ATIVIDADES CIRCENSES

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO FSICA

RODRIGO MALLET DUPRAT

ATIVIDADES CIRCENSES possibilidades e perspectivas para a educao fsica escolar

Campinas 2007

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Rodrigo Mallet Duprat

Atividades Circenses: possibilidades e perspectivas para a educao fsica escolar

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao da Faculdade de Educao Fsica da Universidade

Estadual de Campinas para obteno de Ttulo de Mestre em Educao Fsica.

Jorge Sergio Prez Gallardo Orientador

Campinas 2007

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RODRIGO MALLET DUPRAT

ATIVIDADES CIRCENSES: possibilidades e perspectivas para a educao fsica escolar

Este exemplar corresponde redao final da Dissertao de Mestrado defendida por Rodrigo Mallet Duprft e aprovada pela Comisso julgadora em k3~007.

allardo

Campinas 2007

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA FEF - UNICAMP

D928a

Duprat, Rodrigo Mallet. Atividades circenses: possibilidades e perspectivas para a educao fsica escolar / Rodrigo Mallet Duprat. - Campinas, SP: [s.n], 2007.

Orientador: Jorge Sergio Perez Gallardo. Dissertao (Mestrado) Faculdade Universidade Estadual de Campinas.

de

Educao

Fsica,

1. Circo. 2. Educao fsica escolar. 3. Didtica. 4. Pedagogia. I. Perez Gallardo, Jorge Sergio. II. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao Fsica. III. Ttulo.(dilsa/fef)

Ttulo em ingls:

Circus activities: possibilities and perspectives to school physical School Physical Education; Didactic;

education.Palavras-chaves em ingls (Keywords): Circus;

Pedagogic.rea de Concentrao: Educao Fsica e Sociedade. Titulao: Mestrado em Educao Fsica Banca Examinadora: Eliana Ayoub. Marco Antonio Coelho Bortoleto. Data da defesa: 13/02/2007.

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COMISSO JULGADORA

Jorge Sergi\rez' Gallardo r 04ent~r : \. \ ', '

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Dedico aos meus pais que sempre acreditaram em mim

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeo a meus pais por todo o carinho, respeito profisso que escolhi, pelo apoio e pelo incentivo. Aos meus irmos Ricardo, Maurcio e Marcelo pelas alegrias de viver em famlia. minha querida, companheira e cmplice Ktia (Tainha) pelo amor, apoio, dedicao e incentivo. Ao querido amigo Brulio que me acompanha desde o incio da graduao, passando junto comigo as angustias e felicidades desta profisso, at defendermos praticamente juntos nossas dissertaes de Mestrado. Aos meus queridos amigos da BMTF (Brulio, Tocot e Faska) que iniciaram comigo a vida de artista, mas infelizmente no seguiram este curso, sendo timos e reconhecidos profissionais nas reas que escolheram. Ao GGU (Grupo Ginstico da Unicamp) por me convidar a fazer parte desta magia que a expresso corporal. Aos que fizeram e fazem parte do grupo Los Circo Los (Deco, Lineu, Teco, Marcelinho e Mari Maekawa) que comearam a praticar malabares comigo e que fizeram parte integrante da minha formao como artista circense. Em especial ao Vitor que continua a trocar no s as claves, mas, tambm sonhos e realizaes; e a Mari que a partir de agora traa seu caminho sem a nossa companhia. Aos amigos do Grupo Kickapoo (Vagno, Chins, Limeira, Marlia, Karina e Mariana) pela iniciativa, amizade e trocas de informaes. Ao Flix, Marion e Alex Brede por todos os ensinamentos e conhecimentos circenses. Agradeo ao meu querido Orientador Jorgito, que sempre acreditou em mim, me deu muita fora e me ajudou a encontrar o meu caminho. s professoras Elizabeth Paoliello e Silvana Venncio, ambas professoras da FEF, que sempre me apoiaram. Ermnia Silva pelas dicas e indagaes que me ajudaram a ter um olhar mais crtico sobre o universo circense. Aos outros professores da Faculdade de Educao Fsica que fizeram parte de minha formao profissional.

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Aos funcionrios da faculdade de Educao Fsica da Unicamp, principalmente, a Maringela, Maria e Marcelo. Ao Professor Larcio Pereira Franco (Lal) pela disposio em ajudar antes e durante as aulas. Aos alunos a sexta srie B de 2006 da EMEF Maria Luiza Pompeo de Camargo pela colaborao durante as aulas. direo da EMEF Maria Luiza Pompeo de Camargo, Rosely e Eliana, e as funcionrias da secretaria, Flvia e Vera Lcia, pela pacincia e ajuda. Ao Ricardo Melo pelas edies e produo do DVD. E a todos aqueles que passaram pela minha vida e que fizeram a diferena.

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DUPRAT, R. M. Atividades Circenses: possibilidades e perspectivas para a educao fsica escolar. 2007. Dissertao de Mestrado. Mestrado em Educao Fsica e Sociedade Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao Fsica, Campinas, 2007. RESUMO O presente estudo analisou, a partir da tica scio-cultural da educao fsica, o circo como um contedo relevante a ser tratado na escola, identificando dentro destes conhecimentos os que realmente podem ser sistematizados e ensinados no mbito escolar. Para atingir este objetivo foi realizado um levantamento bibliogrfico para a obteno dos fundamentos histrico-crticos e contextualizados das artes circenses, que permita aos professores dar subsdios tericos a seus alunos, na busca de uma vivncia rica em valores e um conhecimento significativo. A metodologia utilizada compreendeu uma pesquisa qualitativa do tipo pesquisa-ao, desenvolvida num programa de interveno de um bimestre, numa escola pblica, com alunos de uma sexta srie do ensino fundamental. As entrevistas e as aulas foram filmadas em cmera digital e posteriormente analisadas. Ao final das aulas editamos um DVD didtico-pedaggico que pode servir como uma referncia aos profissionais que busquem incorporar este conhecimento s suas aulas de educao fsica. Palavras-chaves: Circo; Educao Fsica Escolar; Pedagogia e Didtica.

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DUPRAT, R. M. Circus Activities: possibilities and perspectives to school physical education. 2007. Dissertao de Mestrado. Mestrado em Educao Fsica e Sociedade Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao Fsica, Campinas, 2007. ABSTRACT The current study has analyzed, from the social cultural aspect of the physical education, the circus as a relevant content to be dealt at school, identifying in the school environment what can be taught and synthesized in a regular basis. In order to achieve this objective, a bibliographic survey was developed to get the critical and historic fundaments in the circus context, which allows teachers to provide theoretical background to their students in seeking of value based rich experiences and significant knowledge. The methodology used approached qualitative research of action-research, developed in a two month program inside a public school, with sixth grade students. The interviews and classes were recorded with a digital camera and further analyzed. At the end of the classes a pedagogical DVD was edited to support and be used as a reference to the professionals who intend to use the knowledge in their own physical education classes. Key-words: Circus; Physical Education; Didatic and Pedagogie.

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DUPRAT, R. M. Atividades circenses: possibilidades e perspectivas para la educacin fsica escolar. 2007. Dissertao de Mestrado. Mestrado em Educao Fsica e Sociedade Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao Fsica, Campinas, 2007.

RESUMN

El presente estdio analis, a partir de la ptica socio-cultural de la Educacin Fsica, el circo como un contenido relevante a ser tratado en la escuela, identificando dentro de estos conocimientos los que efectivamente pueden ser sistematizados y enseados en el ambito escolar. Para alcanzar este objetivo fue realizado un levantamiento bibliogrfico para la obtencin de los fundamentos histrico-crticos y contextualizados de las artes circenses, que permita a los profesores dar subsidios teoricos a sus alumnos, en la bsqueda de una vivencia rica en valores y un conocimiento significativo. La metodologia utilizada comprendi una investigacin cualitativa del tipo pesquisa-accin, desarrollada en un programa de intervencin de un bimestre, en una escuela pblica, con alumnos de una sexta serie de enseanza bsica. Las entrevistas y las clases fueron filmadas con camara digital y posteriormente analizadas. Al final de las clases editamos un DVD didctico-pedaggico que puede servir como una referencia a los profesionales que busquen incorporar este conocimiento en sus clases de Educacin Fsica. Palabras Claves: Circo; Educacin Fsica Escolar; Pedagogia y Didctica.

