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QUE CAMINHO DEVO SEGUIR? Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Lúdica ... Bernadete de Souza Porto 1 Resumo [BCH-UFC] A renexão sobre as bases de uma alfãbetização crítica e lúdica e as dificuldades de praticar esta teoria são os principais objetivos deste artigo. Entende-se Que não basta ao professor dizer-se progressista, é preciso Que ao discurso lnouiridor de transformações, haja uma prática Quepermita romper com o modelo tradicional de educação. Defende-se, neste sentido, a importância da ludicidade para o processo de alfãbetização de crianças. Alice, personagem de lewis Caroll do País das Maravi- lhas é o nome Que representa a professora observada. cujaprática é aQuianalisada. Palavras-Chave: Alfabetização; Ludicidade; Formação do educador. Abstract: What way shalll follow? Alice looks for a critica I and playfullearning The aim ofthis article is to rctlect on the dimculties of app!ying criticaltheories on pli!Jlfulllearning.The author belicvcs that is not enough to be a progressive teschet; it is also necessaty to examine the praxis that permits divergence from traditional models of educstion. The authoress stresses the importance of pli!Jlfullnessin the process for teaching)/oung children. Alice, on of lewis Csrrol's chsrscters, is the fictional name of the teacher whose pratice is anajyzed here. Key-Words: Litracy; Playfullness; Teacher formation. I Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará e pro- fessora da Universidade Federal da Bahia. A Teoria Crítica Nada seria o Que é. porque tudo seria o Que não é. E ao contrário - o Que é não seria. E o Que não seria, seria. Você entendeu? Alice no país das maravilhas, LEWIS CAROLL Segundo Klein (1996), as categorias fundamen- tais para descrição e análise de uma teoria crítica da educação seriam história, totalidade e luta de clas- ses. As categorias escolhidas pela autora demons- trem a influência do marxismo em suas idéias, uma vez Que tais categorias evidenciam o modo marxista de compreensão da sociedade. Assim, na tentativa de superar tanto o poder ilusó- rio (Teorias não críticas), como a impotência (Teorias crítico-reprodutivistas), entende-se Que é na elaboração do saber Que se devem engajar os Que lutam pela ga- rantia de um ensino de Qualidade aos trabalhadores. Ou seja, ..estájustamente na valorizaçãodos conteúdos' o apontar de uma pedagogia revolucionária, como diz Saviani (1983). Afirma, ainda, Que o saber pode ser vivenciado na luta dos trabalhadores por uma sociedade mais justa e diz Que" o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aQuilo Que os dominantes domi- nam". O Que é bastante contraditório e complexo. Cury (1989) diz Que a educação é contraditória em seus vá- rios elementos. Ao reportar-se ao saber escolar, diz Que este, Quando veiculado numa sociedade como a capita- lista, cujo conjunto das relações sociais é contraditório, nasce do fazer e dos fazeres diferentes e contraditórios. Percebe-se pois, Que, mesmo veiculando a cultura e a ideologia burguesa, a escola QUe instrumentaliza, Que ensina, Que leva o aluno a aprender, refletir, criticar, ofe- rece condições de fazer valer os interesses não só da burguesia, mas também dos outros setores. Em se tra- tando da importância da alfabetização, Saviani diz Que, sabendo-se Que o conhecimento transmitido na escola é um conhecimento sistematizado (Que é letrado), a pri- meira exigência para o acesso a esse tipo de saber é aprender a ler e escrever. Sendo assim, pela mediação da escola, dá-se passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita, pos- 26 EDUCAÇÃO EM DEBATE FORTAlEZA ANo 24 V. I N° 43 2002

Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

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Page 1: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

QUE CAMINHO DEVO SEGUIR?Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico eLúdica ...

Bernadete de Souza Porto 1

Resumo [BCH-UFC]A renexão sobre as bases de uma alfãbetização

crítica e lúdica e as dificuldades de praticar esta teoriasão os principais objetivos deste artigo. Entende-se Quenão basta ao professor dizer-se progressista, é precisoQue ao discurso lnouiridor de transformações, haja umaprática Quepermita romper com o modelo tradicional deeducação. Defende-se, neste sentido, a importância daludicidade para o processo de alfãbetização de crianças.Alice, personagem de lewis Caroll do País das Maravi-lhas é o nome Que representa a professora observada.cujaprática é aQuianalisada.

Palavras-Chave: Alfabetização; Ludicidade; Formação doeducador.

Abstract: What way shalll follow? Alice looks fora critica I and playfullearning

The aim ofthis article is to rctlect on the dimcultiesof app!yingcriticaltheories on pli!Jlfulllearning.Theauthorbelicvcs that is not enough to be aprogressive teschet; itis also necessaty to examine the praxis that permitsdivergence from traditional models of educstion. Theauthoress stresses the importance of pli!Jlfullness in theprocess for teaching)/oung children. Alice, on of lewisCsrrol's chsrscters, is the fictional name of the teacherwhose pratice is anajyzed here.

Key-Words: Litracy; Playfullness; Teacher formation.

I Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará e pro-fessora da Universidade Federal da Bahia.

A Teoria Crítica

Nada seria o Que é. porque tudo seria o Que nãoé. E ao contrário - o Que é não seria. E o Quenãoseria, seria. Você entendeu?

Alice no país das maravilhas, LEWISCAROLL

Segundo Klein (1996), as categorias fundamen-tais para descrição e análise de uma teoria crítica daeducação seriam história, totalidade e luta de clas-ses. As categorias escolhidas pela autora demons-trem a influência do marxismo em suas idéias, umavez Que tais categorias evidenciam o modo marxistade compreensão da sociedade.

