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Artigo sobre Kierkegaard ;quinta, 23/06/2016 "A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ter necessidade de Deus." Soeren A. Kierkegaard Conteúdo: 1. Natureza Humana 1.1. Reação humana 1.2. Reação a partir da Fé bíblica 1.3. Necessidade de Comunhão 1.4. "Vazio" e Perfeição 2. A Questão da Identidade 2.1 A outra Identidade 2.2. A Robotização 2.3. A nova natureza 3. Entendimento e Necessidade 3.1. Perfeição, Necessidade e Comunhão 3.2. A "fome" 3.3. Espera e Transformação 4. Conseqüência prática Este pensamento de Kierkegaard expressa algo do ser humano que, me parece, atinge em cheio o conceito que se faz sobre a natureza humana. Observo que esta colocação do Kierkegaard é totalmente estranha, diria até contrária aos valores propalados pela cultura ocidental, tanto da sua época como da atual; isto torna surpreendente esta compreensão do Kierkegaard sobre a natureza humana, surpreendente a ponto de se pensar numa real inspiração, numa revelação do Espírito Santo. Pensamento estranho ao ideal da cultura ocidental, mas perfeitamente compatível com a mensagem bíblica. -– Não quero fugir do tema, mas aproveito a observação da discrepância entre a mensagem bíblica e a cultura ocidental, seus valores, seus ideais para identificar nesta divergência a causa, imagino, do porquê da fé bíblica ser tão pouco entendida e praticada na sua integridade. Aliás, a impressão que tenho às vezes é que há um fôsso enorme entre o esquema de vida induzido pela cultura ocidental por um lado e por outro a visão bíblica das coisas e a prática de vida que esta visão propõe. --- 1/16 Reflexões sobre um pensamento de Soeren A. Kierkegaard

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Artigo sobre o pensamento: "A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ter necessidade deDeus."Soeren A. Kierkegaard

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Artigo sobre Kierkegaard ;quinta, 23/06/2016

"A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ter necessidade deDeus."

Soeren A. Kierkegaard

Conteúdo:

1. Natureza Humana1.1. Reação humana

1.2. Reação a partir da Fé bíblica1.3. Necessidade de Comunhão

1.4. "Vazio" e Perfeição

2. A Questão da Identidade2.1 A outra Identidade

2.2. A Robotização2.3. A nova natureza

3. Entendimento e Necessidade3.1. Perfeição, Necessidade e Comunhão

3.2. A "fome"3.3. Espera e Transformação

4. Conseqüência prática

Este pensamento de Kierkegaard expressa algo do ser humano que, me parece,atinge em cheio o conceito que se faz sobre a natureza humana. Observo que esta colocação do Kierkegaard é totalmente estranha, diria até contrária aos valores propalados pela cultura ocidental, tanto da sua época como da atual; isto torna surpreendente esta compreensão do Kierkegaard sobre a natureza humana, surpreendente a ponto de se pensar numa real inspiração, numa revelação do Espírito Santo. Pensamento estranho ao ideal da cultura ocidental, mas perfeitamente compatível com a mensagem bíblica.

-– Não quero fugir do tema, mas aproveito a observação da discrepância entre amensagem bíblica e a cultura ocidental, seus valores, seus ideais para identificar nesta divergência a causa, imagino, do porquê da fé bíblica ser tão pouco entendida e praticada na sua integridade. Aliás, a impressão que tenho às vezes é que há um fôsso enorme entre o esquema de vida induzido pela cultura ocidental por um lado e por outro a visão bíblica das coisas e a prática de vida que esta visão propõe. ---

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Reflexões sobre um pensamento deSoeren A. Kierkegaard

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--- Só um alerta: embora a redação possa, às vezes, dar a impressão de ser muito afirmativa, as propostas colocadas aqui são, simplesmente, reflexões, hipóteses,possibilidades, argumentações e tentativas de demonstrações. As afirmações que façonão querem ser lapidares e muito menos definitivas, visam o diálogo, a discussão, a troca de ideias tendo em vista aproximações na busca da verdade. ---

1. Natureza Humana

A referida citação de Kierkegaard ajuda a entender a natureza humana conforme proposta pela Bíblia. De cara afirma que o ser humano necessita de Deus; está, portanto, dizendo que o ser humano não é um ser completo, lhe falta algo. Há algumas percepções, sensações, atitudes do ser humano que confirmam a afirmação de Kierkegaard. Vamos analisá-las em duas situações: nas pessoas que conhecem o Deus bíblico e naquelas que não conhecem este Deus. Partimos da situação em que apessoa percebe, sente a sua fraqueza, a sua doença, os seus limites. Vamos começar a nossa análise pelas pessoas que não depositam a sua confiança no Deus bíblico e ver como reagem face ao reconhecimento da sua fraqueza.

1.1. Reação humana

Uma sensação básica de todo ser humano é perceber seus limites, é sentir dor, é sofrer, é experimentar a doença, é saber que vai morrer. O referido pensamento de Kierkegaard é uma forma de expressão desta experiência do ser incompleto. Experiência tão básica, tão elementar, que todo ser humano percebe, mais ou menos forte, cedo ou tarde, é impossível ignorá-la.

Mas, voltando à proposta de analisar como o ser humano, em geral, reage (-i-) àconscientização da sua fragilidade.

–- Desconsideramos na presente análise a atitude irresponsável de pessoas que na tentativa de ignorar o inevitável, vivem de forma alienada e superficial –-

Na sua reação observamos uma (-ii-) busca por cura que leva naturalmente a procurar por terapias, remédios e as mais diversas formas de alívio (é também uma maneira que a pessoa encontra de lutar, de não desistir, de não se dar por vencido, deprocurar por um sentido para sua vida mesmo no meio da tragédia e do fracasso).

