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Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa 3.º Curso de Mestrado em Estudos do Espaço e do Habitar em Arquitectura Estética das Formas Urbanas Luís Santiago Baptista e Ana Godinho AS NOÇÕES DELEUZO -GUATTARIANAS DE TERRITÓRIO E  AGENCIAMENTO A PARTIR DE 1837    A LENGALENGA Pedro Manuel Serrano Gomes 23 de Junho de 2008

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Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

3.º Curso de Mestrado em Estudos do Espaço e do Habitar em Arquitectura

Estética das Formas Urbanas

Luís Santiago Baptista e Ana Godinho

AS NOÇÕES DELEUZO-GUATTARIANAS DE TERRITÓRIO E

 AGENCIAMENTO A PARTIR DE 1837  –  A LENGALENGA 

Pedro Manuel Serrano Gomes

23 de Junho de 2008

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Uma das principais dificuldades em se trabalhar com um conceito na obra de Deleuze e Guattari […] é

que o conceito para eles é fugidio, literalmente “rizomático” e múltiplo (“articulação, corte e

superposição”), fazendo sempre referência a outros conceitos […]. (Haesbert e Bruce, 2002)

Deleuze est donc, un peu par sa propre faute, un philosophe très lu […] mais pas un philosophe très

compris. (Regnauld, 2004)

hás-de me dizer se é cada coisa para seu lado ou se isto anda tudo ligado

(Sérgio Godinho . “Isto anda tudo ligado”)

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NOTA PRÉVIA 

Servem as frases em epígrafe de aviso: o que aqui se apresenta é uma tentativa de compreender as

noções de território e agenciamento a partir de 1837 – Sobre a lengalenga. Tentativa que surge de uma

curiosidade, pela constante citação de que os conceitos são alvo por parte da geografia pós-

estruturalista. Trata-se de uma vontade de ir procurar a fonte de algumas das preocupações da geografia

contemporânea com as quais me identifico. Este trabalho surge, então, como mero pretexto para algo

que iria ser feito de qualquer das formas. Li e reli o planalto em questão, li outros planaltos, li partes de

outras obras dos autores, li artigos, capítulos de teses sobre Deleuze e Guattari (doravante D&G). As

coisas estão relativamente claras na minha cabeça. Mas deparo-me com os problemas em epígrafe: em

D&G, tudo parece estar relacionado com tudo – a estrutura rizomática1 do seu pensamento assim o dita.

Por outro lado, a compreensão que julgo ter alcançado será sempre relativa: omite secções do capítulo

que julguei serem pouco relevantes e é condicionada pelas leituras paralelas que fiz (ler muito e perceber

pouco, eis o receio). Não são desculpas, mas constatações.

Um texto de parto difícil, este – pelo rizoma que implica, e eu sempre fui educado em modelos

arborescentes. Há dez dias que tento escrever, respeitando o rizoma. Desisto: vou segmentar, arriscando

excomunhão. Subcapítulos: isto é sobre a lengalenga, isto é sobre o território, isto é sobre o

agenciamento, estas são as minhas reflexões em torno do que veio antes. Eu sei que tudo é sobre tudo –

rizoma! D&G falam sempre do mundo, do ser, de tudo: ontologia2.

1 Para um desenvolvimento da questão do rizoma, vide o primeiro planalto Introdução: Rizoma (Deleuze e Guattari, 2007: 21-49).

Para uma abordagem aos modelos arborescente e rizomático a propósito da lengalenga, (Deleuze e Guattari. 2007: 416-8)2  Manuel DeLanda, filósofo mexicano, tem dedicado particular atenção à dimensão ontológica do pensamento deleuzo-guattariano e às suas implicações para a prática científica.

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COMENTÁRIO 

1. 

Da lengalenga

1837 – A lengalenga  começa numerado: um, dois, três. Lengalenga que define um centro, lengalenga

que forma uma casa, lengalenga que se abre ao cosmos. Não estamos perante três momentos numa

evolução, mas perante três aspectos de uma coisa só: a lengalenga. Lengalenga entoada pela criança

assustada no escuro, trazendo ordem às forças do caos1; lengalenga como círculo traçado em torno

desse centro frágil e incerto; lengalenga-círculo que se entreabre, não onde se pressente o caos, mas

numa nova região – abertura sobre um futuro para alcançar o cosmos2.

Trata-se, então, de um lengalenga territorial, agenciamento territorial, que ora vai do caos para um limiar

de agenciamento territorial (componentes direccionais, infra-agenciamento), ora sai do agenciamento

territorial rumo a outros agenciamentos, ou ainda algures (inter-agenciamento, componentes depassagem ou até de fuga). Nesta lengalenga confrontam-se forças do caos, terrestres e cósmicas3.