Assim, na tentativa de superar tanto o poder ilusó-rio (Teorias não críticas), como a impotência (Teoriascrítico-reprodutivistas), entende-se Queé na elaboraçãodo saber Que se devem engajar os Que lutam pela ga-rantia de um ensino de Qualidade aos trabalhadores. Ouseja, ..estájustamente na valorizaçãodos conteúdos' oapontar de uma pedagogia revolucionária, como dizSaviani (1983). Afirma, ainda, Que o saber pode servivenciado na luta dos trabalhadores por uma sociedademais justa e diz Que" o dominado não se liberta se elenão vier a dominar aQuilo Que os dominantes domi-nam". O Queé bastante contraditório e complexo. Cury(1989) diz Que a educação é contraditória em seus vá-rios elementos. Ao reportar-se ao saber escolar, diz Queeste, Quando veiculado numa sociedade como a capita-lista, cujo conjunto das relações sociais é contraditório,nasce do fazer e dos fazeres diferentes e contraditórios.Percebe-se pois, Que, mesmo veiculando a cultura e aideologia burguesa, a escola QUe instrumentaliza, Queensina, Que leva o aluno a aprender, refletir, criticar, ofe-rece condições de fazer valer os interesses não só daburguesia, mas também dos outros setores. Em se tra-tando da importância da alfabetização, Saviani diz Que,sabendo-se Que o conhecimento transmitido na escolaé um conhecimento sistematizado (Queé letrado), a pri-meira exigência para o acesso a esse tipo de saber éaprender a ler e escrever. Sendo assim, pela mediaçãoda escola, dá-se passagemdo saber espontâneo ao sabersistematizado, da cultura popular à cultura erudita, pos-

26 EDUCAÇÃO EM DEBATE FORTAlEZA • ANo 24 • V. I N° 43 2002

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tando-se. aos educandos (e principalmente aos

dos das classestrabalhadoras) a ínternallzação do

u:r.Xci·mento e das possibilidades Queo conhecimento

em oferece à vida do homem, levando-os à ne-...--:ci'r l-:l. ruptura com o modo de vida da submissão.

Compreendo, neste momento, Que uma teo-

crítica na alfabetização tem como pressupostos:

a presença de uma teoria crítica na alfabetização

- ume a existência de uma visão crítica da soeie-

- e e da educação; 2) essa visão crítica - da socíe-

- e e da educação - deverá acompanhar-se por uma

_ iuca pedagógica coerente com os princípios Que

em essa visão, em termos da ação do homem na

- iedade, o papel Que o conhecimento e a educa-

- têm na configuração ocial; 3) Que a prática pe-

- ógica deverá fundamentar-se em ações Que

ovam o crescimento pessoal e intelectual das

ças, sendo o professor, antes de mais nada, um

do delas; 4) além de objeto pedagógico, a língua

ita é de uso social, é objeto para a ação do ser

- mundo e este entendimento deverá ernbasar to-

as Questões Que envolvam o conhecimento so-

•• a alfabetização, seja de natureza, psicológica,

- üística, sociológica ou pedagógica.

Tomando-se como ponto de parüda esses pres-

..postos, pode-se conversar mais detalhadamente

re os elementos envolvidos na alfabetização, es-

- cialmente: a) os sujeitos deste processo e b) o

[eto do conhecimento.

Os sujeitos

A compreensão de Que a língua escrita é obje-

• de uso social nos leva a entender Que antes de

ais nada professores e professoras, alunos e alunas

são seres humanos e, como tais, são sujeitos sociais

e históricos. Como sociais, além do vínculo com o

ontexto específico (com o lugar e a classe de ori-

em), são seres Que precisam do grupo e dos pares

ara o crescimento, para a aprendizagem e para sua

própria humanização. Desta característica origina-se

a nossa necessidade de comunicação, de afeto e edu-

cação. Por sermos sociais, como diz Paulo

buscamos, ao longo de toda nossa trajetória, a

em grupos, seja nas escolas, nas igrejas, nos cJ bes,

na família; inventamos todo tipo de desculpa para

garantir o aprendizado Que só em comunhão com os

nossos semelhantes poderemos atingir.

Com as crianças não é diferente. Precisam dos

pares para aprender e apreender o universo Que Ihes

chega na família, na escola e nas outras instituições

das ouats fazem parte. Importante Que a escola con-

sidere Que aprendemos em comunhão, pois só assim

poderá deixar de desejar alunos homogêneos e pro-

cessos individualistas de aprendizagem. Como sociais,

aprendemos com a história dos nossos antepassa-

dos, dos nossos vizinhos, dos povos Que conhece-

mos e dacueles com os ouaís nunca tivemos contato.

Como seres iguais, aprendemos com as diferenças e

podemos nos solidarizar com as dores advindas das

guerras de Que nunca participamos, sentindo-nos vi-

toriosos ou derrotados, a depender dos projetos Que

alimentamos para o nosso futuro e presente. Assim,

através da fala e da conceituação, as crianças come-

çam a inteirar-se do mundo, a descobrir Que nele há

coisas e Que estas são denominadas. Vygotsky(1989a, I 989b) expõe a complexidade desse pro-

cesso de conhecimento humano do mundo, das coi-

sas, com bastante pertinência. Discutindo a relação

entre o pensamento e a linguagem, o autor faz uma

série de considerações acerca da mesma, tendo co o

base estudos de natureza flIogenética e ontoge é ka.

O autor afirma, entre outras coisas, Q!1e o pensa-

mento e a fala têm origem genética difere e. co

funções Que se desenvolvem segundo camí s di-

ferenciados e independentes. -Ia criançaas rsizas eo curso do desenvolvimento do in e.eu o 'ferem dosda /â/a - inicia/mente o pensa en o énão erba/ e a/â/anão Intclectuel", . 2) Sare ta a particularidade

das palavras para as crianças, pois, por se tornarem

uma propriedade do objeto, se fazem necessárias ao

próprio complemento da estrutura destes e da estru-

tura do pensamento. Daí afirmar Que as estruturas

da fala dominadas pela criança tornam-se estruturas

básicas de seu pensamento onde o desenvolvimento

FORTALEZA. ANO 24 o V. I • N° 43 •• 2002 * 27

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do pensamento é determinado pela linguagem, es-tando o crescimento intelectual da criança depen-dente e relacionado ao domínio da linguagem.

A abordagem feita por Vygotsky, na Qual seobserva uma relação dialética (e não linear) entre opensamento e a palavra, demonstra a complexidadedo processo de ação e conhecimento dos homens emulheres frente ao mundo

As palavras desempenham um papel central não

só no desenvolvimento do pensamento, mas tam-

bém na evolução histórica da consciência como

um todo. Uma palavra é um microcosmo da cons-

ciência humana (p.132) .

