Anísio Teixeira- Educação Não é Privilégio Partes I, II e III

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  • 5/26/2018 Ansio Teixeira- Educao No Privilgio Partes I, II e III

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    ANSIO TEIXEIRA

    EDUCAO NO PRIVILGIO

    PARTE I

    TEIXEIRA, Ansio. Educao no privilgio. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Braslia, v.70,n.166, 1989. p.435-462.

    Educao no privilgio

    Educao para a formao "comum" do homem

    Na anlise da situao educacional brasileira, desejaria evitar toda tendenciosidade, emostrar, to imparcial e objetivamente quanto possvel, o desenvolvimento da escolabrasileira luz dos conceitos e das foras que nela atuaram.

    Tratando-se de instituio que corporifica idias e aspiraes sociais, imprescindvelcerta preciso em caracterizar tais conceitos e ideais, a fim de evitar as inteis e estreisconfuses, to comuns em nossas controvrsias, nas quais diferenas de pontos departida e diferenas de conceituao geralmente impedem qualquer entendimento comumdo problema e, portanto, qualquer progresso til no esclarecimento da soluo aceitvelpelos participantes do debate.

    Preliminar indispensvel fixao de um ponto de partida comum o exame da educaoescolar antes de se estabelecerem as aspiraes modernas da escola universal paratodos, proclamadas, to ruidosamente, na Conveno Revolucionria Francesa, como um

    novo estgio da humanidade. Antes desse perodo, toda educao escolar consistiana especializaode algum, cuja formao j fora feita pela sociedade e em rigor pela"classe" a que pertencia, nas artes escolares, que mais no eram que tipos especiais deofcios intelectuais e sociais.

    A sociedade formava os homens nas prprias matrizes estveis das "classes" seno"castas", instituies que incorporavam a famlia e a religio, com as suas forasmodeladoras e adaptadoras. Formado assim o homem, as aprendizagens maisespecficas, relacionadas com o trabalho, se faziam pela participao direta na vidacomum, ou, no caso de artesanato, pelo regime do mestre e aprendiz no ateliers e oficinasda poca.

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    A escola e a universidade eram, apenas, aspectos mais amplos dessa especializao doartesanato, com mestres e alunos vivendo em comum, nas corporaes universitrias, emregime de aprendizagem associada das pequenas e grandes artes intelectuais.

    Quando, na Conveno Francesa, se formulou o ideal de uma educao escolar para

    todos os cidados, no se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em umanova concepo de sociedade, em que privilgios de classe, de dinheiro e de herana noexistissem, e o indivduo pudesse buscar, pela escola, a sua posio na vida social. Desdeo comeo, pois, a escola universal era algo de novo e, na realidade uma instituioindependente da famlia, da classe e da religio, destinada a dar a cada indivduo aoportunidade de ser, na sociedade, aquilo que seus dotes inatos, devidamentedesenvolvidos, determinassem.

    Desse modo, a educao escolar passou a visar - no a especializao de algunsindivduos, mas a formao comum do homeme a sua posterior especializao para osdiferentes quadros de ocupaes, em uma sociedade moderna e democrtica.

    H, antes de tudo, uma transformao radical com a criao da nova escola comum paratodos, em que a criana de todas as posies sociais iria formar a sua inteligncia, a suavontade e o seu carter, os hbitos de pensar, de agir e de conviver socialmente. Essaescola formava a inteligncia, mas no formava o intelectual. O intelectual seria dasespecialidades de que a educao posterior iria cuidar, mas no constitui objeto dessaescola de formao comum a ser, ento, inaugurada. Por outro lado, alm dessa totalinovao, que representava a escola para todos, a prpria educao escolar tradicional eainda existente teria de se transformar, para atender multiplicidade de vocaes, ofciosprofisses em que a nascente sociedade liberal e progressiva comeou a desdobrar-se.

    Resistncia do conceito de educao-seleo ou especializao

    Esses novos conceitos e aspiraes no se concretizaram imediatamente. Os moldesantigos eram resistentes e todo o sculo dezenove foi uma luta por tcnicas e processosnovos, que permitissem a plena realizao dos ideais escolares da democracia. S muitolentamente a escola comum se emancipou dos modelos intelectualistas para dar lugar escola moderna, prtica e eficiente, com um programa de atividades e no de "matrias",iniciadora nas artes do trabalho e do pensamento reflexivo, ensinando o aluno a viverinteligentemente e a participar responsavelmente da sua sociedade.

    A nova escola comum, antes de mais nada, teve de lutar para fugir aos mtodos jconsagrados da escola antiga, que, sendo especial e especializante, especializara os seusprocessos e fizera da cultura escolar uma cultura peculiar e segregada.

    A escola antiga era, com efeito, a oficina que preparava os escolsticos, isto , homens deescola, homens eruditos, intelectuais, crticos... Objetivos, mtodos, processos tudopassou nela a ser algo de muito especializado e, portanto, remoto, alheio vida quotidianae indiferente s necessidades comuns dos homens. Da a pedagogia, os pedagogos, osdidatas, gente de ofcios rebardativos, que s eles entendiam e eles s cultivavam.Movendo-se num crculo vicioso, essa raa de pedagogos no se preocupava seno empassar adiante as mesmas coisas e os mesmos processos que, desse modo, repetidos

    noutras escolas, se conservavam em benefcio da sociedade tradicional. Essa escola,enrodilhada em si mesma, ensinando e praticando artes escolares e produzindo sem

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    cessar outras escolas, era a escola-corporao da Idade Mdia, destinada a formar"escolsticos", do mesmo modo pelo qual as oficinas das artes prticas formavam os seus"oficiais"; alfaiates, sapateiros etc.

    Tal organizao no poderia existir sem uma alta especializao de conceitos a respeito

    de artes prticas e artes escolares ou intelectuais. Na realidade, prevalecia o dualismogrego entre o conhecimento emprico ou prtico e o conhecimento racional ou intelectual.Este no seria uma decorrncia daquele, mas um outro mundo, em que o ato de conhecervalia como fim em si mesmo e se destinava a nos dignificar e dar-nos os deleites da vidaespiritual.

    A escola era a oficina do conhecimento racional. A oficina era a escola do conhecimentoprtico. Uma no conhecia a outra. Dois mundos parte. Podiam se admirar ou se odiar,mas no se compreendiam nem podiam se compreender.

    A aproximao entre esses dois mundos, com a transformao completa de um e outro,d-se com o aparecimento da cincia experimental. A cincia experimental, com efeito,nasce quando o homem do conhecimento racional resolve utilizar-se dos meios eprocessos do homem da oficina, no para fazer outros aparelhos ou petrechos mas paraelaborar "saber" para "produzir" outros conhecimentos.

    Quando Galileu constri o seu telescpio, para com ele confirmar Coprnico, estavarevolucionando, alm do mundo das crenas cosmolgicas, os mtodos do conhecimentoracional. O encontro do conhecimento racional com o mundo das oficinas constituiu fatomuito mais significativo do que a descoberta do movimento da terra em torno do sol.

    Porque desse encontro entre o "intelecto" e a oficina que partiu todo o sistema deconhecimento cientfico moderno, que nada mais que o conhecimento racional tornadofrtil e fecundo, pela sua ligao com a realidade concreta do mundo e da existncia. Todauma nova filosofia do conhecimento se estabeleceu em oposio formula grega dedualismo entre o racional e o emprico. O racional foi submetido comprovao daexperincia e se fez, na realidade, emprico. Efetivamente, as diferenas entre oexperimental e o emprico passaram a ser antes de preciso de mtodos, segurana deobservao e de controle na verificao, do que de objeto ou de natureza. Na realidade, adiferena passou a ser antes de grau de segurana no conhecimento do que da naturezado conhecimento.

    Com efeito, o dualismo institudo pelos gregos criara entre o conhecimento racional e oconhecimento emprico um abismo intransponvel. O velho conhecimento do sensocomum, de natureza emprica, dominava o mundo das artes e o conhecimento racional, omundo do esprito. Tnhamos, assim, um duplo sistema: o conhecimento emprico produziaas artes empricas, com que resolvia o homem os seus problemas prticos; oconhecimento racional o conduzia ao mundo das essncias, em que aplacava a sua sedede compreenso e coerncia. Pelo conhecimento emprico, agia; pelo conhecimentoracional, pacificava-se, deleitava-se. No fundo, o conhecimento racional viera parasubstituir o pensamento mtico e religioso. A "razo" dos gregos era uma forma avanadade teologia.

    Quando os hbitos de especular racionalmente se transferiram, no sculo XVI, para asoficinas, cujos aparelhos e petrechos comeavam a ser usados no laboratrio, no para a

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    arte de produzir, mas para a arte de conhecer, criou-se um novo tipo de conhecimento, oconhecimento experimental, destinado a substituir, no as crenas teolgicas do homem,mas as suas crenas prticas. O conhecimento experimental, misto de especulaoracional e experincia prtica, iria tomar o lugar do conhecimento emprico e produzir astecnologias experimentais que, por sua vez, iriam substituir as artes empricas. Os dois

    sistemas de conhecimento se fundiram desse modo em um mtodo comum depensamento e ao, unificados e racionais. Em esquema, a mudana foi a seguinte:

    Vida

    e

    mundo grego

    1. Observao de senso comum - conhecimento emprico -artes empricas.

    2. Especulao racional - conhecimento racional compreenso domundo.

    Vida

    e

    mundo moderno

    Especulao racional - observao e experimentao -conhecimento terico - artes ou tecnologias cientficas.

    As separaes entre o prtico e o racional ou o prtico e o terico desapareceram. Todo oconhecimento, em todas as suas fases, passou a ser prtico, tanto nos seus objetivosquanto em seus mtodos. Prtica, com efeito, era e a especulao racional, porque elase tem de fazer fundada na mais cuidadosa observao, que uma atividade material eprtica; prtica a teoria que essa especulao elabora, porque tem de ser comprovadaexperimentalmente; e prtica, por fim, a aplicao dessa teoria nas artes e tecnologias

    cientficas da produo. Assim, nem pelo mtodo, nem pela natureza ou objetivo dainvestigao diferem as fases da busca do conhecimento, da sua elaborao terica ou desua aplicao, desaparecendo, assim tambm, toda diferena entre os homens queestejam pesquisando, ensinando ou aprendendo, ou aplicando o conhecimento, no que dizrespeito s suas atividades, todas elas materiais e prticas.

    So simples divises de trabalhos, semelhantes s que se processam em todas asatividades seriadas ou complexas. Tanto prtica a fase de observao e descoberta,como prtica a fase de formulao terica, como prtica, a da aplicao da teoria aosprojetos prticos dos homens.