A canção da criança acalma-a, ordena o espaço, criando um centro de estabilidade no meio do caos, um

princípio de ordem. Canção que marca um espaço: a repetição de pequenas estruturas frásicas cria um

meio (bloco de espaço-tempo constituído pela repetição periódica da componente)4. Mas o que cria este

meio não é a canção, mas a lengalenga, a repetição de elementos da canção – padrões resultantes da

repetição5. Cada meio é, assim, vibratório – a tal repetição periódica da componente que cria um bloco de

espaço-tempo. O meio é como que a circunstância imediata em que um ser se situa 6; formado no seio do

caos, sobre ele abertos e por ele ameaçados, respondem-lhe com o ritmo. Ritmo e caos vão partilhar o

entre-dois meios – não são opostos, portanto, o caos é antes o meio de todos os meios. Desde que haja

passagem transcodificada entre meios, há ritmo7. Cabe também ao ritmo a abertura de um meio sobre

outro, base da comunicação que não é senão um ressoar. E é este ritmo que confere à lengalenga o seu

carácter simultaneamente temporal e espacial: se o ritmo é temporalização, tal não implica que não se

relacione com territórios8. A lengalenga, por isso, carrega sempre terra consigo9.

1  O caos não é tanto uma experiência de desordem como uma experiência de uma infinita velocidade de nascimento edesaparecimento onde, assim que as coisas tomam forma, se dissipam – é pré-conceptual, pré-formal, pré-identidade (Hohnen2008: 113). 2 Deleuze e Guattari (2007): 395-6.3 Deleuze e Guattari (2007): 397 4 Wise (2000): 297.5 Wise (2000): 302. 6 Hardy (2000): 947 Deleuze e Guattari (2007): 397. Ritmo este que difere de qualquer noção de cadência ou medida; ritmo que é o Desigual, oIncomensurável, em permanente transcodificação, operando com blocos heterogéneos, num plano diferente do ritmado – aacção desenvolve-se num meio, o ritmo entre dois meios. (Deleuze e Guattari, 2007: 398-9) O papel da repetição e da diferençanesta relação entre ritmos e meios não cabe nesta reflexão, embora se reconheça a sua suma importância. Para um

desenvolvimento aprofundado destas questões, vide Deleuze, Gilles (2000) Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio d’Água.8 Wise (2000): 302 9 Deleuze e Guattari (2007): 397 

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Cada ser vivo terá, assim, um meio exterior (materiais), um interior (componentes e substâncias

compostas) e um anexo (fontes de energia e percepções-acções)10; não é, por isso, um simples local

externo de significado para o eu11.

Mas a lengalenga não é um meio (tampouco um território), é antes a corda que mantém juntos conjuntos

de territórios e meios12. Contornemos, para já, o território e os agenciamentos e passemos à questão da

consistência sugerida por esta imagem da corda. Os heterogéneos que compõem um intra-agenciamento

sustêm-se em conjunto por uma questão de constância, ela mesma um «suster em conjunto» [sic] de

elementos heterogéneos, constitutivos de um conjunto desfocado, discreto, que tomará consistência13. O

problema da consistência diz respeito à forma como se sustém o conjunto de componentes de

agenciamento territorial, mas também à maneira como diferentes agenciamentos se sustêm, com

componentes de passagem e de reserva. Talvez a consistência só encontre a totalidade das suas

condições num plano cósmico, mas, ainda assim, de cada vez que heterogéneos se sustêm em conjunto,

coloca-se este problema enquanto coexistência ou sucessão, e os dois ao mesmo tempo. A questão “o

que sustém um conjunto?” seria facilmente respondida com um modelo arborescente, mas os autores

propõem, como já referimos, um modelo rizomático. Assim, a consolidação é tida como criadora e não

como consequente – o começo começa precisamente no entre-dois, no intermezzo. E a consistência não

é senão esta consolidação, acto de produzir o consolidado, tanto de sucessão como de coexistência com

factores (intervalos, intercalares e sobreposições-articulações) – a consolidação como um nome terrestre

da consistência? O território (lá chegaremos) é um consolidado – de meio, consolidado de espaço-tempo,

de coexistência e de sucessão14. A lengalenga opera com estes três factores, corda. Mais que corda,

transversal – componente que toma sobre si o vector especializado de desterritorialização. Um

agenciamento não se sustém, assim, pelo jogo das formas enquadrantes ou de causalidades lineares,

mas pela sua componente mais desterritorializada, por uma ponta de desterritorialização (actual ou

potencial). Como a lengalenga15.

2.  Do território

Voltemos ao meio por onde andámos anteriormente. Retomemos onde ficámos – nas passagens

transcodificadas de um meio para outro, formadoras de ritmo. Na verdade, de cada vez que hátranscodificação, forma-se um novo plano e uma mais-valia, mas não se tem, ainda, um território. Este

não é um meio, nem um ritmo ou passagem entre meios, mas um acto que afecta os meios e rimos, que

os territorializa. O território surge como produto de uma territorialização de meios e ritmos, construindo-se

com aspectos ou porções de meios, compreendendo em si mesmo um meio exterior (domínio, limites,

10 Deleuze e Guattari (2007): 39711 Janz (2002): 5 12 Janz (2002): 6.13 Deleuze e Guattari (2007): 410

14 Deleuze e Guattari (2007): 41815 Deleuze e Guattari (2007): 427. Daqui se depreende o cariz prismático da lengalenga e a sua função catal ítica fabricante detempo. (Deleuze e Gauttari 2007: 442) 

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membranas), um meio interior (abrigo, domicílio), um intermediário (por vezes neutralizado), um anexo

(reservas energéticas). Desde que as componentes de meio cessem de ser direccionais e funcionais para

devir dimensionais e expressivas, há território. Território quando há expressão de ritmo, definido pela

emergência de matérias de expressão (qualidades)16.

