Artigo - Helder - Política de Quem. Qual Comunidade

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    Síntese - Rev. de Filosoa. 41 . 131 (2014): 415-439

    POLÍTICA DE QUEM? QUAL COMUNIDADE? *

    Whose politics? Which community?

    Helder Buenos Aires de Carvalho **

    * O presente texto contém partes de trabalhos publicados anteriormente (Carvalho 2003, 2006).* Professor Associado II, Departamento de Filosoa da Universidade Federal do Piauí. Ar-tigo submetido a avalia ão no dia 2/12/2014 e aprovado para publica ão no dia 3/12/2014.

    Resumo: A losoa moral e política de Alasdair MacIntyre tem sido classicadafrequentemente como comunitarista no âmbito do debate é tico-pol í tico com oliberalismo, a despeito dele recusar textualmente tal alinhamento e empreen-der cr í tica a essa posi ção como conservadora. Buscamos justamente precisar aposi ção de MacIntyre quanto à s suas concep çõ es de comunidade e de pol í tica,explicitando os pontos principais de sua formula ção te ó rica que a distinguemdos comunitaristas tradicionais e as implica çõ es de sua cr í tica para pensarmoso lugar e o valor da pol í tica e da comunidade na vida das modernas sociedadescapitalistas fragmentadas.

    Palavras-chave: Comunidade, MacIntyre, pol í tica, virtudes.

    Abstract : MacIntyre’s Moral and Political Philosophy has o en been describedas communitarian in the current political and ethical debate with liberalism,and in spite of the author’s wri en refusal of such an alignment and his criti -que concerning a position he judged politically conservative. This article willfocus on MacIntyre’s conceptions of community and politics by highlighting themain points of his theory, differing from that of classic communitarians, andby looking at the implications of his critique in order to think about the placeand value of community and politics in fragmented modern capitalist societies.Keywords: Community, MacIntyre, politics, virtues.

    umento:7514 Sintese 131 ok.pdf;Página:95;Data:17 de 12 de 2014 16:27:06;conferido LUTADOR

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    I

    No âmbito da losoa social, moral e política contemporânea aconexão entre comunidade e política tem sido um dos objetoscentrais de discussão. Como caracteriza Bessant (2010), “um

    amplo espectro de lósofos sociais, teóricos e comentadores assumirama ‘busca pela comunidade’ (Nisbet, [1953] 1967)”.1 O nominado debateético-político anglo-saxão entre liberais e comunitaristas, que emergiu apartir da década de 80 do último século, marcou um retorno importanteda ideia de comunidade ao cenário losóco-político, até então dominadopela perspectiva liberal que não a tematizava de forma signicativa oumesmo desconsiderava-a como elemento constitutivo apropriado em umareexão política. Bovero (2002) considera que os comunitaristas seriam“os lósofos deste novo common sense , e que também graças a eles a ideia

    de comunidade assumiu o papel de estrela polar para a orientação ideológica devastos e heterogê neos movimentos de opinião”.2 Conforme indica Kymlicka,“A maior parte dos lósofos liberais contemporâneos só tem poucas coisasa dizer sobre o ideal de comunidade. Quando a comunidade é evocada, ésempre enquanto derivada da liberdade e da igualdade: uma sociedade honrao ideal de comunidade se seus membros são tratados como pessoas livrese iguais. As concep es liberais da política não incluem nenhum princípioda comunidade autônomo, tal como a comunidade de nacionalidade, delíngua, de cultura, de religião, de história ou modo de vida”.3

    Mas essa ideia de “comunidade” como um dos focos atrativos do de- bate ético-político contemporâneo não deve, entretanto, iludir-nos deque carregue uma univocidade de sentido em sua tematiza ão pelosprincipais autores envolvidos/nominados como comunitaristas. O termo“comunitarismo” – isso vale também para “liberalismo” – não possui umasignica ão única, estando carregado de vieses em sua formula ão pelosdiferentes defensores, valendo muito mais como um termo guarda-chuvapara posi es losóco-políticas variadas, ainda que tome a comunidadecomo foco fundamental para pensar a vida política.4 A própria no ão de“comunidade” também chama aten ão justamente pela heterogeneidadede suas denota es, incluindo desde a família, a tribo, o grupo étnico ou

    1 BESSANT, K. C. Authenticity, Community, and Modernity. Journal for the Theory of SocialBehaviour. (2010): 1-31, p. 1.2 BOVERO, M. Quale comunità? In PAZÉ, Valentina. Il conce o di comunitá nella losoa politicacontemporanea. Milano: Laterza, 2002. P. .3 KYMLICKA, Will. Communautarisme. IN: CANTO-SPERBER, M. (ed). Dictionnaire dePhilosophie Morale et Politique. Paris: PUF, 1994, pp. 263-270. p. 263.4 Cf. MULHALL, S. & SWIFT, A. Liberals and Communitarians. 2nd ed. London: Wiley-Blackwell,1996. Ver também PAZÉ, Valentina. Il conce o di comunitá nella losoa politica contemporanea.Milano: Laterza, 2002.

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    linguístico, cultural ou religioso, passando pela vizinhan a, pela cidade epaíses, associa es voluntárias, sindicatos e movimentos variados, e atémesmo o Estado concebido em chave ética, nacionalista ou republicano--patriótica, e ainda comunidades virtuais.5

    O comunitarismo é mais frequentemente caracterizado como um movi-mento teórico cuja tese central é a necessidade de tomar justamente acomunidade como um núcleo da reexão política, dando-lhe o mesmopeso e importância que a liberdade e a igualdade, ou mesmo a prioridadesobre elas. A comunidade é vista “enquanto fundamento, princí pio ou justi- cativa racional da sociabilidade e da justiça, numa rejeição explícita do ideal deautonomia individual” , em contraposi ão a teses comumente rotuladas comoliberais.6 Conforme Lara (1994), os termos “comunitarista” ou “comuni-tariano” emergiram no contexto do debate em torno da obra A Theory of Justice (1971) de John Rawls,

    “A primeira ocorrência deste vocabulário parece ser a obra de MichaelSandel, Liberalism and the Limits of Justice (1982), mesmo que, no rico debatesuscitado pela obra de Rawls, outros autores tenham anteriormente expostosas mesmas críticas comunitaristas. Se o livro de Rawls ocupou um papelde estimulante acadêmico, esse debate losóco está estreitamente ligadoà política americana e é alimentado por uma interroga ão sobre a inter-preta ão da constitui ão, a natureza dos direitos do homem, e o equilíbrioentre os poderes judiciário e executivo. Contudo, os comunitaristas e seusadversários ‘liberais’ não formam duas linhas políticas claramente distintase afrontadas, mas um guarda-chuva de posi es e temas”.7

    Essa preocupa ão com a comunidade já se encontra também presente nomarxismo em sua formula ão do ideal comunista, mas, diferentemente deste,que considera necessário uma revolu ão destruidora do capitalismo paraa constru ão da nova sociedade socialista, os comunitaristas anglo-sax es,como lembra Kymlicka (1994), “estimam que a comunidade já existe, sob a forma de práticas sociais e tradições culturais comuns, e na forma de uma mesmacompreensão da sociedade. A comunidade não deve ser construí da de novo, e simser respeitada e protegida” .8 Essa referência à comunidade é também vista

    5

    Cf. BOVERO, op. cit. , 2002, p.v. Cf. também DELANTY, Gerard. Community. London, Rout-ledge, 2010 (ebook). Um sociólogo americano distinguiu 94 sentidos diferentes no âmbito dodebate político americano – ver FOWLES, R. B. The Dance with Community: The contemporarydebate in American Political Thought. Lawrence: University of Kansas Press, 1991.6 OLIVEIRA, Nythamar F. de. Eticidade e Religião: O comunitarismo do jovem Hegel. FilosoaPolí tica. Série III, no. 3 (2002): 88-105, p. 89.7 LARA, Paul de. Qu’est-ce que le communautarisme ? Revue Le Banquet. 4 (1994). h p://www.revue-lebanquet.com/fr/index.htm. Acessado em outubro de 2004. Ver também MU-LHALL & SWIFT, op. cit , 1996 sobre essa centralidade de Rawls na congura ão do debateliberal-comunitário.8 KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy: An introduction. Oxford: Oxford Uni-versity Press, 1994, p. 264.