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SUMRIO INTRODUO............................................................................................................................. 13 1. O CIRCO ................................................................................................................................... 19 1.1. O circo como conhecimento da cultura patrimonial........................................................... 21 1.1.1. O desenrolar de uma sociedade: o circo da Antiguidade............................................. 21 1.1.2. O circo moderno....................................................................................................... 27 1.1.3. O circo na Amrica do Sul .......................................................................................... 33 1.1.3.1. Estrutura do circo no Brasil .................................................................................. 36 1.2. O circo como conhecimento da cultura contempornea..................................................... 40 1.2.1. O circo novo............................................................................................................. 40 2. O CIRCO E A EDUCAO..................................................................................................... 47 2.1. As escolas de circo no Brasil.............................................................................................. 47 2.2. O circo no contexto da educao fsica escolar.................................................................. 50 2.3. O espao escolar ................................................................................................................. 53 2.4. O circo a ser tratado na escola ............................................................................................ 55 3. PARADIGMA PEDAGGICO ................................................................................................ 61 3.1. Unidades didtico-pedaggicas .......................................................................................... 63 3.1.1. Acrobacias ................................................................................................................... 63 3.1.1.1. Acrobacias areas ..................................................................................................... 64 3.1.1.2. Acrobacias de solo / Equilbrios acrobticos............................................................ 66 3.1.1.3. Acrobacias de trampolinismo ................................................................................... 69 3.1.2. Manipulaes............................................................................................................... 70 3.1.2.1. Malabarismo ............................................................................................................. 70 3.1.2.2. Prestidigitao .......................................................................................................... 78 3.1.3. Equilbrios Corporais................................................................................................... 80 3.1.3.1. Funambulescos ......................................................................................................... 80 3.1.4. Encenao.................................................................................................................... 83 3.1.4.1. Expresso corporal ................................................................................................... 83 3.1.4.2. Palhao ..................................................................................................................... 86 4. A PESQUISA-AO ............................................................................................................... 89 4.1. Procedimentos metodolgicos............................................................................................ 89 4.2. Caracterizao da escola..................................................................................................... 91 4.2.1. A escola ....................................................................................................................... 91 4.2.2. Quadro de funcionrios ............................................................................................... 93 4.2.3. Os sujeitos da pesquisa ................................................................................................ 94 4.3. Etapas da pesquisa .............................................................................................................. 95 4.3.1. Coleta de dados inicial................................................................................................. 95 4.3.2. Coleta de dados durante as aulas ................................................................................. 98 4.3.3. Coleta de dados final ................................................................................................. 100 4.4. As dificuldades da pesquisa.............................................................................................. 101 5. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 105 6. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 111 ANEXOS ................................................................................................................................. 120

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INTRODUO

Noite quente, lua cheia, poucas estrelas no cu, a ansiedade comea a aumentar. A famlia inteira se prepara, pai e me prontos, esperando a filha se arrumar, coloca um vestido lindo, quem sabe, encontrar seu prncipe encantado. Enquanto isso, o caula, inquieto, espera chegar o momento de assistir algo incrvel. Centenas de luzes iluminam o local do espetculo, a lona toda colorida preparada para receber convidados ilustres e desconhecidos. Tendo a mesma importncia o chefe de Estado e a criana sorridente e hipnotizada por este mundo de magia e mistrio. Quem nunca sonhou em ser um trapezista, em voar livre pelos ares? Quem nunca riu com os palhaos ou mesmo no ficou fascinado por aqueles artistas que de certa maneira fazem o inacreditvel tornar-se realidade diante nossos olhos? sobre este fenmeno artstico que dissertamos, sobre o circo, conhecimento milenar, por muito tempo enigmtico, marginalizado, restrito, porm sempre fantstico aos olhos do pblico. Desde os primrdios das sociedades antigas, a arte do entretenimento vem sendo desenvolvida e retratada, permeando, assim, a vida dos mais diferentes povos. Uma arte repleta de mitos, crenas e fantasias, especialmente inspirados no desconhecido. com esta finalidade que o circo antigo e, tambm sua verso moderna, se constri, como uma forma de encantamento, de fuga, de abstrao do mundo real. Uma arte do corpo espetculo, como diria Soares (1998). O circo surgiu das atividades do entretenimento, de modelos de preparao fsica, de elementos das festividades sacras e religiosas, das apresentaes pblicas nas praas, ruas, tablados, teatros populares, para chegar hoje como uma arte dos malabaristas, equilibristas, acrobatas, trapezistas, palhaos e tantos outros. Depois de inmeras modificaes ao longo de sua histria, o circo que conhecemos comea a ser desenvolvido no sculo XVIII, vindo de apresentaes eqestres em recintos fechados, retornando as apresentaes nas praas e ruas, at chegar s conhecidas lonas de circo, modelos que continuam at os dias de hoje.

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Mas a grande transformao que nos interessa foi aquela vivida no final do sculo XX, quando surgem as primeiras manifestaes do circo novo1. Como veremos no transcorrer do texto, o termo circo novo vem sofrendo inmeros debates, para ser entendido e compreendido. Talvez este termo no seja o mais adequado, porm estaremos utilizando-o para caracterizar esta nova viso de circo, aquele que pode ser aprendido por qualquer pessoa em escolas especializadas, em projetos sociais, como um veculo educacional. O circo torna-se um conhecimento emergente em nossa sociedade, isto quer dizer que as atividades ligadas ao circo ressurgem em diferentes ambientes, festas, parques, boates (baladas), festas infantis e, ainda, como uma prtica: esportivizada em academias; social em ONGs e entidades assistenciais; teraputica m hospitais e clinicas, e: educativa em escolas. to forte sua influncia nos dias atuais, que diversos artigos cientficos, revistas especializadas e livros vm tratando deste assunto, como veremos ao longo deste estudo. Nesse sentido, vemos desde a dcada de 1980 a crescente abertura de escolas de circo, de clubes e academias que ensinam essas atividades, assim como a prtica desta arte em espaos pblicos ou privados. Somos testemunhas ainda da realizao de inmeros eventos (congressos, seminrios, encontros) acadmicos e populares. Por fim, citamos a recente inaugurao por parte da Faculdade de Educao Fsica da Universidade Bourgogne (Frana) da habilitao denominada Gestion et dveloppement des activits physiques artistiques: danse, arts du cirque et arts martiaux2, o que indica a necessidade de discutir e criar metodologias e pedagogias que dem conta do desenvolvimento das atividades circenses nas aulas de educao fsica. Queremos ressaltar que as atividades circenses, em diversos pases, vm constituindo-se como um aliado da educao fsica, so atividades que no se limitam somente ao simples controle do corpo, mas sim que geram atitudes com um potencial educativo (Invern, 2003). Durante o processo de ensino/aprendizagem delas, os alunos desenvolvem diferentes aspectos pessoais como a sensibilidade na expresso corporal, a cooperao, o desenvolvimento da criatividade, a melhora da auto-superao e melhora da auto-estima. Assim, torna-se um

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Para Bortoleto e Machado (2003), esta nova concepo de circo pode ser chamada de Circo Novo, ou Circo do Homem, um espetculo estritamente ligado s formas humanas e suas qualidades.

Gesto e desenvolvimento das atividades fsicas artsticas: dana, artes circenses e artes marciais - traduo do autor.