Muitas pessoas se contentam ao encontrar saúde física, outras já precisam de uma terapia emocional. Algumas, no entanto, fazem face a uma crise existencial e saem em busca de um equilíbrio espiritual. Me parece que esta busca de uma cura espiritual está na base, senão das diversas religiões, pelo menos na origem do sentimento religioso da criatura humana; quer dizer, de alguma forma o ser humano, face a sua fraqueza, se volta, se abre para o transcendente. Está claro que se a pessoa busca por uma cura é porque ela crê que existe um remédio, uma terapia.

(-iii-) Exposta a várias propostas, a pessoa acaba escolhendo ou sendo levada a escolher uma delas, mais ou menos convencida da eficácia do seu Yoga, do seu Budismo, da sua Gnose (seu saber) do seu Seicho-no-iê, da sua Meditação Transcendental, da sua Antroposofia, do seu Espiritismo (seja Kardecista, seja

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Umbandista ou Candomblista) entre outras tantas ofertas que se apresentam hoje em dia. Alguns se contentam com filosofias seculares e conseguem arrancar do niilismo, ou melhor, da luta sem esperança o heroísmo que dá sentido a suas existências.

Este momento da escolha de um determinado "remédio", de uma determinada terapia me parece poder ser caracterizado como o evento, ou o processo de conversão. Este processo de conversão, que também pode ser visto como arrependimento e novo começo, abandono de hábitos antigos e opção por novos, exige naturalmente que a pessoa tenha -confiança- na eficácia do "remédio" proposto e portanto -esperança- que sua "aplicação" traga a almejada cura.

(-iv-) O Caminho: uma vez a pessoa tendo se decidido por seguir uma determinada terapia, agora é uma questão de praticar, aprender e aderir à proposta. A pessoa vai avaliando se os resultados esperados se confirmam, vai estudando e praticando a doutrina e os preceitos da crença que adotou e, na medida em que tiver um certo senso crítico, vai avaliando se não há contradições internas e vendo se a visão de mundo proposta está de acordo com a realidade da prática diária; neste ponto, a ilusão pode mascarar a percepção da realidade. A permanência da pessoa nacrença que abraçou vai depender se a -confiança- nela depositada deu resultado e se a -esperança- de cura aumenta.

Voltando à afirmação do Kierkegaard da pessoa "ter necessidade de Deus", pode-se observar que de um modo geral quando não estamos bem achamos que estamos sofrendo devido a alguma disfunção e que basta se descontaminar ou ingerir o "remédio" adequado. É como se simplesmente faltasse algo ou que bastasse uma transformação e o problema estaria resolvido; às vezes a pessoa chega a se contentarcom as mirações do Santo Daime ou então com o alívio emocional do Prozac. O que Kierkegaard está afirmando é algo bem mais profundo e abrangente, vai ao âmago do ser humano e abrange toda espécie humana. Algo que não se resolve com uma simples transformação, descontaminação ou aquisição, mas aponta para uma nova identidade e quer indicar uma mudança de natureza.

1.2. Reação a partir da Fé bíblica

Começamos a nossa análise, no item anterior, vendo a reação das pessoas em geral face à própria insuficiência. Vamos ver agora como as pessoas que depositam a sua confiança no Deus bíblico reagem face ao reconhecimento da sua fraqueza, do seu erro, da sua natureza mortal, transitória.

(-i-) Consciente da sua fraqueza o crente (-ii-) busca na Bíblia o diagnóstico dasua situação na esperança de uma eventual terapia. Um aspecto que faz com que a pessoa aumente sua confiança na solução proposta pela Bíblia é que nela verá espelhada a sua fraqueza, a sua maldade, a sua rebeldia, o seu erro, a sua doença: "teu mal é incurável, a tua chaga é dolorosa ... para a tua ferida não tens remédio nem emplasto" (Jr 30.12,13); "Enganoso é o coração do homem, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto" (Jr 17.9). Ora, a pessoa ansiosa, depressiva, angustiada ou que já sofreu uma crise de pânico sabe que estes são os sintomas e que o diagnóstico é de fato aterrador. O Novo Testamento não é menos claro: "todos pecaram e todos carecem da glória de Deus" (Rm 3.23). Mas, já o Antigo Testamento faz crescer uma -esperança- de cura: "Porque te restaurarei a saúde, e curarei as tuaschagas, diz o Senhor..." (Jr 30.17); "Cura-me, Senhor, e serei curado, salva-me, e sereisalvo..." (Jr 17.14).

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(-iii-) A conversão: a perspectiva de solução apresentada pela Bíblia, graças a sua coerência interna, a concordância evidente com a realidade e a fidelidade de Deus(em cumprir as promessas que faz e de manter as suas alianças, independente se cumprimos a nossa parte ou não, como se lê em 2Timóteo 2.13: "se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo.") fazem o crenteaderir cada vez mais à sua conversão e prosseguir. (-iv-) Prosseguir no caminho proposto.

-Um caminho de morte para si mesmo: "Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos morreram" (2Co 5.14).

-Um caminho de vida para outro: "E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou." (2Co 5.15).

Na sua caminhada, a pessoa que busca a verdade na Palavra começa a perceber que ela não precisa de Deus para conseguir isto ou aquilo, para ser agraciada com saúde ou boa fortuna. Na sua caminhada com a Bíblia a pessoa reconhece a sua intrínseca fraqueza e começa a conhecer a sua verdadeira necessidade: a absoluta necessidade que tem de comunhão com Deus. Segundo a fé bíblica a necessidade do ser humano só é satisfeita por um relacionamento, um relacionamento pessoal, um relacionamento com um Deus pessoal. É desta necessidade que, com sua fé, Kierkegaard está a falar quando se refere à perfeição doser humano.