Deste modo, restringir o direito de falar ouinibir o processo de apreensão das diferentes lingua-gens de Que dispomos, em especial da formação dosconceitos e sistematização do conhecimento Que seacumula é, de certa forma, desumanizar o homem.No processo de apreensão e compreensão da reali-dade, a escola desempenha um papel fundamental. Éprincipalmente ela Que deve socializar esse saberhistoricamente acumulado. Na discussão daespeciflcidade do papel da escola, Vygotsky algumasvezes introduz (e noutras ressalta) elementos bas-tante relevantes à compreensão dessa específtcidade.

Um primeiro aspecto ressaltado pelo autormostra Que há uma aprendizagem fora do espaço es-colar e Que começa bem antes da escolarízação. Paraele, a diferença entre a aprendizagem e a aprendiza-gem escolar não se restringe ao fato da escolar sersistemática. Desta maneira, diz Que a aprendizagemescolar introduz algo de completamente novo ao cur-so do desenvolvimento das crianças, no Qual elas co-meçam a adouirír noções necessárias à aprendizagemdos conteúdos formais. É com base no entendimentode Que o pensamento é socialmente elaborado, Queo

afirma Quea única possibilidade de construção ée segue o caminho do interpessoal para o

Há aí uma inversão em todo o processoe o mesmo deverá se adiantar

ctL'1Ç35 , em busca do seu

potencial. Para Oliveira (1992), a cognição não é umprocesso apenas de nível mental, mas parte da ação edos significados Queesta ação aponta. Dessa maneira,a ênfase dada ao processo de aprendizagem e à cons-trução do pensamento através das relações QUe semantêm com as outras pessoas remete a uma aprendi-zagem significativa para as crianças. Smolka (1989)discute esse tipo de aprendizagem no processo dealfabetização e enfatiza o sentido de se saber o Queseescreve, para QUem e porouê., Diante do entendi-mento Que a língua escrita foi criada para registro esistematização do nosso conhecimento sobre o mun-do, podemos perceber Que esse processo se repetecom cada indivíduo Que aprenda a ler e escrever, sen-do, antes de mais nada, a possibilidade de compreen-são da forma de ser e estar Que a alfabetizaçãoproporciona, tanto pela aprendizagem do conhecimen-to já sistematizado, tanto por nos tornar mais capazesde socialização de nossas experiências.

Além de seres sociais, históricos e envolvidoscom a sociedade do trabalho, os sujeitos do univer-so escolar são seres Que se educam. Sua educaçãodá-se, sobretudo em relação à sua cognição, aos seussentimentos e à capacidade de agir, Que nasce darelação entre a cognição e a afetividade, resultandonas atitudes Que conseguimos desenvolver diante dasperguntas Que a vida proporciona a cada um. Consi-dero Que a escola (a escola QUeeduca o professor ea escola Que educa o aluno) só tem abordado esseselementos de forma isolada, sendo o principal papelda pedagogia (e alfabetização) crítica, a compreen-são do ser humano total, omnilateral. Entendo, as-sim, Que numa perspectiva crítica, a alfabetizaçãopode representar uma porta de entrada não ao mun-do das letras isoladas, mas das letras engajadas, re-presentando o acesso ao mundo humano, do homemtotal, conhecedor e pesouísador do universo, onderespostas se adiantam às perguntas Que cada cidade,cada povo, cada classe, cada tempo é capaz de for-mular, tendo a escola um papel fundamental de socia-lização das perguntas já feitas e respostas já obtidasou mesmo das perguntas feitas e Que permanecemimpulsionando o ser humano a conhecer mais, a edu-

43 2002

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-se - processo inesgotável. já Que nossas necessí-es são também inesgotáveis.

Em poucas palavras. podemos dizer Q!.Jenumapreensão crítica da alfabetização. compreende-

Que os sujeitos envolvidos. especialmente proles-- es e alunos. são seres omnilaterais. e Que. além- pensamento e da cogníção, são possuidores de~ corpo. de sentimentos. de emoções. capaz de

nvolver diferentes atitudes e tomar diferentes di-na sua vida. Importa também enfatizar Que.

íderados seres históricos. omnilaterais. os pro-res tais ouals os alunos. no momento de aula.erandes possibilidades de crescimento. de co-irnento, de sentimento.

o objeto do conhecimento

A alfabetização. considerada em seu aspectoimensional. implica também na consideraçãondamentos lingüísticos. psicolingüísticos e·ngüísticos.Do ponto de vista lingüístico. são importantes

..:=..:......,_-uideraçõesde Lemle (1988). Quede forma sim-erece aos alfabetizadores os conhecimentos~

--"''-V.> da língua e sugestões para o trabalho em elas-- Silva (1981) Q!.Jedescreve as relações entre o

. nêmico e grafêmico da língua; de Gnerre e:i (1987). Que mostram como a criança utiliza

rcepção fonética da fala para representar e~-~tar a escrita. Estes autores fornecem esclare-

'os valiosos para a compreensão da relaçãopressão oral e escrita.

lá a abordagem psicolingüística tem em Katouma grande contribuição no Que tange aos

---"-,,,,",,,,,,S relacionados ao aprendizado da leitura.

e a isomorfia parcial entre a linguagem oral e aem escrita. Esta autora apresenta. de forma

---'h-'alizada. os diversos fatores Que interferem na~.~~..;;-o. reconhecimento e decodíflcação e fornece

bre a leitura como construção de textos. cha-a atenção para a importância da sociolingüística

.-.,,""-_•..•ição e desenvolvimento da língua materna.

