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Ana Fernandes Aguiar Gonalves Cardoso
Interdiscursividade na instncia enunciativa Selees
Uberlndia Outubro de 2008
Ana Fernandes Aguiar Gonalves Cardoso
Interdiscursividade na instncia enunciativa Selees
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Lingstica no Programa de Ps-graduao, Curso de Mestrado em Lingstica da Universidade Federal de Uberlndia. rea de concentrao: Estudos em Lingstica e Lingstica Aplicada; Linha de Pesquisa: Estudos sobre texto e discurso; Tema: Formao e funcionamentos discursivos; Orientador: Prof. Dr. Joo Bsco Cabral dos Santos; Co-Orientador: Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo
Uberlndia Outubro de 2008
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
C268i
Cardoso, Ana Fernandes Aguiar Gonalves, 1963- Interdiscursividade na instncia enunciativa Selees /
Ana Fernandes Aguiar Gonalves Cardoso. - 2008.
186 f. Orientador: Joo Bosco Cabral dos Santos. Co-Orientador: Ernesto Srgio Bertoldo. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uber-
lndia, Programa de Ps-Graduao em Lingstica. Inclui bibliografia.
1 1. Anlise do discurso -Teses. I. Santos, Joo Bsco Cabral dos. II. Bertoldo, Ernesto Srgio, 1964- III. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Lingstica. IV. Ttulo. CDU: 801
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogao e Classificao mg- 09/08
Interdiscursividade na instncia enunciativa Selees
Dissertao defendida e aprovada em ______ de __________________ de 2008, pela
banca examinadora composta pelos professores:
______________________________
Prof. Dr. Joo Bsco Cabral dos Santos (Orientador)
______________________________
Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo (Co-orientador)
______________________________
Profa. Dra. Gesualda dos Santos Rasia (UNIJU)
______________________________
Prof.. Dr. Alice Cunha de Freitas (UFU)
...a Sua destra e o Seu brao santo nos alcanaram a vitria.
memria do meu av, Francisco Fernandes Segura,
que no viu chegar este dia, mas sempre acreditou e festejou antecipadamente.
DEDICATRIA
Ao meu amor forte, paciente e sbio, Mrio
Lcio, minha felicidade e minha gratido infinita.
E aos nossos filhos Raquel e Davi, para/com quem buscamos fazer coisas e esperamos
desfrutar do nosso tempo.
Aos meus pais, Terso e Ana Rita, que nas horas mais difceis me suportaram e me
animaram
D. Alcdia, minha sogra, pelo amor e cuidado e pelas palavras de estmulo
Aos Sr. Primo e D. Terezinha, que me
acompanharam por todo tempo e se empenharam na torcida.
Ao orientador Joo Bsco, que me acolheu no
meio do caminho e com pacincia me permitiu terminar a travessia.
Aos meus irmos Terso Jr. e Teka, Natan e
Carla, Jos e Vanina, meus cunhados Samuel e Lcia, Zezinho e Llian, Joo e Ana,
e aos meus sobrinhos: Csar, Clarete e Leandro, Rafael, Daniel, Adriel, Marcos, Ana
Beatriz, Ana Teresa, Adriana, Marlia, Mariana, Marina e Amanda,
minha torcida organizada.
Ao Luan e ao Luka, meus sobrinhos-netos.
Ao Sr. Joo, meu sogro.
AGRADECIMENTOS
A Deus, cujo amor move a realizao daquilo que coopera para o bem dos que O amam.
Ao prof. Joo Bosco Cabral dos Santos que, com sua pacincia, sabedoria, habilidade e paz, mudou a histria de uma batalha perdida.
prof. Alice Cunha de Freitas pelas palavras de nimo e simpatia demonstrada ao longo deste percurso e por aceitar participar da banca da defesa desta dissertao.
prof. Gesualda dos Santos Rasia pela disposio em participar da banca de defesa desta dissertao.
Ao prof. Ernesto Srgio Bertoldo que desencadeou providncias que consolidaram a realizao desta dissertao quando ainda era um projeto, e, tambm, pelas valiosas contribuies tericas nas aulas e na banca de qualificao, bem como sua disposio em ser meu co-orientador.
Ao prof. Cleudemar Alves Fernandes pelas primeiras direes em tempos de identificao com a Anlise do Discurso, e, tambm, por suas contribuies necessrias e pontuais na banca de qualificao.
prof. Fernanda Mussalim pelo conhecimento to graciosamente repartido desde a UNIFRAN at a UFU, e seu exemplo de vida.
Ao prof. Antnio Fernandes Jnior pela leitura e sugestes preciosas.
querida professora Sheila Oliveira, do Centro Universitrio de Franca, pelo apoio, questionamento oportuno e direcionamento.
Aos queridos colegas, Jnia, Maringela, Marlia, Cirlana, Fernanda, Walkiria, Mara, Cida, Claudia, Ana Jlia, Snia, Thyago, Ivi, Ismael, Carla, Guilherme, Carmen, Luis Fernando, Maria Helena, Clo, Regina, Ana Maria, Anna Carolina, Eduardo, Malther, Franciele, Clcio, Helosa, Kelen, Karina, Divimar, Jessica, Eduardo, que trabalhamos juntos nesse empreendimento.
Aos vencedores do tempo: Cleide, Giselly, In, Rodrigo Henrique, Judith, Clo, Ricardo, Rita, Luciana, Marina, Walleska e Luiz Eduardo, a turma 2006/2.
Solene, pelo apoio, disposio, amabilidade e amizade que sempre me dispensou.
Eneida, pela eficincia, cuidado e gentileza, para comigo.
Adriana, Abadia e Luciene, amigas fiis, pela pacincia em ouvirem minhas aflies tericas e lerem meus textos;
Ao casal Douglas e Cristiane, que acreditou e incentivou este projeto com sugestes precisas.
Tamarisa e ao Hermes pela disposio e confiana em ceder seus acervos particulares de revistas Selees.
Neire, cujos palpites e questionamentos foram valiosos;
Aos colegas da escola Minas Gerais, Rosngela pelo suporte, Marize, pela pacincia em reajustar horrios, e aos demais colegas que me ajudaram me animando, ouvindo e criticando minhas apresentaes e reflexes.
Aos meus amados alunos, primeiros anos de 2006, 2007, 2008, pelo estmulo e inspirao em tempos cruciais desta jornada.
Ao Sr. Primo, pelo apoio e acompanhamento no trajeto, e pela sua leitura cuidadosa deste texto.
famlia Sal da Terra, pela contribuio material e espiritual para a realizao deste trabalho.
Aos meus pais, que sempre exigiram que eu buscasse as respostas para os meus questionamentos o mais prximo das fontes que pudesse, sem preconceitos quanto s ideologias ou saberes, mesmo que nessa busca eu me confrontasse com o estranho.
Ao Davi e Raquel, que respeitaram minhas frias no Hava, como chamaram minhas longas horas de estudo e escrita, em isolamento, no meio da sala, e aguardaram, resignadamente, em minhas constantes ausncias.
Ao Mrio Lcio, que, com amor, companhia, propsito e identidade, no me permite abandonar empreendimentos uma vez comeados por mais impossveis que sejam.
RESUMO
O objetivo deste trabalho identificar, sob a fundamentao terica da Anlise do
Discurso de corrente francesa, elementos de uma interdiscursividade sobre a
alimentao, a partir de seqncias discursivas apreendidas em textos escolhidos da
revista Selees, enquanto instncia enunciativa sujeitudinal. Supomos que as
manifestaes enunciativas do discurso miditico so ndices de enunciatividade no
funcionamento de enunciados operadores de interdiscurso. Assim, a anlise
empreendida visa focalizar as manifestaes discursivas numa macro-instncia,
enquanto conjuntura enunciativa e numa micro-instncia, estabelecendo o potencial
enunciativo (SANTOS, 2004). O mapeamento das regularidades se faz mediante a
disposio das manifestaes discursivas em chamadas matrizes de interdiscursividade,
que se configuram como variveis na estrutura das ocorrncias. Tais ocorrncias
demarcam espaos discursivos que, em sua diversidade, numa anlise das seqncias
enunciativas e as manifestaes que nelas emergem, fazem explicitar significaes que
se efetivam por meio do enunciado operador. Dessa forma, chega-se ao lugar da
enunciao enquanto tomadas de posio em nvel de significao que um enunciado
assume na configurao enunciativa de um texto sob determinadas condies de
produo na decorrncia da clivagem interdiscursiva na interseo com as formaes
discursivas constitutivas do processo enunciativo (SANTOS, 2008, mimeo).
Palavras-chaves: Interdiscursividade, Instncia Enunciativa Sujeitudinal, Discurso
Miditico, Revista Selees.
ABSTRACT
This dissertation aims at identifying, taking as theoretical framework French Discourse
Analysis, interdiscursivity elements on food. It will be examined discursive sequences
in texts selected from Readers Digest, featured as enunciative instances of
subjectivity. It is supposed that enunciative manifestations of media discourse are
enunciativity indexes of enounces operating as interdiscourse and working in several
discourses. Thus, analysis will focus such enounces as macro-instance, considering
them in an enunciative conjunction and as micro-instance while enunciative potential
(Santos, 2004). Regularities will be mapped in the so-called interdiscursivity matrixes.
Such occurrences mark discursive spaces in which emerge meanings. This way,
enunciation works as meaning positions taken by enounces in texts are under
production conditions, result of an interdiscursive intercourse in the intersection of
discursive formations inside enunciation (Santos, 2008, mimeo).
Key-words: Readers Digest Magazine, Interdiscursivity, Enunciative Instances of
Subjectivity, Discourse of the Media.
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................... 19
CAPTULO 1 O Devir Fluido do Inabalvel
Consideraes Gerais .......................................................................................
31 Indstria cultural: a contradio da semelhana ...................................... 33 Ps-modernidade: a referncia se esvai ..................................................... 37 Devir: o mundo em movimento ................................................................... 41
Devir-mquina: a aparelhizao corporal ..................................... 45 Devir-animal: a animalizao essencial ......................................... 45
Consideraes finais .................................................................................. 46 CAPTULO 2 Entre o dizer e o discurso
Consideraes Iniciais ....................................................................................