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    por alguns estudiosos como tendo suas raízes na concep ão hegeliana decomunidade. Conforme Oliveira (2002),

    “Assim como o contrato social e o princípio da universalizabilidade servem

    para fundamentar, balizar ou justicar modelos universalistas liberais (ne-ocontratualistas), o ideal de comunidade e suas ideias correlatas (tradi ão,eticidade, língua, história, identidade cultural, étnica e religiosa) são evocadosnuma argumenta ão comunitarista recorrendo não mais ao ideal revolu-cionário marxiano, mas à concep ão hegeliana de comunidade (Gemeinde,Gemeinscha ) que permeia todas as rela es e institui es sociais, integrandoas esferas privada e pública (família, sociedade civil-burguesa e Estado)”.9

    Entre os representantes do comunitarismo, estão sempre referidos auto-res como Michael Sandel, Charles Taylor, Alasdair MacIntyre e MichaelWalzer, considerados losocamente centrais no movimento, bem comoautores como Philip Selznick, Robert Bellah e Amitai Etzioni, dentre ou-tros, considerados de segunda gera ão.10 Nosso foco aqui será a perspec-tiva losóca de Alasdair MacIntyre, buscando justamente precisar suaposi ão quanto às concep es de comunidade e de política, explicitandoos pontos principais de sua formula ão teórica – que a distinguiria doschamados comunitaristas, também objetos de sua crítica – e as implica esde sua crítica às sociedade liberais capitalistas para pensarmos o lugar eo valor da pol ítica e da comunidade na vida dessas modernas sociedadesfragmentadas.

    Mais especicamente, para realizar essa tarefa, vamos, primeiro, tematizara crítica de MacIntyre ao liberalismo – fonte da sua classica ão no roldo comunitarismo –, bem como sua recusa radical do Estado liberal, dadoque ele incorporou parte signicativa da crítica marxiana no seu libelocontra as formas de vida das sociedades liberais capitalistas e seus efeitosnocivos na experiência moral. Com isso, esclareceremos também as raz esde porque MacIntyre recusar ser nominado como um comunitarista. Emum segundo momento, reetiremos sobre as possibilidades de, a partir daperspectiva de MacIntyre, se pensar as rela es entre cidadania e estado,comunidade e política.11 Noutras palavras, vamos nos perguntar a qualcomunidade MacIntyre se refere em sua reexão e a política de quemele busca defender ao pensar a moralidade e a política a partir de uma

    perspectiva comunitária no horizonte ético das virtudes, mas no contexto

    9 OLIVEIRA, op. cit., 2002, 89-90. Segundo Gutmann, se os ‘antigos’ comunitaristas seguemMarx no projeto deste de refazer o mundo, os ‘novos’ comunitaristas se voltam para Hegel buscando reconciliar os homens com seu mundo. (GUTMANN, A. Communitarian criticsof liberalism. Philosophy & Public Affairs. Vol. 14, n. 3 (1985): 308-322). Essa lia ão a Hegelé muito explícita em Charles Taylor.10 Cf. MULHALL & SWIFT, op. cit., 1996; PAZÉ, op. cit., 2002.11 Aqui nossas fontes serão principalmente Beiner (2000) e Bielkis (2012).

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    inóspito das sociedades liberais capitalistas contemporâneas, objetos pri-vilegiados da crítica marxiana.

    MacIntyre tem sido caracterizado como defensor de um conservadoris-

    mo,12

    mesmo com sua forte crítica às sociedades capitalistas avan adase ao liberalismo como tradi ão moral e política que lhe dá sustenta ão.Como observei em outro lugar,13 as acusa es de conservadorismo e deser antidemocrático são promovidas por contemporâneos seus, cujas po-si es se situam dentro do campo teórico do liberalismo e até mesmo dofeminismo14 . Algumas dessas acusa es são movidas por uma incompre-ensão tácita da losoa política de MacIntyre15 ; outras são oriundas daincomensurabilidade que o próprio MacIntyre apontou entre seu projetoético-político neoaristotélico e o projeto liberal, o que torna certas carac-teriza es de suas posi es feitas pelos liberais bastante deformadas pelalinguagem conceitual destes16 , dado que MacIntyre não lan a a moralidadepara o campo do privado; e algumas poucas são bastante equivocadas,ao associá-lo a posi es ans ao nazismo e a outros totalitarismos dedireita 17 . Entre aqueles que veem com bons olhos a reexão ético-políticade MacIntyre, há quem o caracterize como um “revolucionário”18 , aindana tradi ão política marxista; já outros preferem ressaltar as notas carac-terísticas de MacIntyre como um crítico social.19 Então, que comunidadeé essa que MacIntyre defende? E qual política está a ela associada, queprovoca tais leituras tão diferenciadas?

    12 Ver KNOWLES, D. Political Philosophy. London, Routledge, 2001.13 CARVALHO, 2006.14 FRAZER, E. & LACEY, N. The Politics of Community: A feminist critique of the liberal-com-munitarian debate . Harvester Whealshead, 1993. p. 103-119; MacINTYRE, Feminism and theconcept of practice. IN: HORTON, J. & MENDUS. S. (eds). A er MacIntyre. Critical Perspec-tives of the Work of Alasdair MacIntyre. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1994, p.267-291. Segundo essas autoras, MacIntyre “situa a si mesmo na tradi ão aristotélica, e podeser lido como um conservador”, acrescentam ainda que o seu conceito central de “prática”é apolítico e não envolve uma concep ão “do exercício do poder que exija justica ão ouescrutínio crítico”.15 PUTNAM, Hilary. A reconsideration of Deweyan democracy. IN: Renewing Philosophy.

    Cambridge: Harvard University Press, 1992. p. 180-202.16 NAGEL, Thomas. MacIntyre versus the Enlightenment. IN: Other Minds . Oxford: OxfordUniversity Press, 1995. pp. 203-209.17 PHILLIPS, Derek. Looking Backward. A critical appraisal of communitarian thought. Princeton:Princeton University Press, 1993; HOLMES, Stephen. The Anatomy of Antiliberalism. Cambridge:Harvard University Press, 1993. Sobre isso, ver também a resenha CARVALHO, H. B. A. de.A propósito do comunitarismo. Sí ntese. 25, 83 (1998): p. 563-578.18 KNIGHT, K. Alasdair MacIntyre: Revolutionary Aristotelianism. Contemporary PoliticalStudies. Vol. 2. Ed. I. Hampster-Monk e J. Stanyer. London: Political Studies Association ofthe United Kingdom, 1996. p. 885-896.19 MURPHY, M. C. Introduction. In: Alasdair MacIntyre . Cambridge, Cambridge UniversityPress, 2003. p. 1-9.

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    II

    A acima citada pluralidade semântica do termo “comunidade” e, por con-seguinte, do sentido de “comunitarismo” como movimento ou correntelosóco-política, gera a pergunta em cada autor referido sobre o que elecompreende como comunidade e qual o lugar disso na compreensão dapolítica como experiência iniludível da vida em comum. Com MacIntyre nãoé diferente, uma vez que ele faz uma defesa explícita da comunidade em A er Virtue ([1981] 2007), especialmente no seu nal, quando armou que

    O que importa nesta etapa é a constru ão de formas locais de comunida-de em cujo interior a civilidade e a vida moral e intelectual possam sersustentadas através dos novos tempos sombrios que já estão sobre nós. Ese a tradi ão das virtudes foi capaz de sobreviver aos horrores da últimaera sombria, não estamos inteiramente sem bases para esperan a. Hoje,

    entretanto, os bárbaros não estão esperando depois das fronteiras; eles jáestão nos governando há algum tempo”.20

    Ou seja, o recurso a comunidades locais virtuosas, como alternativa à ex-periência social e política fragmentadora das sociedade capitalistas liberais,é armado por MacIntyre como movimento necessário para escaparmosda crise endêmica que estas últimas tem proporcionado, pervadidas pelairracionalidade desintegradora própria do mercado e dos poderes do Es-tado – a seu ver, constitutiva da barbárie liberal.