    Em face dessa unificao, a escola teria de deixar de ser a instituio especial de preparodaqueles "homens racionais ou escolsticos", devotados s atividades do esprito, para seconstiturem agncia de educao do novo homem comum para uma sociedade detrabalho cientfico e no "emprico", no velho sentido deste termo. Esta sociedade, estclaro, teria de preparar trabalhadores para as trs fases do saber, isto , a pesquisa, oensino e a tecnologia, mas todos teriam tudo em comum, exceto o gosto diferenciado poressas fases diversas do conhecimento cientfico, de sua natureza unitria. Trs campos detrabalho, diversos mas equivalentes, usando mtodo geral comum e articulado ematividades que se completam mutuamente, desde a pesquisa at a aplicao doconhecimento ou a tecnologia.

    A nova "escola pblica" ou "escola comum"

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    Em face da aspirao de educao para todos e dessa profunda alterao da natureza doconhecimento e do saber (que deixou de ser a atividade de alguns para, em suasaplicaes, se fazer a necessidade de todos), a escola no mais poderia ser a instituiosegregada e especializada de preparo de intelectuais ou "escolsticos", e deveriatransformar-se na agncia de educao dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores

    qualificados, dos trabalhadores especializados em tcnicas de toda ordem, e dostrabalhadores da cincia nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.

    Dada a identificao do novo trabalho agrcola ou fabril com o trabalho cientifico, poisagricultura e indstria mais no so do que campos de aplicao da cincia, todas asescolas, do nvel primrio ao universitrio, passaram a ser dominantemente escolas decincia, j ensinando as suas aplicaes generalizadas, j as teorias e tcnicasespecializadas, j o prprio trabalho de pesquisa, seja no campo terico, seja no campo daaplicao.

    Em todas essas modalidades, em face do carter novo do conhecimento cientfico, oensino se tem de fazer pelo trabalho e pela ao, e no somente pela palavra e pelaexposio, como outrora, quando o conhecimento racional era de natureza especulativa edestinado pura contemplao do mundo.

    Se tudo isso se teria de dar em face to-somente da evoluo da teoria do conhecimentocientfico, ainda novos esclarecimentos nos viria trazer o progresso dos estudos depsicologia. Tais estudos, com efeito, vieram demonstrar que a aprendizagem puramenteverbal no era realmente aprendizagem e que, mesmo nos setores de pura compreensoou de apreciao, somente atravs da experincia vivida e real que a mente apreende eabsorve o conhecimento e o integra em formas novas de comportamento.

    Os velhos mtodos da escola medieval, de exposio e pura memorizao, j seriaminadequados, mesmo que s tivessem de formar sucessores dos antigos "escolsticos", ouhomens de cultura intelectual ou esttica, capazes de discretear com gosto e elegnciasobre qualquer assunto e nada saberem fazer. Ainda, pois, que a escola conservasse osseus velhos objetivos, ainda assim se teria de fazer ativa, prtica, de experincia e detrabalho.

    O "arcasmo" da escola brasileira

    Sendo esta a escola adequada aos dias de hoje, at que ponto a escola brasileira dela se

    aproxima? Temos do novo mtodo de trabalho escolar vrios exemplos. O InstitutoTcnico de Aeronutica, em So Jos dos Campos, uma das melhores ilustraes.Algumas escolas de medicina esto em cheio nesse esprito. Os institutos onde se faz,verdadeiramente, a pesquisa cientfica adotam os mtodos novos. So assim os cursos doSENAI e alguns cursos profissionais de tcnicos industriais. Os cursos intensivos ou ps-graduados assumem, por vezes, esses aspectos atuais e prticos.

    Mas, tudo isso, de certo modo, ainda marginal e extraordinrio. Regulares e sistemticasso as formas arcaicas do ensino pela "exposio oral" e "reproduo verbal" de conceitose nomenclaturas, mais ou menos digeridos por simples "compreenso", as quais dominamesmagadoramente a escola primria, a escola mdia, sobretudo a secundria, e a maior

    parte das escolas superiores.

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    A atividade escolar consiste em "aulas", que os alunos "ouvem", algumas vezes tomandonotas, e nos "exames", em que se verifica o que sabem, por meio de provas escritas eorais. Marcam-se alguns "trabalhos" para casa e na casa se supe que o aluno "estuda", -o que corresponde a fixar de memria quanto lhe tenha sido oralmente ensinado nasaulas.

    Esta pedagogia podia perfeitamente funcionar numa escola da Idade Mdia. A sua filosofiado conhecimento a de que o conhecimento um corpo de informaes sistematizadassobre as coisas, que se aprendem,compreendendo-as e decorando-aspara areproduo nos exames.

    E chamamos a isso educao de "cultural geral" e, algumas vezes, educao humanstica,- sendo que muitos pensam que, se a modificarmos, destruiremos a nossa civilizao,humanista e crist...

    Ensinam-se, por esse mtodo expositivo, conhecimentostericos sobreas lnguas (latim,portugus, francs, ingls, espanhol), sobrea geografia e a histria, sobreas cincias, eat sobre a msica e o trabalho manual. Como a escola de "cultura geral", nada temcarter prtico. Raramente se consegue ler ou escrever qualquer daquelas lnguas,inclusive o portugus, mas sabe-se de cor uma poro, s vezes considervel, de noesgramaticais sobre essas lnguas e alguns trechos familiares podem ser traduzidos ouvertidos pelos alunos, desde que os trechos tenham sido "dados" nas aulas.

    Em matemtica, aprende-se largamente a manipulao algbrica, sem nenhum cuidadocom a sua aplicao. Trata-se de algo como matemtica pura, sendo, de certo modo, aprpria aritmtica considerada talvez demasiado aplicada e portanto insuscetvel de servir

    cultura geral.

    Histria, geografia e as prprias cincias fsicas e naturais tambm so ensinadas porexposio oral e com particular nfase nos conhecimentos informativos ou na terminologiacientfica. Nem a funo, nem a aplicao do conhecimento tem a o menor sentido. Oconhecimento algo de absoluto em si mesmo, a ser ensinado para ser repetido nasocasies determinadas pelos exames.

    Est claro que tal ensino no sequer o ensino das escolas da Idade Mdia, mas oimportante que ele o que em virtude de uma teoria medieval do conhecimento.

    Entre os escolsticos, herdeiros do saber grego, o saber era um saber absoluto ecompleto. Na Idade Mdia, sabia-se tudo. O mundo havia ficado conhecido pela revelaodivina e pela revelao aristotlica. O desenvolvimento acaso possvel nesse saber notraria propriamente nada de novo, mas novas distines, novas discriminaes, novoscomentrios e refinamentos de classificao.

    Aprender essa "cultura" consistiria em compreender e fixar suas categorias, suasclassificaes, suas distines e habilitar-se algum a poder falar sobre o mundo e nsmesmos, com erudio e elegncia, e contemplar as belezas desse conhecimento, belezasque se encontravam nas obras dos grandes mestres. Todo esse saber se achava em livrosdefinitivos, cuja leitura daria toda a cultura possvel. O "lente" era o leitor. Os alunos

    ouviam e aprendiam.

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    Somente semelhante teoria do saber poderia produzir a escola brasileira, com seus curtosperodos de aulas, seus pobres livros esquemticos e seus exames para reproduo doaprendido nas aulas. Acrescentamos uma novidade teoria: na Idade Mdia o "lente" eraum especialista desse tipo de saber, nada mais fazia do que lidar com os seus alfarrbios,era mestre de uma arte hermtica, de que o aluno seria o aprendiz. Entre ns, o

    "professor" pode ser qualquer pessoa que saiba mais ou menos ler. Encurtamos o perodode aulas, encurtamosos professores. Nessa escola brasileira, tudo pode ser dispensado:prdio, instalaes, biblioteca, professores... Somente no pode ser dispensada a listacompleta de matrias. Qualquer daquelas disciplinas tem de existir no currculo. Uma sque retiremos, por abaixo todo o edifcio da nossa cultura! Ai de quem pensar em tiraruma s daquelas lnguas, ou fundir uma disciplina na outra!...

    Seria talvez exagerado pensarmos que, nesse caso brasileiro, ainda estamos lidandoapenas com a velha noo do "conhecimento completo", total, da Idade Mdia, porque averdade que os currculos enciclopdicos decorrem, em grande parte, do medo dosprofessores de "perderem" aulas, que so o seu ganha-po, com a simplificao dos

    currculos... Mas, abaixo ou acima dessa razo "prtica", est a racionalizao de que acultura algo de completo e que nada pode ser ignorado, sem grave defeito para acultura.

    Se nada pode ser ignorado porque o saber algo de "completo". Seria, ento, loucurano o dar todo em nossos famosos cursos de "cultura geral", eufemismo em queescondemos a nossa concepo medieval de cultura como Suma Cultural.

    Longe de mim pensar que no exista cultura geral, mesmo em nossos dias. Mas culturageral no cultura superficial, e sim exatamente o contrrio. Cultura geral seria o ltimo

    grau de generalizao do conhecimento. Todo conhecimento especial. Quando tomoesse conhecimento especial no seu ltimo grau de generalizao, tenho o conhecimentofilosfico, que me daria uma cultura geral. evidente que me terei de especializarnesseconhecimento geral...

    Poder-se-ia tambm considerar cultura geral a cultura comum a todos, mas essa culturaseria uma cultura de uso comum e no, propriamente, uma cultura especializadamenteintelectual. Seria uma traduo popular e geral das culturas especializadas, que constituemhoje o mundo sem fim e em eterno crescimento do saber. Salvo pelos livros chamados depopularizao da cincia e da cultura, no vejo outro modo de se poder buscar esse tipode cultura na escola.

    Na realidade, ou teremos cultura geral como a mais alta expresso da cultura, como apraticam os filsofos, e s longos anos de estudos, altamente especializados, nos levaroa ela, ou teremos uma cultura geral popularizada, a ser dada pelos chamadosvulgarizadores das cincias, das artes e das filosofias.

    No primeiro caso, poderemos, com determinados alunos de alta capacidade, trein-los nouso das idias, familiariz-los com o jogo dos conceitos matemticos, cientficos, literriose artsticos, e habilit-los a ser especialistas nas idias fundamentais com que a mentehumana vem elaborando os seus extensssimos conhecimentos experimentais, em todosos setores do saber humano. Estes seriam os estudiosos de cultura geral, e na realidade,

    filsofos das cincias, das artes, das letras e da religio.

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    Aos demais alunos, a cultura geral s poder ser ministrada pelos livros de popularizaoda cultura. As nossas escolas no so uma coisa nem outra. Arcaicas nos seus mtodos eseletivas nos currculos, no so de preparo verdadeiramente intelectual, no so prticas,no so tcnico-profissionais, nem so de cultura geral, seja l em que sentido tomarmos otermo.

    Mas so, por fora da tradio, escolas que "selecionam", que "classificam" os seusalunos. Passar pela escola, entre ns, corresponde a especializar-nos para a classe mdiaou superior. E a est a sua grande atrao. Ser educado escolarmente significa, no Brasil,no ser operrio, no ser membro das classes trabalhadoras.