51 Interdiscurso: o sentido segundo tomadas de posio............................. 51
Heterogeneidade Enunciativa: o eterno dizer do outro ............... 60 Matriz de interdiscursividade: a operao de fraes ................ 64
Sobre Formao Discursiva: o que pode e deve ser dito.......................... 65 Memria discursiva: a condio do legvel ........................................... 67 A forma-sujeito: a evidncia da interpelao......................................... 68 Instncia enunciativa sujeitudinal: constituio pela outricidade ......... 70 Gnero discursivo venenos ou tranqilizantes no discurso miditico.... 71
Consideraes finais .................................................................................. 76 CAPTULO 3 Interdiscursividade na enunciao Selees ................................................... 81
Anlise de corpus ...................................................................................... 88 Textos I e II: Comer o que quiser... e Alimentos que renovam sua energia ........................................................................................
89
Textos III e IV: Volte a comer o que era proibido e Fast-food j! ......................................................................................................
112
Textos V e VI: A dieta adoro comer e A dieta do leite .......... 126 Consideraes finais .................................................................................. 139
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................... 145
ANEXO 1 ............................................................................................................... 150
ANEXO 2 ............................................................................................................... 184
Introduo E disse Deus: Haja luz!
E houve luz! (Gnesis 1:3)
Consideraes Gerais
H teorias lingsticas que explicam com mais propriedade como se faz coisas
com as palavras, todavia, podemos dizer que, para a Anlise do Discurso, a relevncia
de iniciar o trabalho sob esta epgrafe, consiste em verificar nos dizeres bblicos da
criao do mundo, pela interdiscursividade e heterogeneidade, que h um real.
Para ns, o real tem a ver com o carter material do sentido, tomado como o
elemento ideolgico que estabelece relao entre a materialidade lingstica e a
significao.
Trata-se de uma hiptese fundamental para a nossa perspectiva terica: no h
dizer novo. Este o objeto da nossa investigao: a interdiscursividade que se apresenta,
pelo repetvel, no universo da enunciao. Esse foi o alicerce sobre o qual construmos
nossa hiptese.
Esta dissertao tem a finalidade de, sob o referencial terico-metodolgico da
Anlise do Discurso de linha francesa, analisar enunciados da revista Selees, visando
a explicitar os efeitos de interdiscursividade em textos, tomados como manifestaes
enunciativas, cuja temtica aborde a alimentao, de modo a promover uma
interpelao, constituio, identificao e inscrio em formaes discursivas
subjacentes a esses enunciados.
A pesquisa tambm tem a finalidade de analisar e descrever quais so as
formaes discursivas que integram as condies de produo dos textos, de forma que
sejam constituintes de uma produo de sentidos. Sabe-se que as condies de produo
incidem sobre o contexto scio-histrico e ideolgico nos quais os sujeitos se inscrevem
e formulam os textos, e, tambm, as posies nas quais eles se situam e enunciam.
nesse sentido que tomamos como relevante os elementos constitutivos que cercam a
produo do texto.
20
A motivao para a referida pesquisa, que foram as reflexes acerca da
multiplicidade de sentidos que podem ser apreendidos, levar em conta que os sujeitos
esto envolvidos num contexto em que transformaes acontecem, aparentemente, de
forma muito rpida e atingem a sociedade em vrios campos, produzindo efeitos dos
mais diversos, ao re-significar de dizeres.
Notamos que o estabelecimento da verdade do momento se realiza pela
linguagem, ou seja, uma instncia enunciativa sujeitudinal, enquanto lugar discursivo,
torna-se exposta a um dizer e por ele interpelada.
nessa lgica que a revista Selees enuncia e se constitui instncia
interdiscursiva de materialidade enunciativa que se apresenta como Lugar Social
Miditico. Faz-se a partir da, supor que l, nessa instncia sujeitudinal Lugar Social
Selees, temticas repousam na contradio e confluem, ora para o senso-comum, ora
para um carter metodolgico e positivista da cincia. Tal confluncia poder ser
explicitada a partir de uma investigao que aborde a interdiscursividade subjacente a
esse espao enunciativo, tomando-o como portador de atravessamentos que implicam a
sua constituio enquanto materialidade lingstica (SANTOS, 2007b).
Alm disso, as manifestaes enunciativas da revista Selees parecem deixar
transparecer um dizer imperativo, hierarquizado, que fomenta uma interpelao de uma
instncia enunciativa sujeitudinal. Trata-se, portanto, de como a forma-sujeito do
discurso, que interpelada ideologicamente, se inscreve em determinadas formaes
discursivas e no em outras.
Em vista disso, desenvolveremos, em nosso estudo, as noes de interdiscurso,
forma-sujeito, formao discursiva, e gnero discursivo.
Contextualizao da pesquisa
O propsito inicial era analisar como a revista Selees, ao longo de 65 anos
completados em 2007, contribuiu na constituio da identidade brasileira de leitores de
manifestaes enunciativas miditicas. Dada a amplitude do corpus, dispusemos apenas
iniciar uma jornada, que pode fazer parte de uma pesquisa maior, recortando o espao
de interdiscursividade em dada condio de produo, por julgarmos relevante abordar
21
os atravessamentos subjacentes a essa discursividade, presentes nessa dimenso
linguageira, considerados na perspectiva de uma instncia enunciativa sujeitudinal.
A revista Selees uma publicao do tipo almanaque, em que circulam textos
diversos, com nfase especial sade fsica e mental. Seu cnone, isto , a apresentao
de seus propsitos e dos elementos que caracterizam a revista, desde sua fundao em
1922, pode ser encontrado na edio de maro de 2007 (p. 40-52), uma edio
comemorativa de 65 anos de publicao no Brasil, na qual esto registrados seus
objetivos: disponibilizar uma seleo dos melhores e mais teis artigos j publicados,
utilizando uma linguagem condensada.
Trata-se, portanto, de uma publicao destinada desde o princpio a atender um
pblico que se interessasse por textos condensados, escolhidos, segundo seus prprios
critrios, entre os melhores publicados pela imprensa.
A discursividade que se instaura na publicao em anlise circula aparentemente
sem restries entre as camadas culturalmente mais privilegiadas da sociedade,
atendendo a uma gama de expectativas que busca permanentemente segundo um dizer
que circula repetidamente na mdia a juventude, a beleza, um corpo perfeito e
saudvel.
Considerando as promessas da cincia de, pelas boas escolhas alimentares, se ter
uma vida mais longa, produtiva e mais livre de doenas, enfocaremos um fundamento
desse vis polmico que promove um constante apagamento/silenciamento de uma
anterioridade enunciativa, contestada sem maiores questionamentos, mesmo que seja
diametralmente oposta a esta outra orientao. Ou seja, um dizer que possua status de
dogma desautorizado, sem explicaes plausveis que justifiquem essa inverso de
costumes e hbitos.
Dessa forma, observamos que os textos parecem seguir um critrio de no se
apresentarem como prescritivos, no sentido de um intuito explcito de injuno, de
terem como finalidade regular antecipada e explicitamente uma ao, algo em torno da
funo de receita mdica.
Uma das hipteses para esta posio a determinao precisa de evitar uma
aparncia de propaganda enganosa, o que implicaria retirar o lugar de credibilidade que
atribudo publicao. Esse procedimento pode ser justificado se existirem
regularidades nos textos que se vinculem a uma formao discursiva do senso comum,
22
que se configurem a partir de pr-construdos, discrepncias que emergem como se
tivessem sido pensadas antes, em outro lugar, independentemente (PCHEUX, 1988,
p.156).
A noo de credibilidade na mdia no corresponde a um conceito de verdade,
no sentido de compromisso com uma realidade. Talvez equivalha a uma verdade
construda sob os prprios interesses da mdia, enquanto instncia-sujeito. Assemelha-
se, de certa forma, religiosidade ou superstio, quando a experincia no pode ser
repetida e aceita como verdadeira porque algum, a quem se atribui autoridade para
tal, assim o disse.
No caso da revista Selees, possvel verificar que atravs dos anos, desde
1942, uma relao foi sendo construda de forma a determinar qual imagem, como
instncia enunciativa, fosse refletida do ponto de vista do outro, a saber, uma revista
sria, til, dirigida a uma elite cultural.
Esses sintomas podem ser apreendidos, rapidamente, apenas passando os
olhos pelas capas de alguns nmeros, para identificar a regularidade temtica. Essa
regularidade se confirma a partir da descrio de casos de superao, quais sejam:
doenas graves, ou outras dificuldades vencidas, no mais das vezes com um desfecho
feliz.
A parte relevante para a pesquisa diz respeito imagem que a revista busca fixar
de seus propsitos culturais e cientficos. Propsitos esses voltados alimentao e
sade.
Em primeiro lugar, preciso reconhecer que o sentido da ideologia para a
Anlise do Discurso e como funciona nesta pesquisa , explicita-se como uma
posio de natureza prioritariamente social, voltada para uma poltica de globalizao,
descomprometida com os efeitos prticos dos processos poltico-ideolgicos pontuais
que possam advir dessa posio social recortada.
Considerando que uma instncia enunciativa sujeitudinal mantm inscries
imaginrio-scio-ideolgicas, no podemos descartar a possibilidade de uma
transposio de sentidos, que faa prevalecer uma posio de classe dominante,
produzindo um efeito de naturalizao da realidade.
Nesse sentido, podemos investigar se ocorre nos enunciados em estudo uma (re)
atualizao ideolgica, quer dizer, sabendo que as pesquisas cientficas acarretam
23
mudanas de perspectivas e, at mesmo, apagamentos/silenciamentos de dizeres
anteriormente estabilizados, questionamos como o resultado de uma ltima pesquisa
pode refutar uma anterior a ela. Trata-se de uma indicao de alteridade, cujos
atravessamentos interdiscursivos nos interessam.
Conseqentemente, empreendemos verificar a presena de atravessamentos
interdiscursivos na enunciao miditica, que podem ser identificados como um
mecanismo de alteridade enunciativa, posto que o atravessamento interdiscursivo
funciona como um dispositivo que ativa a presena outra.
relevante notar que a enunciao cientfica pode no emergir apenas em sua
especificidade, mas tambm, pode vir interpelada pelo que a ideologia determina que
seja dito.
Para Foucault (1992b, p. 183), o poder uma ao, mesmo enquanto
possibilidade concentrada ou difusa, sustentada pela instituio, ou ainda,
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que s funciona em cadeia. Nunca est localizado aqui ou ali, nunca est nas mos de alguns, nunca apropriado como riqueza ou bem. (FOUCAULT, 1992b, p. 183).
