanta cheia
de amorosidade para dizer da incerteza do amanhã e dos anseios infinitos do
homem pela justiça e sua correspondente, a paz. E pela sua consequente, a
felicidade.
A voz fala-me também do amor como necessidade humana vital e como
temática primeira dos dias atuais, mais que isso, essencial. Fala-me de um fazer
imbuído do compromisso político-pedagógico, centrado no outro e assentado na
qualidade do feito. Concluo: um pensar, sentir e agir interdisciplinares em que os
princípios da humilde, da coerência, da espera, do respeito e do desapego ressaltam
aos olhos do leitor sensível à sua poesia. Enfim, eu diria à Maria Dinorah, jornalista,
escritora e especialista em educação: a sua poesia e os seus escritos fazem-me
“esperançar”, acreditar que é real a possibilidade de uma humanidade mais feliz!
Considerada a afirmação de Francisco Carvalho, ela própria a anuncia:
“Alguém tem que assumir a infância pelos que não sonham” (CARVALHO, apud
DINORAH, 1990, p. 7).
Esse alguém anunciado por Dinorah (1990) remete ao sentido da educação
escolar e à responsabilidade ética e social dos profissionais da educação e da
comunidade educativa que a fazem.
Diz respeito àquilo que almejamos em educação. Liga-se diretamente ao
objeto precípuo da ação educativa. E mantém ressonância com o pensamento de
Dinorah (1990, p. 65):
O que queremos deixar expresso é que, em cada um de nós que trabalhamos com a criança, há uma velha responsabilidade a ser renovada: mude a vida como mudar, siga o mundo os rumos que seguir, tenhamos em mente as imensas potencialidades da Arte, capaz de dar ao homem, hoje, amanhã e sempre, a mais plena dimensão de si mesmo (DINORAH, 1990, p. 27).
299
Para mim, a palavra chave do autoconhecimento é o Amor. E penso que não
é o amor que deve enamorar-se do autoconhecimento para poder levar o homem a
experimentar de sua magia transformadora do mundo. Ao contrário, é o
autoconhecimento que leva o homem a descobrir-se nas inúmeras voltas que tem
que dar em torno do amor até descobrir a plenitude do seu poder transformador.
Nesse sentido é que a palavra-chave do autoconhecimento é o amor, é a
palavra que sempre está à disposição da melodia do homem requerendo os devidos
cuidados no instante mágico de sua exteriorização.
Assim é que entendo o autoconhecimento; É vida, e educar é um ato de
amor. Um ato de amor à vida, a si mesmo e ao outro. Um ato de amor à Natureza,
ao planeta, ao Universo. Autoconhecimento significa respeito humano à vida, à
consciência humana sobre a vida, ao desenvolvimento dessa consciência a partir da
consciência de si.
Como Sócrates aponta na máxima “Conhece-te a ti mesmo”, os estudiosos e
os pesquisadores a identificam como morada da sabedoria.
Inspirada no pensamento de Freire (1996) entendo o autoconhecimento como
um portal de aprendizagens e da formação humana pessoal e profissional. A tarefa
mais importante da “prática educativo-crítica”, sem sombras de dúvida.
[...] propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se com o ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu (FREIRE, 1996, p. 46, grifo do autor).
A meu ver, o autoconhecimento é o portal da aprendizagem. É tecido na
“tomada de consciência e na conscientização” (FREIRE, 2000b, p. 112-113), objeto
de estudo de que se ocupou a vida toda o educador pernambucano. Tomada de
consciência e conscientização, conceitos já recorrentes neste trabalho, ligados a
uma capacidade refinada do homem de olhar o mundo interior e exterior com
curiosidade igualmente refinada e indagadora. Capaz de assustar, de impactar, de
indignar e, sobretudo, de despertar no ser humano o desejo e a vontade ético-
300
política de mudar e de transformar esse mesmo mundo olhado, percebido,
contemplado, tal qual ele se mostra de imediato e se apresenta ordinariamente.
É a este processo de mudar, de transformar o mundo natural de que emergimos, de que decorre a criação do mundo da cultura e da história que, feito por nós, nos faz e refaz, que venho chamando escrever o mundo antes mesmo de dizermos a palavra e muito antes ainda de escrevê-la (FREIRE, 2000b, p. 111, grifo do autor).
É dessa forma que, sob a minha ótica, o autoconhecimento aponta para o
discernimento justo e necessário, que leva os homens e as mulheres a fazerem
opções pela vida ou pela morte, pela paz ou pela guerra, pelo amor ou pelo
desamor, pelo cuidado ou pelo desdém, pela alegria ou pela tristeza. O
autoconhecimento que leva o homem a ver a história polarizada numa visão
determinista ou como possibilidade, oferecendo-lhe a oportunidade de encará-la
com a lucidez freiriana.
[...] a melhor maneira de alguém assumir o seu tempo, e assumir também com lucidez, é entender a história como possibilidade [...] esse tempo e esse espaço têm que ser um tempo-espaço de possibilidade, e não um tempo-espaço que nos determina mecanicamente. [...] no momento em que entendo a história como possibilidade, também entendo sua impossibilidade. O futuro não é um pré-dado (FREIRE, 2000b, p. 90).
Eleita a proposta freiriana de encarar a história como possibilidade, transfiro-
a, agora, para a ideia de felicidade como possibilidade humana, tal qual a posição de
Cortella (2013). Para ele,
[...] felicidade não é um estado contínuo. Felicidade é uma ocorrência eventual. É sinônimo de fertilidade. Fertilidade não é apenas gerar outras pessoas. Fertilidade é dificultar a desertificação dos nossos sonhos. Fertilidade é fazer com que não haja a esterilização do nosso futuro. Ser feliz é sentir-se fértil (CORTELLA, 2013, p. 27).
Partindo da ideia de felicidade declarada pelo autor, penso que o
autoconhecimento não pode levar, por si só, o homem à felicidade, mas pode fazer
ajustadas, equilibradas as formas e as maneiras pelas quais o homem a procura
durante toda a sua existência. Pode fertilizar o seu espírito no embate das carências
301
sofridas no seu corpo e no mundo físico em que habita. Pode ajudá-lo a ver a
felicidade como possibilidade e, como tal, como impedimento da “desertificação” dos
sonhos e da “esterilização” do futuro (CORTELLA, 2013, p. 27).
De outra feita e trazendo a música “Felicidade” do compositor gaúcho
Lupicínio Rodrigues, Cortella (2013) incita nosso imaginário na direção de
pensarmos a felicidade também como possibilidade sempre. O autor levanta
questões provocativas frente às quais só resta ao leitor repensar o sentido de
felicidade atribuído às nossas vidas.
Afinal, como na música, achamos mesmo que a felicidade “foi se embora” de
forma irremediável? Concordamos que no lugar dela só nos restam as lutas inglórias
e as derrotas inevitáveis? Entendemos que a sua ida de nós é inexorável? É fato
consumado? Concebemos que a sua ausência possa ser justificada pela
competitividade desenfreada que caracteriza a sociedade globalizada desses
tempos novos que atravessamos? Mantemos conivência com o enfrentamento
desinteligente dos problemas e situações difíceis surgidos em nossas vidas? Com
os desafios inusitados ou vitórias conseguidas a qualquer preço? A todo o custo,
como aquelas em que os meios justificam os fins? (CORTELLA, 2013, p. 23).
A meu ver, é a justiça que assegura a paz, a qual resulta na felicidade. Em
outras palavras, não há felicidade sem paz e inexiste a paz sem justiça,
entendimento este abrigado no pensamento de Cortella (2013), assim expresso: “A
paz é justamente a condição de impedirmos qualquer forma de segregação ou de
apequenamento da vida e também da nossa condição de felicidade”. Para mim, a
exemplo do filósofo que se coloca em defesa da vida, este é um sonho “não fácil e
nem impossível” (CORTELLA, 2013, p. 26-27).
Sonho que, a meu juízo, tem a possibilidade de realização no
autoconhecimento, que guarda favorabilidade da concretização do conhecer-se a si
próprio. “A felicidade é o significado da vida, o objetivo e a finalidade da experiência
humana” (ARISTÓTELES, apud LAGO, 2004, p. 87).