    A escola como formao do "privilegiado"

    Mesmo no ensino primrio vamos encontrar a nossa tendncia visceral para considerar aeducao um processo de preparo de alguns indivduos para uma vida mais fcil e, emrigor, privilegiada. Como esse ensino no chega a formar o "privilegiado", aquela tendnciaprovoca a deteriorao progressiva deste ensino, sobretudo depois que passou ele acontar realmente com esmagadora freqncia popular.

    Para isto demonstrar no preciso mais do que apresentar algumas cifras.

    Tnhamos, em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eramalfabetizados e 6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e15.350.000, analfabetos. Diminumos a percentagem de analfabetos de 65% para 51%, emcinqenta anos, mas em nmeros absolutos, passamos a ter bem mais do dobro deanalfabetos.

    Se considerarmos o analfabeto, como seria lcito considerar, um elemento mais negativodo que positivo na populao, a situao brasileira, do ponto de vista da educao comum,tornou-se em 1950 pior do que em 1900. Mas, se tomarmos o ponto de vista de que oprocesso educativo um processo seletivo, destinado a retirar da massa algunsprivilegiados para uma vida melhor, que se far possvel exatamente porque muitos ficarona massa a servio dos "educados", ento o sistema funciona, exatamente, porque noeduca todos, mas somente uma parte.

    Bendito seja o nosso crescimento demogrfico que anula o nosso pequeno esforo emaumentar as oportunidades de educao primria, sem lhe tirar, por isto mesmo, o carter

    de educao seletiva!

    Tomemos, porm, apenas a populao de menos de 15 anos, isto , a populao emprocesso de alfabetizao e vejamos se a escola vem dando conta da tarefa em relao aesses futuros adultos.

    QUADRO 1 - DISTRIBUIO, POR IDADE, DA POPULAO DE MENOS DE 15 ANOS

    IDADE TOTAL ALFABETIZADOS ANALFABETOS ESEMDECLARAO

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    8 anos

    9 anos

    10 anos

    11 anos

    12 anos

    13 anos

    14 anos

    TOTAL

    1 389 175

    1 259 533

    1 436 438

    1 189 571

    1 351 233

    1 157 404

    1 173 921

    8 957 275

    281 832

    388 735

    487 541

    520 075

    583 930

    574 225

    592 954

    3 429 392

    1 107 243

    870 798

    948 897

    669 496

    767 303

    583 179

    580 967

    5 227 883

    % de alfabetizados s/total - 38,2%

    Numa populao por alfabetizar de 8.950.000, conseguimos alfabetizar 3.400.000, isto ,38%, conservando analfabetos, para engrossar a grande fileira dos que vo nos ajudar asermos "privilegiados", 5.500.000 brasileiros. Estamos, com efeito, a aumentar oanalfabetismo no Brasil e no a reduzi-lo a despeito do aparente crescimento vegetativo

    das escolas. Digo aparente, porque esse prprio crescimento vegetativo, na realidade, nochega a ser crescimento. Em face do crescimento da populao, estamos a congestionaras escolas e no a aument-las, estamos a reduzir o ensino e no a aument-lo.

    Todos os ndices confirmam essa minha severidade. Tomemos, por exemplo, a matrculaefetiva das escolas primrias em relao com as concluses do curso, em 20 anos, de1933 a 1953:

    Quadro 2 - Concluses de curso no ensino primrio

    (cursos de 3 e 4 sries)

    1933 1940 1950 1953

    Matrcula efetiva

    Concluses decurso

    % s/matrcula na

    1 srie

    1 794 335

    124 208

    7%

    2 555 191

    202 603

    8%

    3 709 887

    283 874

    7%

    4 142 318

    316 986

    7%

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    Se isso no basta para provar a estagnao do ensino primrio, tomemos a percentagemdo corpo docente, diplomado por escolas normais: tnhamos, em 1933, 53.000 docentescom 57,8% de diplomados. H trs anos, em 1953, 134.000 eram estes docentes, dosquais apenas 53% diplomados.

    Se no bastar o nmero crescente de analfabetos, se no bastar o aumento dapercentagem de professores no diplomados, tomemos o progresso dos alunos atravsdas sries, em dez anos, entre 1944 e 1953:

    Quadro 3 - Percentagem dos alunos pelas cinco sries

    Anos Matrcula

    geral

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie 5 srie

    1944

    1945

    1946

    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    53,4

    53,9

    54,9

    54,7

    56,6

    56,4

    56,3

    56,5

    56,9

    56,9

    21,9

    21,8

    21,2

    21,6

    21,1

    21,2

    21,1

    20,8

    20,6

    20,6

    14,9

    14,5

    14,5

    14,4

    14,0

    14,0

    14,1

    14,1

    14,0

    14,0

    8,3

    8,3

    7,9

    8,2

    7,8

    8,0

    8,0

    8,0

    8,1

    8,1

    1,5

    1,5

    1,5

    1,1

    0,5

    0,4

    0,5

    0,5

    0,4

    0,4

    Como se v, a situao dolorosamente estacionria, como estacionria e atdecrescente, na ltima srie, tambm a taxa de aprovao por srie:

    Quadro 4 - Aprovaes pelas sries

    Anos Matrcula

    geral

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie 5 srie

  • 5/26/2018 Ansio Teixeira- Educao No Privilgio Partes I, II e III

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    1944

    1945

    1946

    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    1 477 192

    1 503 118

    1 604 481

    1 691 231

    1 824 034

    1 903 650

    2 027 944

    2 152 375

    2 258 004

    2 357 207

    610 767

    628 333

    684 395

    730 157

    790 580

    852 077

    913 478

    989 023

    1 039 199

    1 098 017

    379 291

    393 528

    407 857

    434 969

    471 722

    475 942

    513 382

    526 991

    557 680

    570 012

    282 439

    275 837

    299 751

    309 212

    339 783

    347 914

    360 543

    382 540

    390 995

    412 138

    174 543

    175 846

    180 662

    193 889

    209 328

    217 124

    225 606

    239 508

    253 797

    262 844

    30 152

    29 574

    31 816

    23 004

    12 621

    10 593

    14 935

    14 313

    16 333

    14 196

    Diante disto, j no tem a mesma eloqncia o crescimento em nmeros absolutos. Noexageramos, pois, quando afirmamos a franca deteriorao do ensino primrio, com aexarcebao do carter seletivo da educao, no seu vezo de preparar algunsprivilegiados para o gozo das vantagens de classe e no o homem comum para a sua

    emancipao pelo trabalho produtivo.

    Com efeito, se deixarmos o ensino primrio e passarmos a analisar o ensino mdio e osuperior, j a expanso perfeitamente acentuada. E em relao ao ensino maisacentuadamente de classe - que o secundrio - essa expanso chega a ser espetacular.

    Antes, porm, de passarmos anlise da situao do ensino secundrio, tomemos oquadro abaixo, relativo matrcula e distribuio por sries dos alunos do curso primrioentre 1944 e 1953:

    Quadro 5 - Distribuio por srie dos alunos na escola primria

    Anos Matrcula

    total

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie Concluso

    de curso

    1944

    1945

    1946

    2 631 451

    2 741 725

    2 887 960

    1 402 647

    1 478 113

    1 583 585

    577 130

    597 384

    613 349

    391 610

    398 180

    419 779

    219 674

    226 577

    127 468

    127 151

    133 591

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    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    3 063 775

    3 301 084

    3 479 056

    3 709 887

    3 860 593

    3 964 905

    4 142 318

    1 675 887

    1 864 987

    1 960 732

    2 087 964

    2 180 131

    2 239 859

    2 352 093

    662 148

    698 408

    736 666

    784 546

    805 060

    833 329

    854 480

    440 372

    462 459

    487 585

    519 911

    545 737

    549 096

    581 476

    228 365

    151 137

    258 534

    279 903

    299 009

    310 615

    322 010

    336 196

    149 725

    185 251

    193 822

    206 380

    219 241

    236 089

    243 652

    Dos alunos de 4 srie, concluem-na com xito os constantes da ltima coluna. Porconseguinte, todo o ensino primrio brasileiro frutifica, afinal, nos 243.652 doutorezinhosaprovados na 4 srie. A proporo de alunos que passam em cada ano para a srieseguinte pode ser vista no Quadro 3. Esto na 1 srie 57% dos alunos matriculados noensino primrio, na 2 srie - 20%, na 3 - 14% e na 4 - apenas 8%. Que sucede a esses8%? Longe de conservarem a tendncia reduo na srie seguinte, encontram-se quasetodos no ensino mdio, pois, com efeito, a matrcula 1 srie do ginasial de 180.000,que somados a 24.000 do comercial e 6.000 do industrial, elevam a freqncia 1 sriedo ensino mdio a 210.000 alunos, sem contar os do curso normal. Enquanto entre a 3srie primria e da 4, a queda brusca de 580.000 para 330.000, ou da 4 srie primria

    para a 1 srie secundria, tomados os aprovados naquela srie, temos que dos 243.000chegam ao secundrio 210.000 alunos.

    Bem sabemos que, no havendo articulao entre o ensino primrio e o mdio, aqueles210.000 alunos no so rigorosamente os mesmos que terminam o primrio. Isto, porm,torna ainda mais significativo o fato. Na realidade, se atentarmos em que o ensinosecundrio e mdio s existe nas capitais e em 1/3 dos municpios do interior e apesardisto logra essa matrcula, que a escola secundria muito mais desejada do que aescola primria. E por que? Porque "classifica" o aluno e o lana entre os previlegiados esemiprevilegiados da nao.

    A transigncia ou compromisso do dualismo escolar

    Dir-se- que, assim, deve realmente ser. As escolas no foram afinal criadas para renovaras sociedades, mas para perpetu-las e, por isso mesmo, a sua relao com as estruturassociais de classe havia de ser a mais estrita. Nenhum sistema de escolas foi jamais criadocom o propsito de subverter a estratificao social reinante.

    A realidade, porm, que a idia da escola comum ou pblica, nascida com a revoluofrancesa - a maior inveno social de todos os tempos, no dizer de Horace Mann - importaexatamente em sobrepor-se ao conceito de classe e prover uma educao destinada a

    todos os indivduos, sem a inteno ou o propsito de prepar-los para quaisquer dasclasses existentes.

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    Na prpria Frana, entretanto, tal escola s se estabeleceu, mediante uma transao.Criou-se, certo, um sistema popular de educao, mas conservou-se, ao lado, o sistemade educao de classe. A escola primria, a escola primria superior, as escolas normais eas profissionais constituam o sistema "popular". As classesprparatoires, o liceu, as"grandes escolas" e a universidade, o sistema de educao de classe, ou para elite. O

    dualismo era perfeito, no havendo possibilidade sequer de comunicao. O esprito"primrio" dominava o sistema popular, o esprito "secundrio" dominava o segundo.