Dessa maneira, o recorte de mundo apresentado em cada matria da revista
aparentemente funciona como uma ordem discursiva, resultado de uma inscrio
sujeitudinal.
Tendo em vista o exposto, parece que a temtica da alimentao na revista
Selees produz, predominantemente, efeitos de aconselhamento sustentados pelo dizer
cientfico. Nesse sentido, questionamos a relao (possvel) entre esse modo de
enunciao e sua subjacente influncia ideolgica.
A revista Selees Readers Digest
Surgida no incio dos anos vinte, no sculo passado, a revista Selees chegou ao
Brasil em 1942, superando, em sua distribuio, a tiragem de todos os pases de lngua
espanhola da Amrica Latina. Porm, na dcada de setenta, suspendeu as atividades no
Brasil por causa da instabilidade econmica que culminou com a altssima taxa de
24
inflao pela qual o pas passou. O atendimento ao pblico brasileiro se deu via
Portugal, que se tornou sede da edio em lngua portuguesa, com sua distribuio
diminuda no Brasil de quase 500 mil para 110 mil exemplares.
Em 1995, com o Plano Real, a impresso voltou a ser feita em territrio
nacional. Em 1999, o editor Srgio Charlab assumiu a diretoria e instaurou a
aproximao com o pblico brasileiro, promovendo a participao dos leitores
nacionais, principalmente com a seo Queremos rir com voc, que premia
contribuies que venham a ser utilizadas por Selees: artigos, piadas, histrias reais.
A seo uma pgina fixa que abrange trs formas de premiao. Os menores valores
so oferecidos para as sees: Rir o melhor remdio, Heris de hoje, S no
Brasil, Sua vida e Entre aspas. Um valor mdio para Flagrantes da vida real,
Ossos do ofcio e Piadas da caserna e, finalmente, o maior prmio pago ao envio
de artigos de outras publicaes (Selees, outubro, 2005, p.83).
Seu conceito contar histrias que emocionam, abordando importantes
assuntos relevantes do dia-a-dia e inspirando uma vida melhor. Sua sede fica em
Pleasantville, Nova York. Segundo sua pgina de apresentao na rede, de onde
extramos as afirmaes aspeadas deste subttulo, existem 48 edies em 19 lnguas,
alm de a revista circular por mais de 60 pases.
Objetivo geral desta pesquisa desenvolver uma anlise discursiva,
identificando elementos de uma interdiscursividade sobre a alimentao, a partir de
seqncias discursivas apreendidas nos textos: Comer o que quiser; Alimentos que
renovam sua energia; Volte a comer o que antes era proibido; Fast-food j; A
dieta adoro comer; A dieta do leite (conforme o anexo 1). Trabalhamos com uma
metodologia analtico-comparativa, fundamentada pela rede conceitual da Anlise do
Discurso de linha francesa, desenvolvida a partir da identificao de conceitos
operadores dessa percepo analtica.
O primeiro momento da pesquisa consiste no exame das seqncias discursivas,
a fim de explicitar efeitos da interdiscursividade nos dizeres sobre a alimentao como
instauradores de uma inscrio discursiva transversa. A partir dos resultados do exame
das seqncias discursivas, propomo-nos a descrever as formas de inscrio enunciativa
em formaes discursivas desses dizeres sobre a alimentao.
25
O exame das seqncias discursivas tomar por referncia uma reflexo sobre as
condies de produo, com o intuito de determinar como o processo de
interdiscursividade constitui a enunciao em Selees.
Algumas referncias tericas relevantes
Fundamentamos este estudo com os conceitos de interdiscurso, sujeito,
ideologia, forma-sujeito, formao discursiva e sentido. a partir da noo de sentido
que buscamos verificar as articulaes e os desmembramentos dos demais conceitos.
Entendemos que a articulao sujeito-ideologia determina, grosso modo, o
sentido. Tal relao pode ser explicitada e compreendida na tenso entre os dizeres, ou
seja, o conflito, que subjaz significncia dos enunciados conduz a anlise
especificidade de cada recorte no processo de interpretao e percepo de suas
ocorrncias.
A seguir antecipamos de maneira breve os conceitos de interdiscurso e sujeito,
que analisaremos mais detidamente no captulo 2. Temos como relevante essa
antecipao pela perspectiva de uma contextualizao terica mais acuidada das
finalidades desta pesquisa. Isso quer dizer que neste momento aproximaremos mais os
conceitos para a leitura do captulo 1, no qual trabalhamos conceitos acessrios como
indstria cultural, da ps-modernidade e do devir.
Efeitos da interdiscursividade: interdiscurso, memria discursiva e formao discursiva
Pontualmente, o conceito de interdiscurso diz respeito s relaes de sentido que
se estabelecem no conjunto dos j-ditos, havendo nas regularidades dessas relaes um
jogo de desigualdade-contradio-subordinao. Pelo interdiscurso uma dada formao
discursiva domina as demais, pela via das inscries ideolgicas que determinam as
posies sustentadas pelo sujeito. (PCHEUX, 1988, p.160)
Como foi estabelecido por Pcheux, o interdiscurso define-se como memria
discursiva, que no tem relao com a memria cognitiva ou com os sentidos atribudos
26
memria como lembrana. Neste caso, dizeres que se constituem historicamente
surgem nas manifestaes discursivas produzindo significao.
Ao enunciar, o sujeito se inscreve em dada formao discursiva que determina o
que pode e deve ser dito, definindo que o dizer seja constitudo pelo j-dito. O j-dito,
sob a incidncia da situao, tem seu sentido atualizado, ou melhor dizendo, (re)
significado, uma vez que ele passa por um processo no qual, ao enunciar um j-dito,
outros sentidos so constitudos.
A formao discursiva, por sua vez advm de uma formao ideolgica que
numa anterioridade discursiva tenha interpelado o indivduo em sujeito. Desse modo,
para Rasia, a concepo de formao discursiva para Pcheux indica que:
A FD , por excelncia, o lugar de dissimulao da dependncia ao complexo das formaes ideolgicas, e tal se d porque ela se institui de modo que os sentidos ali postos parecem transparentes, como se estivessem suspensos, independentes de uma inscrio, e ao mesmo tempo como se pudessem estar em qualquer lugar e de qualquer modo. E isso se d assim porque cada FD realiza a incorporao; dissimulao dos elementos do interdiscurso lugar de disperso dos enunciados a partir de uma unidade imaginria do sujeito. (RASIA, 2008, mimeo)
Dessa forma, segundo essa autora, ao identificar-se com a FD que o constitui,
pela forma-sujeito, o sujeito do discurso simula o interdiscurso no intradiscurso, este
entendido como o lugar de linearizao dos enunciados (RASIA, 2008, mimeo).
A rede discursiva , assim, tecida e fundada sobre vozes constitutivas da histria,
num movimento permanente e contnuo de retorno ao que j foi dito, para que seja
significado.
Essas vozes constitudas nesse movimento permanente e contnuo de retorno ao
que j foi dito representam aquilo que Bakhtin chamou de dialogismo. Esclarecendo
rapidamente o sentido de dialogismo para este autor, dizemos que dada uma dimenso
social da linguagem, considera-se a impossibilidade de que um dizer venha a ser
individual. Bakhtin considerava, portanto, a elaborao linguageira em um carter
coletivo (BAKHTIN, 1995, p. 158), partindo do princpio de que duas vozes so o
mnimo de vida (BAKHTIN, 2005, p. 257.
27
Assim, entendemos que a interdiscursividade compreende o dialogismo, no
sentido exposto por Bakhtin, que se configura nas enunciaes pelos atravessamentos
discursivos.
Do sujeito para a forma-sujeito
O efeito da circulao do discurso no deixa de demonstrar a iluso que o sujeito
tem de ser fonte de seu dizer e, como tal, posicionar-se como se fosse realmente a
origem desse dizer. Situando-se no entrecruzamento de diferentes discursos, o sujeito
inscrito numa discursividade, posicionando-se scio-historicamente (PCHEUX, 1988,
p.160-3).
Introduzido por Althusser, o conceito de forma-sujeito a maneira como o
sujeito se reveste para poder tornar-se agente de alguma prtica social (idem, ibidem
p.183). Para se constituir, o sujeito do discurso se identifica com uma formao
discursiva, submetendo-se a um esquecimento de sua determinao, mas que lhe oferece
a iluso da unidade.
Assim, mediante o esquecimento, o interdiscurso se reinscreve e atravessa o
discurso do sujeito, ou seja, o sujeito se constitui por meio de um efeito de evidncia
que o faz coincidir consigo mesmo num dado lugar, que vazio, mas que, pela ao da
ideologia, institudo. Seu preenchimento se d pela designao da forma-sujeito, que
assume o dizer da formao discursiva na qual se inscreve.
Destarte, o sujeito do saber, enquanto forma-sujeito, ou sujeito histrico de uma
dada formao discursiva revela as formaes discursivas em conflito e funciona
simultaneamente, no interior de um enunciado, quando por um processo de
incorporao-dissimulao, retoma os elementos do interdiscurso.
Sendo assim, verifica-se que o sujeito constitudo pela falha, devido ao fato de
a linguagem no ser transparente, no ser representao duplicada da realidade. Essa
propriedade permite que o dizer sempre possa ser dito de outra forma. Dessa forma,
ocorre para Pcheux a metaforizao do mundo, pois para este autor a metfora nada
mais que um processo de substituio de palavras, uma palavra pela outra
(PCHEUX, 1988, p.262-3).
28
Dessa forma, o movimento, causado pelo atravessamento da formao discursiva
por meio do interdiscurso e pela alteridade com outras formaes discursivas, determina
que para a enunciao h uma instncia (lugar) e h um momento (tempo) que se
singulariza. O resultado, uma circularidade, o movimento que determina o sentido que
se constitui no interior de uma formao discursiva e do qual o sujeito uma instncia
enunciativa.
Algumas consideraes metodolgicas sobre o encaminhamento da pesquisa
Apoiamo-nos, para o trabalho de pesquisa, no mtodo analtico-interpretativo
fundamentado pelos procedimentos terico-metodolgicos da Anlise do Discurso de
linha francesa.