    Lembremos que comunidade, como todos os conceitos sociais, sempreserá um conceito disputado, ou seja, sujeito a diferentes compreens es nodiscurso acadêmico, mas, como aponta Delanty (2010), está amplamenterelacionado à busca por pertencimento nas condi es inseguras da sociedademoderna: “ A popularidade da comunidade hoje pode ser vista como uma respostaà crise na solidariedade e no pertencimento que tem sido exacerbada e, ao mesmotempo, induzida pela globalização”.21 Esse diagnóstico também aparece emBauman (2003), quando dene comunidade nos dias de hoje como sendo“outro nome do paraí so perdido”22 , um tipo de mundo seguro, bom e cálidoque não temos mais como alcan ar, mas que gostaríamos de viver e possuir.

    Entretanto, em MacIntyre, essa defesa da comunidade é vista como umaalternativa radical ao liberalismo, de quem deplora “o empobrecimento mo-ral e a função ideológica” (MacIntyre, 1998, 267). Segundo Beiner (2000), aperspectiva de MacIntyre em A er Virtue (1981) é

    “claramente que o modo de associa ão político-moral possibilitado na so-ciedade liberal é muito pobre comparado com o tipo de ethos inculcador de

    20 MacINTYRE, 2007, p. 263.21 DELANTY, op. cit. , 2010.22 BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por seguran a no mundo atual. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 9.

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    uma rica vida compartilhada encontrado na pólis antiga. Mas MacIntyre estáquerendo propor uma revica ão ou rearma ão da pólis Grega (ou algumequivalente moderno)? Tal no ão certamente violaria o veio historicista nopensamento moral de MacIntyre, bem como a insistência, enfática em todo

    seu trabalho, da inseparabilidade de sociologia e losoa moral. MacIntyrepode ter a visão de que formas antigas de vida moral e política fornecemum padrão crítico para julgar as deciências da vida ética contemporânea,mas nada na sua obra sugere que ele saúda o projeto de recriar a pólis”.23

    Esse padrão de avalia ão da sociedade liberal contemporânea é aquele dos bens e virtudes compartilhados, bem como das práticas que incorporam eengendram esses bens e virtudes em um contexto comunitário. “Uma virtudeé uma excelência disposicional na realização dos bens comunais, e uma prática é forma de vida historicamente evolvida que fornece um lugar social para a atua-ção das virtudes”.24 Mas MacIntyre adverte que sua defesa da comunidadenão é irrestrita: “Não acredito em ideais ou formas de comunidade como uma panaceia para os males sociais contemporâneos. Não dou minha lealdade polí ticaa nenhum programa”.25 E aqui então emerge o problema de qual seria essamodalidade não liberal de comunidade e de política defendida por ele,uma vez que recusa ser alinhado ao comunitarismo.Existem duas raz es básicas para MacIntyre não se considerar um co-munitarista: a primeira é que não atribui um valor positivo irrestrito àcomunidade como tal, ou seja, “comunidades locais estão sempre sujeitas àcorrupção por limitação, complacência, preconceitos contra pessoas de fora, e poruma variedade de outras deformidades, incluindo aquelas que se originam de umculto da comunidade local”.26 Nesse sentido, as comunidades são valorizadasapenas na medida em que conseguem prover local apropriado ao desen-volvimento das virtudes e práticas excelentes para o orescimento da vidahumana – esse elemento teórico aristotélico fornece um componente críticopara crivar a comunidade.A segunda razão é que MacIntyre vê no comunitarismo uma tentativa deaplicar a linguagem do bem comum ao Estado-Na ão moderno: “O errocomunitarista [é] tentar infundir a política do Estado com os valores e os modosda participação na comunidade local”,27 ou seja, buscam ser um corretivoà política do Estado e acabam permanecendo conservadoramente nessecontexto, refor ando as condi es deste. Segundo ele, há um complementoentre liberais e comunitaristas:

    “certamente existem algumas vers es da teoria liberal e algumas formula-es de posi es comunitaristas que são tais que as duas não só não estão

    em oposi ão umas com as outras, mas prontamente se complementam.

    23 BEINER, 2000, p. 463.24 BEINER, op. cit , p. 463.25 MacINTYRE, 1988, p. 265.26 MacINTYRE, 1999, p. 142.27 Idem, p. 142.

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    O comunitarismo desse último ponto de vista é um diagnóstico de certasfraquezas no liberalismo, não uma rejei ão dele”.28

    Nesse sentido, MacIntyre recusa a identica ão com o comunitarismo

    em fun ão de sua visão crítica do Estado liberal buscar uma alternativaradical a este e não uma associa ão ou corre ão de seus erros, ou seja, busca formas de comunidade institucionalizada que se coloquem para alémdas limites da política convencional do Estado contemporâneo, vez queo bens que uma comunidade autêntica cultiva não podem ser alcan adosno horizonte daquele. MacIntyre contrap e-se à profunda compartimen-taliza ão normativa produzida pelas estruturas das modernas sociedadescapitalistas avan adas, que fez com que a losoa se tornasse apolítica ea política não losóca.

    “À medida que os indivíduos se movem entre a casa, a escola, o trabalho,as atividades de lazer, as arenas da política, encontros burocratizados com ogoverno, e igrejas, sinagogas ou mesquitas, eles se encontram investidos emdiferentes papéis e são exigidos a expressarem atitudes diferentes e algumasvezes até incompatíveis. (...) Alguém que, por ex., insistir em observar amesma ética de sinceridade plena em todas as esferas da vida, sustentandoa si mesmo e aos outros como responsáveis pelos enganos deles do mesmomodo, seja numa conversa ão na família, com promessas de políticos, naapresenta ão de produtos por propagandistas no mercado, ou na infor-ma ão dada a pacientes pelos médicos, adquirirá uma reputa ão não pelaintegridade, mas pela inépcia social. Uma sociedade compartimentalizadaimp e uma ética fragmentada”.29

    Nesse contexto, a reexão losóca sobre conceitos, atividades, escolhas,atitudes e conitos cotidianos não exerce papel importante na transfor-ma ão dessas mesmas atividades, na deni ão de escolhas e na resolu ãode conitos, permanecendo sem papel político. A política se tornou não--losóca, pois sua retórica não tem qualquer efeito prático e busca sempre barrar qualquer possibilidade de um debate aprofundado e extenso sobreos primeiros princípios que poderiam regê-la. As tomadas de decis esem torno de quest es substanciais concernentes ao modo de viver sãoexcluídas do debate político; com isso, a política se tornou uma esferadesconectada das outras, na qual

    “as rela es dos governados com as várias facetas da atividade estatal éorganizada de tal modo que as atividades daqueles não sejam, de nenhum

    28 MacINTYRE, 1998a, p. 244. Em uma resenha crítica do livro de Daniel Bell, Communita-rianism and Its Critics , MacIntyre observa que “o comunitarismo de Bell é um que está ansioso por acomodar preocupações liberais. Ele se apresenta como um complemento e como uma correçãodos princípios liberais. E como poderia fazê-lo de outra forma, uma vez que o quadro institucionaldentro do qual seus [o comunitarismo de Bell] valores vão ser realizados são aqueles do estado--nação moderno e da economia de mercado?”. MacINTYRE, A. The Spectre of Communitarianism.Radical Philosophy. 70 (1995): p. 34-5.29 MacINTYRE, 1998a, p. 236.

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    modo signicativo, destruidoras ou subversivas dessas rela es. Eleitores nasdemocracias liberais são, num certo sentido, livres para votar em quem elesescolheram, mas seus votos não serão ecazes, a menos que sejam dadospara alguma daquelas alternativas denidas para eles pelas elites políticas.