Outro aspecto importante na busca da com-preensão mais abrangente do conceito de alfabetiza-ção. via síntese entre mecanização e construção. é aimportância atribuída por alguns investigadores à re-lação entre oralidade e escrita. Smolka (1989) con-sidera a escrita como um processo discursivo Quedecorre das possibilidades de ínteração e ínterlocuçãoentre alunos e professores. devendo-se atentar paraas suas condições de vida fora da escola. Esta autorabaseia-se nas concepções sócio-interacionistas deVygotsky. Que destaca a dimensão simbólica para odesenvolvimento das funções psicológicas superio-res. afirmando Que esta elaboração é basicamentesócio-histórica e cultural. Como Ferreiro. Vygotsky(1988) considera a língua escrita como um sistemade representação da realidade. destacando. porém.o caráter histórico e cultural da criação dos signosQue a representam. Outro ponto comum com Fer-reiro é a afirmação de Que a criança em idade escolarjá possui o vocabulário e as formas gramaticais ne-cessárias para a escrita já Que são as mesmas utiliza-das na fala oral. Admite também Que a escrita temuma função diferente da fala tanto na estrutura comono funcionamento e como um simbolismo de segun-da ordem apresenta dificuldades para a as criançascomo uma forma de representação convencional.Afirma Que a língua escrita está relacionada à línguafalada. a oual lhe serve de elo intermediário na re-presentação das entidades reais e das relações entreelas. Assim. critica também a consideração puramentemecânica da sua aprendizagem. enfatizando:

até agora a escrita ocupou um lugar muito estritona prática escolar em relação ao papel fundamen-tal Queestadesempenhano desenvolvimento cul-tural da criança. Ensina-seàs criançasa desenharletras e a construir palavrascom elas, mas não seensina a língua escrita (1988:p.1 19).

O pensamento de Vygotsky na educaçãoplia a possibilidade de se encontrar a síntese desci -da entre os aspectos mecânicos e de cons çã

significados. numa relação dinâmica entre a t

a prática de alfabetização, onde o brínocedo

EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA • ANo 24

Page 5: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

criatividade, representando a.realidade subjetiva do

indivíduo, nos possibilitam perceber a reconstrução

interna de atividades externas Que se desenvolvemnas e pelas ínterações sociais, inclusive as Que ocor-

rem entre professores e entre estes e seus alunos.

Destaco, neste sentido, a importância do conceito

de "zona de desenvolvimento proxímal", Q!.leconsis-

te, segundo Vygotsky, na distância entre o Que um

indivíduo é capaz de fazer sozinho e o Que é capaz

de fazer com a ajuda de outrem. O desenvolvimen-

to, desta forma, caracteriza-se como um processo,

um curso evolutivo do indivíduo. Importante lem-

brar Q!.leo desenvolvimento, na visão de Vygotsky, é

mediado pelo uso de instrumentos e signos cultural-

mente construídos, tendo a língua escrita um papel

essencial enquanto uso de signos, dada a importân-

cia da comunicação intersubjetiva, tomando-se a pa-

lavra/a fala como a mais importante via psicológica

Que integra os fatos culturais ao desenvolvimento

pessoal, compreendendo-se, ainda, os signos e sis-

temas de sinais como eoulparnentos psicológicos.

Outra discussão Que merece destaoue, neste

momento, diz respeito aos Que Vygotsky entende

como os precursores da língua escrita (gestos, sig-

nos, desenho e jogos). O destaoue ressalta a defesa

de uma alfabetização lúdica Que parta do conheci-

mento e da prática do brlnouedo como sendo um

dos elementos fundamentais ao processo de alfabe-

tização das crianças. O brinquedo. neste sentido, é

visto como um dos principais elementos da educa-

ção infantil, constituindo-se recurso de ensino e ob-

jeto de aprendizagem, ao mesmo tempo. É um

elemento por excelência à educação das crianças, uma

vez Q!.lena ação por ele provocada, além de se estar,

segundo Vygotsky, introduzindo a criança no mundo

simbólico precursor da escrita, na brincadeira ela se

desenvolve ainda afetiva, social e cognitivamente, o

Q!.letambém facilitará o seu processo de alfabetização.

Além da própria "linguagem" - do brinquedo.

as relações estabeleci das entre este e o desenvolvi-

mento, merecem ser destacadas na discussão sobre

a escola e educação de Qualidades. Os educadores,

à medida Que se dêem conta deste conhecimento,

3 O • EDUCAÇÃO EM DEBATE FORTALEZA • ANo 24

poderão incorporar às suas práticas escolares, mo-

delos de educação oue partam da compreensão de

oue a linguagem do brinquedo é um conteúdo Que

poderá transformar as relações e a vida na/da escola.

Mais oue isto, acredito Que somente um educador

Que goste e possa "brincar e jogar" será capaz de

dimensionar de forma diferente os métodos progres-

sistas, de forma a constituir práticas progressistas,

Que integrem os conteúdos à vida dos educandos,

levando-os à reelaboração deste conhecimento e por

isso mesmo, contribuindo para o desenvolvimento

de sua criatividade. Um professor Que não goste de

expressar-se pela arte, Que não goste de cantar, de

jogar, de pintar, de representar, dificilmente poderá

incrementar uma educação onde a ludicidade seja

elemento presente. Investir numa educação de Qua-

lidade passa, então, por permitir ou possibilitar a ex-

pressão de sua linguagem interior, exterior, sensível

e artística, onde a brincadeira se expande à medida

Que as crianças aprendem.

Compreende-se oue o educador infantil pre-

cisa conhecer a educação, a criança, seu desenvolvi-

mento e a importância Que o brinquedo tem para o

seu desenvolvimento. Desta forma, o conhecimento

da importância do brinquedo para as crianças, pelo

professor, não dá-se integralmente se somente o abor-

darmos teórica e cognitivamente. É essencial Queesse

conhecimento seja vivencial, Que os professores pos-

sam dar-se conta, por intermédio das suas mãos, dos

seus olhos, dos seus ouvidos, do seu corpo, dos seus

valores morais e educativos, Que o brinquedo é im-

portante para Que a criança possa desenvolver-se,

tendo um contributo não só no aspecto psicológico,

como sócio-cultural e, ainda, no aspecto mais peda-

gógico e ligado à aouísição da língua escrita. Para

isso, é necessário Que, além de conhecer a teoria do

brinouedo sobre o desenvolvimento da criança, o

professor brínoue.