Discorrendo sobre essas ideias, Fazenda (2011, p. 62) aclara que “[...] a
maior satisfação do homem está em se sentir ele mesmo, se identificar com a vida,
com a natureza, com as suas origens e poder se expressar”.
302
Uma outra associação que considero pertinente de ser feita com o
autoconhecimento é a referente à ética. Quando ouço falar em ética, sou impelida a
pensá-la como elemento constitutivo do autoconhecimento, cuja reciprocidade
também considero pertinente, isto é, vejo que a ética tem, no autoconhecimento, a
possibilidade fértil de materialização. Por conseguinte, o autoconhecimento a que
lhe falte a consciência ética se revela carente de completude. Por óbvio, essa
completude não se dá apenas na ética individual, mas também na ética da
coletividade, significando o conjunto de valores de que se vale todo o indivíduo para
nortear a sua conduta ou, no dizer de Rezende (1990), pautar o seu “ser-no-mundo”
e o seu “ser-ao-mundo” “[...] uma antropologia inseparável de uma cosmologia”
(REZENDE, 1990, p. 35). Esta concepção de Rezende (1990) sugere que a conduta
individual, pessoal do ser humano abra-se ao compartilhamento com a conduta
coletiva.
Sobre isso declara Cortella (2013) que, exceto os indivíduos desprovidos da
chamada “sã consciência” (p. 52), aos demais resta a escolha, a decisão, o
julgamento sobre os atos da vida individual e coletiva e sobre a conduta, individual e
coletiva, perante esses atos. E aí se pode falar em ética da proteção à vida coletiva,
aliás, a que nos dias atuais tem sido explicitamente aviltada, como aponta o autor.
O autoconhecimento enquanto morada do sonho de justiça e de paz, logo, de
felicidade, põe em exercício operante, contínuo e progressivo a consciência ética
como mediadora das atitudes e das tomadas de decisão, isto é, torna-a como
guardiã de tudo aquilo que resulta das escolhas feitas, quer no plano individual, quer
no âmbito da coletividade. Ambas são escolhas que se apresentam cotidianamente
aos homens e às mulheres que são no mundo e que são o mundo, o que vale dizer,
seres humanos que tomam a ética como essencial à vida, e não apenas como algo
a ser atingido no horizonte vislumbrado por olhares longínquos.
Ética e responsabilidade em Freire (1996) ganham a seguinte dimensão:
E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade (FREIRE, 1996, p. 20). Ou... Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe (FREIRE, 1996, p. 20, grifo do autor).
303
E aí eu me coloco inquiridora da minha consciência ética:
─ Teria me faltado a ética, na reprovação do Jairo? Ou a ética não teria se
revelado à minha consciência avaliativa? Ou, ainda, teria o meu olhar alcançado
longínquo demais a ponto de se perder nas finalidades da alfabetização inicial? Ou
talvez o fato pedagógico vivido com o Jairo possa ser explicado, em certa medida,
pela afirmação de Gadotti (1986):
A concepção teconoburocrática leva os educadores a pensarem que o problema da educação é saber como é preciso fazer para ensinar e não como é preciso ser para ensinar (GADOTTI, 1986, p. 86, apud FAZENDA, 2011, p. 62).
Com efeito, também Cortella (2013, p. 97) tem reiterado o alerta “O urgente
não tem deixado tempo para o importante”, endereçado principalmente aos
educadores inquietos acerca do autoconhecimento ético e político-pedagógico a
partir da dimensão pessoal.
Salvo melhor juízo, entendo que nisso reside a relevância do
autoconhecimento para os profissionais da educação, para a comunidade escolar e,
sobretudo, para aqueles que formam cotidianamente as “gerações chegantes” (p.
95), como as denomina o autor, cujo objetivo mais perseguido tem sido, em geral, o
de,
[...] tornar o jovem apto para sobreviver neste nosso mundo “fatalmente” competitivo! Isto é, prepará-lo para aceitar, assimilar e sustentar um modo de vida conjunta autofágica, narcisista e excludente; deixá-lo sucumbir às idolatrias do mercado, admirar a sociedade agudamente concorrente, participar da disputa insana pelo exclusivo e fugaz sucesso individual (CORTELLA, 2013, p. 97-98).
Para dar conta de toda essa sofreguidão pelo ter em detrimento da
aprendizagem do ser, a escola e a sociedade acumulam as novas gerações de
informações a serem devoradas, repetidas e reproduzidas mecanicamente, sem
sofrerem a devida transformação em conhecimentos. Fomentam a corrida ao ouro a
todo o custo, e assim, a corrida aos vestibulares e a corrida ao mundo do trabalho
são norteadas basicamente pelo desenvolvimento de habilidades técnicas. Pais,
familiares e cidadãos em geral defendem a escola competitiva, enrijecida em seu
304
modelo organizacional e em seu modus operandi, estruturada para aqueles
destinados ao sucesso e às vitórias pensadas e programadas a priori, à parte da
realidade vivencial e da formação voltada para a transformação dessa realidade.
Refutam, pois, a escola que educa para a ambiguidade, para a contradição e para
as incertezas que a vida concreta nos apresenta.
E aí sobram incertezas: “Preparar o futuro ou enfrentar o amanhã com um
presente mais frágil? Eleger uma escola considerada tradicional ou arriscar-se no
modelo chamado liberal? Uma escola como a do passado ou uma impregnada de
modernidade?”, inquieta-se Cortella (2013, p. 98).
Deus me livre cada vez mais da ignorância de saber mal aquilo que eu devo
saber bem para fazer opções mais criteriosas na educação de nossas crianças, dos
nossos jovens e adultos, sobretudo na escolarização básica desses aprendizes.
Deus me ajude a que eu seja capaz de, na educação escolar básica e superior,
desenvolver um ensino assentado o suficiente na ciência, focado no
desenvolvimento da cidadania plena e apaixonado pela consciência crítica que
forma pessoas autônomas e fortalecidas na ética humana, no respeito de si e do
outro, na solidariedade, na justiça e na paz. Em outras palavras, pessoas que
possam extrair da dimensão prática das teorias estudadas nos bancos escolares e
centros acadêmicos as ferramentas para a contribuição na construção de um mundo
mais digno e melhor para se viver. Pessoas que se abram à compreensão de seus
estados interiores e subjetivos e que, dessa forma, possam então abrir-se ao
conhecimento do outro e do mundo.
Penso estruturar-se nesses elementos constitutivos do autoconhecimento a
concepção de Ruy Cezar do Espírito Santo, que o liga à consciência ética, fazendo-
o, embasado em Chardin (1989), convocar cada um de nós “à visão holística da
vida” e ao resgate de nossas “tradições humanistas-espirituais”, ou seja, a chegar “à
luminosa síntese”, como aponta Chardin (1989) apud Espírito Santo (FAZENDA,
2008, p. 147).
Alerta o estudioso da temática do autoconhecimento para a tomada de
consciência da nova era em que está mergulhada a humanidade. Época conturbada,
porém denominada por Espírito Santo como tempo da “maturidade do ser humano”
(FAZENDA, 2008, p. 148), não obstante revelar, segundo o autor, um processo de
conscientização que tem à frente um longo caminho a ser percorrido. Instituições
305
governamentais e organismos não-governamentais, sindicais, religiosos e outros,
não garantem, em si mesmos, que o tempo de adolescência humana ficou para trás
ou que está suficientemente resolvido em relação à conscientização. Portanto, o
próprios autores os analisa como indicadores de incompletude.
Dessa forma, Espírito Santo parece endossar a convocação de Chardin
(1989) para “[...] uma tomada profunda de consciência do ser humano a respeito da
vida: o ponto ômega como ele mesmo definiu” (ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 147,
grifo do autor, in: FAZENDA, 2008, p. 147)170.
O que Rosa (2007) tem a nos dizer sobre os tempos da adolescência e da
maturidade do ser humano pensados por Fazenda e Espírito Santo, merece de ser
aqui incluído. Assim se expressa a autora sobre essas ideias:
Quando atingimos a “idade da razão”, dizem-nos, tornamo-nos “adultos” e já podemos nos responsabilizar por nossos próprios atos, tomar nossas próprias decisões. Somos “independentes”. Que esdrúxula independência! Como efetivamente conquistá-la se durante tanto tempo basicamente aprendemos a obedecer? Mais honesto seria dizer que os adultos assim educados são apenas crianças bem comportadas que, por já saberem “distinguir o bem do mal”, não oferecem riscos à ordem estabelecida. “São agora seus representantes.” (ROSA, 2007, p. 25, grifo do autor).