    (...) Politicamente as sociedades da modernidade ocidental avan ada sãooligarquias mascaradas de democracias liberais”.30

    Contrariamente ao prescrito no seu discurso ideológico, as atividades domoderno governo liberal não têm um efeito neutro sobre os diferentesmodos de viver, pois quando são tomadas elas acabam destruindo algunse promovendo outros – neste último caso, o modo de vida do consumidorhedonista, de um eu concebido como um ponto vazio de toda referênciaà sua situa ão social, ou seja, pré-social. Por m, segundo MacIntyre,

    “o debate político, seja nas campanhas eleitorais, nas legislaturas ou nas burocracias governamentais, é raramente sistemático ou com alguma pro-fundidade. Não é dirigido por cânones de investiga ão ou comprometidosa seguirem através das implica es dos argumentos”. 31

    O ideal iluminista de um uso público da razão se torna, com isso, inviável, já que há instalada uma esquizofrenia entre política e losoa, entre a lutapelo poder e uma razão que pensa o conjunto da vida humana:

    “O que está faltando nas modernas sociedades políticas é algum tipo dearena institucional na qual as pessoas retas – nem engajadas nas buscasacadêmicas, nem prossionais da vida política – sejam capazes de engajar-seconjuntamente num debate sistemático e racional, destinado a alcan ar umamentalidade comum bem fundada racionalmente sobre como responderquest es acerca das rela es da política com as pretens es de modos devida alternativos e rivais, cada um com sua própria concep ão das virtudese do bem comum”.32

    Com isso, temos uma sociedade que prima pela heterogeneidade insti-tucional e diversidade de interesses, mas que não possui qualquer lugarpara o que MacIntyre chama de uma política do bem comum. A práticapolítica exclui qualquer tipo de investiga ão concernente à natureza daprópria política, não permitindo que possamos realizar uma crítica dela,trazer à tona suas limita es e exclus es; já a losoa tornou-se uma ati-vidade especializada, técnica, fechada na academia, feita por uns poucose com um público particular, especializado.Ao considerar qualquer concep ão do bem e sua investiga ão como algoque não deve fazer parte da atividade política, sendo objeto de escolhaparticular de cada indivíduo, segundo MacIntyre, as ordens sociais liberais

    30 MacINTYRE, 1998a, p. 236-7.31 MacINTYRE, 1998a, p. 238.32 MacINTYRE, 1998a, p. 239.

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    nos privaram exatamente da capacidade de avaliar o sentido e validadede suas exclus es e limita es, reduzindo a política contemporânea a nadamais do que uma “ fragmentação através dos conitos de interesses de grupos e preferências individuais, denidas sem referência a um bem comum”.33 Conformeacentua Beiner (2000), MacIntyre rejeita tanto o Estado do bem estar comoo mercado enquanto referenciais reguladores da vida social e econômica:

    “MacIntyre rejeita o pacote inteiro, mais precisamente um crescimento eco-nômico gerenciado pelo Estado, com corre es ocasionais pelo Estado doBem Estar e assim por diante. Consequentemente, o Estado do Bem Estarnão é uma alternativa ao Estado-Mercado; é, pelo contrário, parte e parcelado tipo de Estado inteiramente implicado na opera ão do capitalismo demercado. As maiores disputas políticas no Ocidente contemporâneo giramem torno de vis es em disputa sobre o que constitui o correto equilíbrioentre Estado e Mercado (o poder do Mercado versus a autoridade do Es-tado). Para MacIntyre, por contraste, mercado e Estado são dois lados deuma mesma moeda, e antes de escolher entre eles, ou de decidir como darmaior peso a um ou a outro, devemos jogar fora a moeda inteira. MacIntyrenão vai tão longe em asseverar que não há bens associados com a política baseada no Estado; o que ele assevera realmente é que as estruturas bási-cas do Estado moderno, e a forma de comunidade política que ele tornapossível, são essencialmente, e não apenas incidentalmente, inimigos de umapolítica baseada no bem comum (e é precisamente esta percep ão sobrenossa prevalecente realidade política que, na visão dele, os ‘comunitaristas’falharam em perceber”.34

    Mas que bem comum é esse a que MacIntyre se refere? Não é aquele

    que é resultante da simples soma dos bens buscados pelos membros in-dividuais de alguma atividade associativa – como, por ex., um clube deinvestimentos – dado que, nesse caso, a associa ão seria simplesmente uminstrumento para o atendimento aos interesses individuais. Ele refere-sea tipos de associa ão em que seus bens não são alcan ados apenas pormeio da atividade cooperativa e da compreensão compartilhada do valordeles, mas bens que são “numa parte fundamental constitu í dos pela atividadecooperativa e pela compreensão do seu signicado, bens tais como a excelênciana atividade cooperativa alcançada por uma tripulação de pescadores ou por umquarteto de cordas” ,35 isto é, os bens internos às práticas, que representam aexcelência nos tipos relevantes de atividades nelas desenvolvidas. Práticaé denida por MacIntyre como

    “qualquer forma complexa e coerente de atividade cooperativa humana,socialmente estabelecida, por meio da qual bens internos são realizadosna busca de alcan ar aqueles padr es de excelência que são apropriadose parcialmente denidores dessa forma de atividade, resultando que os

    33 MacINTYRE, 1998, p. 269.34 BEINER, op. cit., p. 469.35 MacINTYRE, 1998a, p. 240.

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    poderes humanos para alcan ar a excelência, e as concep es dos ns e bens envolvidos, são sistematicamente ampliados”.36

    Uma característica fundamental que MacIntyre aponta em tais tipos de

    práticas é o fato de que elas implicam uma educa ão prática nas virtudes,de tal maneira que aqueles nelas engajados possam aprender a direcionarsuas habilidades; sem as virtudes as habilidades podem perder o rumoda aquisi ão da excelência. As virtudes são justamente as qualidades deespírito ou caráter que nos permitem alcan ar os bens de excelência daspráticas; o exercício das virtudes não é apenas um mero meio, instrumental,contingente, para um m externo, mas é também constitutivo do própriotelos (m) da prática.

    E dois tipos de quest es sempre se levantam para os indivíduos que seeducam nas práticas: 1) “Qual é o lugar que os bens de cada uma das

    práticas nas quais estou engajado têm em minha vida?”; 2) “Os bens denossas atividades produtivas no trabalho, os bens da vida familiar contí-nua, os bens da atividade musical ou atlética ou cientíca, que lugar devecada um deles ter em minha vida, se minha vida como um todo dever serexcelente?”. Essas quest es, segundo MacIntyre, não podem ser respondidasindividualmente, sem levar em conta os outros indivíduos com quem serelacionam nessas práticas, daí porque se recolocar as quest es de umanova forma: “(...) qual é o lugar que os bens de cada uma das prá ticas nas quaisn ó s estamos engajados devem ter em nossa vida comum? Qual é o melhor modode vida para nossa comunidade?” .37 Como acentua Trucco (2000),

    “As virtudes como momento gravitacional da vida moral dos homens re-cusam a compreensão [liberal] não situada da moral e o princípio abstratode determina ão das fontes da motiva ão subjetiva. O indivíduo não podedecidir no vazio deixado pela exclusão dos padr es normativos do contextono qual se formou. [...] Esse entrela amento conceitual urdido pelas virtu-des, práticas e institui es permite entender a vontade dos homens comosituada e conceber sua fonte motivacional como construída socialmente”.38

    A resposta a tais quest es sobre o melhor modo de viver, segundo MacIntyre,só pode ser dada por meio de uma concep ão do bem comum que seja

    “o bem comum de um tipo de comunidade na qual cada conquista peloindivíduo do seu próprio bem é inseparável tanto da conquista dos benscompartilhados das práticas, como da contribui ão ao bem comum da co-munidade como um todo. De acordo com essa concep ão do bem comum,a identica ão do meu bem, de como é melhor para mim dirigir minha

    36 MacINTYRE, 1985, p. 184.37 MacINTYRE, 1998a, p. 240.38 TRUCCO, Onelio. MacIntyre: Tradición y Política. Portal: producciones en estudios sociales.ISSN 1667-7889, Nº. 1 (2000): p. 29-45, p. 33.