É esta acreção de efeitos de meios que forma o território – cada meio afecta o espaço. Compõe os

efeitos, mas depois fá-los expressivos, mais que funcionais. Daí resulta o território – são mais

delimitados. Os marcadores dos meios são ordenados no sentido de encerrarem os espaços (ainda que

eles mesmos se mantenham abertos a outros), para conferir um carácter mais comum a esse espaço.17 

Janz18 coloca a questão de outra forma: enquanto interrelação de vários meios, o território é como que

uma posição tomada sobre eles. Os meios serão os significados dos objectos e o território a expressão

que devém possível através desses objectos. Por isso os objectos utilizados para sinalizar os meios

podem mudar, mas o território manter-se o mesmo.

Todavia, apesar desta maior estabilidade do território ele é, como se referiu, acima de tudo um acto –

territorialização. Assim como os meios mudam continuamente, também o território pode sofrer câmbios

similares19. A territorialização é, pois, o processo – que pode ocupar várias escalas espácio-temporais –

pelo qual os sistemas materiais se organizam em torno de um atractor específico. Dependendo das

relações entre os seus elementos (heterogéneos), este agenciamento será mais ou menos homogéneo e

estável (ou seja, territorializado)20.

Vimos na lengalenga como a casa se abre ao cosmos, ao algures – “ainda agora aqui cheguei e já estou

de partida”. Chegámos aos processos de desterritorialização e reterritorialização. Comecemos por

simplificar: «a desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território, é a operação da linha

de fuga e a reterritorialização é o movimento de construção do território; no primeiro movimento, os

agenciamentos se desterritorializam e no segundo eles se reterritorializam como novos agenciamentos

maquínicos de corpos e coletivos de enunciação»21. Há uma indissociabilidade entre os dois processos –

algo só se desterritorializa para se reterritorializar algures. Porém, não se garante o sucesso desta

reterritorialização - há o perigo dos buracos negros, linhas de fuga que se tornam linhas suicidárias22.

Esta concomitância entre os dois processos está expressa no primeiro teorema de desterritorialização

(proposição maquínica): a desterritorialização requer sempre um mínimo de dois termos, e cada umadeles se reterritorializa sobre o outro. Por isso, a reterritorialização não é um retorno a uma territorialidade

primitiva ou prévia, mas implica um conjunto de artifícios pelos quais um elemento (desterritorializado)

16 Deleuze e Guattari (2007): 399-40017 Wise (2000): 298.18 Janz (2002): 519 Janz (2002): 5 20 Srnicek (2007): 62-321 Haesbaert e Bruce (2002)22  Não desenvolverei mais este tema por questões de espaço. Remeto para as páginas 422-5 de 1837…  e para Armstrong(2002): 50.

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serve de nova territorialidade a outro (que também perdeu a sua). Daí um sistema de reterritorializações

horizontais e complementares.23 

No segundo teorema, questiona-se a relação entre desterritorialização e velocidade, afirmando-se que o

mais rápido não é necessariamente mais intenso ou o mais desterritorializado – intensidade de

desterritorialização não é o mesmo que velocidade de movimento ou desenvolvimento24.

As intensidades no seio dos processos de des/reterritorialização estão na base do terceiro teorema, onde

se distinguem dois tipos de desterritorialização – relativa e absoluta25. A relativa transita para um novo

estado estável (depois da desterritorialização levada a cabo por uma linha de fuga, desestabilizadora da

identidade material do agenciamento, modo de desindividuação) e uma absoluta que regressa ao virtual

de forma a criar novos padrões de comportamento sistémico26. Haesbaert e Bruce27  apresentam esta

distinção de forma algo distinta, associando a absoluta ao pensamento e ao acto criativo, e a relativa ao

socius.

Compliquemos, regressando à fonte, recuando um pouco – até às matérias de expressão. É esta marca

que faz o território, e as suas funções pressupõem a expressividade primeira que faz territórios, daí que

território e respectivas funções sejam produtos de territorialização – acto do ritmo tornado expressivo ou

das componentes de meio tornadas qualitativas. Esta marcação é dimensional, mas é um ritmo,

conservando o carácter do ritmo de se inscrever noutro plano que não o das acções; porém, os dois

planos distinguem-se agora como o das expressões territorializantes e o das funções territorializadas.

Nesta emergência de qualidades próprias, no devir-expressivo do ritmo ou da melodia – aí se deve

procurar o factor de territorialização. Qualidades expressivas como assinaturas, marcas constituintes de

um domínio, de uma casa (território). A lengalenga é melodia e ritmo territorializados porque tornados

expressivos e tornados expressivos porque territorializantes: auto-movimento das qualidades

expressivas, que encontram uma (auto-)objectividade no território que traçam28.

Este movimento objectivo que faz uma matéria expressiva é antes de mais cartaz ou anúncio. Mas a

assinatura torna-se estilo: qualidades expressivas que vão exprimir a relação do território que traçam com

o meio interior das impulsões (formando motivos) e com o meio exterior das circunstâncias (formando

contrapontos territoriais), explorando as potencialidades do meio, seja ele exterior ou interior 29. Há uma

autonomia nesta expressão, exprimir não é depender. Assinaturas – matérias de expressão – tornadasestilo – contrapontos e motivos30.