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excelente veculo condutor para uma educao fsica mais artstica, mais dedicada s atividades de expresso corporal. Desta forma, como indica Bortoleto (2006), estamos convencidos que a utilizao dos jogos circenses despertam sensaes e produzem uma motricidade que ajuda no desenvolvimento de vrios aspectos da conduta humana, o que contribui de forma especial na formao humana de nossos alunos. Atividades que pem em destaque a criatividade, a cooperao, a interculturalidade, a expresso corporal, assim como as habilidades e capacidades. O nosso enfoque principal tentar criar interfases entre o circo e a educao fsica. Sabendo que a educao fsica no circo e circo no educao fsica. So fenmenos diferentes, com histrias prprias e que se assemelham por alguns fatores, distinguem-se entre si por outros, porm complementam-se em sua maioria3. Pensando nesta possibilidade de integrao que buscamos entender quais os conhecimentos das artes circenses podem ser tratados pela educao fsica escolar. A vontade de estudar o circo vem me acompanhando desde a graduao. Ingressante, no curso de educao fsica da UNICAMP, em 1998, iniciei a praticar ginstica acrobtica, no com fins competitivos, mas com o intuito de me apresentar junto ao Grupo Ginstico da Unicamp (GGU). Durante este processo de formao acadmica, descobri diferentes modalidades circenses, dentre elas o malabarismo, o tecido acrobtico, o trapzio fixo, a perna de pau, monociclo e diferentes modalidades de acrobacias, graas a viagens ao exterior, realizando intercmbios culturais, assim como pela participao em convenes de malabarismo e circo. A paixo foi crescendo, crescendo e se tornou amor! Neste processo descobri que alm de me tornado artista profissional, em 2002 aproximadamente, tinha vontade de estudar este fenmeno. E por que no unir as minhas duas profisses, a de professor de educao fsica formado em 2003 e a de artista circense. Ao longo destes anos venho acompanhando o crescente aumento de praticantes de modalidades circenses e observando, com isso, o tambm crescente nmero de pessoas que se dizem professores de circo. Abrimos um parntese neste momento, no estou aqui fazendo uma apologia formao profissional, ou dizendo que os artistas circenses no sabem ensinar o seu legado. De modo algum, inclusive fui aluno de pessoas nascidas e criadas no circo, que devoDe acordo com Soares (1998), as acrobacias circenses influenciaram os idealizadores da Ginstica Francesa, principalmente Amoros, que desenvolveu seu mtodo a partir dos gestos dos acrobatas, funmbulos e saltimbancos, pensando em ordenar e organizar estes movimentos de maneira a economizar energia.3

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muito a eles, e que os conhecimentos que carregam consigo so infinitamente superiores em alguns aspectos aos que eu possuo. Mas para valorizar as atividades circenses, devemos como educadores estar atentos para a formao dos profissionais que ministram este conhecimento em suas aulas. Assim, no podemos deixar que uma pessoa que tenha feito um curso de frias de uma semana, por exemplo, venha dar aulas para uma turma avanada em uma academia. Ou que um circense que no tenha conhecimento das diferentes linhas pedaggicas seja colocado frente de uma turma em uma escola, sem uma preparao prvia. Para tanto, venho aqui defender a possibilidade de incluso do circo na educao formal, um conhecimento legtimo que apresenta fatos histricos, influencia modos de vida e a prpria sociedade como um todo, uma arte num constante desenvolvimento. E uma possibilidade deste conhecimento estar presente na escola vincul-lo educao fsica que em nosso entendimento tem como premissa a transmisso dos conhecimentos relativos cultura corporal universalmente construdo. O presente estudo tem como diferencial a busca de conhecimentos que do subsdios ao profissional de educao fsica para compreender este fenmeno e poder atravs deste, trabalhar as atividades circenses em suas aulas de educao fsica escolar, como contedo regular. No primeiro captulo, estaremos dissertando sobre o circo, como fenmeno, e no apenas uma prtica corporal. Introduzimos a complexidade do universo artstico, aproximando o leitor a um mundo mgico e fascinante. Fazemos uma pequena viagem no tempo, mostrando diferentes circos e conceitos, desde as atividades que deram incio ao circo tradicional at chegar aos dias atuais com o circo novo, tentando problematizar e apontar os diferentes debates existentes. No segundo captulo, oferecemos subsdios histricos e tericos com os quais defendemos a incluso do circo como conhecimento legtimo a ser tratado na educao, mais precisamente na educao formal e suas instituies. Damos informaes a respeito do circo que pode estar sendo vinculado educao fsica, alm, de organizar as modalidades circenses por unidades didtico-pedaggicas na tentativa de flexibilizar este conhecimento buscando uma maior adequao ao mbito educativo, ou seja, tornar este conhecimento acessvel a qualquer pessoa, independente do seu grau de instruo, de desenvolvimento e orientao.

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No terceiro captulo, trazemos tona o paradigma pedaggico com o qual trabalhamos nas intervenes. Optamos por uma metodologia que contemplasse o maior leque de manifestaes circenses e que elas fossem vivenciadas pelos alunos. To importante quanto o fazer, est o conhecer, entendido por ns como um ato pedaggico, para tal, utilizamos os jogos circenses como recurso pedaggico na busca da flexibilizao desse conhecimento, atividades que trabalhem os diferentes nveis de complexidade motora e as caractersticas bsicas dos gestos e modalidades circenses. Neste captulo, damos informaes pertinentes a cada bloco temtico, as modalidades circenses vinculadas a ele e exemplos de jogos utilizados nas aulas. No quarto captulo, dissertamos sobre a insero do pesquisador em campo. O mtodo de pesquisa utilizado denominado pesquisa-ao, como metodologia, utilizamos aquela desenvolvida pelo Grupo de Estudos em Educao Fsica Escolar vinculado ao CNPq e coordenado pelo Prof. Dr. Jorge Sergio Prez Gallardo. Abordamos desde o primeiro contato com a escola, a escolha da turma, o desenvolvimento dos encontros com os alunos e os problemas encontrados. A pesquisa teve trs pontos bsicos, coleta de dados: inicial; durante as aulas, e; a final. Todo processo foi filmado em cmera digital e ao final dele editamos um DVD4 didtico-pedaggico para auxiliar os professores que se interessarem em desenvolver este contedo em suas aulas, dentro e fora das escolas. Consideramos esse material udio-visual como parte constitutiva do texto da dissertao. No quinto captulo, desenvolvemos as consideraes finais deste trabalho, mas, que para ns esperamos que sejam as consideraes iniciais para muitos outros trabalhos que pretendemos realizar a partir dessa viagem emocionante pelo mundo do circo.

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O DVD didtico-pedaggico acompanha em anexo o texto da dissertao.

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1. O CIRCOO circo um poema representado5

O circo formado por homens e mulheres que:[...] ao mesmo tempo em que mantiveram uma especificidade, renovam, criaram, adaptaram, incorporaram e copiaram experincias vividas no perodo, enfrentando novos desafios e obstculos decorrentes das continuidades e mudanas encontradas na sociedade, nas produes culturais e em si mesmos (SILVA, 2003, p.02)6.

Quando a autora nos traz este tipo de afirmao, faz-nos pensar a respeito da relao existente entre os artistas circenses e a sociedade. Em grande parte esta relao muito conturbada, principalmente quando se trata das autoridades e da famlia burguesa, que v nestas prticas corporais uma total ausncia de utilidade7. Mas, o impressionante a ambigidade de sentimentos que o circo proporciona s pessoas: medo, maravilhamento, temor, apreenso, satisfao e principalmente o sentimento de liberdade, de ver corpos exibindo movimentos constantes e inacreditveis aos olhos do pblico. Desse modo, muito antes do picadeiro ser institudo como sinnimo do local de espetculo circense, prticas corporais realizadas nas feiras, nas praas, onde palhaos, acrobatas, gigantes e anes apresentavam-se, so entendidas como as percussoras do que conhecemos como circo moderno. A discusso sobre o termo de circo moderno utilizado pelos historiadores e estudiosos do circo j vem sofrendo um grande debate. Alguns autores acreditam que este tipo de manifestao circense recebeu este nome por ter se constitudo como espetculo a partir de 1779, incio da revoluo industrial, quando substituda a produo artesanal pela produo mecanizada, caracterizada pela modernidade de tais meios. Outro nome recebido de circo tradicional, por levar consigo o estigma de ser apresentado por pessoas que tiveram seuHenry Miller, retirada de um encarte do Cirque Plume em visita ao Brasil em 2006 para apresentao de seu espetculo Plic Ploc. 6 Ermnia Silva filha de artistas circenses e embora tenha nascido no circo, no seguiu esta carreira, optando pela de historiadora do circo, com muita propriedade, conhecimento e pesquisa tornou-se professora doutora defendendo uma dissertao de mestrado e uma tese de doutorado, ambas, relacionadas ao circo e os acontecimentos que o transformaram (ver bibliografia). 7 No pensamento burgus e higienista do sculo IX, a atividade fsica fora do mundo do trabalho devia ser til ao trabalho (SOARES, 1998, p.23).5