Entretanto, e segundo a autora, (e feliz paradoxo diria eu), é a idade da razão
justamente a que oferece ao adulto, então racional, a oportunidade do repensar, do
refazer e do redirecionar suas ações frente aos caminhos já percorridos e exigentes,
agora, da necessária retomada.
De outra feita, Antunes (2008) leva-me a concordar que se podemos
considerar conhecimento como um ato intelectual que pode conduzir o indivíduo a
novas formas de agir sobre o ambiente externo ou mesmo sobre o próprio
pensamento (p. 97), podemos também pensar que esse ato intelectual está
severamente prejudicado para o indivíduo cujo conhecimento de si mesmo e
inexistente ou incipiente.
170
Ruy Cezar do Espírito Santo. Autoconhecimento e consciência. In; FAZENDA, I. C. A. O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008.
306
O conhecimento de si mesmo, diz o autor, é um sentimento positivo. Ele é
resultante da aceitação de uma pessoa. Esse sentimento é um dos componentes da
inteligência emocional e está ligado intrinsicamente aos valores fundamentais à vida
humana, tais como, o respeito, a solidariedade, a liberdade, a ciência, a
responsabilidade, o diálogo, a comunhão, a consciência, a parceria, e por fim, ao
amor, a justiça, a paz entre outros.
Vê-se, pois, que valores visceralmente ligados à condição e às buscas
humanas, que quase sempre criadoras e outras vezes, destruidoras, por conta de a
condição humana determinar o humano como ser inconcluso, imperfeito, inacabado,
e inexoravelmente finito.
Por isso, enquanto existe, o ser humano é um ser de vivências e convivências
e, também por isso, requer a educação a transgressão de modelos educativos
fechados em si mesmos e a construção de novos paradigmas adequados às novas
relações sociais que se estabelecem no âmbito social-planetário.
Sempre me chamou a atenção esse fenômeno, adolescência/maturidade, na
educação, e tenho assentado o olhar inquieto e observador nas implicações do
fenômeno nos discursos e nas propostas da educação inclusiva, da escola para
todos, da educação especial, da escola integral, etc., nas proposituras de colegiados
tais como Associações de Pais e Mestres, Grêmios Estudantis e, sobretudo,
Conselhos de Escola e suas destinações, seus fins últimos, seus sentidos e
significados singulares e plurais.
E então me pergunto: Peças e ares novos estão entrando no todo dessas
instituições e desses organismos? No âmago dessas propostas? Na verdade dos
discursos que lhes são próprios? Estão mudando estruturalmente a realidade?
Mudando radicalmente a “visão básica do mundo”? Está, neles, afirmada a
“consciência humana”? (ESPÍRITO SANTO, in: FAZENDA, 2008, p. 150).
É nesse sentido que Espírito Santo rememora Freire (2000), na sua
expressão de reinvenção do homem (p. 150), e diz que vê “[...] as questões de
conscientização ou consciencialização” (p. 156) inclinadas a essa qualidade ética da
conscientização. Diz ainda que:
307
Não há nada de ‘errado’ nas ocorrências dos vinte séculos passados, sendo certo que todo o processo havido foi indispensável para chegarmos ao momento presente, com as constatações que estamos aqui delineando. É bom lembrar que ‘errar’ é andar; o ‘errante’ é aquele que anda... O desenvolvimento da consciência humana precisava passar fases já vividas para chegarmos ao momento que vivemos (ESPÍRITO SANTO, 2008, p.151, grifo do autor, in: FAZENDA, 2008, p. 151).
Como já apregoava Sócrates, na Grécia antiga:
O sábio é aquele que sabe que nada sabe... Sim, o mistério do ‘numinoso’ dos planos do Criador a nosso respeito, sempre escaparão à nossa pura racionalidade. Aliás, físicos como Fritjof Capra já apontam para uma “ciência do Mistério” (ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 151, grifo do autor, in: FAZENDA, 2008, p. 151).
Vivemos, pois, um tempo fundamental, em que aos educadores cabe assumir
o tema do autoconhecimento, tema há tempo também assumido pelo teólogo e
filósofo Leonardo Boff (2013), ao desenvolver o assunto que lhe é correlato o
cuidado. Afirma-o como sendo a categoria emergente e que ganha força no irromper
das situações críticas. Declara Boff (2013) a respeito do cuidado concebido como
coluna vital da sustentabilidade: “É ele que permite que as crises se transformem em
oportunidades de purificação e de crescimento, e não em tragédias fatais” (BOFF,
20013, p. 23).
Mais adiante, defende:
O cuidado não se esgota num ato que começa e acaba em si mesmo. É uma atitude, fonte permanente de atos, atitude que se deriva da natureza do ser humano. Duas significações são preponderantes no cuidado enquanto atitude: A primeira designa o desvelo, a solicitude, a atenção, a diligência e o zelo que se devota a uma pessoa ou a um grupo ou a algum objeto de estimação. O cuidado mostra que o outro tem importância porque se sente envolvido com sua vida e com o seu destino. O segundo deriva do primeiro [...] passa a significar: a preocupação, a inquietação, a perturbação (BOFF, 2013, p. 28).
Das pessoas a quem nos afeiçoamos passamos, pelo cuidado, a participar de
suas lutas e vitórias, riscos e destinos como demanda fundamental de nossa
existência e como resultado do desenvolvimento do sentimento partilhado de
308
pertença espelhado no “[...] apoio, sustentação e proteção sem os quais o ser
humano não vive” (BOFF, 2013, p. 29-30).
Cuidar significa amar, mas pode também ligar-se à questão da “[...] destruição
de nosso futuro ou a manutenção de nossa vida sobre este pequeno e belo planeta”,
declara Boff (2013, p. 39).
É sempre, pois, e em última análise, uma questão de escolha! De tomada de
decisão! De conscientização! De visão como a de Gandhi, que convida cada um de
nós para ser a mudança que desejamos que aconteça no mundo.
Reconheço, na seara dos valores, outra conexão com o autoconhecimento,
dado que, perdidos ou modificados ao longo da vida, eles podem incidir de forma
positiva ou negativa no processo ensino-aprendizagem. A curiosidade é atributo vital
no desenvolvimento humano, e atinge seu ápice na infância, portanto nos primeiros
anos de escolarização básica. Uma vez não cultivada com o devido cuidado na
escola, a falta desse atributo pode contribuir para a formação de adultos passivos,
apáticos e/ou conformistas diante do mundo, da vida e de si próprios.
Nesse sentido, cabe à escola criar espaços favoráveis à construção e à
vivência de valores que são lócus dessa produção.
Numa perspectiva interdisciplinar, os valores podem ser ensinados e
reconhecidos em quaisquer das disciplinas que configuram e medeiam o currículo.
Articulados, com a aplicação deles ou na falta deles, no meio social e familiar dos
alunos e no seio da sociedade mais ampla, temas como liberdade, ética,
preservação, trabalho, saúde, sexualidade humana, entre tantos outros, podem ser
trabalhados em múltiplas expressões. Livres do enclausuramento disciplinar e do
enquadramento curricular, o ensino e a vivência dos valores éticos e morais na
escola podem alcançar a compreensão de alunos e professores, pois, na verdade,
há uma rede de valores que norteia a vida humana. Esses valores, cultivados junto
com a aprendizagem de axiomas, postulados e conceitos, são os que imprimem
sentido às atitudes, às tomadas de decisão e às escolhas feitas na vida e que
alavancam nosso progresso como seres humanos.
Em 1970 eu aprendi com o linguista Luiz Carlos Cagliari, da UNICAMP, como
já descrito, não apenas as características normativas, as estruturais e a função
social da língua, mas sobretudo o seu potencial na educação para a vida, na
309
formação do caráter de uma cultura e do comportamento humano, ou seja, aprendi a
reconhecer-me como pessoa e a rever-me como alfabetizadora na língua falada e
escrita. Aprendi uma filosofia de vida a partir dessas aprendizagens.