23 Deleuze e Guattari (1996) apud Haesbaert e Bruce (2002)24 Deleuze e Guattari (1996) apud Haesbaert e Bruce (2002) 25 Haesbaert e Bruce (2002)26 Srnicek (2007): 63. As noções de virtual e actual serão exploradas mais à frente neste comentário.27 Haesbaert e Bruce (2002)28 Deleuze e Guattari (2007): 401-2 29  Motivos que formarão personagens rítmicas e contrapontos que formarão paisagens melódicas, conceitos que não são

considerados particularmente relevantes para os objectivos deste comentário. Ainda assim, justifica-se a referência. Maisdesenvolvimentos em Deleuze e Guattari (2007): 40430 Deleuze e Guattari (2007): 403-4. 

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O território, primeiramente marcação de distâncias críticas intra-específicas, é palco de dois grandes

efeitos: reorganização de funções e reagrupamentos de forças. As actividades funcionais ganham um

novo andamento, um aspecto prático novo, quando territorializadas; e o território reagrupa todas as forças

dos diferentes meios num só feixe constituído por feixes da terra – se em extensão separa forças

interiores da terra das exteriores do caos, em profundidade («intensão» [sic]) debatem-se e unem-se os

dois tipos de forças, com a terra como crivo ou parada; território-lugar de reunião de forças, corpo a corpo

de energias, a terra. Centro intenso simultaneamente dentro e fora do território, origem terrestre de todas

as forças, para o qual o território aponta continuamente – Natal31.

É por estas marcas territorializantes reorganizarem funções e reagruparem forças ao mesmo tempo que

se desenvolvem em motivos e contrapontos que o território desencadeia algo que o vai ultrapassar –

desterritorialização. É o momento32  do devir expressivo do ritmo, emergência de qualidades-próprias

expressivas, formação de matérias de expressão e respectivos motivos e contrapontos.33

.Traçámos um percurso. Mas trata-se dum percurso não evolutivo, antes passagens, pontes, túneis. Se os

meios passavam uns para os outros, passam agora para os territórios. As qualidades expressivas são

passagens que vão de componentes de meio a componentes de território, ele mesmo lugar de passagem

 – «é o primeiro agenciamento, a primeira coisa que faça agenciamento, o agenciamento é antes de mais

territorial. Mas como é que não estaria já a passar noutra coisa, noutros agenciamentos? É porque não

podíamos falar da constituição do território sem falar já da sua organização interna. Não podíamos

descrever o infra-agenciamento (cartazes ou anúncios) sem estar já no intra-agenciamento (motivos e

contrapontos). Também não podíamos dizer nada sobre o infra-agenciamento sem estar já sobre a viaque nos leva a outro agenciamento, ou algures. Passagem da lengalenga. A lengalenga vai para o

agenciamento territorial, instala-se nele ou sai. Num sentido geral, chama-se lengalenga qualquer

conjunto de matérias de expressão que traça um território e que se desenvolve em motivos territoriais, em

 passagens territoriais, em paisagens territoriais […]»34.

Eis-nos chegados aos agenciamentos (estivemos lá sempre, tudo é sobre tudo).

3.  Dos agenciamentos

O termo agencement em francês denota a ideia de uma combinação de elementos heterogéneoscuidadosamente ajustados uns aos outros. Mas são combinações dotadas da capacidade de se

comportar de diferentes formas dependendo da sua configuração, o que significa que não há nada fora 

dos agenciamentos – não há necessidade de explicações adicionais, porque a construção do seu

significado é parte do agenciamento35. Van Wezemael36  refere, por outro lado, o uso corrente do termo

31 Deleuze e Guattari (2007): 406-8 32 O posicionamento do território face ao código (descodificação) é relevante para a compreensão deste momento (Deleuze eGuattari, 2007: 409), mas não me parece estritamente necessária a sua análise detalhada neste comentário. Daí que para tentarmanter uma maior simplicidade, tenha decidido não explicitar esta relação. Para mais informações: Srnicek (2007): 64-5;33 Deleuze e Guattari (2007): 409 34 Deleuze e Guattari (2007): 409-410 (Itálicos do original) 35 Callon, apud Palmås (2007): 2

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como arranjo de partes de um corpo ou máquina, juntando duas ou mais partes, e pode ser usado tanto

para a actividade de juntar como para o arranjo ele mesmo.

Estes agenciamentos podem ser definidos ao longo de dois eixos: um, horizontal, compreende dois

segmentos (conteúdo e expressão). Por um lado, um agenciamento maquínico de corpos, acções e

paixões, cruzar de corpos que reagem uns aos outros; por outro, um agenciamento colectivo de

enunciação, de actos e afirmações, de transformações incorpóreas atribuíveis a corpos. Entidades que

consistem de corpos e objectos (conteúdo) e entidades não-materiais, as expressões. Entidades

heterogéneas, como já havíamos visto. No segundo eixo, vertical, o agenciamento tanto tem lados

territoriais (ou reterritorializados) que o estabilizam, como margens cortantes de desterritorialização que o

levam algures37.

É este eixo vertical que permite caracterizar os agenciamentos pelos processos de territorialização e

desterritorialização contínuos e permanentes. São processos que estabilizam/consolidam e

destabilizam/dissolvem, respectivamente, a identidade do agenciamento. A territorialização diz respeito

tanto a processos que definem ou acentuam os limites espaciais de territórios actuais, mas também a

processos não-espaciais que aumentam a homogeneidade interna do agenciamento. Concerne,

consequentemente, as componentes de conteúdo dos agenciamentos – a estabilização de corpos e

objectos. Quando o processo de tomada de consistência diz respeito tanto ao conteúdo como à

expressão do agenciamento, estamos perante um fenómeno de estratificação, gerador de estratos38.