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desenvolvimento na arte das feiras e ruas, saltimbancos e funmbulos que se constituiriam como uma sociedade fechada e enraizada na transmisso do conhecimento atravs do saber oral. Porm devemos destacar que o circo constitui-se, sempre, como moderno e contemporneo, pois em sua contemporaneidade busca o que h de mais moderno e tecnolgico para compor seus espetculos e suas concepes. E para que tudo isso possa fazer algum sentido para as pessoas que nunca tiveram ou que tiveram pouco contato com o universo circense e suas possibilidades, comearemos com uma pequena parte histrica. Pois acreditamos em um homem histrico, aquele que cria sua prpria histria e que a transforma a partir de seu conhecimento. Desta forma, de fundamental importncia sabermos de onde viemos para almejarmos um futuro consciente de nossas aes. Desta forma, recorremos aos estudos de Prez Gallardo (2003) que acredita ser possvel organizar o conhecimento a ser trabalhado na escola e, por conseguinte, pela educao fsica, em conhecimentos da cultura familiar para a educao infantil, da cultura patrimonial para as quatro primeiras sries do ensino fundamental e da cultura contempornea para as quatro sries subseqentes. Estes contedos de acordo com a proposta devem ser oferecidos seguindo uma estrutura espiralada na qual as crianas aprendem primeiro essas experincias que esto mais prximas delas para logo ir ampliando o conhecimento em busca do que esta mais distante. Os conhecimentos da cultura patrimonial so aqueles que fazem parte da cultura das crianas, da comunidade que ela esta inserida, resgatando as suas razes e principalmente mantendo as caractersticas comuns a cada sociedade da humanidade, dividindose em cultura patrimonial local, regional, nacional e internacional (de Amrica Latina). Discutindo todas as suas diferentes formas de manifestaes e principalmente fazendo um resgate cultural e identificando suas semelhanas com culturas similares, cabe ao professor a responsabilidade de procurar todas as informaes relevantes sobre o tema da aula e indagar dentro das experincias motrizes dos alunos aquelas que dizerem direta relao com o contedo a ser visto dentro da aula, tentando fazer um entrelaamento entre as experincias das

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crianas e as informaes recolhidas pelo professor constituindo-se no conhecimento da rea da educao fsica8 para o mbito escolar, tendo como principal enfoque a vivncia com informao. Num segundo momento que engloba as sries de quinta a oitava (terceiro e quarto ciclo) do ensino fundamental (PCNs, 1998), a proposta de Prez Gallardo trabalhar com a cultura contempornea, aquela que emerge do contato entre mdia e cultura patrimonial, aquela que constantemente mudada e transformada de acordo com as estruturas econmicas e suas possibilidades. Dividi-se em cultura contempornea local, regional, nacional e internacional. Seu enfoque se torna mais profundo de acordo com a capacidade dos alunos de discutir e argumentar com mais propriedade sobre tais assuntos, sua idia trabalhar a vivncia com informao e discusso.

1.1. O circo como conhecimento da cultura patrimonial[...] imagens do mais antigo espetculo do mundo. E que tem sido alvo de eruditas definies: arte ancestral e nica, o intil elevado ao sublime, ltimo vestgio de um saber antigo, existencial e inicitico. No popular: o maior espetculo da Terra (TORRES, 1998, p.12).

1.1.1. O desenrolar de uma sociedade: o circo da Antiguidade9

Um grande inspirador das artes do circo, em seus primrdios, foi o desejo do homem em domesticar e adestrar diferentes animais. No Egito antigo, h mais de 35 sculos, que se tem notcia da primeira coleo de animais exticos. Os povos da ndia e da China tambm se entretinham com importantes colees, como animais capturados nas diversas batalhas, eles eram tratados como trofus das conquistas das grandes civilizaes. Mas a civilizao Grega que desenvolve os princpios da doma, em Cnossos, o primeiro anfiteatro que foi criado em 2400 a.C., no qual jovens atletas faziam exerccios sobre um touro (JACOB, 1992).

Para que um contedo seja considerado disciplina, esta deve ter um corpo organizado de conhecimentos ao redor de um objeto de estudo e de um paradigma de orientao (PREZ GALLARDO, 2002). 9 Bolognesi (2003) nos alerta que reconhecer um determinado objetivo configura-se em um tempo e em um espao. Sob esses critrios, ainda que demasiados genricos, pode-se problematizar a idia de continuidade do circo moderno com os espetculos gregos e romanos. [...] Isso, no entanto, no inviabiliza o reconhecimento do circo como organizao espetacular que reapresenta algumas proezas que se exibiam na Antiguidade (BOLOGNESI, 2003, p.23).

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Figura 1: Jovem sobre o dorso de um touro em Cnossos10

Antes mesmo de o homem tentar domesticar e adestrar os animais, ele buscava adestrar-se a si prprio, a populao j se entretinha com as apresentaes no cotidianas. As primeiras informaes sobre o aparecimento das atividades de entretenimento so datadas de mais de 3.000 anos em pinturas encontradas na China que retratavam acrobatas, contorcionistas e equilibristas. De acordo com Mauclair (1995), a acrobacia foi a primeira manifestao artstica corporal do homem, alm de uma forma de treinamento para os guerreiros de quem se exigia agilidade, flexibilidade e fora. Com o tempo, essas qualidades se somaram a graa, a beleza e a harmonia. Segundo Viveiros de Castro (s/d), nas pirmides do Egito existem pinturas de malabaristas e paradistas, sempre associados a festas e ou demonstraes. Na ndia os nmeros de contoro, saltos e pirofagia fazem parte dos milenares espetculos sagrados, junto com danas, msica e canto. Na Grcia12, as paradas de mos, o equilbrio mo com mo, os nmeros de fora e o contorcionismo eram modalidades olmpicas. As apresentaes eram feitas em recinto fechado como tambm na rua e praas.10 11

Figura 2: Desenho Egpcio11

Fonte: BORNECK, 1974, p.89. Fonte: www.juggling.org/papers/evans/ 12 Sobre os jogos olmpicos na Grcia Antiga ver Godoy (1996).

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De acordo com Bolognesi (2003), na antiguidade, o que prevaleceu nestas apresentaes foi uma noo mtico-religiosa que, dentre outras implicaes, ancorava as prticas artsticas, esportivas e polticas.

Poder-se-ia argumentar que as razes do circo estariam postas no hipdromo e nas Olimpadas da Grcia antiga. No primeiro, porque os conquistadores gregos expunham os resultados de uma faanha blica, exibindo os adversrios vencidos e escravizados. Alem dessa exibio, os chefes dos exrcitos traziam animais exticos, muitos at ento desconhecidos, como prova de bravura e testemunho das distncias percorridas e das terras conquistadas. As olimpadas, por sua vez, sob o signo do esporte, expunham os atletas em disputadas acrobticas, no solo, em corridas e saltos, ou em aparelhos que permitiam a evoluo do corpo no ar, em barras e argolas (Idem, p.24).

Tambm comum associar a histria do circo com os jogos na Roma Antiga. Mas devemos ter muita cautela, como nos alerta Bolognesi (2003), preciso ter em mente o contexto e perodo histrico no qual ocorrem os jogos romanos. Desta forma, tais espetculos eram, antes de mais nada, atos religiosos, momento em que a cidade se encontrava e se reconcilia com os deuses (GRIMAL apud BOLOGNESI, 2003, p.26). Em Roma havia diversos tipos de jogos em diferentes locais:Nos anfiteatros prevalecia a exibio de combates entre gladiadores. O espetculo fascinava o pblico romano, que participava ativamente da disputa, incentivavam seus lutadores preferidos a superar todos os limites e foras. Antecedendo ao evento, o espetculo repercutia em toda a cidade, por meio de apostas e comentrios diversos. O mesmo ocorria nos dias subseqentes e as conversas animadas agora versavam sobre a luta em si e as reaes do pblico, especialmente as do imperador e outras autoridades (BOLOGNESI, 2003, p. 26-27).

Diretamente importados da Grcia, nos estdios romanos aconteciam os jogos atlticos. Este tipo de disputa despertava grande simpatia do pblico romano, particularmente as modalidades de luta e pugilato. Esta manifestao da cultura romana, alm, de motivaes religiosas, tambm era ancorada por razes polticas, como elemento importante para o sistema geral da poltica de divertimento implantado em Roma (WEBER apud BOLOGNESI, 2003). Porm, os jogos circenses que se desenvolviam no circo romano superavam, no gosto romano, os do anfiteatro e os do estdio. A habilidade do condutor e a fora dos cavalos eram os ingredientes necessrios para o sucesso de uma corrida. Alm disso, tinham o intuito de

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rememorar, simbolicamente, as proezas romanas nas guerras e a reverncia religiosa das divindades (BOLOGNESI, 2003, p.27-28). Os espetculos do circo romano tiveram sua origem na religio, nas festas pblicas que apresentavam corridas de carros e outras exibies atlticas.A organizao espacial do circo romano adequava-se ao exerccio das formas simblicas reais e ideais. O circo-hipdromo era a principal arena para realizao de importantes eventos sociais, tais como a corrida dos carros e as cerimnias imperiais. Ele era um dos espaos privilegiados no qual efetiva a relao do soberano com seus sditos. A planta elptica alongada do Circo Mximo, que comportava em seu centro uma srie de smbolos, dentre os quais se destacava o obelisco, evocava os motivos religiosos dos rituais pblicos (Idem, 28).