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    vida, é inseparável da identica ão do bem comum da comunidade, decomo é melhor para essa comunidade dirigir sua vida”.39

    Esse tipo de comunidade é essencialmente uma comunidade política, um

    tipo de prática que ordena os outros tipos de prática existentes, permitindoque os indivíduos possam direcionar-se para o que é melhor para eles epara a comunidade. Mas essa comunidade política não é e nem vai serproporcionada pelo Estado na ão liberal, pois “arenas locais são agora osúnicos lugares onde a comunidade política pode ser construída, uma comunidade política em grande contradição com as políticas do Estado Nação”.40

    Segundo MacIntyre, esse tipo de comunidade política, que ele chama de uma pólis , deve ser diferenciada tanto da democracia liberal como da sociedade baseada numa tradi ão cultural compartilhada (Volk). Embora numa pólishaja um compartilhamento de modos de delibera ão, formal e informal, e

    uma compreensão comum de práticas e institui es, herdadas de algumatradi ão cultural particular, os seus membros podem sempre ser capazesde pôr em questão, por meio da delibera ão comunal, o que até agora foramantido pelo costume e pela tradi ão como sendo o seu bem e o bem dacomunidade. Aqui vemos que, ao lado dessa âncora reexiva, racional,há em MacIntyre uma exigência radical de participa ão no processo dedeni ão desse bem comum, no debate interno das tradi es morais depesquisa racional. Não há qualquer postura antidemocrática no interior desua postula ão. Segundo ele, “uma polis é , sempre, potencial ou efetivamente,uma sociedade de pesquisa racional, de auto-escrutí nio” ,41 diferentemente dosv ínculos do Volk , que é pré-racional e não racional.

    A participa ão efetiva dos membros de uma comunidade política virtuosano debate racional é, assim, um constitutivo da própria pólis como modelode comunidade moral e política. E isso é essencial para que haja uma co-nexão entre o bem do indivíduo e o bem da comunidade, proporcionandouma solidez na justica ão política. Comunidades políticas que operamcom uma concep ão minimalista e individualista do bem comum, transfor-mando a comunidade em um meio para os ns dos indivíduos, amea ama existência de sua autoridade política, não sobreviverão se pelo menosuma parte dos seus membros não estiver disposta a pagar um custo maisalto pela comunidade, isto é, por exemplo, morrer por conta da seguran apolítica e da ordem social: soldados, policiais, bombeiros. Segundo Ma-cIntyre, sem essa conexão tais comunidades não orescem minimamente.

    Aquelas comunidades que estabelecem essa conexão baseada em umaargumenta ão racional, em que seus membros se apoiam entre si, num

    39 MacINTYRE, 1998a, p. 241.40 MacINTYRE, 1998a, p. 248.41 MacINTYRE, 1998a, p. 241.

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    processo de tomada de decisão política coletiva, de tal maneira que suaspráticas e institui es exibam tal conexão entre os bens individuais e o bemcomum, são aquelas que podem prover uma justica ão política adequa-da para a adesão de seus membros. Essa conexão é, acentua MacIntyre,constituída pela atividade distintiva da razão prática.

    “Racionalidade prática é uma propriedade de indivíduos-em-suas-rela es--sociais e não de indivíduos-como-tais. (...) Nosso bem comum primário ecompartilhado é encontrado nessa atividade de aprendizagem comunal,através da qual juntos nos tornamos capazes de ordenar bens, tanto emnossas vidas como na sociedade política”.42

    É uma atividade de delibera ão prática coletiva diante das quest es e pro- blemas que emergem numa busca séria de corre ão das respostas dadasanteriormente no interior da comunidade.

    Nesse sentido, a verdadeira política das comunidades locais, a política do bem comum (ou, se quisermos, a política das virtudes), segundo MacIntyre,é aquela em que tal atividade de delibera ão reexiva é constitutiva e naqual participantes racionais estão comprometidos integralmente com ela,implicando também, ao mesmo tempo, uma transforma ão signicativadessa atividade prática.

    “Na verdade, a política será essa atividade prática que aporta a melhoroportunidade para o exercício de nossos poderes racionais, uma oportunidadeprovida somente por sociedades políticas para as quais na tomada de decisãouma delibera ão racional extensamente compartilhada é central, sociedadesque estendem a racionalidade prática da fazenda e do barco de pesca, dacasa e do local de trabalho do artesão, para suas assembleias políticas”.43

    Vemos, aqui, então, mais um elemento na posi ão de MacIntyre que indicauma defesa radical de uma comunidade política marcada pela participa ãopolítica direta e não a formula ão de processos políticos autoritários outotalitários. A exigência de delibera ão pública, coletiva, com a participa ãode todos, presente numa política do bem comum, exige exatamente umaprofundamento da participa ão política que os Estados modernos sãoincapazes de oferecer, marcados pela segmenta ão das esferas sociais. Essaincapacidade dos Estados modernos em oferecer uma justica ão políticapara adesão de seus membros reside no fato de que

    “são expressão de sociedades de racionalidade prática deformada e frag-mentada, na qual a política, longe de ser uma área de atividade na e atravésda qual outras atividades são racionalmente ordenadas, é ela própria maisuma esfera compartimentalizada da qual foi excluída a possibilidade deperguntar aquelas quest es que mais precisam ser perguntadas”.44

    42 MacINTYRE, 1998a, p. 242-3.43 MacINTYRE, 1998a, p. 243.44 MacINTYRE, 1998a, p. 243.

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    Quando distinguiu diferentes tradi es de moralidade e de pesquisamoral rivais no âmbito da cultura contemporânea, MacIntyre ao mesmotempo se perguntou em quais tipos de contextos sociais tais tradi es sedesenvolviam; bem como buscou entender em qual tipo de comunidadelocal as virtudes poderiam se desenvolver, como as políticas de tais co-munidades locais se contrapunham à ordem social, política e econômicaliberal dominante. Portanto, centraliza a atividade política fora das estru-turas políticas do Estado Moderno, pela sua incapacidade de justica ão,isto é, de delibera ão racional provedora de uma “mente comum” – algoimpossível de ser obtido na escala da moderna associa ão política.

    “[Na] concep ão da atividade política incorporada no Estado moderno [...]há uma pequena minoria da popula ão que faz da atividade política suaocupa ão e preocupa ão ativas, políticos prossionais e semiprossionais, euma enorme maioria amplamente passiva que vai ser mobilizada somenteem intervalos periódicos para elei es ou crises nacionais. Entre as elitespolíticas, de um lado, e a grande maioria da popula ão, de outro, existemimportantes diferen as em, por exemplo, quanta informa ão, muita oupouca, é exigida e providenciada para cada um dos lados. Um eleitoradomoderno só pode funcionar como funciona, na medida em que ele tenhasó uma explica ão empobrecida e extremamente simplicada das quest esque são apresentadas a ele. E os modos de apresenta ão através dos quaisas elites se dirigem ao eleitorado são desenhados para esconder muitomais do que revelar. Esses não são tra os acidentais da política dos Estadosmodernos, do mesmo modo que não o é a parte que o dinheiro ocupa emprover inuência sobre o processo de tomada de decisão”.45

    Assim, sua defesa da comunidade como o lugar de realiza ão plena da vida boa, por meio do exercício integral das virtudes, não pode ser entendidacom um remédio para corrigir alguns dos males da modernidade liberal.Para ele, o problema não é reformar a ordem liberal dominante, como eleconsidera que os comunitaristas em geral querem, “mas encontrar caminhos para as comunidades locais sobreviverem sustentando uma vida do bem comumcontra as forças desintegradoras do estado-nação e do mercado”.46

    III

    Um dos pontos principais da crítica de MacIntyre ao liberalismo é precisa-mente a ideia deste de que há uma “moral individual”, separável daquelaque rege o mundo público e a cidadania, de um indivíduo pré-social,desenraizado de qualquer tradi ão concreta. Contra isso, ele defende quehá uma continuidade ética entre a consciência individual e as regras que

    45 MacINTYRE, 1999, p. 141-2.46 MacINTYRE, op. cit. 1995, p. 35.

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    regulam a vida comum e pública – vez que a identidade moral é uma cons-tru ão realizada no interior de uma comunidade de práticas, no exercíciodas virtudes. Abre-se aqui, assim, o problema das rela es tensas entreessas comunidades que se estruturam em torno de uma concep ão comumda vida boa – no interior das quais a moralidade das virtudes oresce eé um eixo fundamental da vida delas – e a fragmenta ão centrifugadoraque é característica do Estado-na ão liberal, que gira toda a ordem socialem torno do indivíduo atomizado.