Srnicek, apelidando os eixos de dimensões, refere-se ao eixo horizontal como o  papel  da componente (do

puramente material ao puramente expressivo) e ao vertical como o tipo de  processos  em que uma

componente pode estar envolvida (territorialização/desterritorialização)39.

Regressando a 1837…, vimos que a formação do território sucede um infra-agenciamento que forma um

meio que fica no limiar do agenciamento territorial. Estamos agora no intra-agenciamento, de rica e

complexa organização, compreendendo o agenciamento territorial e as funções agenciadas,

territorializadas. Nele intervêm componentes heterogéneas: marcas que reúnem materiais e elementos de

comportamentos agenciados que entram num motivo40.

Estas marcas territorializantes, motivos territoriais, funções territorializadas sustêm-se em conjunto num

mesmo intra-agenciamento por uma questão de constância, como vimos41. No entanto, conforme sereferiu antes, há sempre um movimento em direcção a outro agenciamento: função agenciada,

36 Van Wezemael (2006): 537 Palmås (2007): 3 38 Palmås (2007): 3-4. Regnauld (2004) utiliza uma interessante imagem de forte alcance didáctico: o caos como uma realidade a3D onde se introduz um plano 2D, o estrato, que intercepta alguns dos seus elementos. Os não interceptados ficam por cima oupor baixo deste estrato, passíveis de intercepção por novos planos mais ou menos paralelos a este primeiro.39 Srnicek (2007): 56 40 Deleuze e Guattari (2007): 410 41 Deleuze e Guattari (2007): 410. No entanto, se, do ponto de vista da consistência, há que relacionar as matérias de expressãonão só com a sua aptidão para formar motivos e contrapontos, mas também com os mecanismos de inatismo ou deaprendizagem que as modulam, tal não implica um sistema assente em distribuições binárias. A noção de agenciamento acarreta

uma reconceptualização destas figuras (e da própria noção de comportamento) no natal enquanto inato descodificado e adquiridoterritorializado. Natal este que vai do que se passa no intra-agenciamento até ao centro que se projecta para fora, percorre osinter-agenciamentos, vai até às portas do cosmos. (Deleuze e Guattari, 2007: 422-3)

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territorializada que ganha independência suficiente para formar um novo agenciamento, mais ou menos

desterritorializado, em vias de desterritorialização; isto não implica necessariamente um abandono do

território, mas o que antes era função constituída no agenciamento territorial torna-se elemento de

passagem, constituinte, de outro agenciamento. No seio destoutro, haverá uma reterritorialização.

Formação de novos agenciamentos no agenciamento territorial, movimento do intra-agenciamento aos

inter-agenciamentos, com componentes de passagem e de reserva, como se as forças de

desterritorialização trabalhassem o próprio território, fazendo o agenciamento territorial passar por outro

agenciamento42.

Temos, então, que o agenciamento territorial não pára de passar noutros agenciamentos – infra-

agenciamento que não se separa do intra-agenciamento que não se separa do inter-agenciamento. Mas

estas passagens fazem-se segundo o caso, porque o agenciamento territorial territorializa funções e

forças e, ao territorializá-los, transforma-os. No entanto, estas funções e forças territorializadas podemtomar autonomia que as faça cair noutros agenciamentos, compor agenciamentos desterritorializados.

Como a lengalenga. Tudo isto é lengalenga. E este equívoco entre territorialidade e desterritorialização é

o equívoco do Natal, perceptível porque o território aponta para um centro intenso no mais profundo de si,

mas que pode, todavia, estar situado fora do território, no ponto de convergência entre territórios

diferenciados ou afastados. O Natal está fora43.

Independentemente da sua causa, a natureza do movimento muda – não basta dizer que há inter-

agenciamento, mas que se sai de qualquer agenciamento, que se excede as capacidades de qualquer

agenciamento possível, para entrar noutro plano – já não movimento ou ritmo territorializantes ou

territorializados, mas Cosmos nestes movimentos mais amplos. Localização cósmica, mas ainda precisa.

Em vez de forças territorializadas, reunidas em força da terra, são forças encontradas ou libertas de um

cosmos desterritorializado – desterritorializações feitas em modo absoluto que não perdem precisão44.

Estas desterritorializações absolutas não implicam a ausência de desterritorializações relativas e até no

sítio, em que se passa do intra-agenciamento a inter-agenciamentos sem que haja necessidade de sair

dos agenciamentos nem de abandonar os território para abraçar o cosmos – um território como perpétua

via de desterritorialização, pelo menos potencial, em via de passagem a outros agenciamentos, com o

risco de que estes produzam reterritorializações. O território constitui-se numa margem de

descodificação, afectando o meio, sendo afectado por uma margem de desterritorialização. Série de

desligações. O território não se separa de coeficientes de desterritorialização, fazendo variar as relações

de cada função desterritorializada com o território, mas também as do território com cada agenciamento

42 Deleuze e Guattari (2007): 411-3 43 Deleuze e Guattari (2007): 413 44 Deleuze e Guattari (2007): 413-5 

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desterritorializado – «e é a mesma coisa que aparece aqui como função territorializada, tomada no intra-

agenciamento, e ali como agenciamento autónomo ou desterritorializado, inter-agenciamento»45.