Assim, entende-se Que, na educação infan-

til, a brincadeira deve ser vista como um conteú-

do por excelência. No caso específico das crianças

Que estão se alfabetizando, essa excelência fica

mais evidente, uma vez Que através da brincadeira

N° 43. 2002

Page 6: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

- -se transpor o mundo imediato e percebido

ívelmente, reconstruindo o seu significado,

endo atribuir-lhes características e funções dis-

das Que possui no mundo concreto" Dessa

, passa a poder agir num mundo serniotlca-

"e codificado. Essa porta da sírnbolízação e

~ ....•"..•ução do semiótico é a porta para o proces-

: alfabetização c compreensão da língua es-

arbitrariamente criada para transmissão dos

xados e conhecimentos do homem sobre o

- . Que então se incorpore à pratica educativa

. ência do lúdico de uma criança Que é vis-

r- momento Que brinca, como um ser históri-

situado, capaz de atribuir significados aos

et s, ao ponto de entender a transposição Que

os para a escrita, no registro de nossas ex-

.; cias individuais e sociais. Entendo, assim,

estão neste fato a importância e a ligação Que

-.. os fazer entre educar e brincar: como ex-

ão de um tempo e de uma história, de um

de ser gente e viver em comunhão e de trans-

~ de lugar a lugar, de um tempo a outro, as

experiências enquanto humanos. E como

rofessores são também humanos, é necessá-onsiderar Que no processo de apropriação de

_ teoria lúdica e crítica da alfabetização, por

e deles, deve-se levar em consideração a ex-

ão de seu tempo, de suas histórias, de suas

radlções, das idas e vindas Que a vontade de

- raposíção a um modelo socialmente estabele-

- por parte de um indivíduo acarretam, defen-

do-se, sobretudo, Que haja uma formação

tinuada. Abordarei este assunto a seguir ao des-

-er a prática da professora Alice, analisando

o é contraditória a prática de uma alfabetiza-

- crítica e lúdica.

e Caminho Devo Seguir? Considerações sobre a-·'tica Pedagógica

Alice é um nome fictício de uma professora

abetizadora de crianças da rede pública rnunicl-

EDUCAÇÃO EM DEBATE • FORTALEZA • ANO 24 • V. I • Nll 43 • 2002 e 3 I

pai de Fortaleza. Muito simples a caracterização (ia

rotina das aulas de Alice: durante dois es

seoüenclals (fevereiro e março de 2000), dese

se basicamente com a seguinte estrutura: os alunos

chegavam à escola, formavam uma fila pra entrar

em sala, entravam e sentavam-se em peouenos gru-

pos de Quatro ou cinco alunos, conforme houvesse

Quatro ou cinco cadeiras na mesa escolhida. Àoue-les Que não conseguiam um lugar nestes peouenosgrupos sobravam as cadeiras grandes com um bra-

ço (estilo estudante). Ao sentarem-se e diante de

uma tarefa de casa já escrita na lousa, os alunos

abriam seus cadernos e copiavam (ou esforçam-se

para copiar) o dever. Normalmente, e com raríssimas

exceções, interrompiam a cópia com a chegada da

merenda (mais ou menos uma hora depois Que to-

cava para o início da aula e uns vinte minutos antes

do recreio) e a ida para o recreio. Retornavam do

recreio, terminavam a cópia da tarefa de casa e ini-

ciavam a de classe. A tarefa de classe, em Quase

todos os dias desses meses, era semelhante à de

casa, havendo apenas alguns registros de tarefa de

classe Que envolvia atividade de recorte e cola e

de letras para formar palavras Que esta err"cena", como carnaval, mamãe, ete. De início

pertou minha curiosidade o moti o de a

casa anteceder a de classe e na conf ••"::,>~u'''::''<'''-~

uma rotina onde a aula se inicia pe

passar do tempo, pude entender o

como a professora ensinava na mp<~~

do matutino, aproveitava a e

va pras crianças de manhã. Isso

para oualouer pessoa,tar 10 minutos da có "

fundamental importârxía.

do almoço co

manicure e pecícur

2 As a idades -" c:c:pedk re oferecem a possibilidadede com me: !ação da renda. já Q! e cobra R$ 2.00 e R$ 3.00 reaispelo trabalho. o c: pode lhe aumentar os rendimentos em atéRSI 00.00 por mês" Alice ganha R$ 360.00 por mês. Tem contratotemporário e. para chegar à escola. precisa pegar sete ônibus pordia. pois mora no lado extremo oposto da região metropolitana.

Page 7: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

almoço. confeccionar lernbrançlnhas para as festi-

nhas comemorativas. etc, ete. Outro problema. mais

estrutural e Que diretamente teve uma repercussão

na rotina da sala de aula. era a falta das colegas de

Alice e a forma como ela lidava com a tarefa de

substituí-Ias: mesmo tendo a sugestão para Que jun-

tasse as turmas numa única sala. tinha sempre como

atitude deixar os alunos da professora faltosa na sala

dela e continuar com os seus alunos ali mesmo.

indo e vindo de uma sala para- outra. permanecen-

do em lugar algum.

As tarefas eram atividades extremamente me-

canizadas e sem uma vinculação maior com a vida

das crianças. Apesar de em determinados momen-

tos trabalhar com o tema proposto no planejamento

(dia das mães. carnaval. etc) não se constituíam

desafios cognitivos às crianças. Aliás. a rotina

estabelecida entre professora e alunos é de muita

formalidade. onde podemos observar Que esses

sujeitos repetem uma ordenação com tamanho

automatismo Que seouer a professora lê a tarefa

para os alunos (Que também não sabem ler) e difi-

cilmente tem tempo para corrigir as respostas (seja

às tarefas de casa. seja às tarefas propostas em

sala). Não existiram, até o momento de nossa pro-

posição (juntamente com a professora ou sozinha).

momentos de conversa coletiva. fosse em relação

ao conteúdo propriamente dito. como a outro as-

sunto oualouer. As crianças sabiam QUe deveriam

copiar as tarefas propostas. sendo Que algumas

vezes. como poderemos ver mais adiante. desafi-

avam a professora com perguntas sobre o Que es-

tava escrito ou ainda dizendo Que não fariam mais

a tarefa ... De outro lado. e contraditoriamente.

adoravam copiar ... Que dor senti no coração ao

ver Que aquelas horas. preciosas Quatro horas da

vida de todos nós. eram muitas vezes. despe r-

diçadas com atividades tão distantes da possibili-

dade de ensino e aprendizagem da leitura e escrita

numa perspectiva Que contextualizasse as letras.

dando-lhe cor. som. vida ...

Nesses três meses de "pura" observação da

sala. em apenas um dia registrei a presença de ativi-

dade Que fugiu à rotina anteriormente descrita. mo-

mento em Que a professora leu uma história para os

alunos e pediu Que a desenhassem. Descreverei um

trecho desta aula. e. a partir dele. farei o levanta-

mento de algumas Questões sobre a ação de Alice

em sala. seus limites em relação a uma proposta mais

progressista e de uma educação mais voltada às pos-

sibilidades Que nos oferecem uma escola de traba-

lhar a favor das classes populares.