    Apesar de havermos copiado as instituies polticas Amrica do Norte, no lhecopiamos as instituies educativas. Fomos antes buscar inspirao na Frana. A escolaprimria, a escola complementar, a escola normal e as escolas "profissionais" constituamo nosso sistema popular de educao. O "ginsio" e a "academia", o nosso sistema deeducao de classe ou de elite.

    Tal dualismo, graas ao qual, recusvamos a nossa adeso escola comum, coammomschoolamericana ou acole uniquefrancesa - a que tambm a Frana recusou a adeso,

    a despeito das maiores campanhas - impediu sempre, entre ns, o florescimento da"escola pblica comum". Esta escola - fosse a primria ou a "mdia-profissional", em quepese a certo empenho do Governo, jamais gozou de verdadeiro prestgio social.

    A sociedade brasileira que contava, isto , a sociedade de "classe", no sentido de classedominante, dela no precisava. Em alguns casos, freqentava a "escola primria", mas,quando o fazia, transformava tambm essa escola em escola de classe, exigindocondies econmicas satisfatrias para que se pudesse freqent-la: o uniforme e ossapatos, s vezes, bastavam para delas afastar o povo.

    As escolas refletiram, assim, de acordo com o velho estilo, o dualismo social brasileiro,entre os "favorecidos" e os "desfavorecidos". Por isso mesmo, a escola comum, a escolapara todos, nunca chegou, entre ns, a se caracterizar, ou a ser de fato para todos. Aescola era para a chamada elite. O seu programa, o seu currculo, mesmo na escolapblica, era um programa e um currculo para "privilegiados". Toda a democraciadaescola pblica consistiu em permitir ao "pobre" uma educao pela qual pudesse eleparticipar da elite.

    Ora, a idia de "educao comum", da escola pblica americana ouda coleuniquefrancesa, no era nada disso. No se cogitava de dar ao pobre aeducao conveniente ao rico, mas, antes, de dar ao rico a educao conveniente ao

    pobre - pois, a nova sociedade democrtica no deveria distinguir - entre os indivduos, osque precisavam dos que no precisavam de trabalhar, mas a todos queria educar para otrabalho, distribuindo-os pelas ocupaes, conforme o mrito de cada um e no segundo asua posio social ou riqueza.

    No se tratava, com efeito, de generalizar a educao para os "privilgios", mas de acabarcom tais "privilgios", em uma sociedade hierarquizada nas ocupaes, masdesierarquizada socialmente.

    Entre ns, porm, apesar de havermos tido o cuidado de criar o sistema de educao"popular", distinto do sistema de educao da elite, a classe dominante, mais dominante do

    que rica, ocupouat muito recentemente a prpria "escola primria pblica", dando-lhe aela prpria o carter de escola de classe, no que muito a ajudou, sobretudo nas grandes

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    cidades, o recrutamento do magistrio primrio na classe mdia e, s vezes, at nasuperior.

    Fora as "escolas profissionais", nenhuma outra escola brasileira escapou a esprito deeducao de "elite", profundamente arraigado em nossa sociedade e agravado ainda pelo

    preconceito contra o trabalho manual, que nos deixou a escravido.

    O dualismo escolar entra em crise

    Tudo isso funcionou, entretanto, sem maior gravidade, enquanto perdurou na vidabrasileira o dualismo pacfico entre os "favorecidos" ou "privilegiados" e os desfavorecidosou desprivilegiados.

    Com a formao de uma conscincia comum de direitos em todo o povo brasileiro, cujaemancipao veio afinal a se processar, nos ltimos vinte e cinco anos, deparamo-noscom um sistema escolar de todo inadequado para lidar com o verdadeiro problemaeducativo de um povo j agora uno e indiviso.

    O nosso sistema arcaico de educao, - destinado ao preparo das nossas diminutasclasses de lazer e de mando, mando muito mais decorrente do "prestgio" social dessasclasses do que de sua competncia, e por isto mesmo fcil de ser exercido - podia serpuramente "decorativo" e, ainda assim, atingir os seus objetivos.

    J agora, porm, no lhe basta isto. o povo brasileiro que tem ele de educar. Este povono pode viver do "prestgio", que lhe d o fato de haver alisado os bancos escolares,mesmo porque "prestgio" se goza contraalgum ou custa de algum e j no h

    esse algumcontra o qual se possa exerc-lo.

    O primeiro movimento do povo brasileiro est sendo o de conquista dessa educaodecorativa, antes destinada elite. A chamada expanso educacional brasileira nada mais do que a generalizao para todos da educao da elite. Como todos, que a estobuscando, no podem ter padres mais lcidos do que os da prpria elite, eles ainda aaceitam mais decorativa, mas simulada do que a prpria elite.

    J vimos como o ensino primrio nos confirma, pela sua perda crescente de prestgiosocial, a falta de interesse pela educao comum e a preferncia pelo ensino seletivo. Maso ensino mdio e o superior, por sua prpria natureza seletivos, que nos revelam o grau

    de exacerbao a que chega a nossa busca de "prestgio" e no de eficincia pelaeducao.

    A expanso desses dois nveis de ensino , de algum tempo para c, absolutamenteincoercvel. Existem 2.363 escolas de nvel mdio, sendo que 1.887 mantm o cursosecundrio, 628, o comercial, 873, o normal, 86, os cursos industriais e 17, o cursoagrcola. A matrcula geral de 780.639, sendo 579.781 no secundrio, 114.000 nocomercial, 67.000 no normal, 19.000 no industrial e 1.200 no agrcola. Na primeira srieencontram-se 180.000 no secundrio, 24.000 no comercial, 24.000 no normal e 6.200 noindustrial, ao todo 234.000, nmero equivalente aos dos que terminam o curso primrio.

    Todas as cifras so reveladoras da prefernciamanifesta pelo tipo de educao verbal,decorativa, destinada a permitir a vida que no seja a comum do brasileiro e sobretudo em

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    que no haja esforo manual. Os cursos industriais l esto com menos de 3% damatrcula geral, o agrcola com 1,1% e o comercial com pouco mais de 14%. O que todosprocuram o curso secundrio acadmico, preparatrio para o ensino superior.

    A energia improvisadora posta a servio dessa expanso do ensino propedutico ao

    superior pode ser verificada na constituio do seu magistrio. Apenas 16% dos seusprofessores so licenciados das escolas de filosofia, embora estas tenham j mais de 20anos de existncia. As demais escolas superiores forneceram 24% do corpo docente. Comdiplomas de escolas mdias - metade normalistas - h 41% dos professores. Os restantes19% no tm diploma algum. O professorado do ensino mdio j atinge a mais de 47.000docentes, nmero superior em quase o dobro ao de qualquer outra profisso liberaltomada isoladamente.

    Tal expanso - como audcia educacional - s superada pela do ensino superior, ondeestamos hoje com 73.000 alunos e 12.672 professores, quando tnhamos em 1929 apenas13.239 alunos e 2.116 professores.

    O sistema de ensino primrio somente existe para abastecer de alunos esses doissistemas seletivos, em que estamos a formar quadros de nvel superior muito acima, - node nossas necessidades, mas da nossa capacidade de utiliz-los e remuner-los. Porque,tais quadros s se devem expandir legitimamente, quando a produtividade individual chegaa tal ponto que os quadros de servios se fazem maiores do que os da produopropriamente dita.

    Na Amrica do Norte, para um quadro de 13 milhes de operrios, h quadros de serviosda ordem de 50 milhes. Mas isto, porque o operrio chegou a uma produtividade que se

    mede pelo salrio mnimo de um dlar por hora.

    Entre ns, porm, com o operrio mais ou menos bisonho, pois somente continua operrioquem no consegue "educar-se", onde iremos buscar recursos para pagar a todos que,"educados", apenas se podero dedicar aos "servios" intermedirios da civilizao?

    Se a isto acrescentarmos que a educao ministrada por essa inflao de escolas no temqualquer grau de eficincia, veremos que considerar essa educao como a educaopara os serviosde uma civilizao, apenas fora de expresso. Na realidade, aeducao, como se vem fazendo entre ns, d direitos, graas ao diploma oficial, mas noprepara nem habilita para coisa alguma. O diplomado um candidato penso do Estado

    ou dos particulares. Alguns se faro, depois, profissionais, por tirocnio e prtica, no pelaescola, salvo as excees conhecidas das melhores escolas de medicina, engenharia edireito.

    Necessidade de uma nova poltica educacional

    Outra seria a situao, se houvssemos conseguido criar realmente um autntico sistemade educao pblica, destinado "educao "comum". Como nos Estados Unidos, ondefoi mais vigoroso e correto o desenvolvimento dacommonschool, veramos a ascenso dopovo brasileiro, graas sua unificao, para nveis econmicos cada vez mais altos, semperda, porm, das suas condies de ocupao e trabalho.

  • 5/26/2018 Ansio Teixeira- Educao No Privilgio Partes I, II e III

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    As escolas brasileiras esto, com efeito, a ser buscadas pelo povo com ansiedadecrescente, havendo filas para a matrcula da mesma natureza das filas para a carne.Os turnosse multiplicam, os prdios se congestionam, os candidatos aos concursos deadmisso so em nmero muito superior aos das vagas e as limitaes de matrculaconstituem graves problemas sociais, s vezes at de ordem pblica.

    A conscincia da necessidade da escola, to difcil de criar em outras pocas, chegou-nos,assim, de imprevisto, total e sfrega, a exigir, a impor a ampliao das facilidadesescolares. No podemos ludibriar essa conscincia. O dever do governo - deverdemocrtico, dever constitucional, dever imprescritvel - o de oferecer ao brasileiro umaescola primria capaz de lhe dar a formao fundamental indispensvel ao seu trabalhocomum, uma escola mdia capaz de atender variedade de suas aptides e dasocupaes diversificadas de nvel mdio e uma escola superior capaz de lhe dar a maisalta cultura e, ao mesmo tempo, a mais delicada especializao. Todos sabemos quantoestamos longe dessas metas, mas o desafio do desenvolvimento brasileiro o de atingi-las, no mais curto prazo possvel, sob pena de perecermos ao peso do nosso prprio

    progresso.

    A educao primria j se distribui no pas por mais de 70.000 unidades, com cerca de140.000 professores, abrigando cerca de 4 milhes de crianas, custando nao cifraque no inferior a trs bilhes de cruzeiros. Estes os nmeros que, em si, parecerosignificativos.

    Mas, por trs dos nmeros esconde-se, como vimos, uma realidade bem poucoanimadora. Estes alunos no se conservam na escola, em mdia, mais que 2 anos epouco. Em todo o pas, apenas 8 a 10% deles chegam quarta srie primria. Com a

    matrcula em muito superior sua capacidade, a escola se divide em turnos, oferecendoao aluno meio dia escolar e, em muitos casos, um tero do dia escolar, com a conseqentereduo de programa.