O mundo moderno despreza o indivíduo, a sociedade e a natureza e, nesse
sentido, urge preocupar-se com o perigo da autodestruição. Há uma forte ameaça
de colapso total da civilização moderna, e os sistemas educativos devem estar
preparados para o desafio do enfrentamento dessa realidade planetária. Educadores
cujo conhecimento de si resulta de um constructo maduro, percebem, na crise da
educação brasileira, causas bem mais profundas do que as anunciadas nos
discursos oficiais (falta de recursos nas escolas, precariedade das condições de
funcionamento, vontade política debilitada). Esses fatores são comumente ligados à
concepção de educação acrítica, reprodutora e conservadora dos modelos sociais
existentes.
É preciso que os educadores busquem o seu próprio eu, que procurem
entender em maior profundidade as diferentes posições que ocupam na sociedade,
no planeta e na realidade cósmica o exercício de uma educação com consciência
que lhes ofereça direcionamentos seguros para a renovação das práticas
pedagógicas. Urge repensar as desgastadas propostas educacionais e as
infrutíferas políticas educacionais que as estabelecem.
Como diz Dinorah (1990, p. 37), “É preciso que encontremos a cruz da
cumeeira que indica que a casa de Deus foi encontrada. E assim finalmente
aprender que o amor não é substantivo abstrato”, embora possa ser “coisa de
poucos”.
Continuemos, não obstante as intempéries e justamente pela existência
delas, a “esperançar” (CORTELLA, 2013, p. 16), até restarem ideia e coração para
amar e tornar o mundo melhor para viver, sobretudo porque vivemos um tempo “[...]
de pressa e desumanização onde se debate uma infância relegada ao esquecimento
de uma sociedade injusta” (p. 42).
Fazenda (2001a) fala do cuidado que se deve ter na distinção de uma e de
outra dessas categorias de perguntas, entendendo-as no seu caráter de
previsibilidade e disciplinaridade das primeiras e da transcendência dos “limites
310
conceituais” (p. 17) das segundas. Estas exigem “respostas interdisciplinares” (p.
17), afirma a autora.
Dessa forma, reconheço-me na inspiração de Ruy Cezar do Espírito Santo
(2007, p. 27). Reconheço a minha presença no mundo, experimentando, mais uma
vez, o gosto desafiador do sentimento de pertença a esse mundo. Do sentido da
obra em verso de Espírito Santo, cujo simbolismo e enredo transportam-me para o
belo, faço aqui uma transcrição de parte que mais dá sentido ao meu ofício de
professora e a que mais alegra a minha alma de educadora:
[...] A felicidade mesma do ser humano Será sempre permitir a fluência de sua essência Para seu entorno... Claro que sendo o ser humano uma “Rosa” Consciente de que perfuma E a alegra o seu meio ambiente Haverá sempre a volta da Paz irradiada. A rosa não o sente Mas o ser humano o sente e abre o espaço para o Sentido... Sim, é preciso o ser humano sentir o dom do gratuito Que é o tornar-se capaz de se abrir para a Vida Com todas as suas potencialidades Menos para “ter” coisas, mas sim para estar realmente “Presente” No coração do mundo. A presença do Ser Humano é que dá sentido a tudo... Esta presença deve ser gratuita, como o Dom da Vida o é... (ESPÍRITO SANTO, 2007, p. 29)
Vê se que a questão do autoconhecimento remete à intencionalidade daquilo
que se quer realmente fazer em educação. Essa intencionalidade está expressa nas
reais intenções das políticas públicas, nos objetivos educacionais de formação das
novas gerações de educadores. Intencionalidade que norteia todo o desejado e
necessário de ser feito, que define os fins e os meios da educação, da instrução e
do ensino oferecidos aos professores que já atuam no ofício de professor e àqueles
que estão se apresentando a esse ofício. Que norteia o destino da escola básica
brasileira e o caráter ético e moral dos homens e mulheres que essa escola
compromete-se a formar.
Referências epistemológicas relevantes para o processo educacional levam
em conta o fato de que o sujeito epistêmico e em processo de formação, tem papel
preponderante na apropriação do saber e na elaboração de conhecimento.
Consideram, sobretudo, que antecede ao movimento de construção do saber um
outro movimento, de mesma natureza e tão fundamental quanto, que é aquele que
311
convoca o sujeito construtor de conhecimentos e de sentido, a conhecer-se a si
mesmo como pessoa e como profissional da educação, pois costuma justamente ser
essa revisão do sujeito a que o tem levado às mudanças desejadas e já protegidas
dos perigos das armadilhas dos modismos, dos arcaísmos e/ou dos comodismos
próprios dos interesses tecnicistas, pragmatistas, mecanicistas ou neoliberalistas
voltados prioritariamente para a satisfação dos reclames do mercado de trabalho em
detrimento do sujeito que o realiza e da qualidade de sua formação.
É nesse sentido que o autoconhecimento como fenômeno humano tem a
força que leva homens e mulheres a se descobrirem incompletos, imperfeitos,
inconclusos e positivamente insatisfeitos com a própria finitude. A se perceberem
não acima nem melhores que os não-humanos, mas essencialmente diferentes
deles.
Uma diferença que se faz evidenciada no processo histórico-cultural e que,
portanto, em contínuo processo de mutação e de transitoriedade, ou seja, em
autêntico processo de construção evolutiva. Esse processo de construção se
pensado em termos da perfeição, só poderá sê-lo no limite da perfeição permitida à
condição humana, jamais na sua plenitude e tampouco tomado como ponto de
partida rumo ao horizonte desejado.
Sem o autoconhecimento não vejo que os problemas e os desafios postos à
educação deste novo milênio possam ser enfrentados com a eficácia desejada.
É grande a exigência da reestruturação de nossa organização interna para
absorver o mundo externo sobre ele as novas visões. Em última análise e, a
exigência de rever-se. Penso ser a ausência da falta o fenômeno que nos leva a
transgressão de que trata Espírito Santo (1996) em consonância com “salutar
insatisfação e rebeldia” humana discutida por Rosa (2007, p. 33).
Foi ali, na escola de roça do Jairo, onde comecei a aprendizagem de como, a
partir de uma necessidade real, enfrentar com coragem e ética os dilemas surgidos,
pela força do autoconhecimento e pela decisão de satisfazer o desejo real de ser,
mais do que o circunstancial de meramente estar.
Finalizo este capítulo recorrendo a Lago (2004, p. 114) que pergunta: “Se a
vida é feita de escolhas... por que não escolher a vida?”. E eu respondo dizendo,
sim! Escolho a vida!
312
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quadro nenhum está acabado, disse certo pintor. Se pode sem fim continuá-lo, primeiro, ao além de outro quadro que, feito a partir de tal forma tem na tela, oculta, uma porta que dá a um corredor que leva a outra e a muitas outras (MELO NETO, 1982, p. 8, apud ALVES et. al., 2002, p. 39).
Parece claro que esta pesquisa resultou na satisfação de respostas ao
problema e seus desdobramentos postos na inicial, pois que, tomada a
interdisciplinaridade como iluminação teórica do estudo do fato pedagógico vivido
com o aluno Jairo, sem dúvida pôde ser discutida à luz das teorias revisitadas a
formação disciplinar da pesquisadora, tanto quanto explicitada a relação da
professora e do aluno Jairo com o saber e fertilizados os caminhos da melhor
qualificação docente às novas gerações de educadores.
Claro restou que mais adequado é se falar, não em omissão do modelo de
alfabetização aprendido pela pesquisadora no Curso Normal que a habilitou para o
magistério, mas em lacunas da formação disciplinar, pautadas na educação elitista e
seletiva privilegiada na época e bem ao gosto das matrizes positivistas e do
pensamento cartesiano e em conformidade com os interesses político-econômicos
dominantes no país naquele tempo histórico.
O traço marcante da formação inicial da pesquisadora incide na
aprendizagem memorística da língua e da linguagem descontextualizada histórica e
socialmente e, portanto, acrítica e desapartada de sua função social primordial.
Quanto aos desafios da contemporaneidade a serem enfrentados pelos
profissionais da educação, coerentes com os objetivos educacionais da sociedade
da informação e do conhecimento, devo dizer que, a meu juízo, é a
interdisciplinaridade a teoria do futuro que já começou num presente em construção.
