4
• CIÊNCIA AMBIENTE o alerta da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre as águas uando derruba um pedaço de floresta na Amazônia e ali esta- belece uma área de pastagem, o homem não produz impactos apenas sobre o clima e a biodiversidade. Causa outra alteração no ecossistema, ainda pou- co dimensionada: rios de pequeno e médio porte passam' a ter trechos ni- tidamente alterados, tendendo a se tornar poluídos, devido à substitui- ção da mata por fazendas de gado. Estudos feitos em Rondônia revelam que a condutividade elétrica - a quantidade de íons, 'grupos de áto- mos com carga positiva ou negativa, presente nas águas, parâmetro usa- do para inferir a quantidade geral de materiais dissolvidos - de alguns rios da bacia do Ii-Paraná, a maior 50 • ABRIL DE 2002 PESQUISA FAPESP do Estado, já atinge níveis semelhan- tes aos de cursos d'água contamina- dos do interior paulista. Os dados indicam que, nas áreas sem vegetação abundante, parte do carbono e dos nutrientes - sobretudo fósforo e nitrogênio - que normal- mente seriam absorvidos pela mata e pelo solo acaba atingindo os rios, car- regada pela chuva e pela erosão das encostas. Em altas concentrações, es- ses compostos funcionam como po- luentes dos rios e podem ser detecta- dos até em trechos situados fora da área desmatada. Ainda não há impac- tos escandalosamente visíveis, como peixes mortos ou grandes detritos flu- tuando, mas a contaminação dos rios é uma realidade em alguns pontos. Nos afluentes Rolim de Moura, Urupá e [aru, situados na porção mé- dia do Ii-Paraná, no coração da zona mais devastada de Rondônia, os ní- veis de condutividade variam de 50 a 100 IlS/cm (microsiemens por centí- mentro de água), valores até 20 vezes maiores que os encontrados em tre- chos menos impactados da bacia. Os maiores valores de condutividade ocorrem no período de estiagem (se- tembro), quando é menor a capacida- de de os rios diluírem os poluentes com a ajuda da chuva. "Os níveis mais elevados refletem provavelmente a ação do homem na região e são da mesma ordem dos ve- rificados em rios medianamente po- luídos como o Atibaia, um dos aflu- entes do Piracicaba, no estado de São Paulo", afirma Reynaldo Victoria, do Centro de Energia Nuclear na Agri- cultura da Universidade de São Paulo

AMBIENTE oalerta da poluição nos rios da Amazônia · da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: AMBIENTE oalerta da poluição nos rios da Amazônia · da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre

• CIÊNCIA\,

AMBIENTE

o alertada poluiçãonos rios daAmazônia

Estudo na maiorbacia hidrográficade Rondôniacomprova o impactodo desmatamentosobre as águas

uando derruba umpedaço de floresta naAmazônia e ali esta-belece uma área depastagem, o homem

não produz impactos apenas sobre oclima e a biodiversidade. Causa outraalteração no ecossistema, ainda pou-co dimensionada: rios de pequeno emédio porte passam' a ter trechos ni-tidamente alterados, tendendo a setornar poluídos, devido à substitui-ção da mata por fazendas de gado.Estudos feitos em Rondônia revelamque a condutividade elétrica - aquantidade de íons, 'grupos de áto-mos com carga positiva ou negativa,presente nas águas, parâmetro usa-do para inferir a quantidade geral demateriais dissolvidos - de algunsrios da bacia do Ii-Paraná, a maior

50 • ABRIL DE 2002 • PESQUISA FAPESP

do Estado, já atinge níveis semelhan-tes aos de cursos d'água contamina-dos do interior paulista.

Os dados indicam que, nas áreassem vegetação abundante, parte docarbono e dos nutrientes - sobretudofósforo e nitrogênio - que normal-mente seriam absorvidos pela mata epelo solo acaba atingindo os rios, car-regada pela chuva e pela erosão dasencostas. Em altas concentrações, es-ses compostos funcionam como po-luentes dos rios e podem ser detecta-dos até em trechos situados fora daárea desmatada. Ainda não há impac-tos escandalosamente visíveis, comopeixes mortos ou grandes detritos flu-tuando, mas a contaminação dos riosé uma realidade em alguns pontos.