Chego à sala às 13:20. Jáse encontram todos

lá. Alice e alunos. Mesma organização das cadeiras.

a professora carimba deveres de casa. Alunos copiam

da lousa. Atividade de casa (anexo No. 04)

P. Vamos já começar nossos trabalhos. A!y, va-

mos já começar ... Terminou Bia, vamo, termine

a tareflnha ...( Os alunos conversam)

P. Pessoal, vamos começar nossa rodinha ... de-

pois, olha, QUem não terminou, termina depois

(Trocou alguns meninos de lugar. Alunos se di-

rigem, com cadeiras, ao centro. A professora

afasta a mesa 1 I)

P. And .. te senta direito!. .. vamos Isl., depois ter-

mina o dever. .. Todo mundo de pé, fazer a ora-

ção Que papai do céu nos ensinou ... Vamos ver,

as meninas. Vamo Mar.! Vamo Mar.! (ninguém

se mexe) Que dia é hoje, pessoal?C. Quarta!

T. É dia de passear?

C. Nãol É dia de estu ...C. Dar!

P. Quem gosta de estudar?C. Eu!

(Somente dois não levantam a mão)

P. E você QUer ser o Quê Quando crescer?

C. Dentista ...

P. Sem estudar. .. A tia hoje trouxe uma história

muito bonita, pra vocês, vou buscar ... (Pega o

livro "A coelhinha atrapalhada", um livro de edi-

ção pirata, sem nome de autor e minúsculo e

mostra, de onde está para os alunos)

P. Ei. eu vou ler, Quem não prestar a tenção eu

vou fazer perguntas ....

(Quatro meninos "encenam" á medida Que ela

narra: a coelhinha varre, eles varrem, a

3_ EoucAçi.o EM DEBATI. 1002

Page 8: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

coelhinha corre, eles correm, a coelhinha dor-

me, eles dormem ... A professora briga com

eles pelos gestos "bobos")

r. Quem é QUe ajuda a mamãe? (Pergunta direta-

mente às meninas) (Querem ver as figuras, já

Que a professora, durante a leitura, não Ihes

mostrava as gravuras)

Ao encerrar a narrativa, pergunta:

r. E nós vamos fazer o Quê agora? Ou vamos de-

senhar a historinha ou desenhar a coelhinha.

Foi legal. a historinha? _

e. Fooi!

r. Vocês vão desenhar a coelhinha. Vou pregar

ela aQui na lousa pra vocês verem ...

e. Tia. é um menino e uma menina?

r. Vamo lá, tirar o caderno de classe de vocês ...

(Cola livro na lousa

e. Ô tia, num sei fazer não ...

T. Faz assim ... (Desenha)

e. Naam, parece um gato ... !

e. Tia. eu vou desenhar o Que eu Quiser. ..

(Exceto um garoto, todas as crianças desenham,

alguns levantam-se até a lousa para ver como é

a coelha, outros imitam o modelo da professo-

ra e há ainda aoueles Que desenham paisagens

e pokémons)

e. Tia. sei fazer coelho não, vou fazer a casa dela ...

(Sempre Que terminam mostram 9 ela)

r. Olha, Quem souber colocar o nome, faz viu?

(Confecciona crachá com nomes)

r. Tá lindo, ó como tá bonito o dele ...

(Chega a merenda, fazem fila imediatamente)

r. Depois do recreio tem a nossa tarefa de

colagem ... Anda, menino, sental Senta!

r. Quem terminou baixa a cabeça, pra descansar. ..

e. Descansar de Quê tia, nem corri. ..

r. Bora, senta! Vamo pessoal. baixa a cabeça ...

(Há crianças na porta da sala, ela vai buscá-Ias)

r. Ei pessoal não gosto de botar menino de casti-

go não, vamo se sentar. ..

r. Bora, Quem terminou pega o livro, bora ...

e. Pra Quê tia?

r. Pra fazer uma cópia ...

(Sai de cadeira em cadeira abrindo o livro e

mandando copiar texto avulso)

e. Ô tia, o recreio vai começar já, já.

r. Vai não ...

r. Pessoal vocês só vão aprender se fizer a cópia ...

EDUCAÇÃO EM DEBATE

(Sai da sala, avisa Que vai á secre ía.

permanecem em suas atividades. A prof

retorna em 20 rnin. a sala está um caos. Toca

para o recreio, saem correndo).

Ao sinal de final de recreio, demoram a chegar

na sala. Ela chega de imediato, abre a porta,

senta-se e continua a confeccionar os crachás.

r. Pssiiu! Vou já passar tarefa de classe ... (Meni-

nas abrem o livro e iniciam a cópia, meninos

brincam, conversam sobre o recreio ... )

r. Começar a tareflnha de classe! Bora, vamo ver,

começar a atarefa de classe, pra fazer de eouí-

pe de dois ...

r. Pega o caderno e tira a ficha. Olha vocês vão

pegar o nome de você completo e copiar, as-

sim, vamo supor Que seja ...

(Escreve na lousa: m a r i a

Escreve mais adiante:

Classe

I' escreva seu nome completo e forme palavras)

r. Eu tô só dando o exemplo da Maria, cada um

vai fazer o seu. Vocês procuram as palavras no

livro.

e. É nesse?

r. É. Ei, né pra pintar não. E de dois em dois o

dever.

(Sai da sala, atendendo a um chamado da pro-

fessora ao lado)

r. Ei, ninguém vai cortar hoje não. É pra fazer o

dever.

e. Faço não.

e. Tia, a gente não vai fazer mais aouela coisa não?

(colagem)

r. Só mais tarde ...

r. Vamo ver, senão não dá tempo ...

e. Tia, já lá perto da hora de ir e hora?

P. ão se preocupe co a ra, cuide do seu

dever. ..

Passam . de 50 i essa atividade)

guns pon os dessa aula ilustram a rotina da-

ouela sala, embora esta tenha sido a aula mais dife-

rente de todos os meses...