O conhecimento interdisciplinar levou-me à atitude interdisciplinar na escola,
na vida, na ciência e na existência, de forma a sabê-lo não como fórmula ou solução
mágica, mas como caminho fértil no enfrentamento das questões de ordem ética,
metodológica e político-pedagógica.
313
Vale ressaltar que a interdicisplinaridade pôs-me a caminhar pelos caminhos
da ciência, apaziguando minhas inquietações primeiras e despertando-me para
novos desafios que visitam ávidos de enfrentamento competente, os educadores
comprometidos com a educação.
Ademais, tanto o conhecimento interdisciplinar quanto a apropriação dos
fundamentos da fenomenologia, levaram-me a descortinar os rigores do
autoconhecimento que, por seu turno, projetou-me para o conhecimento ampliado
do mundo e sobretudo da educação, ou seja, orientou-me na definição do meu ser-
no-mundo e ser-ao-mundo.
Como a britadeira que rasga a pedra bruta para conhecer o que há na rocha,
a interdisciplinaridade rasga a disciplina para alcançar as possibilidades de
interdiscipliná-la em favor de seu valor e relevância no ensino e na aprendizagem.
Para tanto, é necessário o desapego. O desapego é cultivado. O medo de se
desapegar se atrela à falta de coragem de tornar público o que foi produzido. Nesse
sentido o fato pedagógico impulsionou o aprofundamento de estudos da
pesquisadora.
Neste trabalho, o processo analítico e descritivo do fato pedagógico vivido
com o Jairo fortaleceu os laços com a teoria na prática interdisciplinar de pesquisa, o
que abriu espaços à pesquisadora para repensar-se a si mesma e requalificar a
ação docente que hoje exerce no ensino superior, bem mais consciente de seus
sentidos e de seus significados. Para além disso, orientou a pesquisadora nas
estratégias de flexibilização dos núcleos endurecidos da pesquisa pela consciência
de que essa flexibilização está justamente nas perguntas e não nas respostas
prontas e acabadas.
A relevância teórico-prática e metodológica da pesquisa interdisciplinar foi se
confirmando, em camadas, no movimento mesmo de sua produção, na construção
do autor e de sua autoria, uma história escrita chegada a hora e a vez de sua
inscrição na história; um erro disciplinar no ensino da leitura e da escrita, não aqui
corrigido em termos do já acontecido, mas corrigido em termos da não repetição de
semelhante ocorrência, dada a requalificação dos saberes inerentes à teoria e à
prática alfabetizadoras, os quais se deram no exercício crítico-reflexivo exigido pela
314
própria investigação levada a cabo e em conformidade com a profundidade e
radicalidade teórico-conceitual requeridas.
Considero que os resultados ora apontados refletem a diversidade dos
assuntos tratados dentro dos cinco grandes tópicos abordados: o conhecimento
interdisciplinar, o conhecimento linguístico , o autoconhecimento, o conhecimento
fenomenológico e o conhecimento artístico, e podem sustentar a suficiência e a
coerência interna das discussões, reflexões e análises feitas, o que também pode
propiciar a que os resultados alcançados na pesquisa sejam socializados abrindo
espaços para o maior aclaramento da função social da escola básica e do ensino
por ela oferecido.
Que esses resultados possam vir a contribuir para a elevação do patamar de
qualidade da educação escolar dos dias atuais, isto é, da construção ética, científica,
metodológica e político-pedagógica da escola de qualidade para todos.
“Se o ousado é simples” como diz Fazenda, chegamos ao fim provisório
dessa história até porque nenhum ser humano poderá testemunhar, em tempo
algum, o fim da história.
Tomo a volatividade do tempo decorrido após o Exame de Qualificação (27
fev. 2014) até a presente data e as intricadas passagens de ordem profissional e
familiar como óbices para uma elaboração teórica mais esmerada desta tese e para
cumprimento integral das complementações, inclusões e/ou retificações
apropriadamente indicadas pela Banca Examinadora, embora eu tenha me dedicado
a fazê-las no limite justificado e com o respeito devido.
Na conclusão (sempre inconclusa), estado próprio dos resultados de grande
parte das análises acadêmicas, deve o leitor encontrar respostas e/ou pistas que
possam aclarar os problemas postos, além de oferecer indicadores contributivos da
melhoria da educação, do ensino e da formação do professor da escola básica.
Ademais, espera-se que os resultados do resgate recorrido à memória se
tornem instrumentos de novos olhares para formação e prática docentes.
Esta tese é representativa do esforço e do comprometimento antigo da
pesquisadora com a educação e mesmo não me tornando um nome conhecido
pelas causas aqui defendidas, os fundamentos teórico-práticos deste trabalho
315
podem representar contribuição válida para a edificação de novos projetos e práticas
pedagógicas.
Afinal, a ordem e a previsibilidade do mundo, desapareceram, e a reboque,
desapareceram os moldes estáveis em educação. Querer que eles ainda surtam
efeitos na educação, no ensino e na formação das novas gerações é situar-se na
mão oposta da história. As visões idealizadas de escola, de aluno e de ensino-
aprendizagem estão sepultadas, já que impossíveis de manterem correspondência
com a realidade e com as necessidades dos tempos pós-moderno, cujo cariz em
nada se assemelha ao modelo pedagógico dos séculos já passados.
E se mudar, significa o que afirma Ramos apoiada em Gusdorf (1967, in:
FAZENDA, 2001, p. 69), é não aceitar-se como um navio à deriva e sim “se
autogovernar em meio às circunstâncias, às tempestades, exercitando, de forma
consciente, as possibilidades” no exercício da admissão das próprias “fragilidades”
então, sim, eu mudei! Mudei em face da revisão de minha atitude e de meu
posicionamento “perante o mundo e a realidade, passagem, um movimento entre o
velho que se extingue e um novo que, gradativamente, adquire forma. Esse
movimento carrega em si duas forças antagônicas, uma que busca a realização e
outra que reafirma os valores construídos e, por isso, persiste” (p. 70).
Reconheço, hoje, que “a prática é o elemento fundamental ao processo de
mudança” (p. 71).
Desencarnei-me da professora cheia de boas intenções e movida
exclusivamente pelo ergo sum cartesiano para fazer-me encarnada na docência
interdisciplinar, a docência que visita situações novas e revisita, velhas, transita
entre os fragmentos da história e a memória educacional, faz elos, tece a sua
prática.
No retecimento de minha história de vida e formação procurei assegurar a
veracidade dos fatos trazidos pela memória a partir da história interrompida com o
Jairo. Porém, sobraçaram as dificuldades que assegurassem a crítica procedente
tornada pública pela “linguagem singular” tomado o devido cuidado com o “melhor
estilo” com a “leveza e beleza do discurso”, como orienta Fazenda (2010, p. 196).
316
A construção teórica pautada nos cinco princípios interdisciplinares: espera,
humildade, respeito e desapego e sustentaram o desvelamento de minhas
subjetividades e me auxiliaram, sobremaneira, na descrição e análise do objeto de
pesquisa na sua dimensão simbólica, pela forma diferenciada da pesquisa
interdisciplinar.
Com Jairo aprendi, entre inúmeras aprendizagens, que o tempo-espaço
disciplinar é centrado no foco do ego da disciplina o que a faz um instrumento de
quase manipulação do conhecimento elaborado. O tempo-espaço interdisciplinar, ao
contrário, caracteriza-se pela força da criação e da recriação do conhecimento e
pela reinvenção da forma, do modo pelo qual dele nos apropriamos e com ele
criamos novos alicerces para o pensamento e novas bases de ação, uma nova
consciência motriz sobre os processos de ensinar e aprender. Um novo padrão de
pensamento, de comportamento e de ensino. Uma nova atitude frente ao
conhecimento.
A interdisciplinaridade é a força que revela a disciplina; que lhe desperta o
poder coesivo e o poder formativo que lhe potencializa e que lhe enalte a essência,
ou seja, a própria relevância científica e teórico-prática e a importância de sua
presença nos currículos de formação escolar.
Posso não ter caminhado tanto quanto a fadiga me aponta. No horizonte ao
qual me aproximei pode, talvez, haver pouco além daquilo que já havia no meu
ponto de partida, porém neste ponto do trabalho trago claro que muito caminhei...
Hoje eu sou a professora de ontem encontrada na pesquisadora de hoje. E isso me
dá o sentido da ciência e da existência. E isso me faz feliz. E é esse o conhecimento
que importa!