1.3. Necessidade de Comunhão

Ao se considerar esta necessidade de viver com Deus, de permanecer em Deus, as palavras do apóstolo Paulo antes tão estranhas agora nos parecem fazer sentido: "logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim", (Gálatas 2.20).

Tal qual o apóstolo Paulo, o crente se percebe cativo, oprimido, preso no seu erro, na sua fraqueza, na sua tendência para o mal: "...eu, todavia, sou carnal, vendidoà escravidão do pecado", (Rm 7.14). Como Paulo, o crente quer fazer o bem, quer ser bom, altruísta, honesto, capaz, não quer abrir mão de ser íntegro. Mas, não consegue, simplesmente não consegue: "... pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo", (Rm 7.18).

Há ocasiões em que, assim como o apóstolo Paulo, ficamos surpreendidos, decepcionados e envergonhados com nosso comportamento: "Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto ...não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço", (Rm 7.15,19).

Ao ver que a situação não tem escapatória fazemos, coro ao grito de Paulo na sua pergunta desesperada: "Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpodesta morte?", (Rm 7.24).

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A resposta que o próprio Paulo, logo em seguida, dá a esta pergunta deixa claroa verdadeira natureza da criatura humana, sua verdadeira vocação: "Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor ", (Rm 7.25a). Uma natureza com uma perfeição que só ocorre no desespero do vazio, do incompleto, e só é atingida na mais total, plena e absoluta dependência de Deus. Uma perfeição atingida no vazio do desespero, mas um vazio que vai sendo estruturado pela fé em Jesus.

1.4. "Vazio" e Perfeição

Sim, mas que vazio é este que ao mesmo tempo é a nossa perfeição, a nossa chance de experimentarmos o completo, o inteiro? Este vazio não é nada mais do que a eternidade que Deus coloca no coração dos seres humanos: "Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem", (Eclesiastes 3.11a). Pois, só o infinito do vazio pode, ao mesmo tempo, receber o infinito da eternidade e estar contido na nossa finitude.

Que interessante, um vazio sim, mas um vazio afetado de uma probabilidade deconter algo, pois é um vazio que dá a chance, a possibilidade da pessoa ser associadaao transcendente, ao eterno.

Mas como podemos conter um vazio? a gente não "implodiria"? Sim, "implodiria". E, de fato, a gente se desespera, e fica no desespero, caso não estruturareste vazio que cada um percebe em si. A proposta dada pela Bíblia é estruturá-lo com a fé em Deus, convictos da reconciliação alcançada por Jesus Cristo, e dinamizá-lo com a esperança da adoção.

Esperança que assim, pela fé, se configura como um vazio que nos preenche ecomo "âncora" ela nos "fixa" ao transcendente, proporcionando segurança: "forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta; a qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu", (Hb 6.18,19). De outra forma, o vazio em nós nos faria curvar, fechar sobre nós mesmos e, sucumbidos pelo peso da existência, seríamos lançados para lá e para cá como barco, sem rumo, em mar revolto.

Quer dizer, a criatura humana completa a sua natureza, não vivendo autonomia --pois, vivendo autonomia estará tentando preencher ela própria o seu vazio e continuará incompleta-- mas morrendo para a sua pseudo-autonomia e vivendo a sua dependência de Deus. Talvez possamos dizer: vivendo teonomia (no presente texto, desconsideramos todo pré-conceito que o termo teonomia possa ter herdado da filosofia).

Aqui, teonomia quer expressar, em oposição à autonomia, toda dependência que o ser humano tem de Deus a ponto de não existir mais como um ser independentede Deus, mas um ser morto para si e vivificado pelo Espírito Santo: "Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita", (Rm 8.11).

E, devido a este fato: do corpo humano poder ser vivificado e dirigido pelo Espírito de Deus, é que Paulo recomenda em Romanos 12.1b: "que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus".

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Recapitulando e sintetizando: a afirmação de Kierkegaard nos diz que ter necessidade de Deus é a maior perfeição do ser humano. Fazendo um paralelo entre necessidade e vazio vimos, pela reflexão bíblica feita, que este vazio, ou seja, esta necessidade deve ser estruturada pela fé para que de fato a perfeição do ser humano possa ser atingida. É a perfeição que a fé confere à criatura humana preenchendo-a com a esperança da filiação divina; filiação esta, bem entendido, não autônoma, mas em Jesus Cristo.

Jesus fala a mesma coisa, só que de outra forma, ao utilizar a figura da vide e dos ramos para explicar a relação do ser humano com Ele: "Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer", (Jo 15.5). A mesma coisa é dita no sentido de que a perfeição do ser humano está na necessidade que ele tem de Deus assim como o ramo tem da vide.

Quer dizer, a pessoa atinge sua perfeição: a vocação para a qual foi criada, na medida em que vive a necessidade que tem de Deus, não querendo se afirmar como um ser autônomo e independente, mas desenvolvendo sua real natureza de parte, de membro de um corpo que tem Jesus por cabeça: "...cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor", (Ef 4.15,16).

O enxerto só é perfeito quando se solda bem à planta e não quando quer florescer e dar fruto sozinho, fora do tronco para o qual foi destinado. Um enxerto longe da planta que deve suportá-lo está fadado a morrer e de nada vale. Esta figura nos faz entender as palavras de Jesus: "sem mim nada podeis fazer", seguidas ainda da séria advertência: "Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam", (Jo 15.6).