Porquanto, a relao sujeito e sentido o gatilho para a instaurao de toda e
qualquer significao, tomamos como prioritria a abordagem da significao no
funcionamento do sentido demandado pelo sujeito na constituio dos processos
enunciativos (SANTOS, 2004a, p.109). Alm disso, parafraseando Pcheux podemos
dizer que no h linguagem sem sujeito, nem sujeito sem linguagem, assim, o
processo enunciativo se move rumo significao produzida a partir dos efeitos de
sentido.
Mas que sentidos? Sabemos que os sentidos no esto postos, eles no so fixos,
antes esto em constante movncia pelas posies sustentadas pelos sujeitos que
enunciam as palavras, expresses e proposies (PCHEUX, 1988, p.160), pelo que
resultam os efeitos de sentido. Os sentidos no se restringem, portanto, a uma nica
acepo, suas acepes se configuram a partir da conjuntura de significaes pelas quais
ocorrem no interior de cada enunciao.
Assim, justificamos nossa opo pelo mtodo analtico-interpretativo, uma vez
que reunimos textos que julgamos representativos, para uma anlise de seqncias
discursivas que serviro de objeto para a busca de uma problematizao da hiptese
colocada, a saber, que as manifestaes enunciativas do discurso miditico so ndices
de enunciatividade1 no funcionamento de enunciados operadores de interdiscurso.
1 Conjunto de propsitos contidos na praxis social de um sujeito, declaradas em suas aes e colocadas em uma situao especfica de atribuio de sentidos (SANTOS, 2004, p. 116).
29
Esta dissertao, portanto, compe-se de uma introduo na qual a pesquisa
apresentada e contextualizada; o Captulo 1, que trata da contextualizao de conceitos
acessrios (da indstria cultural, da ps-modernidade e do devir), mas relevantes para o
conjunto da pesquisa; o Captulo 2, que consiste de uma exposio mais detalhada do
arcabouo terico que norteou o estudo; o Captulo 3, o ltimo, no qual ordenamos a
anlise do corpus selecionado e por fim, as consideraes finais sobre os
encaminhamentos estabelecidos para a pesquisa aps a anlise do corpus.
CAPTULO 1
O DEVIR FLUIDO DO INABALVEL
CAPTULO 1
O Devir Fluido do Inabalvel
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiana;
Todo o mundo composto de mudana, Tomando sempre novas qualidades.
Cames
Consideraes Gerais
Buscamos, neste captulo, apresentar noes que compem as condies de
produo nas quais fundamos a pesquisa, no permeio da ordem scio-histrica que
interpela e constitui um funcionamento discursivo. Neste caso, problematizamos esta
pesquisa a partir da hiptese de que as manifestaes enunciativas do discurso miditico
so ndices de enunciatividade no funcionamento de enunciados operadores de
interdiscurso.
Trata-se o enunciado operador de interdiscurso como um enunciado que atua
sobre vrias discursividades, reunindo-as sob a gide do interdiscurso. Por conseguinte,
o enunciado operador produz, pelas conexes transversais, a significao. A esse
movimento produtor de significao chamamos ndice de enunciatividade.
Entendemos, ento, que h um processo que se historiciza, mediante as
condies scio-histricas que perpassam o sujeito, interpelando-o, no sentido de passar
a se compor a partir do espanto do homem, como uma interpelao constante do
conhecimento.
Esse espanto parece ter se encaminhado, por um lado para a filosofia, em sua
nsia de conhecer e desvendar os mistrios do mundo e da alma humana e, por outro
lado, para uma condio ritual, de espiritualidade, que sublimasse esse espanto, como
uma oposio ao elemento material, enquanto comum, ou cotidiano, a saber, a religio.
Gostaramos, assim, de introduzir este captulo com uma reflexo de Walter
Benjamin sobre a evoluo da arte para a mdia. Para este autor, advm da relao
inicial da arte com a religio, um resqucio ao qual denomina aura, a condio
singular da arte. Com a reprodutibilidade tcnica (BENJAMIM, 1996, p.82), efeito da
34
reproduo da obra de arte, possibilitado pela tecnologia fotografia, cinema essa
aura transforma-se.
, ento, possvel relacionar emergncia da mdia, correntemente, as
circunstncias advindas da exposio da imagem desde o surgimento da fotografia que,
segundo Benjamin, aproximou o rosto humano do pblico, deflagrando a perda da
aura, ou seja, o princpio originrio da arte como ritual e o que a determina como arte.
Essa ruptura se d como efeito da possibilidade da reproduo em srie, da
reprodutibilidade tcnica, nas palavras de Benjamim (1996, p.82).
Para esclarecer sobre o modo como olhamos para a mdia, nesta pesquisa,
assentamos que se trata de uma fase posterior da condio humana que se sucede a
partir, em primeiro lugar, do espanto do homem diante do mundo; a seguir, esse espanto
deriva uma assimilao do mundo pela via do ritual, da religio. Na fase seguinte, esse
ritual se transforma em arte, projetando sua subjetividade, para finalmente, fixar-se em
repeties que denunciam uma mesmice que se desloca nessa fase localizamos a
mdia, que reunindo todos esses vestgios no representa nenhum deles. Como a mdia
se fundamenta na repetio, esses vestgios ainda podem ser visveis como um efeito de
parecer ser.
a fora desses vestgios que provocam a iluso de que a mdia pode espantar,
divinizar ou deter um estatuto de arte no qual os participantes de seu jogo podem ser
tratados como dolos, produzindo sobre a opinio pblica efeitos de sentidos de
credulidade e fascnio. Na instncia enunciativa Selees esse efeito recai como uma
voz onipotente que pode dizer a cada hora uma verdade diferente, negando
questionamento, quando uma nova outra verdade declarada.
Nesse sentido, os conceitos que passaremos a expor, a saber, aqueles ligados
indstria cultural, Cultura de Massa, ps-modernidade e ao devir, inclusive em suas
variveis, so apenas a superfcie de discusses extremamente intricadas, as quais no
sero tratadas com o merecido aprofundamento face aos nossos objetivos aqui. A
finalidade desta pesquisa se direciona para os efeitos da historicidade sobre a rede de
sentidos que se organiza em torno dos textos, que ora investigamos.
Tais conceitos, no entanto, esto aqui apresentados tendo em vista que os
consideramos imprescindveis para arrazoar sobre nossas proposies e melhor
ambientar a presente investigao.
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Visto que o objeto desta pesquisa consiste de textos, caracteristicamente,
miditicos, pertinente balizar o espao no qual eles operam, de modo que se verifique
como, constitutivamente, seu funcionamento produz argumentos, no sentido de
instrumentalizar e dar suporte para a hiptese levantada aquela de que os enunciados
operadores de uma discursividade se remetem a uma interdiscursividade que interpela
efeitos de verdade.
Assim, abordaremos, alguns fundamentos sobre os conceitos de Indstria
Cultural e Cultura de Massa, bem como, o de Ps-modernidade, no negando, contudo,
a circularidade e interdependncia de tais conceitos.
Indstria Cultural: a contradio entre a heterogeneidade e a semelhana
possvel dizer que a Revoluo Industrial exigiu uma mudana em relao ao
modo de perceber a cultura, em funo das alteraes no modo de conceber a produo
pela via da economia, sob efeito do impacto da tecnologia e as exigncias de consumo
decorrentes. Ao substituir o trabalho do arteso pelo trabalho em srie das mquinas,
surgiu a necessidade de provocar o aumento do consumo de bens.
Dessa necessidade advm o incremento da Indstria Cultural. Para pensar
Indstria cultural, supomos ser necessrio recorrer ao que se costuma conceituar com o
termo Cultura de Massa, e, conseqentemente, o que vem a ser cultura. Assim,
inicialmente, indicaremos a acepo de cultura de que nos valeremos, tendo em vista a
complexidade do conceito.
Para os fins desta pesquisa, inicialmente, profcuo o conceito sociolgico,
segundo o qual a cultura representa a totalidade de saberes e relaes peculiares aos
indivduos de certo grupo e que lhes confere uma identidade no grupo a que pertencem,
assim como tambm, determina-lhes maneiras de proceder.
Para Giddens (2004):
A cultura consiste nos valores de um dado grupo de pessoas, nas normas que seguem e nos bens materiais que criam. Os valores so idias abstratas, enquanto as normas so princpios definidos ou regras que se espera que o povo cumpra. As normas representam o permitido e o interdito da vida social. (Giddens, 2004, p.22, grifos do autor)
36
Para os fins desta pesquisa, julgamos ser relevante mencionar os procedimentos
contrastantes, impostos sob efeito da cultura, a saber, a permisso e a interdio.
Esclarecemos que utilizamos esses dois conceitos como o que socialmente autorizado
e o que a sociedade determina, pela historicidade, como inaceitvel.
A causalidade de tais antagonismos, no entanto, dissimulada nos processos
sociais, ou seja, no parece ser, mas conseqncia do autoritarismo de uma classe que
predomina sobre as demais, ou, nas palavras de Marx, da luta de classes.
Outrossim, no h, para a sociologia, culturas superiores ou inferiores, uma vez
que a cultura relativa, ou seja, s possvel interpretar uma atividade ou crena
humana em sua prpria cultura. Esse conceito foi desenvolvido a partir do pensamento
de Franz Boas e designado pelos seus sucessores como o relativismo cultural.
preciso, vista disso, distinguir o que seja Cultura de Massa de seu aparente
sinnimo, Cultura popular. Chartier apresenta um conceito, de forma sucinta,
assumindo que seja esquemtico. Este autor identifica a Cultura popular por dois
grandes modelos de descrio e interpretao (CHARTIER, 1995:1):
O primeiro (modelo), no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simblico coerente e autnomo, que funciona segundo uma lgica absolutamente alheia e irredutvel da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existncia das relaes de dominao que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependncias e carncias em relao cultura dos dominantes. Temos, ento, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distncia da legitimidade cultural da qual ela privada. 2 (CHARTIER, 1995:1)
Ento, possvel considerar que este autor afasta as manifestaes da cultura
popular daquilo que produzido pelas camadas letradas, e, nesse sentido, no se
subordina a uma possvel cultura dominante.
H, porm, simultnea e contraditoriamente, a idia de que a Cultura popular
submeta-se a uma dominao, diferindo-se de outra idia legitimada, designada
simplesmente cultura, visto que no necessitaria de um modificador, como o caso
do modificador popular para o nome cultura, que a habilitasse; todavia, poderia ser
2 Roger Chartier: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p.179-192. http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf, acesso em 5/1/2008, 9h52
37
identificada, tambm, como cultura erudita. Como vemos, a contradio est em
permanente funcionamento.