    Com programa assim reduzido pela angstia de tempo, sofre ainda a escola umaadministrao centralizada e rgida, que lhe dificulta a adaptao a condies cada vezmais difceis de funcionamento. Por outro lado, o professor, integrado em quadro nicopertencente a todo o Estado, desligou-se da escola, para pertencer s secretarias deeducao, onde vive numa competio dolorosa por promoes, remoes e comisses,que se fazem os objetivos da profisso.

    Com esse professorado extremamente mvel seno fluido e as matrculas duplicadas outriplicadas, a escola entra a funcionar por sesses, como os cinemas, e a se fazer cadavez menos educativa, por isso mesmo que sem continuidade nem seqncia.

    Com efeito, a instituio que, por excelncia, deve ser estvel a fim de contrabalanar ainstabilidade moderna, faz-se ela prpria incerta e instvel, com administrao eprofessorado em mudana permanente e os alunos na ronda dos turnos cada vez maiscurtos.

    Tais circunstncias fazem com que a escola primria venha perdendo a funocaracterstica de ser a grande escola comum da nao, a escola de base, em que se

    educa a grande maioria de seus filhos, para se constituir simples escola de acesso,

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    preparatria ao ginsio, para onde se dirige a maior parte dos alunos que logram chegar quarta srie.

    Este desvirtuamento da escola primria concorreu, junto com outras circunstncias, paraexacerbar o anseio pela escola secundria de tipo acadmico, que entrou a ser

    improvisada de todos os modos, a fim de continuar a educao preparatria, que a escolaprimria iniciara nos seus fugidios turnos de ensino.

    Tais escolas secundrias, como as primrias funcionando em turnos, como as primrias,improvisadas, como as primrias, de puro ensino verbalstico, e, ainda, como as primrias,puramente preparatrias prosseguem com os seus alunos num esforo, no de formao,mas de seleo e acabam com apenas dezessete mil alunos na ltima srie de colgio.Sobreviventes de um sistema escolar inadequado e frustro, no tm estes poucos milharesde alunos outra coisa a fazer seno aspirar escola superior, para cujo exame vestibularse precipitem em levas muito superiores ao nmero de vagas existentes... A os espera umconcurso altamente seletivo, que se vem tornando suplcio semelhante a dos arcaicosexames chineses. No final de contas, dos quatro milhes de alunos primrios, reduzidos asetecentos mil de ensino secundrio, emergem os sessenta mil alunos das escolassuperiores que, mal ou bem, se vo diplomar para as carreiras de nvel mais alto.

    Tudo estaria, talvez, bem se efetivamente no visssemos formao de todos osbrasileiros para os diversos nveis de ocupaes de uma democracia moderna, mas to-somente seleo de um mandarinato de letras, das cincias e das tcnicas.

    Nenhum pas vive, porm, de um tal mandarinato intelectual, ainda que realmente capaz, oque no o caso brasileiro, mas dos quadros numerosos e eficazes do trabalhador

    comum, formado na escola primria, dos quadros do trabalhador qualificado, treinadodiretamente pela indstria e pelos cursos de continuao, dos quadros do especialista denvel mdio preparado nos cursos mdios, mltiplos e variados, e dos quadros deespecialistas de nvel alto, formados pela universidade e pelas escolas superiores.

    A escola primria que ir dar ao brasileiro esse mnimo fundamental de educao no ,precipuamente, uma escola preparatria para estudos ulteriores. A sua finalidade , comodiz o seu prprio nome, ministrar uma educao de base, capaz de habilitar o homem dotrabalho nas suas formas mais comuns. Ela que forma o trabalhador nacional em suagrande massa. , pois, uma escola, que o seu prprio fim e que s indireta esecundariamente prepara para o prosseguimento da educao ulterior primria. Por isto

    mesmo, no pode ser uma escola de tempo parcial, nem uma escola somente de letras,nem uma escola de iniciao intelectual, mas uma escola sobretudo prtica, de iniciaoao trabalho, de formao de hbitos de pensar, hbitos de fazer, hbitos de trabalhar ehbitos de conviver e participar em uma sociedade democrtica, cujo soberano o prpriocidado.

    No se pode conseguir essa formao em uma escola por sesses, com os curtosperodos letivos que hoje tem a escola brasileira. Precisamos restituir-lhe o dia integral,enriquecer-lhe o programa com atividades prticas, dar-lhe amplas oportunidades deformao de hbitos de vida real, organizando a escola como miniatura da comunidade,com toda a gama de suas atividades de trabalho, de estudo, de recreao e de arte.

  • 5/26/2018 Ansio Teixeira- Educao No Privilgio Partes I, II e III

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    Ler, escrever, contar e desenhar sero por certo tcnicas a ser ensinadas, mas comotcnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades, sem as quais no se pode hojeviver. O programa da escola ser a prpria vida da comunidade, com o seu trabalho, assuas tradies, as suas caractersticas, devidamente selecionadas e harmonizadas.

    A escola primria, por este motivo, tem de ser instituio essencialmente regional,enraizada no meio local, dirigida e servida por professores da regio, identificados com osseus mores, costumes.

    A regionalizao da escola que, entre ns, se ter de caracterizar pela municipalizao daescola, com administrao local, programa local e professor local, concorrer em muitopara dissipar os aspectos abstratos e irreais da escola imposta pelo centro, comprogramas determinados por autoridades remotas e distantes e servida por professoresimpacientes e estranhos ao meio, sonhando perpetuamente com redentoras remoes.

    Tal escola com horrios amplos, integrada no seu meio e com ele identificada, regida porprofessores provindos das suas mais verdadeiras camadas populares, percebendo ossalrios desse meio, ser uma escola reconciliada com a comunidade e j sem o carterora dominante de escola propedutica aos estudos ulteriores ao primrio. Esta ser aescola fundamental de educao comum do brasileiro, regionalmente diversificada, comumno pela uniformidade, mas pela sua equivalncia cultural.

    Assim que os recursos permitirem, ela se ir ampliando em nmero de sries e entrandopelo nvel das escolas de segundo grau, sem perder os caractersticos de escola maisprtica do que intelectualista e os de integrao regional to perfeita quanto possvel.

    Est claro que essa escola, nacional por excelncia, a escola da formao do brasileiro,no pode ser uma escola imposta pelo centro, mas o produto das condies locais eregionais, planejada, feita e realizada sob medida para a cultura da regio, diversificada,assim, nos seus meios e recursos, embora uma nos objetivos e aspiraes comuns.

    tempo j de esquecermos o nosso hbito de pensar que os brasileiros residentes foradas metrpoles precisam das lies e das cautelas do centro para se fazerem brasileiros,ou nacionais, como de certo gosto totalitrio afirmar. Todos os brasileiros so to bonsbrasileiros quanto os funcionrios federais, nada havendo que nos garanta serem taisfuncionrios mais seguros em definir o que seja nacional do que os servidores estaduaisou municipais.

    O pas um s, com uma s lngua, uma s religio dominante ou majoritria, uma scultura, embora com diversas subculturas, e em caminho para a unificao social em ums povo, distribudo por classes, mas classes abertas e de livre e fcil acesso. Alm disto,ligado j por uma extensa e intensa rede de comunicao, pelo avio e pelo rdio, quepermita a livre, ampla e rpida seno simultnea circulao de idias e notcias. Nenhummotivo j existe para as cautelas centralistas e centralizantes, que se poderiam justificarem outras pocas, embora nem sempre com os mais puros propsitos.

    A descentralizao, assim, contingncia da nossa extenso territorial e de nosso regimefederativo e democrtico, hoje uma soluo - alm de racional e inteligente -

    absolutamente segura. Tenhamos, pois, o elementar bom senso de confiar no pas e nosbrasileiros, entregando-lhes a direo dos seus negcios e, sobretudo, da sua mais cara

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    instituio - a escola, cuja administrao e cujo programa deve ser de responsabilidadelocal, assistida e aconselhada tecnicamente pelos quadros estaduais e federais.

    Organizados que sejam, assim, os sistemas municipais de educao e ensino, as escolaspassaro a ser instituies nutridas pelo orgulho local, vivas e dinmicas, a competir com

    os demais sistemas municipais e a encontrar nessa competio as suas foras deprogresso e de gradual unificao, pois competir emular e toda emulao importa emreconhecer o carter e as foras comuns que inspiram a instituio.

    Presidindo a essa saudvel e construtiva rivalidade regional e local, o Estado e a Unio,equipados de corpos profissionais e tcnicos de alta competncia e liberados deabsorventes nus administrativos, exercero os seus deveres de assistncia supervisora,no pela imposio, mas pela liderana inteligente, tornando comum para todos, pelainformao, a experincia de cada um, facilitando o intercmbio de valores e deprogressos e orientando e coordenando os esforos para o avano e a unidade, dentro,repetimos, das diversidades regionais e locais.

    A assistncia dos centros no se exercer somente pela atuao direta dos seus tcnicos,mas, sobretudo, pela formao dos professores, que lhes poder ficar afeta, uma vezassegurado que Estado ou Unio respeitaro as caractersticas regionais das escolas aque se destinaro os mestres que, assim, iro preparar.

    No pensamos, pois, reformar a escola brasileira com a imposio de modelos aprioriformulados por um centro ou por alguns poucos centros dirigentes, mas antes liberaras foras locais de iniciativa e responsabilidade e confiar-lhes a tarefa de construir a escolanacional, sob os auspcios de uma inteligente assistncia tcnica dos Estados e da Unio.

    No somos nao a ser moldada napolenicamente do centro para a periferia, mas umgrande e variado imprio a ser assistido e, quando muito coordenado pelo centro, a fim depoder prosseguir no seu destino de criar, nos trpicos, uma grande cultura, diversificadanas suas caractersticas regionais e una nos seus propsitos e aspiraes de civilizao edemocracia.

    A descentralizao educacional que, assim, propugnamos no representa apenas medidatcnica que est, dia-a-dia, mais a se impor, por uma srie de motivos de ordem prtica,mas tambm um ato poltico de confiana na nao e de efetivao do princpiodemocrtico de diviso do poder, a impedir os estrangulamentos da centralizao edificultar a concentrao de fora que nos poderia levar a regimes totalitrios.

    Toda unificao imposta e forada , nesse sentido, uma fragilidade e trabalho no sentidoda ossificao de nossa cultura, dificultando-lhe a diversificao saudvel e revitalizante.

    A grande reforma da educao , assim, uma reforma poltica permanentementedescentralizante, pela qual se criem nos municpios os rgos prprios para gerir osfundos municipais de educao e os seus modestos mas vigorosos, no sentido deimplantao local, sistemas educacionais. Tais sistemas locais, em nmero equivalente aodos municpios, constituiro, em cada Estado, o sistema estadual, o qual compreender,alm das escolas propriamente locais, de administrao municipal, as escolas mdias esuperiores, inclusive as de formao do magistrio, de sua prpria administrao. Pela

    formao do magistrio e pela vigorosa e ampla assistncia financeira e tcnica aos

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    municpios, exercer o Estado a ao supervisora, destinada a promover a unidade doensino sem perda das condies revitalizantes e construtivas do genius-loci.