A VELHA OU A MOÇA: uma questão interdisciplinar? Fenomenológica?
A velha ou a moça? A velha e a moça? Nem a velha nem a moça? – o
desenvolvimento pessoal e social interdisciplinares na busca da(s) verdade(s) na
circularidade.
317
Figura 6 – A Velha e a Moça Fonte: Arymatheia. (Disponível em: http://www.estrelabrasileira3.com.br/piadas.htm. Acesso em: 25 nov. 2013).
Explique-me Doutor, por favor, como é possível em um determinado olhar, ver a velha primeiro? Fala sério, companheiro! E, em um outro, ver a moça encarnada
318
ao mesmo tempo que não ver nem uma nem outra, um terceiro?!? É preciso o quê para sempre olhar, olhar e ver? OUSADIA? CORAGEM? DESAPEGO? ou... TRANSGRESSÃO? Ou, fundamentalmente, HUMILDADE? Afinal, ao olhar não se vê uma só imagem? Seria isso só RAZÃO, disfarçada na difícil AMBIGUIDADE? Uma coisa poder, num só tempo, ser tantas outras? De verdade? Ora, se o rosto da moça é também o nariz da velha o xale da velha, o casaco da moça, pode nisso estar a COMPLEXIDADE? que se encerra no rosto da VERDADE? A estola da moça por acaso não é da velha o casaco? A boca da velha, o colar da moça? No entanto, a imagem é pura nitidez é de estampada claridade! É preciso então a ESPERA VIGIADA, a COERÊNCIA, a RESILIÊNCIA, para o mistério desvendar? Doutor! Fala sério! Onde está a VERDADE? Só pode ser encontrada na busca curiosa, na pesquisa laboriosa. encharcadas da IMPACIENTE-PACIÊNCIA? Certo ou errado? Entendimento ou confusão? A verdade como DESCOBERTA, ou a verdade como CONSTRUÇÃO? Macacos me mordam! Buscam-me, movem-se, e eu não sei responder: a idosa ou a jovem? A essa reflexão me entrego a fundo, vou faminta, vou inteira, ativo meus sentidos, acendo-lhes as lanternas, quero saber a qualquer custo: as verdades são anteriores ao mundo? Ou são elas eternas, assim como os deuses, como alguns defendem? Ou deles as verdades independem? São criadas no individual ou no coletivo? São esconderijos ou são abrigos? Habitam as conchas ou as colmeias? Insisto: estão no mundo material ou no mundo das ideias? O desafio requer uma energia eólica? Ou a verdade só pode ser como ocorrência histórica?
Assusta-me, às vezes, OLHAR tamanha versatilidade! Mas atenta e motivada ao extremo à leitura e releitura da intrigante figura ponho-me a pensar sobre o quê pensou o seu autor, quando a criou. Quis ele simplesmente iludir, confundir, ou ao observador desafiar?
319
Diga lá, seu Doutor, se puder: quantas leituras a quantos leitores o autor possibilitou?!? Um dos olhos da velha é também um dos olhos da moça, o que me faz ainda mais aguçada a PERCEPÇÃO. Mas será correto afirmar que por causa disso as duas olham na mesma direção? Quem afirmaria que sim? Quem poderia dizer que não? Quem ousaria negar que essa busca se sustenta na EMOÇÃO? A velha ou a moça, eis a questão, a intrincada relação do problema com seu próprio teorema. Como encontrar resposta a mais assertiva, se a DÚVIDA persiste. se a VONTADE insiste? Será que, se encontrada, A resposta poderá ser considerada pronta e acabada? Uma resposta assim, cabalmente elaborada, realmente existe? A figura analisada da perspectiva estritamente disciplinar daria conta, sozinha, de tudo olhar? Do todo perceber? E a TOTALIDADE da REALIDADE poder ver, analisar e transformar? Peço-lhe, Doutor, dê-me mais um momento, por favor, porque começo a perceber que a linearidade, na busca da verdade, pouco tem resultado em validade pois, o que de fato é exigido é um novo padrão de pensamento! um caminho, um caminhar árduo, porém transformador do caminhante.
Que excitante é ver o possível o desejável e o necessário de se ver e poder localizar no TEMPO esse instante, essa parte fundante do quebra-cabeça que é apreender e aprender na CIRCULARIDADE! Poder pensar, sentir e agir na INTERDISCIPLINARIDADE, em qualquer tempo, em qualquer idade... Que gozo, quando algo se modifica no jeito VELHO de se encarar o NOVO!!!
(Odila Amélia Veiga França)
Se “quando não tinha nada eu quis”, hoje posso dizer que decidi não morrer
abraçada com as ignorâncias primeiras e considerar como dedutíveis a que se
apresentarem em continuidade à minha existência.
320
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APÊNDICES
APÊNDICE A – Cidade de Sete Barras
Sete Barras é um município brasileiro do estado de São Paulo. Quanto à origem do nome Sete Barras, existem duas correntes de opinião: uma atribui o nome ao fato da pequena Vila, que deu origem à Cidade, estar situada nas proximidades da orla do sétimo afluente do Ribeira, a contar de sua foz, e a outra, às lendas ligadas à exploração de ouro na região, no início da colonização, entre elas a das Sete Barras de ouro perdidas.
O século XIX, José Carlos Toledo doou publicamente ao divino Espírito Santo uma área de dois alqueires de terra, à margem esquerda do rio Ribeira do Iguape, para que ali fosse construída uma capela em seu louvor. (IBGE, 2014, online)
Figura 7 – Mapa da Região do Vale do Ribeira onde trabalhei e morei. Adaptado pela Pesquisadora Fonte: Mapa da Região Vale do Ribeira. Disponível em: www.ovaledoribeira.com.br. Acesso em 30 set. 2014
Cidades onde trabalhei na área da educação
Cidades onde morei e trabalhei na área da educação
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APÊNDICE B – Normalista
Professoras normalistas designação dada às moças que se preparavam no curso normal,
para a docência de 1ª a 4ª séries do Ensino primário. “Anos dourados”, nesse sentido, para justificar o
romantismo que marcou aquela época em que, no imaginário coletivo, a “linda normalista, vestida de
azul e branco” rapidamente sequestrava com o seu “sorriso franco” o “coração fechado” do
pretendente apaixonado. Vale dizer, ainda, da exigência social, de que o casamento com a normalista
“brotinho em flor”, só fosse realizado depois da formação, melhor dizendo, “depois do diploma na
mão”, como decretava “zangado”, o meu saudoso pai.
Figura 8 – Odila Amélia Veiga: normalista, de fato, nos “anos dourados” (1967) Fonte: arquivo pessoal
Figura 9 – Malu Mader: normalista em "anos dourados" (Seriado televisivo) Fonte: Cifra Antiga, 05 mai. 2006
Este samba é um hino de louvor à normalista, menina-moça que "Não pode se casar ainda, só depois de se formar". E é em seus versos que aparece primeira vez na MPB a expressão "brotinho em flor" e que até mereceu uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, depois. Romântica e ao mesmo
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tempo vibrante e alegre, "Normalista" foi inspirada num caso real de proibição de casamento, segundo conta David Nasser, no livro Parceiro da Glória: "A história se passou com a filha do coronel Félix Henrique Valois, interventor no Acre. Ela estava apaixonada por um tenente e, normalista, lutava por seu amor. O velho não queria consentir (...) no casamento e havia, de outro lado, a proibição do Instituto (de Educação)". Mas no final tudo deu certo, pois além de inspirar um belo samba, a moça se casou, com o consentimento do pai. "Normalista" tem letra de Nasser e música de Benedito Lacerda, o mesmo que em 1938 compôs o clássico "Professora".
Normalista (samba, 1949) - Benedito Lacerda e David Nasser - Intérprete: Nelson Gonçalves
Vestida de azul e branco / Trazendo um sorriso franco Num rostinho encantador /--Minha linda normalista Rapidamente conquista / Meu coração -sem amor Eu que trazia fechado / Dentro do peito guardado Meu coração sofredor /--Estou bastante inclinado A entregá-lo ao cuidado/ Daquele brotinho em flor Mas a normalista linda / Não pode se casar ainda Só depois de se formar / -Eu estou apaixonado O pai da moça é zangado / E o remédio é esperar
Fonte: Normalista. (05 mai. 2006). Disponível em: http://cifrantiga3.blogspot.com.br/2006/05/normalista.html. Acesso em 27 set. 2014.