Se a Cultura popular representa o fazer do povo, no , de forma alguma, o que
ocorre Cultura de Massa.
O fenmeno da massificao j vinha sendo observado por Hegel
(BAVARESCO, 2003, p. 140-141), Nietzsche (NIETZSCHE, 2004, p. 99), Gramsci,
este ltimo atribua o predomnio e dominao das massas pelo estado capitalista
difuso da cultura deste. A isso, Gramsci designa hegemonia (GRAMSCI, 1995
p.13).
Nesses termos, o surgimento de meios de comunicao cada vez mais
abrangentes iniciou um processo irrefrevel de popularizao da informao,
conjuntamente absoro massiva de uma cultura capitalista.
O termo Cultura de Massa, mesmo sendo amplamente utilizado em nossos dias,
foi visto por Adorno com reservas e substitudo, com a publicao da Dialtica do
Esclarecimento, pelo termo Indstria cultural.
Para este autor, por mais que ele instrumentalize o conceito para trabalhar a
noo de Indstria cultural, identificar uma Cultura de Massa implicaria atribuir s
massas a propriedade da autonomia, conseqentemente, negar um certo mecanismo
ideolgico que, pela ao da mdia, monopolizaria a opinio pblica e produziria, assim,
algo como uma domesticao das massas.
Domesticao, alis, o termo que parece melhor qualificar a cultura
produzida a partir da Indstria cultural, no sentido de tomar a multiplicidade e a
complexidade cultural, como uma cultura selvagem, destituda de parmetros,
aproveitamentos, repeties, rpida assimilao e, conseqentemente, alta rentabilidade.
Essa perda exige o descredenciamento dessa cultura selvagem para a massa.
A Cultura de Massa, como noo, mesmo que contraditoriamente, ganha
visibilidade a partir das crticas de Adorno, de sua percepo de que a mdia no
abastece o povo apenas de informao e entretenimento. Assim, Adorno detecta o
avano tecnolgico no como o incio de um estado verdadeiramente humano, mas
uma nova espcie de barbrie (ADORNO, 1985, p. 11)
Em seu texto, Indstria cultural, Adorno nega que as transformaes nas
relaes ocorridas entre o homem e a religio, a sociedade, a economia e a tecnologia,
38
nos ltimos sculos, tenham originado o caos cultural da atualidade. Antes, atribui a
uma condio civilizatria moderna o carter da repetio que deriva uma
homogeneizao da singularidade, ou, em suas palavras, a cultura contempornea
confere a tudo um ar de semelhana (ADORNO, 1985, p.111).
Poder-se-ia, assim, dizer que h uma ao consciente e intencional dos postos de
comando, reconhecidos como o poder em sua acepo poltico-econmica, que se
propem a subjugar a vontade individual, alienando-a, de modo a faz-la coletiva. No
obstante, o termo poltico, aqui, no tem correspondncia direta com governo
institucional, assentando-se, antes, no mbito da formao de opinio (ADORNO, 1982,
p. 159-160).
Cultura de Massa representa, ento, o conjunto de elementos (filmes, jornais,
brinquedos, alimentos, comportamentos...) que a Indstria cultural produz e que
promove a cpia como objeto de singularizao pessoal, de forma que o consumo insere
o indivduo na sociedade e, concomitantemente, apaga suas caractersticas distintivas.
Dessa forma, a massa no tem uma cultura, porm, sofre uma cultura.
Adiante, constataremos como os dizeres da cincia, supostamente muito
particularizados, podem ser generalizados pelos meios de comunicao, desprezando
heterogeneidades sociais, tnicas, etrias, sexuais ou psicolgicas, e, mesmo assim,
gerando um efeito de credibilidade ao suscitar em seu pblico-alvo, representado pela
pessoa que l, uma iluso de aplicao individual daquilo que genrico.
Dessa forma, um dos dispositivos usados pelo aparelho miditico vem a ser o
esquematismo, que consiste em simplificar, resumir, generalizar. Para os fins desta
pesquisa, ento, tomaremos como texto esquemtico aquele no se prende aos
detalhamentos, antes, investe em aspectos que atraiam o pblico ao qual se destina,
pontuando que uma das caractersticas primordiais da Indstria Cultural demandar
lucro.
nesse sentido que Lyotard (2004, p. 69) denuncia a reduo das narrativas.
Este autor liga o momento Ps-Modernidade, termo que comeou a ser utilizado por
Ihab Hassan, para identificar uma outra mentalidade ou princpio considerado novo
(Weltanschaung). Antecipamos aqui algo que desfiaremos um pouco mais adiante na
subdiviso dedicada ps-modernidade. Sobre o texto esquemtico Lyotard considera:
39
Na sociedade e na cultura contempornea, sociedade ps-industrial, cultura ps-moderna (termo cunhado por Ihab Hassan), a questo da deslegitimao do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade. (LYOTARD, 2004, p. 69)
O esquematismo tem a ver com as aparas de aprofundamento que no respeitem
os parmetros de rapidez, atrativo e custo, exigidos pela Indstria Cultural e marca o
movimento de instaurao da ps-modernidade.
Ps-modernidade: a referncia se esvai
De acordo com os tericos consultados para esta pesquisa, asseveramos ser
impossvel demarcar rigidamente as fronteiras do conceito de ps-modernidade pelo seu
prprio gentipo descentrado.
O termo ps-modernidade foi utilizado primeiramente por Ihab Hassan, um
terico literrio nascido no Cairo, Egito, que emigrou na dcada de 1940 para os
Estados Unidos. Justificamos esta breve explanao sobre o sujeito emprico, Hassan,
dada a dificuldade que temos enfrentado para encontrar suas obras, simultnea
importncia que entendemos ser sua contribuio para os nossos estudos.
Hassan elaborou uma tabela esquemtica de diferenciaes com demarcaes da
modernidade e da ps-modernidade, que retiramos da Wikipdia inglesa para
demonstrar aqui.
Sobre a tabela, gostaramos de prevenir que inserimos setas bidirecionais para
pontuar a atemporalidade que interpela os termos.
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Modernidade Romantismo/Simbolismo
Forma (conjuntiva, fechada) Propsito Projeto
Hierarquia Poder/Palavra
Objeto de arte/ obra acabada Distncia (distanciamento)
Criao/Totalizao Sntese
Presena Centramento
Gnero/ Fronteira Semntica Paradigma
Hipotaxe (subordinao) Metfora Seleo
Raiz/profundidade Interpretao/Leitura
Significado Legvel
Narrativa/Grande Histria Cdigo Mestre3
Sintoma Tipo
Genital/Flico Parania
Origem/Causa Deus, o Pai
Determinao Transcendncia
Ps-modernidade Parafsica/dadasmo
Antiforma (disjuntiva, aberta) Jogo
Probabilidade Anarquia
Exausto/Silncio Processo/Desempenho/Acontecimento
Participao (envolvimento) Descriao/ desconstruo
Anttese Ausncia Disperso
Texto/Intertexto Retrica Sintagma
Parataxe (coordenao) Metonmia
Combinao Rizoma/Superfcie
Anti-interpretao/M(des)leitura Significante Escrevvel
Anti-narrativa/Pequena Histria Idioleto4 Desejo
Mutao Polimorfo/Andrgino
Esquizofrenia Diferena-Differance5/Trao
O Esprito Santo Indeterminao
Imanncia
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Ihab_Hassan (traduo nossa)
Uma vez que todo movimento humano carece de certo acordo universal o que
no se caracteriza como defeito, pelo contrrio, faz emergir a multiplicidade do
pensamento e uma conseqente necessidade de aproximao de diferenas, rumo a certo
padro de regularidades mltiplas so as aproximaes possveis para discernir o
conceito de ps-modernidade.
3 Parte comum e dominante de uma espcie de senha para habilitar/desabilitar algum processo (alarmes, games ...) 4 Uso individual da lngua que marca seu usurio pelas suas escolhas lingsticas. 5 Neologismo francs desenvolvido por Derrida da unio homfona entre os sentidos de adiar/deslocar e diferir/distanciar.
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Conforme a tabela apresentada, verificamos que no h pontos convergentes em
quantidade administrvel para se afirmar o que vem a ser, especificamente, a ps-
modernidade. Julgamos, assim, tratar-se de um conceito macro, de abrangncia
universal, e, simultaneamente, efeito de uma crise de referncia.
No , contudo, esta a nica razo que se configura como obstculo para tal
empreendimento. Outra causa relevante a possibilidade necessria, invarivel e
obrigatria de envolvimento subjetivo de todos aqueles que se disporiam, hoje, a falar a
respeito e a impossibilidade de um distanciamento necessrio para avaliar quais seriam
as reais caractersticas do momento e quais se restringiriam a uma minoria, no
chegando a influir no complexo das peculiaridades da ps-modernidade.
De qualquer forma, haveria uma grande lacuna neste trabalho se no fosse
mencionado um dos maiores agentes da citada crise de referncia, a saber, a
globalizao, provocada pela atenuao das fronteiras territoriais, entremeada pelo
barateamento e acessibilidade de comunicao e informao referimo-nos aqui aos
efeitos gerados pelo alcance mundial da rede de computadores.
Assim, no havendo uma rede de caractersticas fixas e unnimes aceitas como
marcas da ps-modernidade, adotaremos o rompimento com o pragmatismo do incio
do sculo XX como uma das primeiras marcas possveis de serem observadas.
Bauman (1998, p. 17) elabora um percurso da condio da ps-modernidade
desde Freud e suas reflexes sobre cultura e civilizao. Recorrendo ao conceito de
mal-estar neste autor, Bauman afirma serem redundantes as noes de cultura e
civilizao.
A relevncia de tal afirmao demonstrada ao se partir da noo de civilizao
para pensar o passado: escolha que se revela problemtica e que consiste em um
anacronismo. Tal perspectiva no compreende questionamentos e inquietaes inscritos
na histria, ou seja, o conceito de cultura ou civilizao distancia-se de uma
mentalidade da poca, no sentido kantiano de Weltanschauung (cosmoviso ou viso de
mundo), includo o sentido romntico-idealista.