O primeiro ponto a ressaltar é relativo ao pa-

drão de cópia Que baliza a ação da professora: para

ela, tudo se aprende por meio da cópia e isso, para

além da nossa necessidade de imitação e de mode-

FORTALEZA ANO 24 V. I 2002. 33

Page 9: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

los, implica, geralmente, em ações de estereotipia.

Assim, não há incentivo de registro de diferentes

possibilidades de representação de uma experiência

vivida por várias pessoas, como por exemplo, no

momento de desenhar a história lida, deu coordena-

das para Que desenhassem um determinado elemen-

to da história (a coelha) e ainda, abafou o desafio de

cada QUal desenhar o coelho do seu modo, dando

um modelo de coelho para eles. Então, a impressão

Que me deu é Que ela ouvira (~ tem conhecimento)

de Que atividades de desenhar uma história são im-

portantes para a aprendizagem do conteúdo da es-

crita, tendo a literatura uma função importante e, ainda

o desenho a mesma função. Contudo, as atividades

propostas não conseguiram fomentar a expressão e

significação do texto lido. Assim, não houve re-signl-

ficação da história e nem o aproveitamento dessa ati-

vidade (Que era um pouco mais lúdica Que as

comumente adotadas por ela). para o ensino

contextualizado daouí!o Que escrevemos.

Outro momento a ser destacado, liga-se àatividade proposta para duplas, onde procurariam,

nos livros didáticos, nomes de palavras iniciadas

pelas letras Que compunham seus nomes. A profes-

sora Alice esoueceu de avisar, contudo, Que teriam..Que fazer com os dois nomes, pois a maioria das

crianças só o fez com um dos nomes da dupla. E

sem aproveitamento algum da possibilidade de pen-

sar nas diferenças existentes entre o seu nome e do

colega, na identificação das letras, ete. Ou seja, tor-

nou-se uma atividade tão mecânica como a cópia

da tarefa da lousa.

Em relação aos crachás, a confecção foi feita

durante praticamente uma semana, no tempo da aula,

nunca foram usados a não ser no dia descrito acima,

Quando acueles Que já haviam recebido sua cartela

usaram-na para cópia do nome. Então, me pergun-

ei: e pra Quê Alice o confeccionou? A minha lrn-

essão é Que fez os crachás poroue todo mundo na

fazia. Apesar do construtivismo nos indicar a

.'U,o'.40"-.k1 de seu uso. Mas, nesse caso, e acredito,

o essoras (a não ser daquelas Que. ça e do seu papel diante

dela e Que não se restringe ao discurso sobre isso),

continua sendo uma atividade tradicionalíssima. Não

basta Que se trabalhe com atividades lúdicas ou artís-

ticas para Que se referenciem as práticas inventivas.

Não basta Que se trabalhe com jogos, música, dese-

nho e pintura para Que se desenvolva uma atividade

criativa e Que estimulem a criatividade, não se pode

reconhecer apenas na realização destas atividades o

estímulo ao criativo. O significado e a compreensão,

o porouê de se está desenvolvendo tal e Qual ativida-

de, a forma como se realiza, são fatores Que, em

conjunto, fazem as atividades lúdicas satisfatórias no

sentido de permitirem a vivência de práticas QUecon-

tribuam para um processo de ensino-aprendizagem

criativo. A esse respeito se posiciona Ferreiro (1990),

alertando para o fato de Que ... não é tanto na ativi-dade em si o lugar em Quepoderíamos identificar (]novo: mas sim no modo de conduzir essas ativida-des, o Que leva a pensar Que QualQueratividade érecuperáve/(inclusive as mais tradicionais) (p.5 8)Assim, podemos muito bem trabalhar com ativida-

des lúdicas e a base dessas atividades ser a repeti-

ção. representação gráfica da música e dos sons. Vale

ressaltar QUea repetição aoui criticada não tem ne-

nhuma relação com um dos aspectos de QUenos fa-

lam Vygotsky e Soares, Quando ressaltam a

necessidade de imitação Que o aluno alfabetizando

possui para Que fixe a aprendizagem da leitura e es-

crita, possuindo sentido para as crianças. Refere-se,

pois, a momentos de mecanização, ao ensino basea-

do em automatismos, sem significado algum para o

Que estuda. Desta forma, QUando me refiro á cópia e

à repetição, falo da cópia passiva de modelos fixos,

sem Que se constitua em uma atividade de apropria-

ção, Que tenha sentido para as crianças. Segundo

Munoz (in Ferreiro, 1990, p.61). oualouer ativida-

de, seja cópia, ditado, o Que for, deve estar relacio-

nada ao uso real dessas ações em oualouer situação

de vida. Para ela (e para mim também), esse procedi-

mento reporta-se ao tradicionalismo, onde a crtsnçsescreve para ninguém, escreve para Que o professocorrija (idem). Com a pintura, relaciono-a à repeti-

ção Quando com esta são desenvolvidas atividades

43 2002

Page 10: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

e pintura de desenhos mimeografados "só prapas-sar o tempo ", ou Quando se dá uma ênfase muito

rande na forma como devem pintar, Que cores de-em usar, tolhendo a livre expressão das crianças. Os

recortes e colagens denotam repetição caso se rela-íonern às lembrancinhas pré-fabricadas pelas pro-

'essoras, por exemplo. Mexer com massa só paraperar o final da aula, juntamente a essas atividadesima citadas, são atividades Que pouco despertaminteresse e a atenção das crianças, as ouaís. por.ersas vezes, pediam "11a, faz dever!", ou: "11a,. a eu ir m 'Irnbora?", mostrando-se pouco estl-

- ladas a trabalhar numa atividade tão deslnte-

ante. Trabalha-se, nestes casos, por caminhos_reconcebidos. não se considerando o conhecírnen-. Que as crianças levam para a escola. Essa lncoe-

-' cia é expressa por Smolka (1989), ouando afirma" e as práticas Ql1edesenvolvem atividades Que nada..; a ver com as experiências das crianças e Que têm

base a repetição constituem-se em práticas esté--~ Que funcionam como empecilho à transforma-- e elaboração do conhecimento crítico.