Nos afluentes Rolim de Moura,Urupá e [aru, situados na porção mé-

dia do Ii-Paraná, no coração da zonamais devastada de Rondônia, os ní-veis de condutividade variam de 50 a100 IlS/cm (microsiemens por centí-mentro de água), valores até 20 vezesmaiores que os encontrados em tre-chos menos impactados da bacia. Osmaiores valores de condutividadeocorrem no período de estiagem (se-tembro), quando é menor a capacida-de de os rios diluírem os poluentescom a ajuda da chuva.

"Os níveis mais elevados refletemprovavelmente a ação do homem naregião e são da mesma ordem dos ve-rificados em rios medianamente po-luídos como o Atibaia, um dos aflu-entes do Piracicaba, no estado de SãoPaulo", afirma Reynaldo Victoria, doCentro de Energia Nuclear na Agri-cultura da Universidade de São Paulo

Page 2: AMBIENTE oalerta da poluição nos rios da Amazônia · da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre

(Cena/USP), em Piracicaba, coorde-nador de biogeoquímica das águas doLBA (Experimento de Grande Esca-la da Biosfera-Atmosfera na Amazô-nia) e de um projeto temático finan-ciado pela FAPESP sobre o impactodas mudanças no uso do solo na bio-geoquímica (processos biológicos,geológicos e químicos) dos rios dabacia do [i-Paraná.

Condutividade elétrica - Os valores decondutividade nesses três afluentes épreocupante e previsível. Eles têmpouca vazão, estão perto de cidades e,conseqüentemente, acusam mais fa-cilmente a presença de íons em suacomposição. Não é à toa que justa-mente nesse grupo de rios, os níveisde cloreto, indicador de possível po-luição por esgotos ou despejos indus-

triais, foram os maiores da bacia, denovo chegando perto dos números dorio Atibaia. Por isso, a condutividadeelétrica nesse trecho da bacia não sur-preendeu. O que realmente causou es-panto foram as taxas encontradas aolongo do Ii-Paraná. Nos cinco pontosmedidos, a condutividade atingiu ní-veis médios, entre 25 e 50 I-lS/cm. Oque isso quer dizer?

Vamos por partes. Em três pontosda porção intermediária, onde o rioainda não alcançou sua plenitude emvolume de água, o resultado ruimnão espanta. Afinal, nesses setores al-tamente modificados pela ação hu-mana, o Ii-Paraná serpenteia por zo-nas em que freqüentemente a florestafoi derrubada, dando lugar a pasta-gens e, em menor escala, a cidades(como o município de [i-Paraná), É

Rio e cidade de Ji-Paraná: em algunstrechos, quase tão alterado quantoo Piracicaba, no interior paulista

esperado, portanto, que esse trechoregistre claramente os efeitos da bru-tal mudança na ocupação do solo. "Emgrande medida, um rio é uma funçãoda paisagem ao longo da qual flui': co-menta o pesquisador.

Nos outros dois pontos de coleta,na porção final da bacia, a história édiferente. Por terem a mesma ordemde grandeza dos valores verificadosnos três pontos anteriores, os níveisde condutividade nesses trechos sãoum sinal de que o rio está realmenteno mau caminho. Isso porque, a essaaltura, o [i-Paraná corre em meio aáreas de floresta preservadas, tendo jáatingido a vazão máxima, de 20 a 30vezes maior do que na nascente. Portudo isso, os pesquisadores acredita-vam que o rio - nesse ponto bemvolumoso e presumivelmente commaior capacidade de recuperação -tivesse condições de absorver facil-mente os impactos da ação humana,mais marcantes na porção intermedi-ária anterior.

Por esse raciocínio, perto da de-sembocadura, o [i-Paraná deveria teruma condutividade de 5 a 25 I-lS/cm, amesma que seus tributários mais lim-pos, igualmente situados em áreas debaixo impacto - os rios Machadinho,Preto, Comemoração e o trecho inicialdo Pimenta Bueno. "O problema é queo sinal da contaminação por íons ain-da persiste, numa evidência de que orio não superou totalmente o impactoda mudança", comenta Reynaldo Vic-toria. Se um dia o sinal se tornar forteo bastante para ser detectado no Ma-deira, rio cerca de 25 vezes mais volu-moso que o Ii-Paraná, possivelmentea bacia estará totalmente alterada.