Para a finalidade desta pesquisa, as concluses de Bauman (idem, ibidem p.17)
sobre a dissonncia entre os ganhos da civilizao e o preo a ser pago so
convenientes. Este autor considera a novidade que so tomando como parmetro a
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histria da humanidade , os hbitos e condutas ligados preveno de doenas,
manuteno da sade, ordem, beleza.
possvel que o elemento desencadeador desses procedimentos de promoo
sade tenha a ver com a limpeza, ou seja, hbitos de higiene. A descoberta da ao
patolgica dos microorganismos, observada principalmente em espaos hospitalares, e
evitvel por aes simples como lavar as mos, parece ter dado incio preveno como
uma prioridade sobre a conduta, quanto aos cuidados com a higiene.
Os ganhos da civilizao, da decorrentes, em bem-estar e longevidade, no
entanto, tm sua tributao paga em instabilidade, descrdito, medo, enfim, o
sofrimento que se tem convencionado chamar mal-estar. possvel que esse estado de
coisas derive as expectativas sobre a vida saudvel, materializadas nos dizeres sobre a
nutrio e a sade.
Sobre ps-modernidade no h acordo nem a respeito de sua prpria existncia.
Foucault (2002, p. 159) costumava rejeitar o rtulo, ao mesmo tempo em que se situava
no contrap do protesto contra a tradio. Sua obra, no conjunto, inscreve-se na
heterodoxia doutrinria cientfica e filosfica de sua poca, descentralizando, sobretudo,
as noes estveis sobre o saber e o poder. Isso dizemos para nos posicionarmos acerca
do territrio de fronteiras instveis.
Por outro lado, a interveno constitutiva da ideologia, nos moldes em que vai se
configurando o sculo XX, funcionando concomitante s transformaes tecnolgicas,
consolida essa mentalidade, como Weltanschauung, em sua diversidade, de
estilhaamento da referncia.
um ponto que pede flego para uma passagem interna, na qual o elemento
ps de ps-modernidade encaminha-se para um jogo lingstico. Bauman substitui o
radical modernism por hume, formando post-human (pstumo), numa aluso, sob
forma de desdobramento, a um possvel fim da humanidade, sua morte, talvez uma
perspectiva na qual o homem no fosse mais humano, mas uma ps-humanidade, uma
civilizao de no-mais-humanos.
Esse questionamento perpassa esta pesquisa, quando vislumbramos um bloco
humano-maqunico em funcionamento nos textos, no qual as funes vitais so como
que realizadas fora do corpo, em laboratrio, e, eventualmente, trazidas de volta ao
corpo que se pe como suporte das mais variadas possibilidades de reprogramao.
43
Todavia, Bauman, posteriormente, mudou. Principiando pelo axioma marxista
Tudo o que slido se desmancha no ar , volta-se, atualmente, a descrever o que, em
seus termos, vem a ser a modernidade lquida, marcada pela instabilidade e
inconsistncia das relaes.
Ao deixar para trs o fator definitivo que deixa entrever a relao existencial, o
pstumo e a instabilidade dos contornos fluidos em permanente deslocamento passam a
determinar a perspectiva da ordem das coisas.
Tal transformao permite que a pesquisa avance e se amplie rumo a outro
conceito prximo ao da noo de ps-modernidade, mas de razes mais profundas e
mais antigas: a noo de devir.
Devir: o mundo em movimento
Para o propsito da pesquisa, a noo de devir deve ser examinada. preciso
prevenir, porm, que, tambm, pode suscitar uma falsa impresso de que o conceito se
confunda com o de interdiscurso. possvel dizer que o devir se refere ao real, e o
interdiscurso o efeito do devir na linguagem, a discursivizao.
O real em Pcheux diz respeito ao carter material do sentido (Pcheux,
1988, p. 160) e esse princpio fica mais estendido em sua obra conjunta com Gadet, A
Lngua Inatingvel. Ali, o real se relaciona ao princpio atrs da palavra lei,
disposio atrs da palavra ordem, funcionamento atrs da palavra regra e sistema
atrs da palavra cdigo (GADET e PCHEUX, 2004, p.30, grifos do autor).
Da mesma forma, tomamos a noo de devir como antecedente, o sempre-j-a
do mundo das coisas sempre em processo de transformao pelo decorrer do tempo em
suas fraes. No entraremos aqui nas discusses levantadas pela teoria da relatividade
que, rompendo com a noo de tempo absoluto, rene tempo/espao numa mesma
combinao, extinguindo o fracionamento entre presente, passado e futuro.
Para assentar as diferenas entre devir e real, e detalhar as particularidades do
devir, bem como a pertinncia da noo para esta pesquisa, preciso ir aos primrdios
conhecidos da filosofia, no para definir, mas antes, adentrar essa regio instvel na
qual o devir se move.
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Talvez seja necessrio antecipar que o Devir se refere a um conceito filosfico
que investiga a mudana como fenmeno inerente e incessante de todas as coisas no
mundo.
Em Herclito de feso, possvel comear a delinear o carter desse conceito.
Prximo, mas no agregado aos primeiros filsofos cosmolgicos, Herclito conservou,
ainda, o princpio de um elemento fsico unificador primordial para toda substncia da
natureza: o fogo. Para este filsofo, do fogo e suas transformaes deriva o universo, ou
seja, do fogo como o princpio ou substncia primeira, por meio da condensao e
rarefao, so criados os fenmenos do mundo que se v.
A relao de contradio entre a unidade do ser e a multiplicidade das coisas em
permanente mudana e tenso , por Herclito, problematizada, e acaba por determinar
como princpio o Devir.
Assim, o conflito objeto sobre o qual Herclito se debrua e prope preceitos
que descrevem e avaliam o que possvel pensar sobre o mundo partindo do aforismo:
Tudo sempre flui ( /panta rei/) 6, nada perdura, antes, tudo est em
constante mudana.
Herclito exemplifica o conceito usando a metfora das guas de um rio, na qual
se verifica que mesmo que o rio permanea na mesma plancie e se designe pela mesma
nomeao, ser sempre outro, pela permanente mudana causada pelo correr de suas
guas.
Em constante mudana de elementos/componentes, o rio jamais reunir
novamente as mesmas partes que o constituram em dado momento. assim que
Herclito afirma que no se pode entrar duas vezes no mesmo rio, j que nem o rio, nem
a pessoa sero os mesmos. Contraditoriamente, porm, mantm a identidade.
De tal noo procede a composio da dialtica hegeliana. A realidade, para
Hegel, dicotomiza-se na contradio, entre ser e no-ser, entre o mesmo e o no-mesmo,
porm carece de prescries que sistematizem e compatibilizem a realidade ao
conhecimento humano. Assim, Hegel parte em busca da universalidade, tomando o
devir como a essncia: aquilo de que resulta a realidade, o que permanece, o que
hipostaseia (se constitui em substncia) (HSLE, 2007, p. 190-191). 6 , variao : de todas as partes, tudo, sempre; : verbo: fluir ( corrente de gua (Pereira, 1951, p. 415, 495).
45
Sob essa inspirao, o carter dinmico da realidade e sua multiplicidade levam
Nietzsche a propor a eterna reconstruo do ser, no sentido de que o ser est sempre a se
refazer, sempre em processo. Tal perspectiva demonstra o conceito de devir neste
filsofo, que determina que a verdade uma questo de interpretao.
Oportunamente, Deleuze e Guatarri retomam a noo para detectar a
constituio material de um territrio na iluso de continuidade da vida humana.
Dizemos iluso de continuidade pelo efeito de unidade que a permanente mudana
assumida pelo devir proporciona.
Para esses autores, o territrio ultrapassa a demarcao geogrfica,
compreendendo, entre outros, o elemento social, tecnolgico, cultural, ou o que quer
que venha a fazer coincidir algum consigo mesmo. sob esta perspectiva final que
repousaro as buscas desta/nesta pesquisa.
Dessa forma, entendendo que: Um devir no uma correspondncia de
relaes. Mas tampouco ele uma semelhana, uma imitao e, em ltima instncia,
uma identificao. (DELEUZE & GUATARRI , 1997, p.14 vol. 4), possvel
detectar que a ultrapassagem do devir sobre as relaes retifica o erro de reduzi-lo
mera evoluo de um ponto de vista gentico. No se trata disso:
... devir no uma evoluo, ao menos uma evoluo por dependncia e filiao. O devir nada produz por filiao; toda filiao seria imaginria. O devir sempre de uma ordem outra que a da filiao. Ele da ordem da aliana. (idem, ib., p. 15).
Ao que parece o devir abarca qualquer processo vital, como uma realidade,
um acontecimento que o faz avanar, no sentido de transform-lo, de fazer com que haja
permanente substituio de elementos constitutivos. justo afirmar que o devir no tem
compromisso com a coerncia, ou aquilo que se julga ser coerente, com o real, em
seguir um padro de causa e efeito.
Talvez, isso acontea por tratar-se de um processo sem fim, nem comeo
(PCHEUX, 1988, p. 295), de mudana. Nesse sentido, Deleuze & Guatarri (1997)
afirmam que:
Um devir no tem sujeito distinto de si mesmo; mas tambm (...) no tem termo, porque seu termo por sua vez s existe tomado num outro devir do qual ele o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. o
46
princpio de uma realidade prpria ao devir (DELEUZE & GUATARRI , 1997, p. 15).
Sobre as questes lingsticas, que coincidem com esta pesquisa, Deleuze e
Guatarri consideram o devir das palavras como palavras em sua anterioridade, em sua
constituio, no momento da passagem do real para o lingstico, uma palavra em
latncia, uma pr-palavra, porque ainda no palavra, mas j ocupa lugar no tempo e na
significao.
assim que o dizer considerado em seu tempo exato de enunciao, vista das
diferentes significaes que podem transform-lo (p. 16). Trata-se de um
agenciamento, isto , as palavras tomam corpo, assumem suas formas, contudo, no
deixam de sofrer intervenes de ordem poltica em seu valor. Assim, esses autores
justificam lnguas baixas e lnguas altas alegando que a unidade de uma lngua , antes
de tudo, poltica. No existe lngua-me, e sim tomada de poder por uma lngua
dominante, que ora avana sobre uma grande frente, ora se abate simultaneamente sobre
centros diversos. (idem, ibidem p. 36)
Tal tendncia, no entanto, no da ordem da essncia, do processo em sua
formao. Pois,
No existe uma pobreza e uma sobrecarga que caracterizariam as lnguas menores em relao a uma lngua maior ou padro; h uma sobriedade e uma variao que so como um tratamento menor da lngua padro, um devir-menor da lngua maior. O problema no o de uma distino entre lngua maior e lngua menor, mas o de um devir. A questo no a de se reterritorializar em um dialeto ou um patu, mas de desterritorializar a lngua maior. (idem, ibidem p. 43)
Para os fins desta pesquisa, marcamos estes nveis para a diferenciao das
possibilidades interdiscursivas e o devir como recorrncia.