Portanto, encontramos na Bíblia expressa de formas diversas a verdade da afirmação feita por Kierkegaard de que o ser humano encontra perfeição na sua necessidade de comunhão com Deus e não tentando entender a Deus. Já seria um ótimo começo se a pessoa tentasse se entender a si própria, se se visse como parte associada a um todo e fosse em busca da sua verdadeira identidade em Cristo Jesus.

2. A Questão da Identidade

Aqui, chegamos num ponto da reflexão que nos leva a mais uma associação, a mais uma percepção a partir do pensamento de Kierkegaard que nos prendeu a atenção: é a questão da nossa identidade. Para a facilitar a referência ao texto, este item será subdividido em três:

- 2.1. (A nossa outra identidade)- 2.2. (A robotização)- 2.3. (A nova natureza)

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2.1 A outra Identidade

Nessa altura deparamos com uma conclusão interessante e até certa medida surpreendente do pensamento de Kierkegaard sobre o qual estivemos refletindo. Se somos parte, não somos uma individualidade e por conseguinte a nossa identidade definitiva não se encontra em nós mesmos, mas nos é dada, conferida, por aquele do qual fazemos parte.

E, é exatamente isto que o apóstolo Paulo sugere quando escreve aos Colossenses: "Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus", (Cl 3.2,3). Acho que de um modo geral é a nossa maneira de viver que nos identifica, por isso acho válido considerar a nossa vida sendo a nossa verdadeira identidade e não tanto aquilo que achamos ser. A partir desta associação de ideias, surge uma pergunta no mínimo intrigante:

"Se não sou o que penso ser, então quem sou?"

Sem dúvida, esta pergunta pode dar material para um bocado de consideraçõese tem um mesmo tanto de implicações para a autoimagem de cada um que for tentar respondê-la. Esta pergunta leva a outros temas, outros assuntos que não cabe serem desenvolvidos aqui. Quero, no entanto, adiantar uma resposta que irá ajudar na reflexão:

"Sou a esperança que me possui". (a partir do pensamento de Paul Tillich transcrito em seguida).

Pensamento de Paul Tillich citado dia 24/12/2000 no devocional: "Losungen 2000" e que acompanha os versículos bíblicos: Sl 33.20 e Judas 21. Tradução livre do alemão:

"Não podemos possuir a Deus, mas podemos esperar por ele. A expectativa antecipa o que ainda não se tornou realidade. Quando aguardamos com esperança e paciência --também para além da anual festa natalina-- então já atua em nós a força daquele por quem esperamos; pois somos possuídos pelo que esperamos. Somos mais fortes quando esperamos do que quando possuímos."

Observamos que a última frase desta citação de Tillich faz eco ao pensamento de Kierkegaard: "A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ter necessidade de Deus". A semelhança fica clara se a frase mencionada for lida com as equivalências indicadas: "mais fortes" = "maior perfeição"; "esperar" = "ter necessidade"; "possuir" = "entender".

Esta questão "de não ser aquele quem a gente acha que é" é, sem dúvida, uma boa nova para aqueles fracassados tanto na vida pessoal como profissional, para aqueles deprimidos e depressivos, para os medrosos e tímidos, em suma, para os fracos em geral. Sim, esta é inegavelmente uma notícia alvissareira para quem o paliativo do Prozac e a perfumaria dos antidepressivos não está resolvendo e que se cansaram de ajustar o teor de lithium no sangue. Para todos aqueles que já ouviram do seu psiquiatra: "não, você não tem complexo de inferioridade, você é inferior mesmo".

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E o suicida --aquele que só consegue ainda esboçar um sorriso ao pensar no alívio da própria morte-- qual será sua reação ao ser confrontado com o fato de estar querendo matar alguém que não é? Talvez começasse a deduzir que a angústia, a ansiedade, o desespero, o medo que sente sejam, tão somente, os estertores finais, ascãimbras mortais de um moribundo ego fictício.

Talvez o fascinado pela própria morte, antes de passar a navalha na jugular, queira considerar a hipótese que faz mais sentido reviver, ressuscitar para sua real identidade do que tentar destruir um pseudo-self ilusório. Face à possibilidade de se assumir uma nova identidade, talvez dê resultado acenar não com uma mera transformação emocional, mas com a eventualidade de um radical "transplante de cabeça".

2.2. A Robotização

Voltando à questão da nossa identidade, quero colocar primeiro o que ela não é, ou melhor, com aquilo que ela não deve ser confundida. A mim me parece que aquilo que conscientemente identificamos como nosso ego, como o núcleo central da nossa personalidade, é simplesmente uma identidade imaginada, fictícia, fruto das nossas sensações enganosas. Nesse parecer compartilho da opinião de David Hume: considerava o ser humano como um feixe de emoções sem necessidade de apresentarum cerne, um núcleo central com o qual ele se identificasse.

Um perigo que corremos ao nos identificar com tal núcleo é o de limitarmos a nossa liberdade, é o de limitarmos a nossa possibilidade de escolha ao mundo material e sua imanência, negando a revelação que podemos receber do transcendente. Esta focalização no material é como uma forma de cerceamento da nossa liberdade, de escravização, enfim de robotização, porque tb o robô tem suas opções limitadas ao programa que o controla.

Por paradoxal, contraditório que possa parecer, quanto mais a saúde, a inteligência, o sucesso tornam a pessoa autônoma, enfim perfeita e completa em si mesma --conforme, por exemplo, Donald Trump (Don ou Ron? não sei) e Jane Fonda, casal maravilha da elite mediática dos anos 90, ícones do individualismo WASP (WhiteAnglo Saxon Protestant) tão idolatrado nos EUA--, tanto mais a pessoa deixa de ser humana para ser um robô.