Temos, então, que o que determina os agenciamentos são simultaneamente matérias de expressão que

tomam consistência independentemente da relação forma-substância; causalidades invertidas ou

determinismo avançados, inatismos descodificados que incidem sobre actos de discernimento ou eleição,

não sobre reacções encadeadas, combinações moleculares procedendo por ligações não co-valentes;

em suma, um novo aspecto produzido pelo encavalitamento do semiótico e do material. Neste sentido,

poder-se-ia opor a consistência dos agenciamentos ao que era a estratificação dos meios; mas trata-se

de uma oposição relativa – os meios oscilam entre estado de um estrato e movimento de

desestratificação, os agenciamentos entre fechamento territorial que tende a reestratificá-los e abertura

desterritorializante rumo ao cosmos. A diferença46 está menos entre os agenciamentos e outra coisa que

entre os dois limites de qualquer agenciamento possível: o sistema de estratos e o plano de consistência.Sobre este endurecem e se organizam estratos, e é nestes que o plano de consistência trabalha e se

constrói, ambos peça a peça, ocasião por ocasião, operação por operação47.

4.  Discussão

A minha dissertação versará sobre a relação entre fragmentos urbanos (algo que se aproximará do

bairro) e Qualidade de Vida (QdV) – o objectivo será o de perceber o que é que, num bairro, contribui

para uma menor ou maior qualidade da vida das pessoas e, uma vez compreendida essa relação, pensarde que forma é que se pode projectar e planear uma maior QdV.

Lendo alguma bibliografia com objectivos análogos aos meus, fico insatisfeito: o que leio não me diz nada

dos espaços e, acima de tudo, nada sobre a vida das pessoas. Há uma estatismo, uma confiança em

classificações dos indivíduos face a um ambiente que é tido como totalmente exógeno. Não nos mostra

como as próprias pessoas constroem aquilo que é o bairro.

E foi por esta insatisfação que me fui aproximando do relacionalismo – o espaço constituído pelas

relações, abaixo a dicotomia contexto-composição/objecto-sujeito! E isso levou-me, inevitavelmente, a

D&G.

45 Deleuze e Guattari (2007): 415 46 A diferença – decorrente da presença de heterogéneos – instala-se entre sistemas estratificados, sistemas de estratificaçãopor um lado e conjuntos consistentes por outro, auto-consistentes. Mas esta consistência reporta-se também às partículas maiselementares e não só a formas complexas. Há sistema de estratificação codificado quando há no sentido horizontal causalidadeslineares entre elementos e, verticalmente, hierarquias de ordem entre agrupamentos. Para suster tudo em conjunto emprofundidade, uma sucessão de formas enquadrantes em que cada uma informa uma substância e serve, por sua vez, desubstância a outra. Estas causalidades, hierarquias, enquadramentos, tanto constituem um estrato como a passagem de um para

o outro e as combinações estratificadas do molar e do molecular. Conjuntos de consistência quando consolidados decomponentes heterogéneas e não quando formas-substâncias se sucedem regularmente. (Deleuze e Guattari, 2007:426)47 Deleuze e Guattari (2007): 428

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Penso ter ficado claro ao longo da exposição o abandono de uma noção de agência restrita aos humanos

rumo às máquinas subjectivantes e aos processos de composição que envolvem colectivos

sociotécnicos48. O sujeito não existe a não ser como subjectividade (processo), obra-em-andamento –

materialismo em vez de essencialismo  49.

As noções de território e agenciamento apresentadas e, acima de tudo, os processos que subjazem a sua

formação, remetem para um corpus  teórico onde a noção de devir é central. Um mundo em constante

movimento, onde uma estrutura encontrará, quando muito, uma meta-estabilidade: no todo

(estatisticamente) ou como um todo (pelas vistas regularizadas da molaridade); estabilidade que difere de

fixidez, sendo variação dentro de limites. Estrutura definida pelo que lhe escapa50.

Esta exploração dos processos de transformação dos fenómenos não os subordina a uma teleologia ou a

uma noção de progresso. Para além da sua acepção etológica, o devir remete-nos para as conexões

laterais estabelecidas entre dois corpos ou agenciamentos51, aproximando-nos, assim, do relacionalismo,cortando com noções de continuidade narrativa ou de desenvolvimento ao longo do tempo – os devires

só cabem nos meios, não numa linearidade progressiva.

Implicação importante dos devires é a implícita visão do real como actual (um “reino” habitado por

conteúdo e expressões, visibilidades e “dizibilidades”, corpos e afirmações) e virtual (informal, habitado

por máquinas abstractas52)53. O actual é, então, uma espécie de superfície de algo maior e heterogéneo.

Esta visão do mundo como algo heterogéneo e informe e a existência de uma camada superficial

organizada que tende a ser vista como permanente e “o” real é frequente em D&G e é esta contestação

da associação do actual com o real que traz profundas consequências para a prática científica.