    Em esfera ainda mais ampla atuar a Unio, com a sua rede de escolas mdias,profissionais, superiores, de experimentao e demonstrao, todas visando a mais alta

    qualidade e se destinando a agir nos sistemas estaduais e locais como exemplos dedesenvolvimento e aperfeioamento. Este sistema federal s por si j operaria como foraunificadora, mas ter ainda a Unio duas grandes foras de estmulo e coordenao: aassistncia financeira e tcnica s escolas e a atribuio de regulamentar o exerccio dasprofisses. Com estes dois instrumentos, o seu poder continuar, dentro do sistemadescentralizado e vivo da educao nacional, to forte e de tamanhas potencialidades, queantes ser de recear a sua ao excessivamente uniformizante, suscetvel de bloqueariniciativas felizes, locais e estaduais, do que qualquer imaginrio perigo da liberdade quese dar ao Estado e ao Municpio, muito mais para lhes permitir assumir aresponsabilidade do seu ensino e com ela a possibilidade de faz-lo real e vivo, do que,efetivamente, para organiz-lo sua discrio.

    Com efeito, embora as instituies escolares tenham objetivos prprios, todas elas searticulam em um sistema contnuo de educao, em que os graus mais altos influem naorganizao e sentido dos menos altos, determinando isto que o ensino mdio condicioneo primrio e o superior condicione o mdio.

    a unidade vital, em oposio desagregao mineralizada dos sistemas unitrios euniformes. O Municpio, com o seu sistema de escolas locais, primrias e mdias,enraizadas no solo fsico e cultural do Brasil, brasileiras como as que mais o sejam,o Estado, com as suas escolas mdias, superiores e profissionais, exercendo e sofrendo a

    influncia das escolas locais e detendo o poder de formar o magistrio primrio, e a Unio,com o sistema federal supletivo de escolas superiores, escolas primrias e mdias dedemonstrao, rgos de pesquisa educacional e o poder de regulamentar as profisses, -atuaro em diferentes ordens, independentes mas articuladas, constituindo a ao trplice,mas convergente, dos trs poderes, algo de dinmicamente sistemtico e unificado. De talmodo sistemtico e unificado, que somente no ser excessivamente rgido, porque o jogode influncias dominantes das ordens superiores sobre as inferiores s se exerceriacontinuamente pela assistncia tcnica - propulsionada pela assistncia financeira - graas qual o poder talvez ainda demasiado grande do Estado e da Unio se adoar sobformas de ao mtua, em que o jogo de influncia no se faa somente no sentidodescendente, mas de maneira recproca, recebendo a ordem superior o influxo da inferior

    para maior eficcia e fertilidade de sua prpria atividade.

    Muito do carter mecnico, irreal e abstrato de nossas escolas desaparecer em virtudedessas altas medidas polticas e administrativas, ressurgindo, em seu lugar, as virtudes tobrasileiras do seu gnio criador que, em outras esferas, vem produzindo as adaptaes tocaractersticas de sua civilizao em formao, em que se misturam traos to complexose delicados de influncias de toda ordem, sobressaindo mais que todos os aspectos de umdinamismo criador e otimista, sem as durezas do competivismo americano, masequilibrado, em sua febre, por um gro de sal humanstico que nos vm da douraessencial do nosso temperamento tropical e mestio.

    Institudos que sejam os rgos locais, estaduais e federais de propulso, financiamento eadministrao do imenso empreendimento escolar para a formao e o preparo do

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    brasileiro, cujas bases se encontram lanadas em nossa Constituio, com oreconhecimento expresso das trs ordens de atribuies - municipal, estadual e federal - ea separao compulsria do mnimo de dez por cento de toda a tributao para os servioseducacionais, postos todos eles em funcionamento numa ao independente, massinrgica e harmnica - que perspectivas no se abriro para a escola brasileira e que

    segurana no ter o pas de ver, afinal, a sua populao servida das oportunidadeseducativas necessrias para a plena ecloso de sua cultura e de sua civilizao?

    Aspectos administrativos dessa nova poltica

    Assim como procuramos, numa viso de conjunto, encarar apresente situao educacionalbrasileira, em suas deficincias, ensaiemos agora prever os novos desenvolvimentos que adescentralizao e a liberdade de organizao, pelo plano aqui esboado, podero trazeraos servios escolares brasileiros.

    Primeiro que tudo teremos criado com o novo plano cerca de trs mil unidadesadministrativas escolares em todo o pas, que tanto so os municpios, com os seusconselhos de administrao escolar representativos da comunidade, paralelos aosconselhos municipais ou cmaras de vereadores, com poderes reais e no-fictcios degesto autnoma do fundo escolar municipal e direo das escolas locais.

    Tais conselhos disporo no somente dos recursos locais, equivalentes a vinte por centodos recursos tributrios dos municpios, mas tambm, dos recursos estaduais e federaisque forem atribudos ao municpio na proporo de sua populao escolarizvel. O totaldas trs contribuies ser administrado pelo conselho municipal escolar obedecendo adispositivos orgnicos, pelos quais se estabelecer que esse dinheiro pertence s crianas

    de sua comuna, no abstratamente consideradas, mas a cada uma das crianas, segundoa quota-parte que lhe couber na diviso do monte por todas elas. Este princpiodeterminar que o sistema de escolas a ser organizado dever condicionar-sefinanceiramente ao limitedessa quota-parte por aluno, ficando o salrio do professor, asdespesas de administrao, de material didtico e geral, e do prdio, contidas dentrodesse limite, em propores fixadas como as mais razoveis.

    As vantagens dessa organizao so, sobretudo, as de sua progressividade. O municpio,com a responsabilidade de manter as escolas para a sua populao escolar, ter, de anopara ano maiores recursos, podendo traar um plano de progresso orgnico e real. As trsquotas que lhe alimentam o sistema sero cada ano maiores e por se distriburem em

    percentagens definidas, para o pagamento do magistrio, administrao e ao material eprdio, passaro a oferecer as condies indispensveis da viabilidade do plano. Confiadoesse plano responsabilidade local e deste modo ao natural entusiasmo da comunidade, aescola, cuja necessidade comea a ser to vigorosamente sentida pela populaobrasileira, far-se- no s a sua instituio mais cuidada e mais querida, como overdadeiro orgulho da cidade ou do campo. Em outros tempos, quando a educao escolarera uma imposio de outra cultura, podia-se compreender a escola organizada e dirigida distncia pela metrpole "colonizadora". Hoje, a escola flui e decorre de nossa prpriacultura, dinmica e em transformao, mas comum e, embora em estgios diversos dedesenvolvimento, toda ela una e brasileira.

    Restitudas, assim, as condies necessrias vitalidade da instituio escolar, teremosestabelecido as condies que faltam ao progresso educacional. Isto, entretanto, no ser

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    tudo, pois, alm daquelas condies, precisaremos de esforos e direo inteligente. Oesforo dever decorrer do interesse local e a inteligncia, da direo, do esprito deestudo, que dominar a assistncia tcnica a ser dada ao sistema pelo Estado e a Unio,assistncia tcnica fortalecida e motivada pela assistncia financeira.

    Ao sistema esttico mecnico de hoje, com escolas desenraizadas, organizadas distncia, com professores vindos do centro e a este centro ligados pelos vencimentos epelas ordens que recebem, opor-se- o sistema imperfeito, mas vivo, de escolas locais,dirigidas e mantidas por rgos locais, ansiosas de assistncia, mas conscientes de suaautonomia, prontas a colaborar com o Estado e a Unio, dos quais recebem os recursossuplementares para o seu progresso e a assistncia tcnica para o seu aperfeioamento.

    Alm disto, no esqueamos de que o Estado, pela formao do magistrio - mediante umsistema de bolsas oferecidas a cada municpio para o suprimento, por elementos locais, doseu corpo docente - ter em cada um dos sistemas locais de ensino as mestras, suasrepresentantes, no como parcelas do seu poder, mas como filhas da escola normalestadual, alma-materde todo o magistrio.

    H, portanto, motivos para acreditar que o plano aqui esboado pode concorrer para arevitalizao do movimento de expanso escolar, sem que a revoluo de mecanismosadministrativos que encerra traga outros resultados seno os de promover asinsuspeitadas energias que a autonomia e descentralizao iro, por certo, desencadear,para o desenvolvimento dinmico e harmonioso da escola primria brasileira.

    Acima ou base de uma tal educao fundamental e comum, a mais importante semdvida das que ir proporcionar a nao aos seus filhos, se erguer o sistema de escolas

    mdias, destinadas a continuar nos trabalhos prticos e industriais ou nos trabalhosintelectuais, todos eles equivalentes cultural e socialmente, pois os alunos se distribuiro,segundo os interesses e aptides, para a constituio dos quadros do trabalho de nvelmdio, sejam as ocupaes de natureza intelectual ou de natureza prtica.

    O velho debate entre ensino de letras, de cincias ou de tcnicas desfaz-se luz da novascircunstncias na vida moderna, pois todos eles so necessrios, constituindo problemaapenas o de saber quais e quantos alunos devem ter formao cientfica e terica e quaise quantos alunos devem receber formao tcnica e de cincia aplicada. Em cada umdesses ramos, o currculo variar para a formao diversificada e variada, at mesmo nocurrculo clssico, em que se formaro helenistas, latinistas e especialistas de letras

    modernas, como j acontece nos cursos predominantemente cientficos ou tcnicos.

    Todas as escolas mdias, que se organizaro com uma alta dose de liberdade, seroconsideradas equivalentes e objeto no de "equiparao" a modelos legais, mas de"classificao" pelos rgos tcnicos do Governo, segundo o grau em que atinjam osobjetivos a que se prope.

    A validade dos seus resultados ser apurada por exames de estado, feitos emdeterminados perodos do curso, exames de estado que se destinam, do ponto de vistalegal, apenas habilitao ao concurso vestibular para as escolas superiores euniversidades.

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    Suprimido o currculo rgido e uniforme, imposto pela legislao federal, de esperar que aansiedade por educao ps-primria, que est a marcar a fase educacional presente, seoriente melhor, buscando os diferentes caminhos de ensino mdio e alargando a "escadaeducacional" com melhor e mais adequada distribuio dos adolescentes, segundo assuas reais aptides e as maiores necessidades do trabalho nacional.