Veja, é só sob o influxo do transcendente que a pessoa recebe um coração de carne, isto é, humano em substituição ao coração de pedra, robótico; cf. Ezequiel 36.26: "Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne".

Portanto, se a pessoa, segundo os ideais da civilização ocidental, se considerar autônoma, perfeita e completa em si mesma, sem depender nem precisar de ninguém, estará se condenando e se limitando a uma existência finita e irracional. Finita e irracional devido à não comunicação com Deus e portanto sem novidade de vida, sem informações e sem soluções novas, sem revelação. Exatamente isto que significa "coração de pedra", portanto rígido, inflexível e mesmo irracional como a Bíblia qualifica quem não tem contato com Deus: "eu estava embrutecido e ignorante; era como um irracional à tua presença", (Sl 73.22).

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Então, ironicamente, tragicamente, a pessoa que se considera autônoma e completa em si mesma está mais para robô do que para ser humano. Quer dizer, quanto mais perfeita a pessoa, mais perigo corre de se robotizar, portanto de se degradar, isto é, de abdicar da sua condição de ser humano tendo necessidade de Deus, necessidade de comunhão com Deus.

Roger Penrose no seu livro, a Nova Mente do Rei, discute a possibilidade da ciência da Inteligência Artificial vir a desenvolver, "criar" como querem seus arautos, um ser artificial, um robô com capacidades de ser humano. Ora, o ser humano desligado de Deus é um ser limitado, portanto finito na sua capacidade de realizar associações informacionais até chegar num ponto que terá exaurido o número possívelde combinações, associações, e começará a repetir-se, perdendo em novidade de vidae, fechando-se sobre si mesmo, entrará num ciclo degenerativo de entropia crescente, acompanhando a evolução (quer dizer, involução) de todo o universo físico.

Assim, penso eu, o ser humano desligado de Deus é um simples objeto, um sistema físico-químico, dentro de um universo material limitado, finito e em crescente desordem. Não vejo porque uma criatura deste tipo, um organismo de reações psico-físicas determinadas, não pudesse ser recriado pela mente humana, da mesma forma que as máquinas já se "reproduzem"; a objeção é que as técnicas necessárias para tanto ainda estão longe de serem todas conhecidas, daí que tal empreendimento aindalevará um bom tempo para ser tentado; o difícil, no entanto, a meu ver, é ver algum sentido nisto.

Já a "criação" de uma pessoa ligada ao Deus vivo e portanto aprendendo e evoluindo por revelação e não com o acaso e por acaso está, seguramente, "um pouco", para não dizer giga anos-luz, acima e além da capacidade egoísta, míope, mesquinha, dos "robôs", por mais inteligentes e engenhosos que sejam.

Em suma, não deixemos que nos "robotizem" e nem nos "robotizemos" por conta própria, desligando-nos da "fonte de água viva". Mas, vamos tentar realizar a nossa vocação sendo aperfeiçoados na necessidade que temos de Deus graças a nossa natureza de parte, de membro, de participante da humanidade resgatada por Jesus Cristo.

2.3. A nova natureza

Falamos da nossa identidade robotizada, mas como fica a questão da nossa verdadeira identidade? Penso que, interpretando colocações bíblicas, a nossa verdadeira identidade, por sua vez, é oculta, está na origem do nosso ser e, portanto, é forçosamente inconsciente. Reconhecendo a origem inconsciente da sua geração, o salmista ora assim: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno", (Sl 139.23,24).

Agora, a nova identidade da qual fala a Bíblia, em especial o Novo Testamento como realização de profecias do Antigo, não é só uma questão de conscientização.

Conscientização de determinadas identidades coletivas que nos dizem/fazem pertencer a este ou àquele grupo, a esta ou àquela igreja, a esta ou àquela nação, ou ainda àquela identidade que temos por pertencermos a humanidade como um todo.

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A nova identidade que referimos também não tem nada a ver com condicionamento cultural e menos ainda com a violentação do patrimônio/herança genética da pessoa. A nova identidade, a nova vida em Cristo Jesus é, na realidade, o Evangelho que anuncia a mudança da nossa natureza de criatura individual para uma natureza de parte, de pertença ao Filho: é deixar de ser enxerto para ser (um com) a árvore, é deixar de ser tijolo para ser (um com) o templo.

Evangelho que é ao mesmo tempo morte e ressurreição, morte para a velha natureza e ressureiçao para a nova em comunhão com Jesus. Evangelho que é ao mesmo tempo consolo e esperança. Consolo por nos ser revelado que não estamos condenados a viver nós mesmos, melhor, nos é dito que morremos para nós mesmos. Esperança, pois ao invés do desespero subjacente à realidade diária de cada pessoa, devido à percepção da sua vulnerabilidade e fraqueza, é anunciada uma vida nova, como novas criaturas: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas", (2Co 5.17); algumas traduções trazem,ao invés de, "nova criatura" a expressão: "nova criação", ou seja, trata-se de fato de uma nova natureza.

Na verdade, o Evangelho é isto: nos é proposta a possibilidade não só de uma nova identidade, mas de uma nova natureza. O "robô" em nós passa a ter a possibilidade, nem que seja por efêmeros instantes, de ser gente, de ser, de fato, humano.

O Evangelho nos diz que do ponto de vista da eternidade somos outro, que nos é conferida outra natureza: "Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome", (Jo 1.12); quer dizer, "deu-lhes o poder" ou deu-lhes a possibilidade de estarem associados a Jesus, Filho de Deus. A possibilidade de comunhão esta afetada, isto é, está acompanhada de uma probabilidade tanto maior quanto mais a pessoa conhecer o Evangelho de Jesus Cristo. Mas, que fique claro: comunhão inconsciente, efêmera. Isto porque é uma possibilidade de comunhão, que se realiza na esperança da fé e, de fé em fé, é uma comunhão que deve ser renovada a cada dia, melhor, a cada momento. Eu não possuo esta comunhão, não a controlo, não tenho certeza se está ocorrendo, tenho isto sim a esperança que ocorra e, por isso, é ela que me possui.