Para avaliar o impacto da mudan-ça de uso do solo em cada setor, ospesquisadores estabeleceram, em 1999,14 pontos de coleta de amostras deágua ao longo da bacia. Escolheramáreas com graus baixo, médio, alto emuito alto de alteração no uso daterra. Assim, os cientistas do Cena po-

PESQUISA FAPESP . ABRIL DE 2002 • 51

Page 3: AMBIENTE oalerta da poluição nos rios da Amazônia · da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre

dem comparar o que acontececom um rio num trecho mui-to desmatado, em outro me-dianamente devastado e, porfim, numa área de floresta pre-servada.

O ideal seria recolher asamostras mensalmente, de ja-neiro a dezembro. Isso permi-tiria um monitoramento prati-camente ininterrupto das águasdurante um regime hídrico,minimizando efeitos e fenôme-nos sazonais. A mesma concen-tração de um componente quí-mico, por exemplo, quer dizeruma coisa no período de cheiae outra na época de seca. Mas,como são necessários 20 diasde trabalho de campo para co-letar amostras nos 14 pontosda bacia e os principais pesqui-sadores moram no interiorpaulista, a milhares de quilô-metros de distância, essa opção se tor-nou inviável. .

"Pensamos então numa alternati-va': comenta o biólogo Alex Krusche,do Cena. A saída encontrada foi mon-tar um cronograma para quatro anosde trabalho, de 1999 a 2002: ao longodesse período, os pesquisadores pro-

Quanto mais floresta é convertida empastagens, maiores as alterações nos rios

iPorto elho• •

Conteúdo iom e gra ~ acto baixosD Conteúdo iônico baixo e grau . pacto médioD Conteúdo iônico médio e grau de rmp ixoD Conteúdo iônico e grau de impacto médioD Conteúdo iônico médio e grau de impacto muito altoc=J Conteúdo iônico e grau de impacto alto

Conteúdo iônico e grau de impacto muito alto

Fante Reynalda Victoria - Cena/U SP

gramaram 12viagens a Rondônia, sem-pre em meses diferentes. Dessa forma,terão dados de um ano hidrológicohíbrido.

Os dados de fevereiro, por exem-plo, dizem respeito a fevereiro de2000, os de maio se referem a coletasde 1999, os de dezembro a 2001, e as-

!

sim por diante. Já foram feitasnove viagens.

Quando encontram al-gum parâmetro apa-

rentemente alterado,como as altas taxas decondutividade em tre-

chos da bacia, surge adúvida: esses números

refletem mesmo a mudan-ça de ocupação de solo, a troca

de áreas de floresta por pasta-gens e cidades ou são um fenô-meno natural? Para responderé preciso,primeiro, conhecer emdetalhes a área e saber como oscomponentes do sistema inte-ragem. Paralelamente à coletae à análise das amostras deágua, é imprescindível prepa-rar uma radiografia completada região.

Isso foi feito. Produzindodados novos e organizando in-

formações antigas, os cientistas de-terminaram as características físicasde cada trecho - sua geomorfologia(depressões, lagos, deltas, planícies,vales, etc.), relevo (altitude de cadatrecho), rede de drenagem e compo-sição química dos solos. E contabili-zaram as marcas deixadas pelo ho-

----- ---- - .- - - - - ---- - - - _.

Uma rede no tamanho idealOs pesquisadores do Cena es-

colheram a dedo a bacia do [i-Pa-raná para estudar alterações nosciclos biológico, geológico e quí-mico de rios amazônicos. Nosanos 80, Reynaldo Victoria parti-cipou de estudos semelhantes nocanal principal do Amazonas e deseus tributários, que, em algunstrechos, como nos arredores de Ma-naus, passam por áreas bem mo-dificadas pela ação humana. Osresultados renderam cerca de cemartigos, mas não foram conclusi-vos na detecção de alterações nosrios pela ação do homem. A imen-sidão do sistema hidrológico -20% da água doce do planeta pas-

sam pelo Amazonas - inibia a per-!cepção de sinais de contaminação.A saída foi procurar uma bacia detamanho médio em áreas desma-tadas, onde as conseqüências pu-dessem ser mais facilmente medi-das nas águas dos rios.

Com mais de 75 mil quilôme-tros quadrados de extensão, a ba-cia do Ii-Paraná tem peculiari-dades que a tornam ideal para oestudo em questão. Corta todo oEstado, abrange 45 municípios e éhabitada por 560 mil pessoas, doisterços delas na porção interme-diária. O rio nasce no sudeste deRondônia, atravessa a porção cen-tro-oeste e termina no nordeste.