Desta maneira, os espetculos nos jogos circenses legitimam a insero da poltica em tais manifestaes populares, servindo de propaganda imperial. O Imperador configura-se como smbolo mximo de um projeto poltico constitudo pelo Estado, pela religio e pelo divertimento, no popular diramos, a poltica do po e circo. Poltica esta que se assegurava, simblica e ideologicamente, na religio e no divertimento.

Figura 3: Circus Maximus13

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Imagem retocada graficamente por computador. Interessante notar a magnitude da construo, observando a importncia de tais jogos nesta poca. Fonte: www.vroma.org

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Juntamente com o declnio do Imprio Romano, houve a diminuio de interesse pelos jogos romanos, chegando sua extino. Os artistas que tinham espao garantido nestas manifestaes artsticas viram-se com a necessidade de encontrar novas alternativas. Dependentes das contribuies espontneas da populao, funmbulos14 e saltimbancos15 buscam novas festas, festivais populares, praas e ruas, apresentando-se nas mais variadas formas: acrobacia, equilibrismo, salto, ilusionismo, mmica, ventriloquia, msica, entre outras.O seu lugar era o mundo inteiro conhecido e, principalmente, imaginado. Era sempre o lugar onde houvesse gente que se depusesse a rir, a aplaudir, a se embevecer com as peripcias do corpo, de um corpo gil, alegre, cheio de vida porque expresso de liberdade e sobre tudo existente s regras e normas. [...] O seu mundo era desinteressado. Suas vidas se faziam mais de trajetos do que lugares a se chegar e, assim, desterritorializavam a ordem do espao. Suas apresentaes aproveitavam dias de festas, feiras, mantendo uma tradio de representar e de apresentar-se nos lugares onde houvesse concentrao de pessoas do povo (SOARES, 1998, p.24).

Na Idade Mdia, a busca pelo sagrado, pelo culto do esprito extremamente acentuada, dessa maneira, os artistas passam a ser muito discriminados pelas autoridades. Louis XIV, por exemplo, probe que danarinos de corte e outros artistas demonstrem suas habilidades em via pblica, provocando um agrupamento obrigatrio das apresentaes em feiras (JACOB, 1992). Portanto os artistas acabam integrando o bando dos marginalizados, assim, sempre

procuravam novas cidades nas quais poderiam ganhar um pouco mais e ter mais respeito, caracterizando o nomadismo dessas pessoas.Figura 4: Artistas na Idade Mdia16

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Artista que anda ou dana em corda bamba, aquele que muda facilmente de opinio ou partido, inconstante (Michaelis, 2000). 15 Do italiano, saltar sobre os bancos. 16 Representao de artistas nas ruas do povoado da Idade Media. Fonte: www.juggling.org/papers/evans/

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Nos meios urbanos, so diferentes manifestaes ldicas de carter popular realizadas com base nas atividades de artistas circenses que se impe. (...) a ambivalncia caracterstica da cultura popular da idade Media e do Renascimento. De uma cultura no oficial e de um territrio e datas prprias: a praa pblica, a rua e os dias de festa. Equilibristas, funmbulos, volantins, palhaos, bailarinas, contorcionistas, anes, personagens que chegam e partem, transitrios, nmades (SOARES, 1998, p.24).

Cidados e cidads que vinham de encontro com todas as normas e regras da sociedade, invertiam seus corpos, invertendo a ordem natural das coisas. Trazendo o profano para o mesmo patamar do sagrado, possuam um modo de viver e ser que desafiavam as instituies religiosas e polticas, despertando o medo nas autoridades.Compunham assim todos os atos do teatro do povo [...] Traziam o corpo como espetculo. Invertiam a ordem das coisas. Andavam com as mos, lanavam-se ao espao, contorciam-se e encaixavam-se em potes, em cestos, imitavam bichos, vozes, produziam sons com as mais diferentes partes do corpo, cuspiam fogo, vertiam lquidos inesperados, gargalhavam, viviam em grupos (SOARES, 1998, p.25).

A partir do sculo XVII, esses saltimbancos consolidam uma forte dinastia, tradio ou forma de viver da arte, na Europa, seguindo uma tendncia comercial, estruturam-se em barracas que funcionavam como palcos, circulando livremente pelas vilas e povoados, mantendo as caractersticas nmades.As praas e feiras h muito eram ocupadas por companhias ambulantes que se apresentavam ao ar livre, em barracas cobertas de tecidos ou de madeiras; palcos de pequenos teatros estveis ou fixos teatros de variedades e music-hause [sic] (expresso da autora), como eram chamados na poca Nicolet em Paris e o Sadler's Wells em Londres. Eram acrobatas, danadores de corda, equilibristas, malabaristas, manipuladores de marionetes, atores, adestradores de animais, principalmente ursos, macacos e cachorros (SILVA, 2003, p.01).

No sculo XVIII, havia muitos grupos de saltimbancos percorrendo a Europa, especialmente na Inglaterra, Frana, Itlia e Espanha. Eram freqentes as exibies de destreza a cavalo, combates simulados e provas eqestres. Este tipo de espetculo perdura mesmo com as novas tendncias do circo moderno, o verdadeiro circo popular mencionado por Auguet (1974). Paralelamente a esse crescimento de artistas de rua (nmades e livres) aumenta o culto arte eqestre, durante os sculos XVI e XVII, comeam a figurar como parte das apresentaes. Num momento de paz relativa entre as naes aparecem bons professores de equitao, militares com grande controle sobre os cavalos adestrados e habituados com as

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paradas e fanfarras militares, animais estes que aps o fim das guerras do Imprio Britnico se tornaram inteis para tal fim.Ao sair do reduto exclusivo aristocrtico, o cavalo ficou mais disponvel no mercado com preos acessveis, possibilitando que os grupos ambulantes os adquirissem e se transformassem, tambm, em hbeis cavaleiros e disputassem os mesmos espaos com os ex-cavaleiros militares, tornando-se comum a ambos o repertrio de exerccios eqestres e a rotina dos saltimbancos. As agilidades corporais no cho, no ar e em cima do cavalo, denominadas acrobacias eqestres, eram realizadas ao som de fanfarras militares e paradas espetaculosas (SILVA, 2003, p.01).

De acordo com a autora supra citada, muitos foram os grupos que se formaram, tendo destaque o de Philip Astley, que iniciou suas apresentaes por volta de 1766, juntamente com outros ex-oficiais da Cavalaria Britnica. Em 1770, alugou um terreno vago, construindo tribunas em frente a uma pista circular, ainda a cu aberto (Idem, p.02), constituindo assim as bases do circo moderno.

1.1.2. O circo moderno

De certa maneira, devemos considerar que os fatos histricos no seguem um desenvolvimento continuo, regular e linear, para entendermos a historia do circo preciso salientar que a hiptese de filiao entre as apresentaes religiosas e mticas da antiguidade e o circo moderno no passa apenas de reconhecermos o aproveitamento e a transformao de alguns nmeros das artes circenses (BOLOGNESI, 2003).A ligao dos jogos romanos com a religio e o estreito vnculo entre eles e uma poltica estatal, so elementos que diferenciam a natureza das atividades romanas daquelas prprias do sculo XVIII (Idem, p.30).

preciso, ento, entender os sentidos ou simbologias que essas formas de espetculos desempenharam em seus momentos.Na antiguidade, prevaleceu uma noo mtico-religiosa que, dentre outras implicaes, ancorava as prticas artsticas, esportivas e por que no? polticas. Essa simbologia no esta representada no circo moderno. O lugar ocupado pelo mito e pela religio tornou-se laico e, mais especificamente, comercial. Ele passou a ser regido pelo imperativo do dinheiro e da bilheteria, para sustentar a empresa, e do trabalho, para a

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sobrevivncia dos artistas, das trupes e das famlias circenses. O culto cedeu lugar a abstrao da moeda (Idem, p.24).