Evangelho que é "o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê", (Rm 1.16). Ou seja, o Evangelho é a possibilidade de salvação, de reconciliação com Deus, de comunhão com Jesus. Aqui mais uma vez tomo "poder" como significando possibilidade.

E, eu acho que esta equivalência entre poder e possibilidade é válida no contexto do anúncio da Boa Nova, pois trata-se aqui não só do anúncio, mas de fé, de crer no conteúdo da mensagem. Ora a Bíblia nos fala do poder da fé, do poder conferido pela fé, cf Hb 11.11; 1Jo 5.4. Como lemos em Hb 11.1 a fé é a esperança da realização de determinadas ocorrências. Ora, poder é exatamente isto: realizar situações, promessas e mesmo provocar a ocorrência de fenômenos físicos (cf. Tg 5.18).

Concluímos pois que o Evangelho: a filiação divina em Jesus, se realiza atravésexatamente da fé Nele, já que este crer no anúncio confere (cf. Hb 11.1), atribui, ou melhor, afeta a esperança (i.e., expectativa da possibilidade de ocorrência) de uma certeza (i.e., de uma probabilidade alta de ocorrência).

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Portanto, fé é o poder inerente à probabilidade de ocorrência de uma determinada possibilidade; no caso do Evangelho, da possibilidade de adoção divina.

Adoção divina esta que naturalmente nos confere uma nova natureza, com uma nova identidade, como vimos discutindo. Mas, mais uma vez, vale lembrar que esta nova natureza, resultado da comunhão com Jesus, do ser associado a Jesus, se realiza, na realidade, como uma forma de comportamento dentro de uma determinada situação. Ora, uma situação é forçosamente limitada em termos espaço temporais bemcomo o respectivo comportamento gerador da nova natureza: "Pois somos feitura dele,criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas", (Ef 2.10).

Quer dizer, a situação sendo efêmera, também a filiação divina nela realizada é algo limitado em termos de local e duração. O que é importante notar é que a filiação divina é, obviamente, eterna, já que prevista antes da fundação do mundo (Ef 1.4), mas a realização/ manifestação desta filiação na nossa dimensão espaço temporal é que é localizada e transitória.

Como já mencionado, a filiação divina estando na origem do nosso ser é naturalmente inconsciente e atinge toda a humanidade (1Jo 2.2) na pessoa de cada um; conforme bem o coloca o teólogo suíço Karl Barth: "Quer a pessoa o saiba, quer não, ela tem em Jesus Cristo o seu Senhor e Salvador".

Agora, a filiação divina, a salvação atinge a humanidade não passando entre aspessoas, como se o Espírito Santo se esgueirasse no meio delas separando uma das outras como se separa cabritos de carneiros ou lobos de ovelhas. Mas, ela, a salvação, através da Palavra de Deus, atinge as pessoas no seu mundo interior separando "juntas e medulas", "alma e espírito" (Hb 4.12), lembrando que todos estão sempre perante o tribunal de Jesus Cristo, a quem todo ser humano tem como referencial de perfeita humanidade.

3. Entendimento e Necessidade

Para continuar a presente reflexão sobre o pensamento de Kierkegaard, em estudo, volto a transcrevê-lo:

"A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ter necessidade de Deus".

A ideia neste item é colocar em justaposição, face à perfeição da criatura humana, o "entender" a Deus versus o "ter necessidade" de Deus.

3.1. Perfeição, Necessidade e Comunhão

Primeiro: é preciso prestar bem atenção ao que Kierkegaard está dizendo. Ele não está simplesmente afirmando que a criatura humana tem necessidade de Deus. Quanto a isso, não há novidade, é mais do que evidente que a criatura precisa do seu criador. Tanto mais no nosso caso: criaturas frágeis e passíveis de erro precisam de alguém para as libertar e as sustentar.

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O que, na realidade, Kierkegaard está afirmando é que a coroa da criação não éa razão humana, não é a nossa capacidade de entendimento, mas sim a necessidade que nós, seres humanos, temos de Deus. Em outras palavras, a perfeição da criatura humana não está na sua mente, na sua razão, mas no fato de ser uma criatura a espera de Deus.

Segundo: é importante qualificar esta necessidade à qual se refere este pensamento de Kierkegaard. Penso tratar-se da necessidade de comunhão interior com Deus e não só de uma simples necessidade externa como a que um paciente tem de seu médico ou a que um aluno tem de seu professor, ou mesmo aquela que uma criança tem dos cuidados de seus pais.

Estamos portanto analisando, refletindo em cima da possibilidade de que a nossa perfeição como seres humanos deriva, ou melhor, tem sua origem na necessidade que temos de comunhão interior com Deus.

Vale lembrar que a comunhão, a intimidade com Deus, a reconciliação com Deus é uma possibilidade alcançada e oferecida por Jesus e é, portanto, algo externo que independe totalmente dos esforços da criatura humana. A comunhão com Deus é um presente, é graça.

O que na realidade podemos perceber, sentir como criaturas é exatamente esta esperança de comunhão com Deus, esta expectativa, esta ânsia, esta necessidade, este vazio, esta "fome" por Deus. E, pelo que entendo, Kierkegaard considera esta "fome" por Deus como sendo a característica humana máxima. Portanto, segundo esta colocação, o ápice da criação não é a inteligência (racional ou emocional) da criatura humana, mas a sua "fome" por Deus.