A seguir passaremos a identificar um conceito derivado deste e que se mostra
profcuo para a anlise dos textos do corpus, especialmente no texto Alimentos que
renovam a energia.
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Devir-mquina: a aparelhizao corporal
A reformulao terica deleuziana trouxe para o centro da mesa questes
referentes multiplicidade, fragmentao, transformao do aparentemente
imutvel, a mutao percebida imperceptivelmente e que at depende de aparelhamento
cientfico.
A frutfera produo cientfico-filosfica dos ltimos sculos permitiu uma rica
gama de proposies que, como conseqncia, tornaram-se fundadoras de novas
discursividades (FOUCAULT,1992b, p. 58). O pensamento moderno intensamente
fragmentado por vertentes tericas ora racionalistas, ora empiricistas; ora vinculadas
exatido lgica, ora opacidade retrica, estabilizou-se na inconstncia, e para isso
armou-se de proposies refutveis.
nesse ponto que o abalo/organizao das mentalidades tem necessidade de
uma noo que abarque a mobilidade de esprito que ataca mais eficazmente o homem
a partir do sc. XIX. A acelerao tecnolgica, por sua vez, contribuiu para esse
despedaamento da identidade humana e uma possvel mutao evolutiva, rumo a
transformaes no mais apenas genticas de princpio biolgico, mas tambm
alteraes morfo-fisiolgicas.
Como se a inveno fosse se contaminando, o homem passa a ser interpelado por
mecanismos, ferramentas. O organismo passa gradativamente a conter tais dispositivos
e aparelhamentos maqunicos que prenunciam um estado hbrido, ciberntico, no qual,
paulatinamente, a linguagem vai contando tais transformaes. a instaurao do
devir-mquina que substitui o alimento por combustvel.
Devir-animal: a animalizao essencial
O devir, como um fluxo que no se estanca, impossibilita a repetio idntica, a
mesma coisa, mesmo momento, mesma pessoa. Dessa forma, h um tornar-se que no
consiste em dualidades ou relaes de equivalncia, contudo um entrelaamento de
pele, carne, ossos, desejo, que cliva o sujeito de modo a que no haja transformao
visvel, mas uma condio:
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Os devires-animais no so sonhos nem fantasmas. Eles so perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal no consiste em se fazer de animal ou imit-lo, evidente tambm que o homem no se torna realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa. O devir no produz outra coisa seno ele prprio. uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que real o prprio devir, o bloco de devir, e no os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou (Deleuze & Guatarri , 1997, p. 18).
Aquilo que rompe e promove o outro em si, sob a aparncia de mesmo o devir-
animal. Transforma-se na essncia, no na aparncia, sem, contudo, jamais chegar a um
termo.
Consideraes finais
No tendo a iluso de completude em acreditar ser possvel nos isentarmos de
tomar posio em relao aos aspectos aqui tratados, achamos relevante esclarecer que
procuramos nos abster de acusar de malfico nosso tempo vivido no sentido que
Husserl aplica relao humana com seu tempo.
A inconsistncia de tal acusao respaldar-se-ia em visualizar os tempos
vividos como culpados de, pelas circunstncias desta ou daquela falha catastrfica,
produzir humanos menos humanos, massificar os relacionamentos, mercantilizar a
cultura, metamorfosear o alimento, o modo e o objetivo de se alimentar, bem como a
noo de certo e errado.
A denncia qual nos dedicamos a denncia discursiva, que se verifica no
discurso, sob o amparo de seu movimento terico. Construir um juzo de valor,
apresentar um veredicto sobre benefcio ou malefcio, no nosso objetivo aqui, o que
nos exime de tomar partido numa contenda sobre a qual seria simplismo uma afirmao
concordante ou discordante que fosse irrestrita.
Temos captado os benefcios, a duplicidade de efeitos. ingenuidade investir
em renegar os benefcios: h que se considerar, em alguns casos, o valor de tais
conquistas.
No nvel da interdiscursividade, a multiplicidade promove a interpelao. Isso
significa que, nos atravessamentos do discurso, efeitos de sentido se constroem no s a
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partir dos dizeres, mas tambm, nos no-dizeres. Esta caracterstica constitutiva dos
discursos faz funcionar os textos do corpus de modo a que as noes aqui expostas
entrem na constituio da instncia enunciativa sujeitudinal Selees.
assim que o esquadrinhamento dessa instncia deixa entrever, pelas suas
escolhas temticas e pelas suas abordagens e adeses, seu prprio perfil discursivo,
estabelecido sob a influncia scio-histrica e ideolgica na qual se inscreve, e cuja
anlise pretende problematizar.
CAPTULO 2
ENTRE O DIZER E O DISCURSO
CAPTULO 2
Entre o dizer e o discurso Eu no tenho filosofia: tenho sentidos...
Alberto Caeiro
Consideraes Iniciais
Pareceria no haver muito mesmo a fazer, ao tomarmos a inscrio de sujeitos
falantes e interpelados, seno reconhecermos a condio de repetidores, uma conquista
dos dispositivos constituintes scio-histricos de assujeitamento. No entanto, a condio
de infinitude das variveis que atravessam a discursividade no permite simplificar a
questo.
As noes que seguem apiam-se em perspectivas outras que conferem ao
sujeito sua especificidade, ao se posicionarem na absteno da iluso de completude,
sob o escopo do funcionamento do devir, tal qual o descrevemos no captulo anterior,
como a constituio material de um territrio na iluso de continuidade da vida humana.
Interdiscurso: o sentido segundo tomadas de posio
O objetivo deste texto refletir sobre a noo de interdiscurso, a partir das
asseres apresentadas por Michel Pcheux em sua obra Semntica e Discurso: uma
crtica afirmao do bvio. O objetivo deste empreendimento elaborar uma base
terica para a anlise do corpus, um conjunto de textos pertencentes ao gnero
discursivo miditico publicado na revista Selees.
A demanda do corpus exige o esmiuamento da noo de interdiscurso para que
haja uma investigao sobre os dizeres propostos pela instncia enunciativa sujeitudinal
Selees. Tomamos um grupo de seis textos, nos quais emergem uma diversidade
interdiscursiva que nos propomos investigar.
Quando Pcheux introduz o termo interdiscurso em sua obra Semntica e
Discurso, ele o introduz a partir da noo de forma-sujeito. E assim o faz relacionando
a noo de interdiscurso noo de formao discursiva.
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Nesse sentido, h um dispositivo histrico, pelo qual uma forma-sujeito
enuncia na perspectiva de um lugar que se constitui ideolgico. Tal lugar o que
Pcheux chama de lugar deixado vazio. um lugar discursivo em que um sujeito se
constitui porque foi interpelado pela ideologia (PCHEUX, 1988, p.155).
Nessa direo, faz-se necessrio demarcar os efeitos que a historicidade faz
incidir sobre a lngua, de tal forma que o discurso emerge em condies scio-histricas
que se resultam constituintes do sentido, sem os quais o sentido no acontece, ou seja, o
sentido escapa.
Trata-se das condies de produo que se referem s exterioridades scio-
histricas que acompanham uma circunstncia e determinam a produo de sentido,
levando em conta sujeito e situao. Uma dada conjuntura cerca a enunciao, no se
resumindo transmisso de informaes, j que retratam efeitos de sentidos entre
locutores que se localizam em dada formao social.
Tomamos formao social aqui como a representao de espao constitudo de
um feixe de traos objetivos caractersticos que marca os lugares discursivos
mediante propriedades diferenciais determinveis (PCHEUX, 1990b, p. 82).
Como medida para evitar cair no erro terico de pensar que os processos sociais
que interpelam a produo de sentido so totalmente previsveis por se realizarem
sempre de uma s forma, Pcheux prope a noo de formao imaginria, a qual pe
em exame os processos de antecipao e as relaes de fora e sentido.
No processo de antecipao, o enunciador se acomoda ao jogo de imagens, no
qual avalia a imagem que tem de si e do outro, e o desdobramento dessas imagens em
relao, ora a um, ora a outro, de forma a tentar burlar o assujeitamento, pela via do
inconsciente, sob a iluso de completude de ter o domnio sobre o seu dizer.
As relaes de fora hierarquizam o dizer de acordo com o lugar social de onde
ele parte, e as relaes de sentido, por sua vez, determinam no haver discurso que no
se relacione com outro, o que aponta para a constitutividade ideolgica do discurso e,
tambm, para o primeiro aspecto do interdiscurso.
O primeiro aspecto do interdiscurso identificado por Pcheux, na obra citada,
sua relao de dependncia interna. Tal relao produzida pela inexistncia de um
sentido em si mesmo, como uma relao transparente com a literalidade do
significante (PCHEUX, 1988, p.160).
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No subsistindo ao sentido, ei-lo merc das posies ideolgicas que abalam a
atividade scio-histrica. o que Pcheux assume ao dizer que:
as palavras, expresses, proposies, etc. mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas nas quais essas formaes se inscrevem. (PCHEUX, 1988, p.160)
A determinao scio-histrica sobre as possibilidades de sentido aponta para o
carter aglutinador da lei de desigualdade-contradio-subordinao, a qual trabalha na
regulao do permanente deslocamento/reajuste de uma direo para o dizer. Isso quer
dizer que o sentido fica opaco por determinao interna do funcionamento do
interdiscurso, porque o que aparece no seria um conflito de significao no fio do
discurso, mas sim um sentido predominante do/no enunciado.
No havendo sentido fixo nas palavras, o mecanismo para essa constituio
necessria o interdiscurso, que se funda na causalidade de nunca, jamais poder ser
localizada a origem de um dizer. No h dizer novo. O trabalho que se instaura na
produo de sentido , assim, realizado pela via do interdiscurso.
Articulado pela eventualidade do dizer que anuncia j-ditos, o interdiscurso
constitui-se a partir do confronto de formaes ideolgicas que correspondem a
formaes discursivas, ou seja, o acontecimento social se discursiviza mediante a
linguagem, clivando-se na extremidade predominante, pela fora ideolgica que se
destaca e acolhe o complexo das formaes discursivas sob o interdiscurso.