    MacIntyre compartilha justamente com os liberais o reconhecimento danatureza parcial da cidadania moderna, da inevitabilidade política de umEstado moralmente neutro nas ordens sociais contemporâneas. E isso éimportante também para ele recusar a possibilidade de se querer recupe-rar alternativas autoritárias, essencialmente não democráticas, ou mesmoextra-democráticas, nessa crítica à ordem liberal. E nisso aqui ele tambémse distancia dos comunitaristas:

    “Comunitaristas contemporâneos, de quem eu fortemente tenho me de-sassociado onde quer que tenha oportunidade para isso, apresentam suaspropostas como uma contribui ão à política do Estado Na ão. Onde osliberais caracteristicamente insistem que o governo no Estado Na ão devapermanecer neutro entre concep es rivais do bem humano, comunitaris-tas contemporâneos têm defendido que tal governo deve dar expressão aalguma visão compartilhada do bem humano, uma visão denindo algumtipo de comunidade. Onde os liberais defendem caracteristicamente queé nas atividades das associa es voluntárias subordinadas, como aquelasconstituídas por grupos religiosos, que vis es compartilhadas do bem de-vem ser articuladas, os comunitaristas tem insistido que a própria na ão,através das institui es do Estado Na ão, deva ser constituída em algumgrau signicante como uma comunidade. Nos Estados Unidos isso tornou--se um debate dentro do Partido Democrata, um debate no qual, da minhaperspectiva, os comunitaristas têm atacado os liberais em uma questão sobrea qual os liberais têm estado consistentemente corretos”.47

    Não interpretemos que, com isso acima, MacIntyre agora assumiu umaposi ão liberal em rela ão à neutralidade do Estado. Sua perspectiva é,ao contrário, crítica em rela ão a essa neutralidade frente às concep esrivais do bem:

    “Ao Estado não deve ser permitido impor qualquer concep ão particulardo bem humano ou identicar tal concep ão com seus próprios interessese causas. [...] [Embora] o Estado contemporâneo não é e não pode ser va-lorativamente neutro [...] é justamente por causa dos modos nos quais oEstado não é valorativamente neutro que não se pode, em geral, conar aele promover qualquer conjunto de valores válidos”.48

    47 MacINTYRE, 1994, p. 302.48 MacINTYRE, 1999a, p. 143. Apud Beiner, op. cit , p. 471.

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    A restri ão de MacIntyre à interven ão do Estado é devida à sua inesca-pável não neutralidade, considerada perniciosa. Segundo ele, os liberaiserradamente sup em que certos males políticos, como o totalitarismo, porexemplo, advém de alguma forma de comunidade política que incorporauma forte concep ão do bem humano, mas MacIntyre considera, ao con-trário, que tais males

    “se originam do caráter específico do Estado na ão moderno, assim,concordando com os liberais pelo menos nisto, que aos Estados na esmodernos que se mascaram como incorpora es da comunidade deve-sesempre resistir. O Estado na ão moderno, em qualquer perspectiva, é umainstitui ão perigosa e não gerenciável, se apresentando, de um lado, comoum fornecedor burocrático de bens e servi os, que está sempre pronto a dar,mas nunca o faz, a seus clientes valor por dinheiro, e, de outro lado, comoum repositório de valores sagrados, que de tempos em tempos convida atodos a dar nossas vidas por ele. Como observei em outro lugar, é comoser pedido para morrer pela companhia telefônica”.49

    O problema que se instala para MacIntyre aqui, é saber o grau de autono-mia ético-política que o tipo de comunidade por ele preconizado poderiater em um mundo predominantemente de ordens políticas liberais. Comoquestiona Sharkey (2001),

    “se, como pareceria inevitável, nós respondermos no sentido negativo, elaseria, então, necessariamente parasita da ordem sócio-política liberal quea circunda, beneciando-se de sua prote ão, mas sofrendo sua inuência.Mas se tal é o caso, MacIntyre não pode se permitir ser excessivamente

    crítico do liberalismo ou do Estado liberal, pois que estes fornecem as úni-cas – e poderíamos talvez dizer, sem ironia, as melhores – condi es parao desenvolvimento desse tipo de comunidade. Um tal raciocínio parecechegar à acusa ão de que MacIntyre, é e não pode deixar de ser, cúmplicedo liberalismo que ele rejeita”. 50

    Assim, uma tarefa posta para MacIntyre é a de estabelecer com mais clarezacomo concretizar essa política do bem comum ou política das virtudes,isto é, que tra os mais concretos podem ter suas comunidades políticasalternativas à ordem liberal. Em “Politics, Philosophy and the CommonGood” (1998a) e “Dependent Rational Animals” (1999) ele come ou a es- bo ar algo mais preciso no que tange à política e que chamou de a políticada comunidade local. Seu ponto de partida é que todas as losoas locais,que emergem a partir das problemáticas vivenciadas pelas comunidadeshistóricas, sempre carregam consigo uma pretensão de valor universal,

    49 MacINTYRE, 1994, p. 303.50 SHARKEY, R. Vertus, communautés et politique: la philosophie morale d’Alasdair Ma-cIntyre. Nouvelle Revue Theologique. 123 (2001): p. 62-87, p. 74.

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    entre bens, regras e virtudes, mas uma compreensão que pode ou nãoestar articulada teoricamente, e que estará incorporada e pressuposta nasa es de seus membros.

    Segundo conjunto, essas sociedades terão de ser pequenas comunidades,na medida do possível autossucientes, para se protegerem das interfe-rências destrutivas do Estado e da economia de mercado. Para MacIntyre,é necessário que sejam pequenas de modo a permitir o amplo debatedeliberativo entre seus membros e os encarregados dos negócios comunse públicos, de tal forma que haja uma participa ão ampla, sem deixar defora ninguém do qual podemos aprender algo, ou seja, da qual ninguémseja excluído. “ A pretensão dessa participação deliberativa é chegar a uma visãocomum e os procedimentos constitucionais formais de tomada de decisão serãodestinados para esse m”.53

    Esse tipo de comunidade política proposto por MacIntyre se diferenciada política do Estado-na ão moderno, primeiro, por não haver uma com-partimentaliza ão da atividade política, como acontece nas sociedadesavan adas. Ainda que haja diferencia ão entre algumas esferas no âmbitodessas comunidades (família, trabalho, igreja), as rela es entre os bensde cada uma dessas práticas é tal que

    “em cada uma as mesmas virtudes são exigidas e os mesmos vícios sãotambém aptos a serem revelados, de modo que um indivíduo não está frag-mentado em seus papéis separados, mas é capaz de ser bem sucedido oufalhar em ordenar os bens de sua vida num todo unicado e a ser julgado

    pelos outros em rela ão a esse sucesso ou fracasso”.54

    A outra diferen a em rela ão à política dos estados modernos é que in-tegridade se torna aqui uma virtude fundamental na atividade política,diferente da adaptabilidade camaleônica que é própria das sociedadesavan adas, nas quais as técnicas de propaganda no mercado, a constru ãode imagens ctícias que escondem aspectos importantes de sua realidade,são as matrizes de comportamento para o candidato político, a cujas regrasele tem de se adaptar.

    Terceiro e último conjunto de características, tais pequenas sociedadespolíticas sempre sofrem os efeitos da viola ão sistemática por parte daschamadas economias de livre mercado de grande escala. Segundo MacIn-tyre, tais economias não devem ser chamadas de livres mercados porquefactualmente elas

    “imp em duramente condi es de mercado que privam for osamentemuitos trabalhadores do trabalho produtivo, que condena partes da for a

    53 MacINTYRE, 1998a, p. 248.54 MacINTYRE, 1998a, p. 248-9.

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    de trabalho, nos países metropolitanos e em sociedades inteiras de áreasmenos desenvolvidas, à irremediável priva ão econômica, que amplia desi-gualdades e divis es de riqueza e renda, organizando sociedades com baseem interesses antagonistas e em disputa”.55

    Na verdade, os mercados genuinamente livres são os mercados locais ede pequena escala, nos quais os produtores podem escolher participar ounão de suas trocas – a agricultura familiar seria um exemplo disso. ParaMacIntyre, essas pequenas comunidades não podem aspirar alcan ar osníveis de desenvolvimento tecnológico e econômico da modernidade ca-pitalista avan ada porque isto signicaria renunciar ao bem comum delas;o conito entre essas comunidades locais e a ordem econômica global éum conito substantivo entre concep es rivais do bem comum, tanto nateoria como na prática – não apenas uma diferen a de escalas.