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APÊNDICE C – Informações complementares para entendimento do texto –
sobre a Emília e Monteiro Lobato
Emília
1) Na trama criada por Lobato, foi feita por Tia Nastácia para a menina Narizinho. Nasceu muda e é curada pelo Dr. Caramujo, que lhe receitou uma "pílula falante". Emília, então, desembesta a falar [...] Narizinho, preocupada, pediu ao "doutor" que a fizesse vomitar aquela pílula e engolir uma mais fraquinha. Mas, explicou Caramujo, aquilo era "fala recolhida", que não podia mais ficar "entalada". Ela é conhecida por volta e meia "abrir sua torneirinha de asneiras", principalmente quando quer explicar algo de difícil explicação ou justificar uma ação ou vontade. Além de falar muito, também costuma trocar os nomes de coisas ou pessoas por versões com sonoridade semelhante (Fonte: http://pt. wikipedia.org /wiki/Em%C3%ADlia. Acesso em: 24 ago. 2013.)
2) Emília fosbergii nicolson, nome científico de “Bela-emília, algodão-de-preá, emília, falsa-serralha, pincel, pincel-de-estudante”, tipo nativo de ervas anuais, não endêmica do Brasil com 50-80 cm. Folhas sésseis, lâmina 7-13 × 2-5 cm, as inferiores ovadas com base decorrente à semelhança de um pecíolo, as medianas panduriformes, as superiores oval-lanceoladas, com base auriculada, amplexicaule, ápice agudo, atenuado nas mais superiores, margem de todas esparsamente denteada, glabras em ambas as faces ou face inferior esparsamente pilosa ao longo da nervura principal. Inflorescência cimóide laxa
(Fonte: http://www.ibot.sp.gov.br/HOEHNEA/volume33/Hoehnea33n1a03.pdf. Acesso em: 24 ago. 2013)
3) No Brasil, ocorre no Norte (Roraima, Amapá, Pará, Amazonas, Tocantins, Acre, Rondônia), Nordeste (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Alagoas, Sergipe), Centro-Oeste (Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul), Sudeste (Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro), Sul (Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) (BORGES, 2010)
Fonte: http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2010/FB016104.
4) No começo do mundo, quando o planeta esfriou e os oceanos retrocederam, as plantas iniciaram seu desenvolvimento. Uma das primeiras flores a surgir foi a falsa-serralha. Os antigos druidas recolhiam a planta com suas foices e recheavam bonecos com ela para rituais pagãos de fertilidade. Por meio de um pacto com o deus Baal, esses druidas conseguiram dar vida a uma boneca, que recebeu o nome Emília em homenagem à planta de que era feita.
(Fonte: http://desciclopedia.org/wiki/Em%C3%ADlia_(S%C3%ADtio_do_Pica-Pau_ Amarelo. Acesso em: 24 ago. 2013).
Monteiro Lobato
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948), escritor brasileiro nascido em Taubaté/SP, filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Monteiro Lobato, foi alfabetizado pela mãe, e logo despertou-lhe o gosto pela leitura, lendo todos os livros infantis da biblioteca de seu avô, o Visconde de Tremembé. "O Sitio do Pica-pau Amarelo" é uma de suas obras de maior destaque na literatura infantil. Foi um dos primeiros autores de literatura infantil em nosso país e em toda a América Latina. Tornou-se editor, criando a "Editora Monteiro Lobato" e mais tarde a "Companhia Editora Nacional". Metade de suas obras é formada de literatura infantil. Lobato é autor de aproximadamente cinco mil páginas de Literatura Infantil, distribuídas em 30 volumes, e de sete adaptações de clássicos da Literatura mundial, de 1930 a 1950.
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Fontes: http://www.e-biografias.net/monteiro_lobato/ e http://pt.wikipedia.org/wiki/ Monteiro_ Lobato. Acesso em: 24 ago. 2013 Sítio do Pica-pau Amarelo
O Sítio do Pica-pau Amarelo é um marco na literatura infantil brasileira, cenário para as inúmeras histórias dos personagens Emília, Narizinho, Pedrinho, Vovó Benta e Tia Anastácia. Mais do que fantasia, o local foi berço do escritor Monteiro Lobato, que nasceu em Taubaté e passou sua infância brincando no casarão e entre as árvores centenárias. No sítio há um parque, um coreto e um casarão colonial, que atualmente abriga o Museu Histórico, Folclórico e Pedagógico Monteiro Lobato. Fonte: http://guiataubate.com.br/pontos-turistico-em-taubate/sitio-do-picapau-ama-relo. Acesso em: 23 ago. 2014.
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APÊNDICE D – Informações complementares sobre Edmundo Husserl
Edmund Husserl nasceu em 08 de abril de 1859, em Prossnitz, pequena cidade da Morávia, região da atual República Checa. Este filho de abastados comerciantes judeus, que todavia se converteria ao cristianismo, não se dedicou desde cedo à filosofia. Sua formação acadêmica foi feita na área das ciências exatas, como estudante de astronomia em Leipzig, e de Matemática, em Berlim e em Viena. Foi nesta cidade que, em 1884, ele começou a frequentar os cursos de Franz Brentano. Isso mudaria de maneira radical a direção de sua vida, levando-o em direção à filosofia. E com esta, a ideia de “intencionalidade da consciência” (Grifo do autor), que ele herdou diretamente de Bentrano, com quem polemizaria, contudo, até o final de seus dias – uma cena de parricídio bastante comum na história da filosofia. Publica inúmeras obras sobre fenomenologia que acabam significando sua “última grande tentativa de fundação total do conhecimento”. A primeira delas, Filosofia da Aritmética (1891), e depois, Estudos Psicológicos (1894), Investigações Lógicas (1900), Ideias (1913), Lógica Formal e Transcendental (1929), Meditations Cartesiennes (1930) e, por último, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental (1936). A morte de Edmund Husserl, com 79 anos, se dá em Friburgo (de Busgóvia), em 27 de abril de 1938. Fonte: Revista Mente ● Cérebro e Filosofia. As bases do pensamento fenomenológico. Edição nº 5.
Fundamentos para a compreensão contemporânea da psique.
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APÊNDICE E – Explanação sobre alguns termos utilizados ou teorias
A Teoria dos Sistemas tem como principal característica a visão de que os sistemas interagem entre si, e a falha nesta interação ocasiona uma modificação. Foi “[...] desenvolvida em 1960 e fundamentou-se em três premissas básicas: os sistemas existem dentro de sistemas; os sistemas são abertos; e as funções de um sistema dependem de sua estrutura.” A mesma autora acrescenta que essa teoria se baseia no conceito do “homem funcional”, que se caracteriza pelo relacionamento interpessoal com as outras pessoas como um sistema aberto (KURCGANT, 1991, p. 11).
Chama-se genericamente modernismo (ou movimento modernista) o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes e o design da primeira metade do século XX. Apesar de ser possível encontrar pontos de convergência entre os vários movimentos, eles em geral se diferenciam e até mesmo se antagonizam. O movimento modernista baseou-se na ideia de que as formas "tradicionais" das artes plásticas, literatura, design, organização social e da vida cotidiana tornaram-se ultrapassadas, e que seria fundamental deixá-las de lado e criar no lugar uma nova cultura. Fonte: Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Modernismo. Acesso em: 24 ago. 2014.
Pós-modernidade ou Pós-modernismo é a condição sociocultural e estética que prevalece no capitalismo contemporâneo após a queda do Muro de Berlim e a consequente crise das ideologias que dominaram o século XX. O uso do termo tornou-se corrente, embora haja controvérsias quanto ao seu significado e a sua pertinência. Pós-modernidade pode significar uma resposta pessoal para uma sociedade pós-moderna, as condições na sociedade que a fazem pós-moderna ou o estado de ser que é associado a uma sociedade pós-moderna. Em muitos contextos, poderia ser distinguido de pós-modernismo, a consciente adoção de filosofias pós-modernas ou de seus traços na arte, literatura e sociedade. Fonte: Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%B3s-modernidade. Acesso em: 24 ago. 2014.