De acordo com Torres (1998), o primeiro circo europeu moderno, o Astley's Amphitheater, foi inaugurado em Londres por volta de 1779 por Philip Astley. O Circo de Astley tinha um picadeiro com uma espcie de arquibancada perto, construindo um anfiteatro suntuoso e fixo. Utilizou o crculo como composio fundamental do espetculo, instaurando-se um ambiente indito entre o espao cnico e o pblico. Seu espetculo eqestre tinha rigor e estrutura militar, e foi assistido por diversos aristocratas e nobres, entre eles, George III, rei da Inglaterra, e Louis XV.Astley considerado o inventor da pista circular e criador de um novo espetculo. A composio do espao fsico e arquitetnico, onde se davam as apresentaes, era em torno de uma pista de terra cercada por proteo em madeira, na qual se elevava em um ponto pequenas tribunas sobrepostas, semelhantes a camarotes, cobertas de madeira, como a maior parte das barracas de feira daquele perodo, acopladas a pequenos barraces. Como espetculo, entretanto, que de fato Astley teria sido criador e inovador. No incio oferecia aos londrinos acrobacias eqestres sobre dois ou trs cavalos e os maneava de sabre. [...] A uma equipe de cavaleiros acrobatas, ao som de um tambor que marcava o ritmo dos cavalos, associou danarinos de corda (funmbulos), saltadores, acrobatas, malabaristas, hrcules e adestradores de animais. Esta associao de artistas ambulantes das feiras e praas pblicas aos grupos eqestres de origem militar considerada a base do circo moderno (SILVA, 2003, p.19).

Este tipo de apresentao ganha um pblico fiel, especialmente da classe aristocrata. A arte eqestre no foi somente um espetculo, foi um smbolo social, pois a equitao tem como linha o rigor da elegncia e da postura correta, sendo um dos princpios da educao da aristocracia. Porm com o tempo, essa prtica populariza-se, quandoFigura 5: Interior do Astley Anfiteatro17

alguns de seus membros percebem que a

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Fonte: www.answers.com

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apresentao para outros grupos da sociedade, a burguesia, lhes rendiam muito pblico e simpatia; as escolas comeam a abrir suas portas de tarde para essas demonstraes de agilidade e destreza (OLIVEIRA, 1990).

O tipo de espetculo recriado por Astley, ao unir em torno de si as famlias de saltimbancos, grupos dos teatros de feiras, ciganos danadores de ursos, artistas herdeiros da Commedia dellArte, unia tambm o cmico e o dramtico; associava a pantomima e o palhao com a acrobacia, o equilbrio, as provas eqestres e o adestramento de animais, em um mesmo espao. Neste momento, no se criava apenas um modelo de espetculo, mas a estrutura de uma organizao. O espao foi delimitado, cercado e o pblico pagava para assistir ao espetculo, que, cuidadosamente planejado, alternava exibies de destreza com cavalos, exibio de artistas que criavam jogos de equilbrio, representao de pantomimas eqestres e acrobticas (CERVATTI apud SILVA, 2003, p.22).

Num certo momento, Astley depara-se com um estabelecimento rival, o Royal Circus, inaugurado por Charles Hughes, um ex-cavaleiro que havia feito parte de sua primeira companhia. Desta forma, este estabelecimento utilizou, em 1782, o termo Circo, pela primeira vez na era moderna (JACOB, 1992). Parece ser o ponto de partida da disputa pelo monoplio deste tipo de espetculo. Na Frana, o sucesso de empreendimento de Astley foi to grande que um domador de animais, chamado Antonio Franconi, decide dar continuidade aos espetculos circenses em locais fixos. Recupera o mesmo espao usado por Astley e em 1807 abre as portas de seu estabelecimento, o Cirque Olympique (AUGUET, 1974). De acordo com Silva (2003), os espetculos de circo na Europa, at praticamente a metade do sculo XIX, tinham como maior parte de suas atraes: exerccios eqestres, funambulismo, adestramento de animais, saltos acrobticos, danas e pantomimas. Para a mesma autora, alguns estudos indicam um paralelo entre os gneros representados nos boulevards18 e aquelas produes realizadas nos circos. O que mais chama ateno o grande aceite, por parte dos artistas de circo, por um tipo especifico de encenao, o melodrama. Uma forma mista, que compartilhava com o vaudeville19 seus acessrios musicais, mas com outros gneros, sobretudo com o drama e a pea de exaltao histrica, seus enredos srios e freqentemente trgicos (HAUSER apud SILVA, 2003, p.22-23). Dos modelos apresentados pelo melodrama, o mais importante era a pantomima. Isto mostra uma caracterstica18 19

Avenida arborizada. Comdia leve e muito movimentada.

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do circo, a da contemporaneidade do espetculo atravs de um dilogo tenso e constante com as mltiplas linguagens artsticas de seu tempo (SILVA, 2003, p. 05).Durante o sculo XIX, os espetculos circenses se proliferaram por toda a Europa, aumentando o nmero de companhias que se apresentavam, na sua maioria, em instalaes estveis, construdas em estrutura de madeira ao ar livre (sem cobertura), em anfiteatros ou em teatros adaptados (Ibidem).

Isso demonstra a grande influncia dos espetculos circenses na sociedade da poca, principalmente, nas formas de divertimento e entretenimento da populao e da burguesia sempre crescente. Esta certa estabilidade consolida um novo grupo de artistas, uma sociedade formada pela unio dos egressos militares e famlias de artistas ambulantes, saltimbancos, artesos como apresentadores de marionetes, prestidigitadores, ilusionistas, mgicos, ciganos, atores dos teatros de ruas e feiras, nmades por excelncia. So estas companhias que emigraram do continente europeu para outros continentes. Nos Estados Unidos, como em outras partes do mundo, este tipo de espetculo no encontra espaos adequados, mantendo-se ao ar livre. Quando, no incio do sculo XIX, Purdy Brown, juntamente com os irmos Nathan e Seth, cobrem a arena com uma cava (tenda), que possua um mastro central, surge os moldes do circo americano ou circo de lona. Mas foi nas mos de Phineas Taylor Barnum que o circo coberto foi difundido, pois ele era um homem de negcios e um extraordinrio publicitrio. Utilizou cartazes coloridos e uma tenda enorme, dando novo ritmo aos espetculos (JACOB, 1992).Tudo o que dizia respeito ao circo era armado, desarmado e transportado, no ficando nada nos terrenos. Portadores que eram da tradio nmade, conseguiram viver por sculos em conseqncia de sua capacidade de integrao e, em particular, funcionalidade de seus instrumentos e essencialidade e praticidade de seus conhecimentos. Aos poucos as tendas foram aumentadas e aperfeioadas, principalmente graas inveno dos mastros centrais, que possibilitavam, alm de suporte do tecido, dos aparelhos areos e da iluminao, aumentar o espao do redondel. As coberturas mudam de panos de algodo para lona simples e depois impermevel. De incio, os espetculos eram durante o dia, sendo que, por volta de 1845, os diretores de circo sob tenda comearam a se apresentar noite, iluminando o espao com tochas de resina e velas de sebo; posteriormente, claro, foi iluminado a gs, acetileno e eletricidade. O transporte do material no comeo era feito com carroas puxadas por animais, e depois atravs de rios e ferrovias. Como todos e tudo era transportado junto, o circo ambulante americano transformou as pequenas passeatas de uns poucos artistas - que eram realizadas na Europa para propaganda da estria, em particular na Inglaterra -, na grande parada composta por todos os artistas e animais da companhia, acompanhada de grande fanfarra. O espetculo explorou, tambm, com bastante intensidade o chamado

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side-show, que reunia alm de alguns monstros trucados, os fenmenos mais assustadores que se podia encontrar: obesidades de todo tamanho, mulheres barbadas, homens cachorros, hrcules, anes, animais deformados (SILVA, 2003, p.32-33).