    Um conito que persiste no pensamento de MacIntyre, pela falta deuma política de enfrentamento da rela ão tensa entre as práticas e ascontrapartidas institucionais do Estado capitalista, e pela sua insistênciade as comunidades das virtudes permanecerem nas margens das ordenssociais liberais. Esse anti-estatismo de MacIntyre, como o chama Beiner(2000), tem suas raízes no vínculo com o marxismo desde a sua juven-tude. Embora MacIntyre tenha abandonado o marxismo como perspec-tiva teórica suciente para enfrentar os problemas morais e políticos domundo contemporâneo, tal inuência mantêm-se ainda nas fortes tintasde recusa radical por MacIntyre do capitalismo e das sociedades liberaisque abrigam e dão prote ão a este modo de organizar a vida econômicae social. No prólogo da terceira edi ão de “ A er Virtue” (2007), MacIntyredeclarou que “Estou e permaneço profundamente em débito à crítica de Marxda ordem econômica, social e cultural do capitalismo e ao desenvolvimento dessacrí tica pelos marxistas posteriores”.56

    Desde “ Marxism: An Interpretation ” (1953), escrito em sua juventude, até“Dependent Rational Animals” (1999), MacIntyre vem reestruturando suaideia de a ão política, tendo abandonado a matriz marxista de luta declasses e de revolu ão, aproximando-se cada vez mais de uma políticade resistência das comunidades no interior das hostes do Estado liberal.A revolu ão concebida pelos marxistas, como a tomada do Estado peloproletariado, para se produzir em seguida a destrui ão do próprio Estado,é descartada por MacIntyre em fun ão de sua crítica do Estado Modernocomo lugar de desrealiza ão do político e da constata ão do socialismoreal como o render-se do marxismo às estruturas e ao modo de proceder burocráticos desse Estado.

    55 MacINTYRE, 1998a, p. 249.56 MacINTYRE, 2007, p.xvi.

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    Embora o marxismo tenha sido refutado inúmeras vezes, MacIntyre con-sidera que seu poder ainda inuente é devido o fato de que conseguearticular verdades que não são formuladas por outras perspectivas ideo-lógicas,57 como o efeito destruidor das institui es econômicas e políticasdo capitalismo moderno sobre a vida e as rela es humanas. Esse é umponto ao qual MacIntyre permaneceu el até os dias de hoje, mesmo comas mudan as signicativas que ele operou em sua carreira acadêmica. Masele, ao mesmo tempo, nunca assimilou as formula es marxistas contempo-râneas, como o “socialismo cientíco” dos estalinistas e nem o marxismohumanista de Bernstein. O primeiro por considerar moralmente vazio ecienticamente inepto, ao pretender operar com leis sociais cientícas livresde qualquer valora ão; o segundo, por não conseguir oferecer nenhuma base sustentável para a crítica moral ao estalinismo, dado o fracasso dokantismo moral sob o qual estava assentado diante do emotivismo e doprescritivismo predominantes na Inglaterra dos anos 50.

    IV

    A ideia de uma política das virtudes nas comunidades locais, de basearistotélica, emerge, assim, como alternativa ao modelo liberal e ao modelomarxista de prática política e está associada em MacIntyre a uma perspec-tiva de radicaliza ão democrática. Recuperar a ideia de uma participa ãodireta dos membros de uma comunidade nos processos decisórios, comcidadãos autônomos em suas tomadas de decisão, requer rigorosamenteum tipo de espa o social que implica a derrocada das ordens capitalistas,talvez só possível de ser alcan ado por meio de alguma forma de revolu-

    ão política mais ampla – algo de que MacIntyre não é mais um crente,dado seu ceticismo frente à incapacidade dos que são mais alienados pelasestruturas capitalistas, o operariado, em romper com o efeito desmorali-zador do capital e da expansão deste. Murphy (2004) é cético quanto àpossibilidade de que MacIntyre consiga estabelecer a validade da políticadas comunidades virtuosas sem recorrer a alguma institui ão similar àdo Estado moderno; como também pelo que considera a incapacidade dapolítica das comunidades locais em receber os estrangeiros, aqueles quenão compartilham de seus referenciais. 58

    Já Knight (1998) é bastante entusiasmado com a ideia de que o conceito deprática em MacIntyre implica uma espécie de aristotelismo revolucionário,dada sua radical incompatibil idade com a política moderna. Entretanto,ele próprio acaba descrevendo a política de MacIntyre como uma política

    57 MacINTYRE, A. Marxism and Christianity . New York, Schoken Books, 1968. p. 117-8.58 MURPHY, Mark (ed). Alasdair MacIntyre . Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

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    local de resistência das virtudes, “uma política de ação coletiva em defesa das práticas contra a dominação institucional e a corrupção”.59 Noutros termos, umaespécie de guerrilha político-losóca nos micro-espa os institucionais doEstado nacional, pois a maioria das pessoas só tem a oportunidade decultivar as virtudes e o raciocínio prático reexivo em comunidades depráticas particularizadas ou em institui es baseadas em práticas, tais comoas fábricas, lojas, estúdios, laboratórios, hospitais, escolas, igrejas, fazendas,vila de pescadores, departamentos de pesquisa, orquestras, dentre outras– comunidades políticas nacionais, ao contrário, para MacIntyre, não sãogeradoras de virtudes e de um bem comum. Segundo Bielskis (2012), Ma-cIntyre acrescentou a essa lista mais quatro exemplos: povoados de índiosGuaranis liderados por jesuítas no Paraguai no Século 17; o kibbutzim doSéc. 19 na Palestina; o povoado político marxista de Kerala na metade doSec. 20 no sudeste da Índia; e a comunidade cooperativa de pescadoresem Co. Donegal na costa ocidental da Irlanda.60

    Beiner aponta nisso uma diculdade, pois, embora MacIntyre tenha ra-zão quando arma que nos Estados liberais os governos são oligarquiasmascaradas de democracias liberais, ou seja, bastante distanciados deuma política do bem comum, a perspectiva de MacIntyre é “deixada semnenhum espaço para uma comunidade política mais abrangente, compatível comas condições básicas da modernidade – ele oferece um aristotelismo sem polis .Com isso, parece que se está de volta aos mosteiros, onde nos protegeremos dosbarbarismos do mundo moderno”.61 Uma alternativa que Beiner prop e, nesseparticular, é aplicar os padr es de julgamento propostos por MacIntyre

    para as práticas, no âmbito de sua losoa das virtudes, ao contexto maisabrangente das práticas da comunidade política nacional como um todo:“a questão a ser respondida é se os bens que as práticas instanciam são bens humanos genuínos. Se um Estado mobiliza energias de seus cidadãospara enfrentar guerras justas, combater a pobreza, o sofrimento e a opres-são, e promover padr es superiores de cultura cívica, e se ele faz algumprogresso em realizar esses ns, então o Estado levanta pretens es legítimasem rela ão a seus membros (até incluir deveres cívicos envolvendo o riscode vida de alguém). Se de outro lado, o Estado desperdi a vidas humanasenfrentando guerras estúpidas e sem sentido, refor a os piores aspectos dasrela es sociais existentes, e está principalmente preocupado com aumentarseu próprio poder, então as reivindica es que faz a seus cidadãos possuemcorrespondentemente menos validade”.62

    59 KNIGHT, K. Editor’s Introduction. In The MacIntyre Reader. Notre Dame: University of NotreDame Press, 1998, pp. 1-30, p.23. Yack (2013) discorda integralmente dessa leitura de Knight:“Seu [MacIntyre] aristotelismo pode ser crítico, fora de moda, alienado e anti-hierárquico;não é realmente revolucionário” (p.3).60 Cf. BIELSKIS, A. The political implications of Alasdair MacIntyre’s claims of DependentRational Animals. Problemos. 82 (2012): 85-98, p. 89.61 BEINER, op. cit., p. 474.62 BEINER, op. cit., p. 473.