Neste caso, estamos tomando por clivagem, a peculiaridade que alguns minerais
tm de facetar-se ao serem lapidados em determinadas direes, seguindo um padro
determinado pelas condies de constituio da pedra (a ser clivada).
Uma vez que uma determinao de inscrio ideolgica se impe/dissimula ao
sujeito, sob a aparncia de autonomia, tal determinao emerge na estrutura discursiva
da forma-sujeito por se identificar com uma dada formao discursiva no interdiscurso,
que a dominante. Melhor dizendo, h uma contradio que obscurece a subordinao e
que faz funcionar a forma-sujeito como estrutura discursiva, que vem a ser o sujeito do
discurso.
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A ideologia realiza, enunciativamente, esse lugar da evidncia. nesse lugar
da evidncia que o sujeito se constitui. O sujeito se coloca em um lugar discursivo por
meio de um processo de interpelao.
O interdiscurso, ento, vai aparecer como o todo complexo das formaes
ideolgicas (PCHEUX, 1988, p.162). Nesse percurso terico do interdiscurso,
necessrio perceber a conjuntura de funcionamento dos sentidos de outros discursos que
atravessam uma dada discursividade.
Assim, Pcheux afirma a mobilidade possvel do sentido, por meio de uma
dependncia intrnseca do sentido em relao s posies sociais, histricas e
ideolgicas que nele se materializam. As fronteiras do sentido so movedias e servem
de referncia para que haja sua inscrio em uma formao ideolgica.
Para Pcheux, (1988, p. 162):
toda formao discursiva dissimula, pela transparncia do sentido que nela se constitui, sua dependncia com respeito ao todo complexo com dominante das formaes discursivas, intrincado no complexo das formaes discursivas ideolgicas. (PCHEUX, 1988, p.162)
Nesse sentido, uma multiplicidade de formaes discursivas pode corresponder a
uma formao ideolgica dominante. A inscrio do sujeito em uma Formao
Discursiva pode ser determinante para a natureza do atravessamento interdiscursivo que
traspassar as inscries discursivas desse sujeito. Pcheux atribui ao imaginrio do
sujeito sua inscrio em dada formao discursiva sob o crivo de uma formao
ideolgica.
A identificao da forma-sujeito com a formao discursiva se d pela
identificao com alguns enunciados do interdiscurso e no com outros, que se
apresenta tanto por inseres de um pr-construdo, quanto pelas articulaes, resultante
de clivagens decorrentes do processo constitutivo do sujeito.
Pode-se dizer que a forma-sujeito realiza-se na identificao com a formao
discursiva historicamente determinada que regula dizeres oriundos de diferentes
formaes discursivas. Sua condio se estende sob a formao discursiva que o
domina. O interdiscurso, no caso, congrega as formaes discursivas num intrincamento
que determina uma dentre elas como a dominante.
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a instncia enunciativa forma-sujeito que se inscreve em manifestaes
enunciativas de pr-construdo. A esse respeito, Pcheux afirma que (1988, p.164):
(...) o pr-construdo corresponde ao sempre-j-a da interpelao ideolgica que fornece-impe a realidade e seu sentido sob forma de universalidade (o mundo das coisas), ao passo que a articulao constitui o sujeito em sua relao com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominao da forma-sujeito. (PCHEUX, 1988, p.164)
Pcheux, dessa forma, apresenta duas manifestaes do interdiscurso
determinantes daquilo que ele chama forma-sujeito, a saber, o sujeito do discurso e a
formao discursiva dominante.
O sujeito do discurso se identifica como o que, contingentemente, se localiza no
ponto inicial da enunciao, sob a iminncia de dizer.
A formao discursiva dominante, ento, entendida como a identificao (do
sujeito) com a formao discursiva que o domina, (isto na qual ele constitudo como
sujeito) (PCHEUX, 1988, p.163).
Esse funcionamento advm do fato de o interdiscurso aparentar uma forma de
atravessamento autnoma, que no sofre determinaes de sua condio, uma vez que
h uma determinao que se impe/dissimula ao sujeito sob a aparncia de autonomia e
que aparece na estrutura discursiva da forma-sujeito, porque se identifica com uma dada
formao discursiva na qual o interdiscurso se inscreve.
O pr-construdo e a articulao so os dois momentos que perfazem o
enunciado de modo a que o sujeito se inscreva de alguma forma em algum lugar
inacessvel anteriormente posto, uma vez que essa instncia enunciativa sujeitudinal tem
uma iluso de completude, que a faz sentir-se dona de seu dizer. O pr-construdo,
portanto, fornece um fundamento para que sua significao ocupe um lugar numa dada
formao discursiva.
O sujeito no se constitui ininterruptamente em uma condio de assujeitamento,
da mesma forma que o efeito da ideologia, enquanto exterioridade, institui o sujeito,
proporcionando um efeito ideolgico.
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Assim, o pr-construdo e a articulao conduzem a possibilidades de
significao na constituio dos sentidos. Tais noes so assim introduzidas por
Pcheux:
Um ponto aqui foi deixado em suspenso: diz respeito especificidade diferencial dos dois tipos de elementos do interdiscurso pr-construdo e articulaes) que repelidas as iluses idealistas que lhes concernem aparecem determinando o sujeito, impondo-dissimulando-lhe seu assujeitamento sob aparncia de autonomia, isto , atravs da estrutura discursiva da forma-sujeito. Retomaremos, aqui, a distino dominao-determinao para colocar que a formao discursiva que veicula a forma-sujeito a formao discursiva dominante, e que as formaes discursivas que constituem o que chamamos de seu interdiscurso determinam a dominao da formao discursiva dominante. A distino entre pr-construdo e articulao nos permitir avanar. (PCHEUX, 1988, p.163-4 - grifos do autor)
possvel dizer que o pr-construdo constitudo por uma anterioridade que
representa a concernncia ao que pr-existe ao sujeito e na qual ele se inscreve
independentemente de sua vontade ou propsito, mas por sua tcita insero na
sociedade pela via da existncia.
Talvez no fosse necessrio dizer, tambm, que a realidade (universalidade,
mundo das coisas) constituda de um pr-construdo funda-se na lei de desigualdade-
contradio-subordinao qual se submete o interdiscurso, uma vez que o pr-
construdo manifestao de interdiscurso. Contudo, pertinente realar o
assujeitamento que encobre a autonomia ilusria do sujeito identificado pela forma-
sujeito.
Se o pr-construdo representa os trmites constitutivos dos dizeres no decurso
da histria (enquanto relaes de poder) concernente ao social, a articulao remete ao
momento da enunciao, relao entre o sujeito e o sentido, ou seja, forma que essa
relao se d, de modo que seu acontecimento faz com que a forma-sujeito se submeta a
uma influncia. A influncia, que ideolgica, interpela o indivduo em sujeito, sendo
tal movimento realizado exclusivamente pela linguagem.
Ao inscrever-se ideologicamente o sujeito se identifica com uma dada formao
discursiva por meio do interdiscurso. Em outras palavras, a forma-sujeito se realiza na
identificao com uma formao discursiva dominante. O interdiscurso congrega o pr-
construdo, no qual o sujeito se insere ao constituir-se pela interpelao. No que se
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refere articulao, esta remete o sujeito ao momento da enunciao, em sua relao
com o sentido.
A articulao tambm identificada por um processo de sustentao e deriva
de uma linearizao de um discurso-transverso no intradiscurso, no funcionamento do
discurso com relao a si mesmo. o fio do discurso que coloca o interdiscurso
como um discurso transverso:
...o que chamamos anteriormente articulao (ou processo de sustentao) est em relao direta com o que acabamos de caracterizar sob nome de discurso-transverso, uma vez que se pode dizer que a articulao (o efeito de incidncia explicativa que a ele corresponde) provem da linearizao (ou sintagmatizao) do discurso-transverso no eixo do que designaremos pela expresso intradiscurso, isto , o funcionamento do discurso com relao a si mesmo. (PCHEUX, 1988, p.166).
A articulao funciona, tambm, incidindo sobre o interdiscurso numa relao
ora de equivalncia, ora de implicao (de equivalncia se os elementos substituveis se
encadearem numa relao de identidade, e de implicao se houver necessidade de um
encadeamento orientado, ou seja, quando a substituio dos elementos no for
simtrica).
Dessa forma, a articulao se faz mediante os elementos que se acham no pr-
construdo. O intradiscurso , ento, um efeito do desdobramento do interdiscurso sobre
si mesmo.
Pode-se dizer, assim, na medida em que o pr-construdo e o discurso transverso
funcionam na constituio de uma discursivizao, a interpelao ideolgica funciona
como uma antecipao, moldando o sujeito do discurso, ou seja, determinando-lhe
uma inscrio. Na verdade, o sujeito discursivo enuncia de uma dada formao
discursiva com a qual se identifica pela sua tomada de posio (PCHEUX, 1988,
p.214).
Assim, o assujeitamento efeito da interpelao ideolgica e relevante
acentuar que, ao mesmo tempo em que constitui enquanto uma instncia enunciativa
sujeitudinal, lhe proporciona iluso de autonomia, pelo primado do assujeitamento
como tornado sujeito (FIGUEIRA, 2007) 7. Assim, possvel dizer que, no fora pela
7 FIGUEIRA, LUIS FERNANDO DE BULHES Atravessamentos polmicos em estudos literrios. Uberlndia: MEL. Dissertao de Mestrado. 2007.
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linguagem, o sujeito no estaria submetido a uma ordem ideolgica, com todas as
implicaes que essa ausncia derivasse.
Porquanto, h diferentes modalidades no desdobramento da forma-sujeito, sua
dicotomizaco entre bom e mau sujeito so tidas por Pcheux como evidentes e
em sua totalizao compem o sujeito universal.
Trata-se de um efeito paradoxal, uma vez que o mesmo sujeito pode assumir um
ou outro lugar. H, nessas evidncias, o efeito dicotmico dos fundamentos
filosoficamente morais que incidem sobre o sujeito universal e que o desdobram de
modo que duas formas-sujeito apaream: a do bom-sujeito e do mau-sujeito
(PCHEUX, 1988, p.216).
Dessa forma, sob esta incidncia, surge, por um lado, o que Pcheux chama de
bom sujeito, ou seja, aquele que se identifica com o su