3.2. A "fome"Mas, que "fome" é esta que nos faz perfeitos, embora não completos? Qual será

a natureza do "alimento" que poderá saciar esta "fome"? Pois é, infelizmente, tragicamente, o ser humano tem tentado mascarar esta fome, tem tentado disfarçá-la e, pior, tem procurado satisfazê-la com alimentos falsos.

Os mais espertos, percebendo esta fome nas pessoas, tiram daí o seu lucro vendendo alimento falso que não sustenta e nem satisfaz. Já as Escrituras nos advertem contra falsos alimentos, conforme lemos no livro do profeta Isaías: "Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? ...", (Is 55.1-2).

Uma palavra de Jesus dita a seus discípulos, registrada no Ev. de João no contexto do encontro com a mulher samaritana, esclarece bem a natureza do único alimento que satisfaz a "fome" por Deus: "Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. ...A minha comida consiste em fazer a vontade daqueleque me enviou e realizar a sua obra", (Jo 4.32,34).

Com este esclarecimento de Jesus --e isso é bem interessante, porque certas associações faltam ao nosso universo mental, e aí precisamos da revelação das Escrituras-- podemos associar "alimento" com a "realização de uma vontade".

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Como acabamos de ler na passagem acima, no caso de Jesus o seu "alimento" é realizar a vontade do Pai, que foi quem o enviou ao mundo, quem o enviou para nós.E, no caso, para nós, qual o alimento que satisfaz a nossa "fome" de Deus? Por analogia, o alimento que irá satisfazer a nossa fome, a nossa ânsia eterna, é também realizar a vontade daquele que nos envia.

Sendo Jesus, quem nos envia, é Ele pois quem nos alimenta: "o verdadeiro pão" que desce dos céus e nos dá vida Nele; conforme também nos esclarece o Ev. deJoão nas seguintes passagens: "Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio" (Jo 20:21), confirmando que é Jesus que nos envia e, também, nos alimenta: "Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida" (Jo 6:55), garantindo-nos a vida em Jesus: "Assim como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, tambémquem de mim se alimenta por mim viverá" (Jo 6:57).

Jesus diz que veio fazer a vontade do Pai: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou", (Jo 6.38). Esta declaração de Jesus nos permite dizer que o seu objetivo de vida, portanto o seu desejo é o de realizar a vontade do Pai. Daí, é fácil deduzir: se "fazer a vontade de Deus" é "alimento" para Jesus (cf. Jo 4.34), então a respectiva "fome", que se sacia deste alimento, é, exatamente isto: sentir o desejo de realizar a obra daquele que o enviou, de Deus, do Pai.

Quer dizer, a "fome" por Deus deixa de ser um sentimento vago de vazio para se tornar num objetivo de vida, manifestando-se sob a forma de uma determinação firme: a de cumprir a tarefa para a qual se foi destinado.

Esta mesma "fome" que houve em Jesus é também colocada em nós pois somos Nele criados: " Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas", (Ef 2.10).

Só complementando: esta determinação firme de cumprir a vontade daquele que me enviou, esta "fome", de maneira, diria surpreendente, ao invés de provocar inquietação e ansiedade proporciona paz, conforme Deus nos promete em Isaías: "Tu, SENHOR, conservarás em perfeita paz aquele cujo propósito é firme; porque ele confia em ti", (Is 26.3).

3.3. Espera e Transformação

Em suma: realizar a vontade de Deus é o "alimento", logo, querer fazer a vontade de Deus é a "fome": a "necessidade de Deus" da qual nos fala Kierkegaard; necessidade esta percebida e compartilhada por todas as criaturas humanas.

Ao ser humano, à criatura, é dado ter "fome". Já o "alimento" é providenciado por Deus através de Jesus. E, é bom lembrar que, quando Jesus se oferece como "alimento", não é uma força vital impessoal que recebo e da qual posso dispor a meu bel prazer. Não, ao ser alimentado por Jesus recebo uma vontade que me envia, uma tarefa a ser cumprida e uma obra a ser realizada.

Ao ser humano compete pois aperfeiçoar-se na sua "fome" e esperar para ser "alimentado" na certeza de que Deus suprirá.

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Este esperar por Deus, este aguardar pela intervenção divina, nos é ensinado nas Escrituras, para isso exatamente que elas foram escritas. Vamos aprender a viver a viva esperança que nos vem da fé na obra de Jesus, através do consolo e a paciência que as Escrituras proporcionam: "Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança", (Rm 15.4).

Já que a perfeição humana está "na necessidade de Deus", vamos aperfeiçoar-nos nesta "necessidade". Como transformar vazio em esperança, incerteza em determinação, fome em jejum, preocupação em planejamento, culpa em arrependimento? Como não ser presa da ansiedade, do medo, da angústia, da aflição,do pânico? Como, ao invés disso, ser liberto para uma alegre espera por justiça e solidariedade, para uma expectativa de paz e tranqüilidade, para a suprema esperança do amor fraternal?

Como já mencionamos acima o caso é reestruturar o caos no nosso ser, o vazio na nossa vida através da fé numa esperança maior, num sentido mais profundo para a nossa existência.

De um modo geral, o padrão de transformação, o processo de reestruturação daexistência da pessoa (e não só do indivíduo, mas tb do coletivo, da sociedade) pode ser inferido das palavras de Jesus, transcritas no Ev. de Lucas, a respeito dos "Ais" e das "Bem-aventuranças", que fazem parte do denominado: Discurso da Planície.

Ao falar dos "ais" que atingem os ricos, os fartos, os "zombadores", os idolatrados, Jesus dirige-se às pessoas em geral e destaca alguns aspectos da miséria humana: a ganância e o egoísmo, a fome e o medo, o desespero e o sofrimento, a mentira e a injustiça. Ora, isto não é nada mais, nada menos, do que o caos e o vazio existencial em que todos nós vivemos.