Figura 6: Exemplo de circo americano20

Na Europa, muitas companhias circenses se mantiveram apresentando em espaos construdos em madeiras, chamados circos estveis, lugares fixos que permaneciam montados aps o termino da temporada, timos para enfrentar os rigorosos invernos e as adversidades ambientais. Em contra partida, alguns grupos ambulantes adotaram definitivamente a arquitetura nmade de tendas ou barracas viajando pelas cidades europias, este tipo de manifestao recebe o nome de circo ambulante ou circo mambembe, que em comparao com os circos fixos, so considerados de segunda categoria (SILVA, 2003). Com o passar do tempo, o circo sob tenda torna-se juntamente com os circos fixos um importante espao do espetculo circense, caracterizando-se um modo de vida e de fazer circense.[...] a possibilidade de adquirirem maior mobilidade, aliada incorporao de artistas dos vrios pases onde chegava, o circo consolidava-se como um espao de mltiplas linguagens artsticas, que pressupunha todo um conjunto de saberes definidores de novas formas de produo e organizao de espetculo artstico: animais, mistura de nacionalidades, acrobacias, nmeros areos, magia, shows de variedades, representaes teatrais com pantomimas e entradas de palhaos com ou sem dilogo (Ibidem).20

Fonte: www.circus-renz.de

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Algumas caractersticas podem ser observadas no circo moderno que diferem das outras manifestaes culturais. No circo moderno h uma retomada das proezas esportivas e a transformao delas em espetculo. As aptides circenses ganham um carter espetacular porque nelas esto contidos os seguintes elementos como indica Bolognesi (2003):

[...]a) a habilidade propriamente dita, quando o artista domina a acrobacia, o trapzio, o equilibrismo, os truques de magia e prestidigitao, o controle sobre as feras etc; b) a coreografia, que confere as habilidades individuais ou coletivas um sentido na evoluo temporal e espacial; c) a msica, que contribui para a eficcia rtmica dos elementos anteriores; d) a indumentria, que completa visualmente o propsito maior do numero; e) a narrao do Mestre de Pista, que se converteu em ingrediente especial para a consecuo do tempo dramtico, enfatizando os momentos da apresentao, o seu desenvolvimento, o clmax e o conseqente desfecho. [...] A conjugao da habilidade com a coreografia, a msica, a indumentria e a narrao so fator primordial para a eficcia cnica (Idem, p.30-31).

importante destacarmos que o circo se constitui como uma sociedade nica, construda pelo entrelaamento das heranas culturais dos prprios artistas circenses com as dos lugares para onde migraram e se fixaram, como indica Silva (2003):

[...] uma mistura, um compartilhamento ou apropriao, que produz uma outra complexidade artstica, em cada perodo histrico. Isto , os circenses, ao se apresentarem em vrios espaos como acrobatas, ginastas, mgicos, domadores, cantores, msicos e atores, vo realizando trocas de experincias, por isso, preciso pensar o circo a partir de pocas e sociedades concretas, nas quais estabelecem relaes especificas com tradies, valores, hbitos e manifestaes culturais. Relaes complexas, tensas, competitivas, harmoniosas, cooperativas, dinmicas, criativas e polticas, mantidas com os diferentes segmentos da sociedade, com seus prprios pares, com outros ramos da produo de espetculos teatrais, populares, musicais (Idem, p.01).

Segundo esta autora, este complexo modo de organizao do trabalho e da produo artstica definido: pelo nomadismo; pela forma familiar e coletiva de constituio do profissional artista, implicando num processo de formao/socializao/aprendizagem, bases de estruturao e identidade, e; pela contemporaneidade do espetculo atravs de um dialogo tenso e constante com as mltiplas linguagens artsticas de seu tempo. com tais caractersticas que o circo se populariza e se desenvolve no Brasil.

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1.1.3. O circo na Amrica do Sul

No Brasil, mesmo antes do circo de Astley, j havia grupos de ciganos que vieram fugindo da perseguio na Europa, e que trouxeram consigo a arte circense. Entre suas especialidades incluam-se a doma de ursos, o ilusionismo, as exibies com cavalos, entre outras. H relatos que eles usavam tendas e nas festas havia baguna, bebedeira, e exibies artsticas, incluindo teatro de bonecos. Eles viajavam de cidade em cidade, e adaptavam seus espetculos ao gosto da populao local (TORRES, 1998). Contemporaneamente, grupos de saltimbancos, conhecidos como volantis ou bulantis, percorriam o territrio nacional, alcanando o status de circense somente a partir do sculo XIX (OLIVEIRA, 1990). De acordo com Silva (2003), os artistas circenses que migraram no final do sculo XVIII e durante quase todo o sculo XIX para a Amrica Latina, percorreram vrios paises antes de passarem a viver, preferencialmente, em um deles como nmades. As turns das trupes eram constantes; Rio de Janeiro e Buenos Aires eram as principais cidades visitadas neste perodo.

Desde 1757 registraram-se na Argentina os passos de volatineros (como so denominados em castelhano os saltimbancos e funmbulos) vindos da Espanha para exercerem seu tradicional ofcio no Novo Mundo, como o acrobata Arganda e o volatim Antonio Verdn, que teria vindo do Peru para Buenos Aires e Brasil (SEIBEL apud SILVA, 2003, p.36).

As primeiras investidas de artistas denominados circenses, ao Brasil, acontecem no final da dcada de 1780, atravs da Argentina, como o caso de Joaquim Duarte, que em 1776, apresentou-se como funmbulo, jogral21, acrobata e prestidigitador (CASTAGNINO apud SILVA, 2003, p.36) e de Joaquim Olez, que a partir de 1791, depois de se apresentar na Plaza de Toros, cruzou o Rio Grande e se dirigiu ao Rio de Janeiro (SEIBEL apud SILVA, 2003, p.36). O primeiro registro de uma companhia denominada de circo eqestre ocorre na dcada de 1820, em Buenos Aires com o Circo de Bradley:[...] propriedade de um cavaleiro ingls do mesmo nome, que no ano seguinte se uniria a um seu compatriota, instalando um circo olmpico eqestre, onde se apresentava como21

o que significa jogral

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ginete, palhao, aramista e expert em fogos de artifcios. Segundo Teodoro Klein, este artista, por ter sido forjado na escola dos antigos clowns, dominava tanto o cmico como o srio em acrobacia e equilbrios. Sua arte de fazer rir se baseava sobre o gesto e o movimento, alm de um vesturio e maquiagem chamativos. Um dos possveis integrantes deste circo seria um artista luso-brasileiro, Manuel de Costa Coelho, que se destacava por suas danas e equilbrios sobre a maroma. Durante o espetculo, os artistas principais representavam uma cena cmica Palhao o bobo de uma mulher ou as Chocarreras del Saco, que acabava com uma dana que no possua nem msica nem coreografia prprias, tomava as melodias e os bailes conhecidos pelo pblico para fazer rir atravs do recurso da pardia. Bradley encerrava o espetculo com uma das mais freqentes pantomimas eqestres do circo de Astley, O rstico bbado (KLEIN apud SILVA, 2003, p.37).

Outras referncias de espetculos circenses so datadas de 1819, assinala-se a presena de uma companhia encabeada por Guillermo y Maria Southby, que vem ao Brasil de Buenos Aires. Em 1820, o acrobata Manoel Antonio da Silva, apresenta-se na residncia de um certo capito Moreira. No Teatro Imperial de So Pedro DAlcantara, em outubro de 1827, era anunciada a apresentao de M. e Ma. Rhigas", que apresentaram uma "pea italiana" e "uma dana", seguida pela mulher executando um "concerto de piano-forte", depois da qual M. Rhigas faria "diversos exerccios de equilbrio, de destreza e de fora" (SILVA, 2003). Segundo a autora, em 1834, temse pela primeira vez o registro da chegada ao Brasil de um circo formalmente organizado, o de Giuseppe Chiarini. Apontando uma caracterstica do circo, as trocas de experincias entre os circenses europeus e os artistas e as experincias locais.[...] produzindo um espetculo que, se por um lado, deixa clara a preservao em grande parte do modelo europeu de fazer circo, por outro vai operando mudanas na produo do espetculo, na organizao do circo ou na representao dos vrios gneros artsticos, pela incorporao, assimilao e mistura de novos elementos vivenciados (SILVA, 2003, 38).

Esta companhia foi considerada como uma das maiores dinastias italianas de circo. Tiveram sua dependncia dos saltimbancos e trabalharam nos circos de Astley e Franconi, este segundo foi professor de Giuseppe Chiarini, que partiu para a Amrica do Norte, montando um circo ambulante. Este circo aps viajar para o Japo vem a Amrica Latina. Estreando em Buenos Aires em fins de 1829 (Idem).

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A primeira companhia circense a se apresentar no Brasil como Circo Eqestre foi em 1842, na cidade de So Joo Del Rei, com um espetculo22 do ator Alexandre Lowande e sua esposa Guilhermina Barbosa.