Sørensen54 sublinha como esta ontologia substitui o tradicional modelo real-possível – o virtual (campo

intensivo de devires de diferentes processos espácio-temporais) é real sem ser actual, ideal sem ser

abstracto. O actual corresponde somente ao mais recente resultado dos processos intensivos, mas é dele

que mais se ocupa a ciência moderna. É neste seguimento que repesca a discussão de DeLanda em

torno do problema e da solução – uma abordagem deleuziana será problemática e não axiomática, onde

os problemas não serão redutíveis à sua solução, sendo antes definidos pela sua distribuição, em termos

do singular e do ordinário, do que é importante e não é. Os problemas, em vez de serem resolvidos porsoluções claras e distintas, devem ser vistos como simultaneamente distintos e obscuros, só sendo

clarificados durante as fases em que a intuição participa na especificação de soluções concretas mas não

48 Oliveira (2005) e Wise (1998)49 Oliveira (2005): 58-9. 50 Massumi apud  Palmås (2007): 41.51 Armstrong (2002): 4852 O termo máquina é utilizado por não ter um centro organizador, não sendo senão as conexões e produções que faz, tratando-se de um conceito não essencialista. Agenciamentos diferentes produzem máquinas diferentes. Por conseguinte, a alteração dasrelações de exterioridade de um agenciamento (estratos do actual) produz um processo diferente de desterritorialização e,consequentemente, outra máquina abstracta- Mas tanto o virtual como o actual são reais. O movimento virtual-actual é uma

actualização e o oposto é uma contra-actualização, restauradora da relação entre actual e virtual. (Van Wezemael , 2006: 19.)53 Palmås (2007): 9. 

54 Sørensen (2003): 53; 56-7.

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antecipadas. Daí que o problemático preceda a solução, uma vez que esta é uma categoria do caso

encerrado – uma solução terá a verdade que merece de acordo com o problema a que responde, e o

problema terá sempre a solução que merece proporcionalmente à sua própria verdade ou falsidade (no

fundo, proporcionalmente ao seu sentido)55. Na verdade, a solução é o evento actual, devendo o

problema que soluciona ser mantido como virtual – a ciência parece condenada ao seu compromisso com

o estado actual das coisas56. É nesse sentido que DeLanda virá propor uma ciência intensiva, contida na

imanência da science propre57 . 

Srnicek confronta os agenciamentos deleuzianos com três problemas tradicionais das ciências sociais:

todo-parte; micro-macro; e a base ontológica da mudança social. No que concerne ao primeiro, a recusa

de uma unidade transcendente por D&G implica que se recuse, também, as metáforas organicistas e o

ideário positivista. A metáfora organicista define as componentes de um todo pelas suas relações internas

com o todo, privilegiando ontologicamente um sistema holístico no qual entidades particulares ganhamtodo o seu significado, enquanto que o positivismo privilegia entidades independentes e denigre as

relações entre elas como inessenciais. Ora, como vimos, os agenciamentos definem-se pelas suas

relações externas, onde as propriedades das componentes se mantêm de agenciamento para

agenciamento; adicionalmente, as capacidades duma componente dum agenciamento variarão

consoante as relações em que a entidade se inserir. Daqui decorre que as componentes de

agenciamentos existentes fornecem a base evolucionária não-teleológica para as individuações

subsequentes. Os potenciais virtuais dentro duma situação não são inteiramente abstractos, dependendo

duma situação histórica particular 58

.

A ontologia plana de D&G é constituída somente por indivíduos que ocupam escalas espácio-temporais

diferentes. Os agenciamentos maiores emergem de padrões de interacção recorrentes entre populações

de agenciamentos menores, mantendo-se a natureza singular de cada indivíduo, independentemente da

sua escala. Cada sistema social emergente é, por isso, individual como as usas componentes únicas

mais pequenas. Esta emergência59 impõe restrições sobre essas componentes mais pequenas (mas não

se trata de uma causalidade top-down) relacionadas com os atractores60 do sistema emergente. Daqui se

55 Deleuze apud  Sørensen (2003): 56 56 Deleuze e Guattari apud  Sørensen (2003): 5757 Sørensen (2003): 5758 Srnicek (2007): 69-71 59  Srnicek (2007: 72, citando Protevi) refere três tipos de emergência: diacrónica (na aparição do novo), transversal (noestabelecimento de conexões através de domínios heterogéneos) e sincrónica (a construção diacrónica de estruturas funcionaisem sistemas complexos que alcançam um foco sincrónico de comportamento sistemático ao restringirem o comportamento dassuas componentes individuais), que podem combinar-se e interagir entre si. Neste caso, aplica-se a sincrónica.60  «Atractores que são irredutíveis a qualquer componente podem, por conseguinte, influenciar todo o sistema no sentido daadopção de um certo padrão comportamental, assim constituindo efectivamente estruturas ontológicas emergentes que têm umaeficácia causal real sobre as suas componentes. Para além disto, importa reconhecer que, uma vez que a realidade causal

decorre da existência ontológica de atractores não actualizados, a estrutura emergente é incapaz de ser reificada num dadoobjectivo. As estruturas sociais, para pôr a questão de uma forma simples, nunca estão totalmente desenvolvidas e são sempredinâmicas e abertas à mudança para além de l imiares cruciais». (Srnicek, 2007: 73, tradução minha)

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depreende que noções unitárias de totalidades de ordem hierárquica superior (como a “sociedade”) não

são aplicáveis no pensamento de D&G61.