Voltando-se especificamente para seus discípulos, Jesus lhes recomenda transformarem este caos, este vazio numa "fome" por Deus, numa necessidade dirigida a Deus (de modo a romper com o círculo vicioso que vai do egoísmo gerador de miséria e desta volta ao egoísmo realimentando-o descontroladamente). Desta forma, pela fé Nele, isto é, crendo na informação revelada na Sua Palavra, os discípulos devem procurar estruturar a miséria existencial, através da certeza da Sua intervenção em favor do bem estar de toda a humanidade.

Em outras palavras: os discípulos de Jesus, com base na fé Nele, devem procurar denunciar a mentira e a injustiça com a palavra profética e buscar viver como bem-aventurados estruturando as suas vidas de modo a transformar: a ambição e a ganância em simplicidade de vida, a fome e os lamentos em jejum e arrependimento.

A partir daí os discípulos podem viver na alegre expectativa, na esperança viva,de que também através deles, "alimentados" por Jesus, o Reino vem, os famintos são servidos e a verdade no exercicío da justiça promove a paz.

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4. Conseqüência prática

Sendo válidas as reflexões a respeito do pensamento de Kierkegaard --contrapondo entendimento à necessidade, razão versus "fome", fome por Deus, no âmbito da perfeição humana--, então há aqui conseqüências de aplicação prática significativas, em especial no campo educativo pedagógico.

Antes de mais nada uma elucidação: está claro que Kierkegaard não polemiza contra a razão humana, nem desaconselha o uso da inteligência, mas quer vê-la colocada no devido lugar. Quer dizer, a nossa inteligência e entendimento a serviço danossa comunhão com Deus e não sendo usados como uma "fabriqueta" de ídolos, dos mais variados tipos e colorações, a começar pela própria razão.

Dito isto, há, como vemos, que se proceder a uma reorientação tanto na educação dada pelos pais como na pedagogia escolar: o foco do esforço não deveria ser o de desenvolver o intelecto da criança aprimorando seu raciocínio lógico e treinando sua capacidade de memorização, num verdadeiro culto de adoração à inteligência, queimando o incenso da racionalidade e sacrificando a verdade no altar do reducionismo; pois assim, o que, no fim das contas, se alcança é criar na criança uma crença irracional na absoluta supremacia da razão humana.

Com o objetivo de relativizar esta questão da razão poderiam ser elaborados currículos que valorizassem a busca do ser humano por Deus. Que se pensasse em práticas e métodos didáticos que facilitassem ao aluno aprender com a revelação e conduzissem a uma associação cada vez mais consistente com a verdade.

Que fossem propostos conteúdos pedagógicos que ajudassem na conscientização clara da absoluta necessidade que a pessoa tem deste Deus que a criou, redime e sustenta. Conteúdos com o objetivo de despertar e aperfeiçoar na criança, no jovem, no adolescente um querer, um querer que vai além do seu próprio querer, isto é, uma "fome" só satisfeita pelo "alimento" que só a comunhão com Jesus oferece: a possibilidade de um comportamento agradável a Deus, a realização da vontade de Deus.

Isto não quer dizer que se deva suprimir a capacidade de avaliação crítica; pelo contrário, é preciso que seja aperfeiçoado o discernimento entre o falso e o verdadeiro, entre a sinceridade e a manipulação. Quanto mais cresce a "fome" tanto mais há o perigo de se comer qualquer coisa. A razão tem que estar apta a separar o joio do trigo, a denunciar doutrinas enganosas, contraditórias.

A experiência e a história mostram os efeitos devastadores provocados por distorções no âmbito da nossa necessidade de Deus, é como saciar a fome com alimentos contaminados. Como exemplo tem a "fome" por salvação na Idade Média sendo satisfeita pela compra de indulgências, contaminando as pessoas com alimento manipulado. Portanto, o intelecto, longe de ser desprezado, deve ser desenvolvido para ajudar as pessoas escolherem o "alimento saudável", a doutrina correta, de formaa contribuir para a obra de reconciliação com Deus.

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Mas, volto a insistir, só a "fome" por Deus nos coloca em movimento, sim, nos faz correr, como o apóstolo Paulo, rumo ao alimento que nos vem do céu, tendo em vista a verdadeira vida: "...mas uma coisa faço: esquecendo-me do que fica para trás eavançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus", (Fp 3.13-14, BJ).

Ao recapitular, quero dizer que, em termos pessoais, o objetivo do ensino de Jesus, para nós como criaturas, é o de que alcancemos a maior perfeição possível ao expressar a nossa absoluta dependência de Deus, a nossa necessidade de Deus.

De que forma? Jesus estrutura, em nós, o caos, o desespero, a desesperança. Ao despertar em nós a fé Nele, através da graça de crer no testemunho e na revelaçãobíblica.

Assim transforma o vazio em nós num espaço estruturado, organizado, dinamizado, preenchendo-nos com a esperança da sua intervenção.

Em suma, a didática de Jesus transforma em ânimo a desolação do nosso mundo interior pela fé bíblica no seu Evangelho e através da esperança na Sua intervenção:

"Eu sou pobre e necessitado, porém o Senhor cuida de mim; Tu és o meu amparo e o meu libertador; Não te detenhas, ó Deus meu! Apressa-te em socorrer-me", (Sl 40.17 e Sl 38.22a).

Por isso, a conclusão é voltar ao pensamento de Kierkegaard:

"A maior perfeição do ser humano não é entender, mas ternecessidade de Deus."

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