Segundo dados de 1999, quase30% da área da bacia viraram pasto,principal destino dado aos setoresde floresta que foram postos abai-xo.As matas tropicais ocupam pou-co mais de 60% da bacia, as áreas derebrota quase 5%, há um peque-no trecho de cerrado (0,7%). O res-tante é ocupado por áreas urbanas(0,5%), solo exposto, cursos d'águae plantações. O eixo da ocupaçãourbana e agropecuária do Estado seformou em torno da rodovia BR364, que rasga o Estado. ''A baciado Ii-Paraná é didática", diz Rey-naldo Victória: "Exibe todos os ní-veis de alteração do uso do solo, domais baixo ao mais alto':

52 • ABRIL DE 2002 • PESQUISA FAPESP

- -

Page 4: AMBIENTE oalerta da poluição nos rios da Amazônia · da poluição nos rios da Amazônia Estudo na maior bacia hidrográfica de Rondônia comprova o impacto do desmatamento sobre

Pastagem em Rondônia: isótopos diferentes de carbono em rios que cortam áreas desmatadas e trechos conservados de floresta

mem - mapearam o número de ha-bitantes das cidades, o uso do solo eda cobertura vegetal. Em geral, os so-los do sistema Ii-Paraná são pobres,com poucos íons. Logo, espera-se en-contrar níveis baixos de condutivida-de elétrica nas águas. Quando issonão ocorre, como é o caso de algunsafluentes, alguma atividade humanapode estar por trás da anomalia. EmRondônia, a origem do excesso de íonsparece estar associada às pastagens,não à floresta.

Outros parâmetros - Além de medir acondutividade, analisa-se a composi-ção química das águas. Resultados pre-liminares mostram uma correlaçãoestatisticamente relevante entre a por-centagem de áreas de pastagem de ca-da setor e a concentração nas águas decloretos, sulfatos, sódio, cálcio, mag-nésio, carbono orgânico e inorgânicodissolvido, e dióxido de carbono. Ob-servou-se que o aumento das áreas depastagem faz crescer os níveis dessescompostos, mas ainda não se podeafirmar em que proporção cada com-posto aumenta. Há uma constataçãointrigante: os teores de oxigênio nos

rios de Rondônia, mesmo os mais im-pactados, mantêm-se relativamentealtos quando comparados aos de riospoluídos do interior paulista. ''Aindatemos de estudar e entender muitosprocessos biogeoquímicos na região':comenta Reynaldo Victoria.

A principal meta é saber como asubstituição das áreas de floresta porpastagens e cidades altera a distribui-ção de carbono e nutrientes em riostropicais. Outra é acompanhar a mu-dança dos sinais emitidos por essassubstâncias à medida que passam deum sistema hídrico de microescala

o PROJETO

Alterações na Dinâmicada Matéria Orgânica em Riosde Micro e Meso-escala do Estadode Rondônia, em Funçãode Mudanças no Uso da Terra

MOOALIOADEProjeto temático

COORDENADORREYNALDO VICTORIA - Cena/USP

INVESTIMENTOR$ 565.456,97 e US$ 427.226,95

(pequenos rios ou riachos) para ummediano (uma bacia como a do [i-Pa-raná). Os estudos de microescala sãofeitos nos rios que cortam a FazendaNova Vida, perto de Ariquemes, no-roeste do Estado. Sua área de influên-cia é cerca de sete vezes menor que ada bacia do [i-Paraná, Ali os pesquisa-dores verificaram, como era esperado, aexistência de isótopos diferentes decarbono em águas que cortam áreasdesmatadas para pastagens e em tre-chos conservados de floresta.

Ao cruzar zonas de pecuária, o riorevela carbono da composição iso-tópica característica de plantas de ci-clo fotossintético C4, de gramíneastropicais (pastagens). Em setores commata preservada, o carbono predomi-nante provém de plantas com ciclofotossintético C3, de árvores de flores-ta. "Estamos tentando entender porque o sinal do carbono das gramíneasdesaparece em trechos mistos, ondehá floresta perto de pastagens': diz opesquisador. Nesses trechos, a influ-ência das áreas de pastagens parece serneutralizada pela proximidade da flo-resta nativa, mas ainda não se sabepor que isso ocorre. •

PESQUISA FAPESP • ABRIL DE 2002 • 53