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    O que Beiner está propondo é, ao nal, reconhecer em MacIntyre a pos-sibilidade de defesa de uma forma de cidadania mais ampla, radical eabrangente do que aquela oferecida pelas hostes liberais e sua democraciarepresentativa. Nesse sentido, o referencial aristotélico de uma política do bem comum poderia ser estendido das comunidades locais para o contex-to da comunidade política nacional. Entretanto, como vimos, MacIntyretem diculdade em considerar o espa o da comunidade política nacionalproporcionado pelo Estado liberal como viável para a congura ão de um bem comum resultante de uma delibera ão compartilhada, em fun ão dosproblemas estruturais substantivos que carrega. Com isso, prefere deslocaro foco para um fortalecimento das comunidades locais, uma amplia ãode sua autonomia tanto quanto for possível, incluindo uma amplia ãodo poder legislativo dessas comunidades políticas, de modo a torná-lascapazes de resistir ao poder centralizador do Estado liberal moderno.63

    Bielskis (2012) retorque, nesse ponto, que essa não é a tendência que efe-tivamente predomina nas sociedades da modernidade avan ada, pois oque ocorre atualmente é o aumento do poder do Estado, principalmenteno tocante às provis es mínimas legais dos direitos civis básicos. Se, deum lado, há uma amplia ão da burocracia e um distanciamento cada vezmaior entre as elites governantes e o restante da popula ão, por outrolado, acentua que

    “provis es para a aten ão mínima à saúde, educa ão e outros importantes bens públicos só podem ser universalmente fornecidas através de umaintegra ão e centraliza ão cada vez maior, e não através de uma redu ão

    do Estado. Além disso, o argumento em favor de mais autonomia não éconvincente por causa de outros bens públicos importantes, como ordem eseguran a social mínima, acesso livre e igual a educa ão primária, secun-dária e mesmo universitária, que só podem ser oferecidos por um Estadomais amplo e não por um menor”.64

    Bielskis acrescenta ainda que haveria também consequências negativas, pois“dar maior poder legislativo às comunidades locais signicaria necessaria-mente uma maior fragmenta ão do corpo social e possivelmente maioresdesigualdades e diferen as entre diferentes comunidades. Assim, comuni-dades locais mais pobres e menos educadas são mais suscetíveis a todos osmales comunitários dos quais o próprio MacIntyre é tão crítico: mentalidadeparoquial, sentimentos xenofóbicos, abuso em rela ão às minorias, etc”.65

    Para evitar que os aspectos políticos emancipatórios presentes na losoapolítica de MacIntyre sejam destruídos pelo risco dessa limita es presentesnas comunidades locais, Bielskis (2012) prop e – e aqui ele converge com

    63 Ver, por exemplo, MacINTYRE (1995 e 2007).64 BIELSKIS, 2012, p. 93.65 Idem, p. 93.

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    Beiner (2000) – que as comunidades locais “assumam um papel ativo noprocesso político de constru ão das leis”,66 ou seja, que haja uma efetivaamplia ão da cidadania ativa no âmbito das comunidades locais em suacapacidade de inser ão nos processos decisórios da comunidade políticamais abrangente. Nessa mesma dire ão, Castro (2009), considera que

    “o reconhecimento objetivo das enormes distâncias que separam a nossasociedade moderna das institui es da democracia participativa, não deverianos levar a uma estoica conformidade resignada, mas, ao contrário, em pri-meiro lugar, a assumir uma posi ão beligerante contra todas as tentativas deregressão de nossas exíguas conquista democráticas e, em segundo lugar, aum reposicionamento da questão da virtude em rela ão aos processos sociaisorientados para a abertura de novos espa os de participa ão e socializa ãoda gestão dos assuntos públicos pela e para a cidadania”.67

    Daí porque Bielskis (2012) sustentar que a práxis política aristotélicaproposta por MacIntyre, ao buscar defender as formas da vida política baseadas no bem comum genuíno, deve, por exemplo, ser direcionadapara uma maior interferência na principal fonte de coer ão institucionalque amea a a vida das comunidades locais: o mercado global institucio-nalizado e sua endêmica e corrosiva pleonexia. A política das comunidadeslocais não será bem sucedida a menos que se desae a irracionalidadeda acumula ão sem limites do capital em níveis nacional e global; e só oEstado, a institui ão que aprova leis, é a única ferramenta disponível parase contrapor ao poder do mercado. Assim, uma das tarefas mais urgentesdessa perspectiva emancipatória presente na política das comunidadeslocais ou das virtudes é

    “desmantelar a personalidade legal das corpora es e fazê-las responsáveisfrente ao público democrático. No nível da losoa, os éticos da virtudetêm que articular uma melhor teoria do que deve uma economia alternativa,uma economia que não esteja baseada na no ão de apropria ão injusta damais-valia às custas de homens e mulheres trabalhadoras comuns. Qualquerteoria da economia social deste tipo teria que rejeitar a no ão da ideia do-minante de uma agência maximizadora de lucro auto-interessada (seja umarma ou um consumidor), e teria que estar enraizada em uma antropolo-gia aristotélica amplamente compreendida. No centro de tal antropologiaestaria a ideia de que as estruturas do bem comum são essenciais para oorescimento humano”.68

    Nesse sentido, a despeito da recusa do próprio MacIntyre em estabele-cer algum vínculo mais signicativo com o Estado liberal moderno, sualosoa política parece ainda ser capaz de escapar do foco limitado das

    66 Idem, p. 93.67 CASTRO, D. Hernández. O compromisso de Eneas. Virtud y democracia radical tras ladialéctica de la Ilustración. Isegoria. 41, Julio-diciembre (2009): 137-162, p. 153.68 BIELSKIS, 2012, p. 96.

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    comunidades locais e expandir-se para uma compreensão da cidadaniaque seja capaz de interferir nos processos institucionais mais amplos dacomunidade política nacional e mesmo internacional. O exercício dasvirtudes no âmbito das comunidades locais, em seus processos de deli- bera ão racional radicalmente democráticos, podem gerar uma forma ãovirtuosa para ingerência também nos processos institucionais mais amplosda sociedade política nacional. A amplia ão da cidadania na perspectivade uma política do bem comum, requer uma participa ão política cadavez mais consistente, não somente com meio para obter determinados nscontingentes – como construir um teatro novo, consertar as ruas, etc – mastambém como um m em si mesma: “ participar nos torna cidadãos mais so-ciá veis, mais cooperativos, mais solidá rios, e nos aporta a experiê ncia necessá ria para dar sentido às coisas que tem um homem prudente”.69

    Política de quem? Qual comunidade? Certamente que MacIntyre nos ofereceuma política para a realiza ão do bem comum, na qual o importante é adelibera ão compartilhada na busca de constru ão de uma mente comumem rela ão à realiza ão do bem humano, “o que importa é a razoabilidadedo raciocínio prático e a acurácia da ação em perseguir bens comuns, e não o poder de barganha de um grupo de interesse particular”. 70 E a comunidademacintyriana é uma autêntica rede social de dar e receber, na qual oorescimento humano individual e comunal se torna viável através dadelibera ão racional pública, onde todas as vozes são ouvidas. Emboranão possamos associar mecanicamente a comunidade local macintyriana àcomunidade política nacional, a dialética da cidadania presente na política

    das virtudes pode prover elementos importantes para se pensar de formamais abrangente, estendendo esta avalia ão crítica para o campo tambémdos espa os políticos institucionais do Estado moderno. E para isso é es-sencial, como vimos, que os cidadãos virtuosos das comunidades locaispossam participar mais ativamente dos processos decisórios da comunidadepolítica nacional, e não permanecerem isolados desta.

    Referências Bibliográcas

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    69 CASTRO, op. cit , p. 157.70 BIELSKIS, 2012, p. 89.

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    Endere o do Autor:Universidade Federal do PiauíCCHL – Departamento de FilosoaCampus Min. Petrônio Portela, B Ininga64049-550 Teresina – [email protected]

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