    Chegamos, assim, ao ensino superior, tambm ele em expanso insofrida, em funo maisou menos do desenvolvimento brasileiro. Sobem hoje a mais de 360 os estabelecimentosdo ensino superior, com cerca de 700 cursos diferentes e mais de 70 mil alunos. Noparece fcil deter-lhe a expanso. A legislao dever antes buscar controlar-lhe osefeitos, substituindo os processos de "equiparao" por processos de "classificao" dasescolas, organizando um sistema paralelo de exames de estadode nvel superior, paraaprovao nas sries finais dos seus cursos bsicos e profissionais, permitindo eestimulando a variedade de currculos e de cursos profissionais, com o objetivo de permitir escola superior o mais amplo uso de seus recursos humanos e materiais, na formaodos quadros variados em nvel e em especializao do seu trabalho de teor mais alto.

    Uma lei feliz de regulamentao do exerccio profissional, entregando, talvez, a licenadefinitiva para o exerccio da profisso, aos sindicatos e associaes de classe, viria,possivelmente, permitir a liberdade do ensino superior sem os perigos de uma inadequadainflao de diplomados. Os sindicatos e associaes de classe, altamente conscientes dosinteresses econmicos dos grupos profissionais e espontaneamente prevenidos contra aquebra de padres de ensino e formao, atuariam como freios contra a improvisao deescolas superiores e a m distribuio de profissionais pelas diferentes especialidades.

    O Governo manteria os servios de "classificao" das escolas superiores e os de

    levantamento e estatstica em relao aos profissionais de nvel superior, seu mercado detrabalho, sua distribuio pelo pas, faltas e excessos, e necessidades novas criadas pelodesenvolvimento nacional.

    O esprito geral da legislao de ensino superior seria o mesmo que inspiraria a legislaogeral da educao: fixao de objetivos e condies exteriores, pela lei, e determinaodos processos, currculos e condies internas do ensino, pela conscincia profissional dosprofessores e especialistas de educao.

    Com a diviso de atribuies proposta entre as trs ordens de poderes pblicos, teremoscriado as condies, por meio das quais a nao ir manter um autntico sistema escolar

    nacional, geral e pblico, para a infncia, a juventude e os adultos brasileiros, sistema que,no seu jogo de foras e controles mltiplos e indiretos, poder indefinidamentedesenvolver-se.

    Ser um verdadeiro reajustamento institucional da escola, abrindo oportunidade para umperodo de ampla experimentao social, em que o pas se descobrir e se construir paraos seus destinos soberanos e prprios.

    A educao para o desenvolvimento, a educao para o trabalho, a educao paraproduzir, substituir a educao transplantada e obsoleta, a educao para a ilustrao,para o ornamento e, no melhor dos casos, para o lazer.

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    Alm disto, a educao ajustada s condies culturais brasileiras se far autntica everdadeira, identificando-se com o pas e ajudando a melhor descobri-lo, para cooperar,como lhe cabe, na grande tarefa de construo da cultura brasileira, flor mais alta da suacivilizao.

    A reconstruo educacional da nao se ter de fazer com essa liberdade a esse respeitopelas suas condies, como afirmao suprema da nossa confiana no Brasil, a cujo povo,hoje unificado e enrgico, devemos entregar, com o mximo de autonomia local, a obra desua prpria formao.

    Sumrio

    Procuramos analisar a situao educacional brasileira luz dos conceitos de "educaoseletiva", para a formao de elites, e "educao comum", para a formao do cidadocomum da democracia.

    Mostramos como essa "educao comum" no s um postulado democrtico, mas umpostulado do novo conceito de conhecimento cientfico, que tornou comuns as atividadesintelectuais e de trabalho, ou sejam de saber e de fazer, que se distinguem como divises,equivalentes, do mesmo esforo sempre inteligente e especializado ou tcnico.

    Salientamos, entretanto, que entre ns, a despeito dessa evoluo do conhecimento e dassociedades, as resistncias aristocrticas da nossa histria no permitiram que a escolapblica, de educao comum, jamais se caracterizasse integralmente. Toda nossaeducao se conservou seletiva e de elite.

    A expanso educacional brasileira participa desse vcio, quase diria, congnito. Indicamos,entretanto, o que nos parece deveria ser a nova poltica educacional para o Brasil e, a fimde promov-la, bosquejamos um sistema de administrao em que se casem as vantagensda descentralizao e autonomia com a da integrao e unidade dos trs poderes -federal, estadual e municipal - do pas.

    PARTE II

    TEIXEIRA, Ansio. A escola pblica universal e gratuita. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Rio deJaneiro, v.26, n.64, out./dez. 1956. p.3-27.

    A ESCOLA PBLICA, UNIVERSAL E GRATUITA

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    No ms de maio ltimo, reuniram-se em Lima, convocados pela Organizao dos EstadosAmericanos (a antiga Unio Pan-Americana), os representantes dos Governos nacionaisdo nosso continente. stes representantes no eram ministros da Fazenda, nem ministrosdo Exterior. Eram ministros da Educao. O tema da reunio no era a poltica exteriornem a poltica econmica ou financeira, e sim a poltica educacional. E em poltica

    educacional, no se debateram os problemas do ensino secundrio, nem do ensinosuperior; mas, do ensino primrio.

    A despeito do carter de que se revestem quase sempre essas reunies internacionais, doseu ar tantas vzes irremedivelmente convencional, os que l estiveram sentiram, emmais de um momento, que algo de histrico se processava na evoluo poltica dasAmricas. O drama de 59 milhes de analfabetos, inclusive os de idade escolar, daAmrica latina e de outros tantos milhes de semi-alfabetizados, em suas escolasprimrias de dois e trs anos de estudos e de dois e trs turnos por dia letivo, repercutianos sales do edifcio do Congresso Nacional de Lima, onde se realizou a reuniointeramericana, como um trovejar, talvez ainda distante, mas j suficientemente audvel, da

    conscincia popular dos povos americanos. Dir-se-ia que, despertados afinal para as suasreivindicaes fundamentais, eram os povos do Continente que convocavam aquleconclave, para a fixao de medidas destinadas a assegurar-lhes o direito dos direitos:uma escola primria, eficiente e adequada, para todos.

    E por isto mesmo - a despeito das vozes, muito nossas conhecidas, dos que ainda julgampossvel reduzir a educao popular, na Amrica latina, mistificao das escolasprimrias de tempo parcial e de curtos perodos anuais - a assemblia decidiu, com aafirmao de princpios da "Declarao de Lima", por uma escolaprimria de seis anos decurso e dias letivos completos.

    No mesmo ano, em que os governos americanos, reunidos em assemblia, fizeram taldeclarao histrica, o Estado de So Paulo, isto , o estado-lder da federao brasileira,convoca o seu primeiro Congresso de Ensino Primrio.

    Sabemos que um fato no est ligado a outro. Mas, a coincidncia pode ser tida comosignificativa: a mesma obscura fra, que est movendo a conscincia coletiva, parecehaver atuado para a escolha do tema da reunio de Lima, como para a reunio, no anopassado, do Congresso de Professres Primrios, de Belo Horizonte, e para steCongresso do Ensino Primrio, de So Paulo, ora aqui reunido, em Ribeiro Prto.Presumo que se trata de um sinal, um grande sinal, de amadurecimento da conscincia

    pblica do pas.

    Por isso estou seguro de que no estamos aqui para discutir, como tanto do nosso gsto,a educao dos poucos, a educao dos privilegiados, mas a educao dos muitos, aeducao de todos, a fim de que se abra para o nosso povo aquela igualdade inicial deoportunidades, condio mesma para a sua indispensvel integrao social.

    No se pode ocultar ser algo tardio sse movimento de emancipao educacional ou deemancipao pela educao.

    Desde a segunda metade do sculo dezenove, quando no antes, as naes

    desenvolvidas haviam cuidado da educao universal e gratuita. Cogitando de realiz-la,agora, em poca que, na verdade, j se caracteriza por outras agudas reivindicaes

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    sociais, de mais ntido ou imediato carter econmico, corremos o risco de no poderconfigurar com a necessria clareza os objetivos da emancipao educacional. que, nocaso, trata-se ainda de algo que j nos devia ter sido dado, que j h muito fra dado aoutros povos, de cujas atuais aspiraes queremos partilhar. Estas novas aspiraes, maisfortemente motivadas pelos imperativos da poca, sobrepem-se s aspiraes

    educacionais e de certo modo as desfiguram, criando, pela falta de sincronismo, especiaisdificuldades para o seu adequado planejamento.

    A relativa ausncia de vigor de nossa atual concepo de escola pblicae a aceitaosemi-indiferente da escola particular foram e so, ao meu ver, um dos aspectos dessadesfigurao generalizada de que sofre a poltica educacional brasileira, em virtude doanacronismo do nosso movimento de educao popular.

    Como os povos desenvolvidos j no tm hoje (salvo mnimos pormenores) o problema dacriao de um sistema, universal e gratuito, de escolas pblicas, porque o criaram emperodo anterior, falta-nos, em nosso irremedivel e crnico mimetismo social e poltico, aressonncia necessria para um movimento que, nos parecendo e sendo de fatoanacrnico, exige de ns a disciplina difcil de nos representarmos em outra poca, queno a atual do mundo, e de pautarmos os nossos planos, descontando a decalagemhistrica com a necessria originalidade de conceitos e planos, para realizar, hoje, emcondies peculiares outras, algo que o mundo realizou em muito mais feliz e propcioinstante histrico.

    Se nos dermos ao trabalho de voltar atrs e ouvir as vozes dos que ainda no curso dosculo dezenove, no mundo, e, entre ns, imediatamente antes e logo depois da repblica,definiram (mesmo ento com atraso) os objetivos do movimento de emancipao

    educacional, ficaremos surpreendidos com a intensidade do tom de reivindicao social,que caracterizava o movimento. que a escola era, na poca, a maior e mais claraconquista social. E hoje, o anseio por outras conquistas, mais pretensiosas e atropeladas,a despeito de no poderem, em rigor, ser realizadas sem a escola bsica, tomaram afrente e subalternizaram a reivindicao educativa primordial. Tomemos, com efeito, aoacaso, as expresses de um dsses pioneiros continentais da educao popular - por umconjunto de circunstncias, o primeiro: Horace Mann. O grande batalhador da educaopblica e universal, nos Estados Unidos, que no continente s encontra paralelocontemporneo em Sarmiento, na Argentina, considerava a "escola pblica" - a escolacomum para todos - a maior inveno humana de todos os tempos. E em seu relatrio aoConselho de Educao de Boston, assim falava, h cento e oito anos (1848):

    "Nada, por certo, salvo a educao universal, pode contrabalanar atendncia dominao do capital e servilidade do trabalho. Seuma classe possui tda a riqueza e tda a educao, enquanto orestante da sociedade ignorante e pobre, pouco importa o nomeque dermos relao entre uns e outros: em verdade e de fato, ossegundos sero os dependentes servis e subjugados dos primeiros.Mas, se a educao fr difundida por igual, atrair ela, com a maisforte de tdas as fras, posses e bens, pois nunca aconteceu enunca acontecer que um corpo de homens inteligentes e prticosvenha a se conservar permanentemente pobre ...