O terceiro aspecto prende-se com a capacidade ontológica de mudança e devir. Se as variações e

dimensões do agenciamento lhe são imanentes, então cada multiplicidade é composta por termos

heterogéneos em simbiose e se transforma continuamente num fio de outras multiplicidades, de acordo

com os seus limiares e portas. Há, assim, várias tendências num sistema, produzindo um conjunto de

atractores de equilíbrio e longe-de-equilíbrio que fazem o sistema flutuar junto a um atractor. Os

atractores não actualizados continuam a ser potenciais reais que podem ser actualizados sob as

circunstâncias adequadas. Ainda assim, convém frisar que cada agenciamento é o resultado de

processos de produção históricos, ainda que não se lhes reconheça nenhuma linearidade de

desenvolvimento, tampouco um transcendente que determine os movimentos históricos. Estamos, assim,

diante de um sistema ontológico que evita qualquer determinismo rígido ao ser constituído por factoresmúltiplos em interacção. Os atractores que determinam as tendências de longo prazo do sistema não só

são construídos ao longo destas interacções históricas, como são sujeitos a flutuações que, alcançando

determinado limiar, levam o sistema para uma organização radicalmente nova. Para conceptualizar estas

mudanças, o potencial imanente de uma situação e as linhas de fuga moleculares que transportam um

sistema, D&G criam a figura do diagrama, concebidos como um espaço abstracto de potencial definido

pelas dimensões, trajectórias, singularidades imanentes, atractores e pontos de bifurcação de uma

situação62. Esta forte presença dos devires e das multiplicidades, de sistemas que se auto-organizam,

aproximam D&G dos estudos levados a cabo nas ciências da complexidade63

.

Aproximemo-nos de uma conclusão, especulando sobre as implicações que o pensamento de D&G

acarretaria para a minha dissertação. Antes de mais, faça-se referência à ética spinoziana, professada

por D&G, segundo qual a tarefa ética dos indivíduos é a de intensificar os nossos poderes de actuação,

de experienciar alegria – será esta concepção ética, misto de empowerment   e capacitação para a

felicidade, que deverá presidir ao planeamento para a QdV?

Um mundo de multiplicidades em constante devir impossibilita garantias de eficácia de políticas baseadas

em assunções de causalidades lineares – parece requerer um privilégio de uma lógica conectiva, dos

entre-dois do que é produzido numa relação, e a manutenção de uma abertura ao inimaginável, ao por-

vir. À experimentação, como diz Armstrong64. Poderão as políticas públicas ser assumidamente

experimentais?

61 Srnicek (2007): 71-3.62 Srnicek (2007): 73-7.63 Por questões de economia de espaço, não abordaremos em maior detalhe as relações entre a filosofia deleuzo-guattariana eas ciências da complexidade. Para mais informações, vide Srnicek (2007: 76-83), Palmås (2007): 11-6 e Protevi (2001).64 Armstrong (2002): 51.

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Por outro lado, o que é lengalenga num bairro? Wise65 e Kennedy66 sugerem o hábito, enquanto repetição

de comportamentos e actos até um limiar de automatismo, responsáveis por sensações de familiaridade

e conforto. Hábito como contracção e síntese de uma série de acções, que nos torna quem somos, não

somos nada senão hábitos, não há um “eu” fixo, apenas o hábito de procurar um. E nem os nossos

hábitos nos pertencem – formam-se maioritariamente pela interacção com o mundo externo; somos o

resultado das nossas reacções ao mundo, somos um envolvimento do externo, não há interno que se

oponha ao externo, noumena  aos  phenomena, não há lugar que não se abra para outro. Os nossos

espaços falam-nos, pelos efeitos de territorializações que nos pré-existem e, foucaldianamente, somos

discípulos dos nossos hábitos67. Hábitos com uma subjacente dimensão afectiva – simultaneamente

capacidades técnicas e disposições afectivas, signos e práticas corporais, fazendo do conhecimento

cognitivo e corporal. O espaço social, construído parcialmente pelos nossos hábitos, não pode deixar de

ser, por isso, cognição e corporalidade. E, tal como a lengalenga, deparamo-nos com uma repetição

criadora porque rítmica porque diferenciadora68.

E agora: o que faço com isto? Eu acho que D&G têm razão. Habituado (!) que estou aos pragmatismos

da ciência aplicada, este é um exercício de desabituação – demanda cognitiva, sofrimento corporal ( o que

há em mim é sobretudo cansaço). Acho que percebi. Mas e agora: o que é que eu faço com isto? Como

procuro lengalengas num bairro? Nos hábitos, práticas do quotidiano? Sim. Mas e depois? Como olho

para ele? Território? Agenciamento? Agenciamento territorial? Onde lhe vejo as linhas, onde lhe leio as

linhas? Leio-lhe linhas? E depois? Trabalhar sem sujeito é trabalhar sem pessoas? E sem objecto sem

espaço físico? E a relação? Como analiso a relação? O bairro é a relação? Sim (?) Bairro-agenciamento-relação? E agora? O que é que eu faço com isto? Vou-lhe às componentes? Pragmatismo. Pragmatismo.

Pragmatismo!

Uma criança no escuro, transida de medo, tenta acalmar-se cantando: alguém me dá uma metodologia?

65 Wise (2000): 302-5.66 Kennedy (2007): 29867 Wise (2000): 302-3. 68 Wise (2000): 303.

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