Outra dificuldade Ql1ea professora enfrenta nafabetízação das crianças relaciona-se ao fato do

- co conhecimento da língua. Não sabe, dessa for-, como é possível se trabalharam os conflitos Quea criança enfrenta diante de um sistema construídoitrariamente. A seguir, destaco um dos rnornen-em Que fica evidente a dificuldade de Alice acer-

. dos fundamentos lingüísticos da escrita:

P. Eu vou escrever uma letra Que ninguém co-nhece... (escreve J)

C. I!T. I de Quê?C. laca!c. Jumento!

(A professora escreve j o r n a I e pede Querepitam as letras)

P. O jornal é um meio de comunica..C. Ção!P. Quantas letras tem a palavrajornal? (As crian-

çascontam S) Eouantas silabas?[or-nall Duas.Quantas letras?

EDUCAÇÃO EM DEBATE

C. Seis.P. E ouantas sílabas?Duas né?C. Não tia, é três [or-na-ú.

P. Não tem "u" não... Vamu ver ouantas ezes aagente abre a boca...

c. [or-na-ú: trêsP. Não tem ú menino...C. Mas o "I" agente diz "ú" ...

(Escrevena lousa c o r d a)P. Vamosprocurar nos livros palavrascomeçadas

com C, vamos achar a palavra corda...(Voltam aos seus lugares...)

Para muitos autores, o alfabetizador carecede uma formação lingüística. Poersch discute umnúcleo mínimo de formação lingüística do alfabe-tizador. Do mesmo modo, Aggio (1995:32) reco-nhece a importância do conhecimento Iingüísticoporf entender Que, para alfabetizar, não basta serum bom aplicador de recursos didáticos emetodológicos, (..) é preciso Quese conheça tam-bém a natureza do objeto desse conhecimento.Lemle (1991 :8). diz Que existem saberes e percep-ções básicas de Que uma pessoa precisa dispor paraQue possa ler e escrever. São três saberes: o pri-meiro, relaciona-se à necessária compreensão deQue a escrita faz parte de um complexo sistema sim-bólico Que embasa a vida humana. É esta capacida-de de integração ao mundo simbólico Que i ápermitir Que o alfabetizando faça uma ligação entresons da fala e letras do alfabeto. Para ela, .ança Queaindanão consiga compreen er o .•uma relação simbólica entre dois o ·c' 'S ~-

seguirá aprender a ler. Já a se ..,retamente ligada à primeira. efere-se ':J_0S5;fu~:;d:;;lGede se distinguirem as diferedistinção. confo e a au:cientemente. Seas diferen es foconse irá le • . aca ará confundindo as letras ...

erceira ca aei ade ressaltada pela autora é a dedistinção en re os sons da fala para Que possa grafá-los de forma correta. Além destas três capacida-des, a autora nos descreve outros pontos importantes

FORTALEZA ANO 24 •• V. I • Nll43 • 2002. 35

Page 11: Alice Procuro Uma Alfabetização Crítico e Nada seria o

para o aprendizado da língua, em destaque: Que a

escrita se organiza por unidades, QUe são as pala-

vras. Para Lemle, a percepção Que a palavra é a

unidade da fala e da escrita, permitirá realizar uma

relação entre a palavra falada, seu sentido concreto

na vida do aluno e sua grafia. Em se tratando da

relação som/grafia das palavras, informa Que o ca-

samento entre as letras nem sempre é monogâmico,

ou seja, nem sempre há uma correspondência

biunívoca entre os elementos. Geralmente, relação

entre os sons e as letras é poligâmica ou poliândrica.

No caso da palavra jornal, destacada pela Alice,

ocorria um casamento não biunívoco entre a letra e

o som, já Que o "I " está, neste exemplo, situado no

final da palavra, assumindo-o som da vogal ]u]. Este

era o conflito do aluno, cuja hipótese levantada,

era de Que jornal tinha três sílabas porque o "I "

tem som de ü". como ele disse. Não obteve res-

posta de Alice, pois, como é possível de se obser-

var, ela também não compreende estes casamentos

tão diferentes entre as letras ... Neste sentido, cha-

mo a atenção para a necessidade de este conheci-

mento Iingüístico fazer parte da formação de todo

e oualouer alfabetizador, para Que ele possa adotar

e responder a inúmeras hipóteses e conflitos levan-

tados pelos alunos Quando estão descobrindo a lín-

gua escrita. E por Que Alice age assim? Por Que,

apesar de acreditar numa pedagogia progressista e

de trabalhar numa escola com fortes traços

construtivistas, continua tendo como base pedagó-

gica ações pautadas no tradicionalismo?

Em seu discurso encontramos elementos Que

apontam para uma pedagogia crítica, tendo, ela mesma

dito QUesó numa pedagogia progressista é possível fazer

alguma coisa pr ' esses meninos pobres ... Para ela, ser

construtivista é ser progressista, e como trabalha numa

escola construtivista, sente-se progressista. Ela diz:

Eu sou uma pessoa Que sempre gosto de criar

coisas novas. Eu já lia naquela revista Nova Escola

e existia o construtivismo. Depois Que vim

~-' essa escola e fiz os treinamentos da secreta-

'10 e eu 'lava Q! eren-

53 a eu ía pegar no construtivismo,

a ücação da pedagogia progressis-

e só assim, no construtivismo

a e.

Con udo, apesa~ e acatar as diretrizes do pla-

nejamento da escola e aplicar alguns recursos di-

dáticos Que foram bastante divulgados pelo

construtivismo, como por exemplo, crachás e bingos,

sua prática em sala de aula é uma das mais tradicio-

nais QUejá vi registradas. E poroue tantos elementos

teóricos e práticos se confundem na fala e na ação

desta professora? Entendo Que a presença de peda-

gogias tão diferentes na práxís de uma professora

relaciona-se com os valores QUeessa professora leva

pra sala de aula, os ouaís, provavelmente, não foram

Questionados no momento em Que adotou o discur-

so progressista. Daí o desenvolvimento de uma ação

pedagógica bastante incoerente com o seu discurso.

Mas não acredito Que isso seja mérito dessa profes-

sora específica, é situação Que se repete em muitas

das salas em Que professores se dizem progressistas.

Entendo, nestes casos, QUe, apesar da teoria adota-

da, na vida dessas pessoas predominam os valores e

interesses liberais, reprodutores da sociedade e dos

valores Quesustentam essasociedade. Penso QUeessa

contradição nasce das contradições de nossa vida,

chamando a atenção para o processo constante de

crescimento Que precisa ser considerado, incentiva-

do e promovido aos educadores.

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