    "A educao, portanto, mais do que qualquer outro instrumento de

    origem humana, a grande igualadora das condies entre oshomens - a roda do leme da maquinaria social ... D a cada homem

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    a independncia e os meios de resistir ao egosmo dos outroshomens. Faz mais do que desarmar os pobres de sua hostilidadepara com os ricos: impede-os de ser pobres." (*)

    Era com ste esprito que se pregava a escola pblica em 1848. J no era o iluminismoou a "ilustrao", filosficos, do sculo dezoito, mas todo o utilitarismode uma doutrina deigualdade social pela educao. J no era o puro romantismo individualista, to vivoainda, alis, por todo o sculo dezenove, a crer, ainda com Spencer, que o devido aoindivduo era s a liberdade, no sentido negativo de no interferncia - da no seressencial ou ser at ilcito dar-lhe o Estado educao. . . - mas a doutrina positiva de que aliberdade sem educao, isto , sem o poder queo saber d, era uma impostura e umlgro...

    Obrigatria, gratuita e universal, a educao s poderia ser ministrada pelo Estado.Impossvel deix-la confiada a particulares, pois stes smente podiam oferec-la aos quetivessem posses (ou a "protegidos") e da operar antes para perpetuar as desigualdades

    sociais, que para remov-las. A escola pblica, comum a todos, no seria, assim, oinstrumento de benevolncia de uma classe dominante, tomada de generosidade ou demdo, mas um direito do povo, sobretudo das classes trabalhadoras, para que, na ordemcapitalista, o trabalho (no se trata, com efeito, de nenhuma doutrina socialista, mas domelhor capitalismo) no se conservasse servil, submetido e degradado, mas, igual aocapital na conscincia de suas reivindicaes e dos seus direitos.

    A escola pblica universal e gratuita no doutrina especficamente socialista, como no socialista a doutrina dos sindicatos e do direito de organizao dos trabalhadores, antesso stes os pontos fundamentais por que se afirmou e possvelmente ainda se afirma aviabilidade do capitalismo ou o remdio e o freio para os desvios que o tornariam

    intolervel.

    A sobrevivncia do capitalismo, em grande parte do mundo, no se explica seno porstes dois recursos ou instrumentos de defesa contra a desigualdade excessiva que ocapitalismo provocaria e provoca, sempre que faltem ao povo escola pblica e sindicatolivre.

    Por que, ento, faltou e falta ao Brasil a conscincia precisa de que, antes de qualqueroutra reivindicao, cabe-lhe reivindicar a escola pblica, universal, gratuita e eficiente, e osindicato, livre e autnomo? Porque, aparentemente, lhe parece bastar a simulaoeducacional de escolas de faz-de-conta e os sindicatos de cabresto, que lhe tm dado,como altssimo favor de deuses a pobres mortais, governos de despotismo mais ou menos"esclarecido" ou ditaduras falhadas?

    Estou em que uma das razes o anacronismo a que me referi. Reivindicaes sociais,para que a escola iria preparar o povo, amadureceram e esto sendo quiatropeladamente satisfeitas, com ou sem fraude aparente, em face da acelerao doprocesso histrico, impedindo-nos de ver, com a necessria exatido, quanto nos faltamainda de reivindicaes anteriores e condicionadoras, no satisfeitas no devido tempo e,por isto mesmo, mais difceis ainda de apreciar e avaliar exata ou adequadamente.

    Alm da dificuldade inerente ao carter preparatrio ou de "preliminar" condicionante,prprio das reivindicaes educacionais, temos a dificuldade do anacronismo que elas ora

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    arrastam consigo e estamos a focalizar, com a sobrecarga, ainda mais grave, dedificuldades especficas decorrentes da acelerao do processo histrico, geral,acelerao sempre mais propcia a reivindicaes consumatrias e finalistas, do que areivindicaes preliminares e instrumentais, como so as de educao.

    Por todos sses motivos foroso reconhecer que h uma certa perda de contrno nasmais legtimas reivindicaes educacionais, adquirindo o processo de nossa expansoescolar o carter tumulturio de reivindicaes sobretudo de vantagens e privilgios, o queme tem levado a consider-lo mais como um movimento de dissoluo do que deexpanso. Foi, com efeito, essa desfigurao da natureza da reivindicao educacionalque elevou a matrcula da escola primria, sem lhe dar prdios nem aparelhamento, quemultiplicou os ginsios, sem lhes dar professres, e que faz brotar do papel at escolassuperiores e universidades, com mais facilidade do que brotam cogumelos nos recantosmais sombrios e midos das florestas...

    No faltam, entretanto, os que estadeiam certo orgulho ferido ou afetam mesmo um sorrisosuperior, ao ouvirem aqules dentre ns que se levantam para afirmar que uma talexpanso no expanso, mas dissoluo... Somos chamados de pessimistas,convocando-nos os nossos Panglossa ver que o Brasil progride por todos os poros e queo congestionamento, a confuso, a reduo dos horrios e a falta de aproveitamento nasescolas so outras tantas demonstraes dsse progresso.

    Mas, ao lado dles, j so numerosas as vozes que se erguem, apreensivas e graves. Averdade que j se faz difcil ocultar a descaracterizao do nosso movimentoeducacional. Pode-se expandir, pelo simples aumento de participantes, um espetculo, umato recreativo, em rigor, algo de consumatrio, mas, no se pode expandir, smente pelo

    aumento de participantes um processo, temporal e espacial, longo e complexo de preparoindividual, como o educativo. E o que vimos fazendo , em grande parte, a expanso docorpo de participantes, com o congestionamento da matrcula, a reduo de horrios, aimprovisao de escolas de tda ordem, sem as condies mnimas necessrias defuncionamento. Tudo isto seria j gravssimo. Mas, pior do que tudo, est a confusogerada pela aparente expanso, tumulturia, levando o povo a crer que a educao no um processo de cultivo de cada indivduo, mas um privilgio, que se adquire pelaparticipao em certa rotina formalista, concretizada no ritual aligeirado de nossas escolas.Est claro que tal conceito de escola no explcito, mas decorre do que fazemos. Sepodemos desdobrar, tresdobrar e at elevar a quatro os turnos das escolas primrias, seautorizamos ginsios e escolas superiores sem professres nem aparelhamento, - que a

    escola uma formalidade, que at se pode dispensar, como se dispensam, naprocessualstica judiciria, certas condies de pura forma.

    No difcil demonstrar que nem sempre assim procedemos, nem sempre assimpensamos. Em verdade, os nossos educadores do incio do perodo republicano revelavamuma adequada consonncia com os educadores de todo o mundo, no conceituar aeducao e no caracterizar o movimento de educao popular, que ento se iniciava nopas, com o advento da repblica.

    No posso fugir de citar aqui alguns paulistas, cujas palavras parecem de verdadeirosmulos dos Mann, Sarmiento e Varela, que, mais felizes, lograram realizar em suas

    naes, na poca prpria, muito do que pregaram.

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    Retiro as citaes de discursos e relatrios feitos todos antes do incio dste sculo, aindano fervor republicano da dcada ltima do sculo dezenove.

    Caetano de Campos, Cesrio Mota, Gabriel Prestes (para s citar paulistas) aqui iro nosrevelar como era viva e lcida e quente a convico democrtica da funo da escola, na

    repblica e em seus primrdios.

    "A democratizao do poder restituiu ao povo uma tal soma deautonomia, que em todos os ramos de administrao hojeindispensvel consultar e satisfazer suas necessidades. J que arevoluo entregou ao povo a direo de si mesmo, nada maisurgente do que cultivar-lhe o esprito, dar-lhe a elevao moral deque le precisa, formar-lhe o carter, para que saiba querer.

    "Dantes pagava a nao os professres dosprncipessob o pretextode que stes careciam duma instruo fora do comum para saberdirigi-Ia. Hoje oprncipe opovo, e urge que le alcance o "self-

    government" - pois s pela convico cientfica pode ser levado,desde que no h que zelar o intersse de uma famlia privilegiada.

    "A instruo do povo , portanto, sua maior necessidade. Parao Govrno, educar o povo um devere um intersse: dever, porquea gerncia dos dinheiros pblicos acarreta a obrigao de formarescolas; intersse, porque s independente quem tem o espritoculto, e a educao cria, avigora e mantm a posse da liberdade.

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    " bvio que ningum tolher aos cidados o direito de abrir escolasparticulares. Estas no sero, porm, em nmero suficiente para apopulao, e nem acessveis para a grande massa do proletariado.

    "Demais, com a exigncia do ensino moderno, tais instituies,quando mesmo bem fornidas de um material escolar suficiente,pesaro sbre a blsa do particular de modo tal que, semremunerao, no podero ter alunos.

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    "Bastaria apontar a histria do Brasil monrquico para saber quo

    improgressiva mostrou-se at hoje a famlia brasileira. Entre a escolaprimria - irrisria e condenvel como era, e j eu disse ao princpio -entre a "escola rgia" e a Academia, nenhuma educao dava oGovrno ao povo. S os colgios particulares forneciam, aos quepodiam pagar, um preparo literrio, que visava a matrcula noscursos superiores.

    "No era por certo com a gramtica ensinada desde a primeiraidade, e o latim, decorado at Academia, que o brasileiro poderiaconhecer as leis da natureza, nem saber cultivar o solo, nemenvolver-se nas indstrias e nas artes.

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    "Todos ns sabemos o que valiam tais estudos, em que a gramtica,o latim, a filosofia... de Barbe, a retrica eram "magna pars". Homensque mal sabiam ler e escrever - em pequena percentagem - edoutores: eis a nica coisa que se podia ser no Brasil." (*)

    E trs anos depois, em discurso na inaugurao da Escola Normal da Praa da Repblica:

    "A Repblica foi, pois, a sntese da ltima fase da nossa civilizao.

    "Proclamada a nova forma de govrno, fz-se mister realiz-la emtda sua integridade. A primeira coisa, entretanto, que desde logoferiu os olhos deslumbrados dos que se acharam de passe do novoregime, foi que, com le, as necessidades da democracia seaumentaram. O que era delegao no antigo sistema, ao diretano novo; as inculpaes, que outrora se faziam ao govrno, recaemagora sbre o prprio povo; as aptides requeridas nos seushomens, le quem as deve ter porque le quem tem degovernar, le quem tem de dirigir osseus destinos.

    " semelhana do capito a quem se incumbiu a direo do naviodesarvorado em alto-mar, o povo viu-se atnito no momento em quetomou o domnio de si mesmo. Reconheceu faltarem-lhe aparelhospara as manobras. Desde logo surgiu forosa a convico danecessidade de saber.

    "A idia da instruo ento imps-se.

    " que prticamente ficou demonstrado o asserto, to conhecido, doimortal americano: "A democracia sem a instruo ser umacomdia, quando no chegue a ser tragdia". que a Repblica,