Morin define a complexidade de Complexus: “[...] significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo [...] Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade” (MORIN, 2003, p. 38). Em resumo, a complexidade proposta por Morin refere-se a um conjunto de eventos, principalmente aqueles ligados à área científica, que ocorreram no final do século XIX e que foram sendo debatidos, combatidos e assimilados no decorrer do século XX. Fonte: Disponível em: http://200.18.45.28/sites/residencia/images/Disciplinas/pesquisa%20metodo%20complexidade.pdf. Acesso em: 19 nov. 2013.
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APÊNDICE F – Sebastião Salgado – Uma breve biografia
Sebastião Salgado nasceu na cidade mineira de Aimorés, em 1944, mas vive em Paris desde os fins da década de 1960. Obteve o mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo, em 1968, e tornou-se doutor pela Université de Paris, em 1971. Trabalhou na Organização Internacional do Café, em Londres, entre 1971 e 1973, antes de retornar a Paris e passar a fotografar profissionalmente para a agência Sgyma, em 1974. Transferiu-se no ano seguinte para a Gamma, iniciando a documentação sobre as condições de vida dos camponeses e índios latino-americanos que o tornaria mundialmente conhecido. Em 1979 trocou a Gamma pela prestigiosa agência Magnum, que chegou a presidir e na qual permaneceu até 1994, ano em que criou, com sua esposa Lélia Wanick Salgado, a Amazonas Imagens.
Em 1982 foi contemplado com o prêmio Eugene Smith (EUA), inaugurando assim uma longa série de importantes prêmios internacionais, entre os quais se destacam o World Press (Holanda, 1985), o prêmio Oscar Barnack (Alemanha, 1985 e 1992), o prêmio Erna e Victor Hasselblad (Suécia, 1989), e o prêmio de Fotojornalismo do International Center of Photography (EUA, 1990). Recebeu diversas outras honrarias, sendo representante especial da Unicef e membro honorário da Academia das Artes e Ciências dos Estados Unidos. É autor dos livros: Sahel: L’Homme en détresse (1986); Autres Amériques (1986); An Uncertain Grace (1990); Sebastião Salgado: As Melhores Fotos (1992); In Human Effort (1993); Workers (1993); La main de l’Homme (1993); Terra (1997); Serra Pelada (1999); Outras Américas (1999); Êxodos (2000); O Fim da Pólio (2003); O Berço da Desigualdade (2005) e África (2007) (VASQUEZ, 2013).
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APÊNDICE G – Platão171
Platão nasceu em 427 a.C. e faleceu em 317 a.C., com 80 anos. Discípulo de Sócrates, ateniense, nobre filósofo, artista, fundador da Academia. Interesses: Política e filosofia política; especulação metafísica, ensino filosófico e atividade literária. Escreveu 36 diálogos que obedecem a uma ordem cronológica, lógica e formal. A filosofia platônica tem um fim prático e moral, ou seja, a ciência está para a resolução do problema da vida. É o fim prático que se realiza intelectualmente, por meio da especulação, do conhecimento e da ciência. O corpo é inimigo do espírito (o espírito humano é peregrino nesse mundo e prisioneiro na caverna do corpo). Deve transpor esse mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, chegar à contemplação do mundo inteligível para o qual é traído por um amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e do sofista, para chegar ao conhecimento intelectual, conceitual, universal e imutável. O conhecimento das coisas pelas causas. O conhecimento sensível, verdadeiro sem saber que o é, deve ser superado pelo conceitual, uma vez que o conhecimento humano não se explica mediante a sensação. O conhecimento sensível particular, mutável e relativo não pode explicar o conhecimento intelectual que tem por característica a universidade, a imutabilidade, o absoluto. O conhecimento intelectual ilumina o conhecimento sensível, mas não deriva dele, o que vale dizer que transcende, no seu valor, o saber sensível. Os conceitos são a priori e natus ao espirito humano, de onde têm de ser oportunamente tirados. Sensações não constituem a origem dos conceitos. Constituem, sim, a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação. Platão dá ao conhecimento racional um objeto próprio. As ideias eternas e universais personificadas. No mundo material que contingente não há ciência; há um conhecimento inferior. Conhecimento verdadeiro está no mundo imaterial e racional das ideias, pela sua natureza superior. O sentimento opõe-se ao intelecto; a paixão contrasta com a razão.
171 Registros de Memórias de Aula no Curso de Doutorado. Programa Educação: Currículo.
Disciplina: Epistemologia na Educação. Prof. Antônio Chizzotti. PUC/SP, Set. 2010.
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APÊNDICE H – A Palavra escrita permanece / Ecofuturo
A palavra escrita permanece. A frase acima é um provérbio latino. A ideia da permanência das palavras escritas e, consequentemente, do que elas contavam, encantava os romanos. Por isso, eles fizeram questão de registrar escrevendo na pedra, em seus monumentos e construções
172, sobre suas vitórias e seus heróis.
O Império Romano caiu. As letras gravadas permaneceram, confirmando o antigo provérbio: A palavra escrita permanece. ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ (INSTITUTO ECOFUTURO, s.d., p. 2, grifo do autor). Era uma vez... Tudo indica que foram os sumérios (povo que vivia na antiga região da Baixa Mesopotâmia) que inventaram, mais ou menos na mesma época, a roda e a escrita. Era preciso saber quem tinha pago quanto em troca de quê, e foi assim que a contabilidade deu origem à literatura (exagerando um pouco, é claro). Dali foi um passo para representar objetos com imagens, e dois para que essas imagens evoluíssem para representar também os sons da fala. Hoje não precisamos mais gravar na argila, como faziam os sumérios, nem levar páginas ao forno. Mas foi preciso passar por tudo isso para chegar à pena, ao lápis, à caneta esferográfica, à impressão e a este teclado levinho e ergonômico que se presta a transformar os toques dos dedos em marcas capazes de atravessar o espaço e o tempo para levar estas palavras até você. Faz mais ou menos 4.200 anos que se escreve neste planeta. Isso foi essencial para que começasse a aplicar essa coisa fantástica chamada Justiça, já que a lei foi uma das primeiras coisas que os humanos resolveram escrever, depois da contabilidade. Quem vai ao museu do Louvre, em Paris, pode ver o Código de Hamurabi, escrito por volta de 2.100 a.C. – o primeiro registro oficial do desejo humano de justiça social (INSTITUTO ECOFUTURO, s.d., p. 3, grifo do autor). Um dado espantoso: aos 3 anos, uma criança de família de baixa renda ouviu 30 milhões de palavras menos do que uma criança de uma família mais favorecida. E que diferença isso pode fazer? Toda diferença do mundo!
As palavras são as nossas principais ferramentas para entender o que se passa, fazer coisas acontecerem e garantir harmonia entre as pessoas. As palavras são instrumentos para pensar.
Quanto mais palavras você conhece, compreende, lê e escreve, menos possibilidade você tem de se enganar ou ser enganado, numa sociedade letrada como é a nossa.
Quando uma pessoa aprende a ler, ela passa a ter acesso a tudo o que a humanidade registrou em todos os tempos e lugares.
Quando uma pessoa aprende a escrever, ela ganha o direito de registrar a sua própria palavra e transmiti-la ao mundo.
O que transforma uma pessoa não é aprender a ler e a escrever: é fazer uso da leitura e da escrita. Ler e escrever BEM são coisas que demandam preparação e prática. Faz parte disso – e que parte importante! – mergulhar no mundo da palavra escrita (INSTITUTO ECOFUTURO, s.d., p. 4).
172
As letras maiúsculas que usamos descendem diretamente das capitalis monumentalis dos romanos.
346
Tudo posso naquele que me fortalece (Filipenses 4:13).
Aprender com os teus erros pode trazer benefícios, mas você já pensou em aprender com o teu sucesso? Se você se lembrar das conquistas que você já fez, você ganha confiança e adquire conhecimento daquilo que você já realizou. O mais importante é dar pequenos passos, MAS SEMPRE NA DIREÇÃO CERTA. Lembre-se que Deus é quem está te abençoando em cada passo de sucesso que você dá, e Ele recompensará a tua paciência (JCTROIS, 2014)
173.
173
Aplicativo Devocional Bíblico Diário, criado por JCTROIS, baixado apps para celular pessoal da pesquisadora, mensagem para reflexão no dia 27 set. 2014.