[...] em 1857, em Porto Alegre foi construdo um barraco para cavalinhos e em maio o circo de Lowande, agora denominado O Grande Circo Olmpico, estreava no local. Aqui se tem a referncia a circo de cavalinhos, como era identificado aquele tipo de espetculo, mas no se faz meno idia de teatro-circo, como na Argentina (SILVA, 2003, p.46-47).

No demora muito, o circo torna-se um espetculo de presena marcante nas cidades brasileiras. O circo de cavalinhos ganha fama, status e tem espao garantido nas ruas, teatros e festas locais de inmeras vilas. Introduz um novo linguajar que aos pouco vai fazendo parte do vocabulrio local: eqestre, equilbrio, corda bamba, palhao, acrobata, salto mortal (Idem, p.47). Vai constituindo-se como sinnimo de diverso garantida para as populaes dos lugares mais distantes e longnquos, aonde, talvez, no chegasse nem um outro tipo de atividades do entretenimento, tornando-se um promulgador de cultura.

A introduo de todo um mundo gestual, dos desafios dos corpos, da habilidade com os cavalos, da representao cnica, da dana, da msica e do riso vo, [...]. Os circos de cavalinhos estariam presentes, a partir da segunda metade do sculo XIX, na maior parte das cidades brasileiras, tornando-se, em alguns casos, a nica diverso da populao local (Idem, p.47-48).

O circo torna-se, no Brasil, a semelhana da Europa, um fenmeno cultural e econmico. Aumenta-se o nmero de companhias circenses; em todos os locais que o circo se apresentava, causava tambm polmicas, estimulando-se debates sobre a mudana de composio do pblico, alm da ausncia de pretenses artsticas da populao que freqentava os teatros (Idem, 52). presena garantida nos jornais e revistas da poca, no somente nos espaos dedicados a propaganda, mas nos espaos dedicados as criticas. O circo, cada vez mais, vai recebendo mais e mais pblico, acirrando a disputa do mercado do entretenimento, principalmente em relao ao teatro. Tambm, torna-se uma opo a mais de trabalho paraA programao era: provas de equitao, equilibrismo, acrobacia e malabarismo. Embora o autor no mencione, fazia parte das atividades de Lowande as pantomimas, arlequinadas, como O Arlequim esqueleto, e pequenas cenas cmicas (DAMASCENO apud SILVA, 2003, p.47).22

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vrios artistas do perodo nas diversas regies do pas (Ibidem).A este debate acrescentou-se - alm do fato de que o pblico estivesse dando preferncia aos espetculos circenses esvaziando as salas teatrais -, um grave problema, que era a invaso dos circos nos palcos, tanto pelas companhias propriamente ditas, quanto pelos atores e autores do teatro, que estariam representando e escrevendo aos moldes de tal gnero artstico (Idem, 53).

O circo nesta poca tornou-se o espetculo do povo.

1.1.3.1. Estrutura do circo no Brasil

O modelo de circo ocidental se enraza em nossa cultura, de forma que as trupes circenses consolidam uma forte tradio, caracterizada por um forte vnculo social, tendo a famlia como base de sustentao; o que os circenses chamam de circo dos tradicionais (SILVA, 1996, p.02). Dentro desta estrutura social, o saber circense consiste em ensinar a armar e desarmar a tenda, o picadeiro, as arquibancadas, a preparar os nmeros ou peas de teatro, e passar os conhecimentos para os mais novos, crianas que se dedicavam desde pequenas ao ofcio da arte.[...] ser tradicional, para o circense, no significava e no significa apenas representao do passado em relao ao presente. Ser tradicional significa pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo ritual de aprendizagem total do circo, no apenas de seu nmero, mas de todos os aspectos que envolvem a sua manuteno. Ser tradicional , portanto, ter recebido e ter transmitido, atravs das geraes, os valores, conhecimentos e prticas, resgatando o saber circense de seus antepassados. No apenas lembranas, mas uma memria das relaes sociais e de trabalho, sendo a famlia o mastro central que sustenta toda esta estrutura (Idem, 65-66).

As habilidades transmitiam-se de circense a circense, sem existncia de obras escritas (DUARTE, 1995). A transmisso oral garantia a perpetuao dos saberes circenses, de um conhecimento grupal, comunitrio e familiar. Durante o decorrer do sculo XIX, a estrutura do circo sofre algumas mudanas estruturais, adaptando-se as necessidades e a nova realidade, seguindo o mesmo caminho de inmeros circos e artistas da Europa e dos Estados Unidos, comeam a sair da rua para apresentar-se em espaos fechados, possibilitando a cobrana de ingressos. De acordo com Silva

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(1996), as apresentaes em recinto fechado podem ser reconhecidas como: circo de tapa-beco, circo de pau-a-pique, circo de pau-fincado ou circo americano. As primeiras informaes so do circo tapa-beco, consistindo em um terreno baldio, com casa a seu lado, cobria-se frente e o fundo com uma cortina, denominada pano-deroda (com a inteno de no deixar a pista vista, sendo necessrio entrar e pagar para assistir o espetculo). Ao centro vinha um picadeiro feito com corda, delimitando o espao da apresentao. Preservando o alicerce do circo, aparece o mastro, e no topo do mesmo era colocado um travesso, este denominado de escandalosa, formando um meio T no qual na ponta eram presos os aparelhos areos. No caso do circo de pau-a-pique, a madeira era cortada e disposta em crculo, enfincada no solo, uma pea do lado da outra, rodeada pelo pano de algodo. Ainda no havia iluminao, apresentando os espetculos no perodo diurno. O engraado que a sociedade se envolvia com o circo, muitos dos espectadores para no ficarem sentados no cho levavam de casa sua prpria cadeira (Idem). Uma nova tendncia de estrutura de circo cresce no incio do sculo XX, o circo de pau fincado, as diferentes formas de circos coexistem dependendo das condies financeiras para se estruturarem melhor ou pior. Nesta estrutura, a volta ao redor do circo pode ser feita pelo pano de roda ouFigura 7: Cpula de metal23

com chapas de alumnio, e a cobertura, feita de pano,

podia ser parcial, sobre o pblico, ou total. Surgem as arquibancadas para melhor acomodao do pblico. A apresentao noturna pode ser realizada graas iluminao com candeeiros, posteriormente por lampies. O ltimo tipo foi o circo americano que comea a ser usado no Brasil, difundindo-se a partir de 1940 (Idem). A estrutura fica muito mais gil e moderna e a lona fica estendida por estacas. Esta forma utilizada at os dias de hoje, nos circos tradicionais, nos quais os paus foram substitudos por peas de ferro e alumnio.

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Fonte: TORRES, 1998, p.248.

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Os circos no Brasil possuam numerosas apresentaes eqestres, divididos em nmeros de cavalgada no animal em plo, e nmeros de destreza e coragem, so os equilbrios sobre o cavalo em galope; apresentava, ainda, outros tipos de animais: os adestrados e os ferozes. Alm destes nmeros, os circos possuam diversas apresentaes de acrobatas, trapezistas, equilbrios nas cordas e arame, contorcionistas e malabaristas (DUARTE, 1995). Alm de uma teatralidade caracterizada pelas montagens cnicas dos melodramas, principalmente pelo gnero da pantomima (SILVA, 2003). Com o passar do tempo a produo do espetculo vai se tornando cada vez mais ousada, principalmente em suas montagens apresentaes de representaes. dos As

circenses

ginastas,

bailarinos, equilibristas, bailarinas, mmicos, malabaristas tornam-se secundarias, sendo o maior chamariz de pblico as montagens das "portentosas pantomimas histricas" (Idem, p.58).Teodoro Klein informa que as tramas das anunciadas grandes e espetaculosas aes mmicas se aproximavam cada vez mais, na dcada de 1870, dos folhetins melodramticos e do heri-bandido, tornando-se populares nos circos, entre outras Os bandidos de Serra Morena e Os brigantes da Calbria. Este ltimo constava de dois atos e trs quadros, com bailes, marchas, jogos de armas, e combates de infantaria e cavalaria, terminando com o terrvel salto a cavalo da ponte quebrada, como na descrio feita em um dos cartazes do circo Casali no Rio de Janeiro, que dizia que haveria grandes combates entre a tropa e salteadores, finalizando-se com o grande duelo de espada, entre a Condessa de Forjas e o chefe Fra Divolo do que resulta a morte deste chefe de bandidos, sendo este ltimo quadro iluminado luz de bengala. Variaes sobre o mesmo tema, ou seja, combates entre tropas e quadrilhas de bandidos, vo ser a tnica da maior parte das representaes de circo, neste momento (Idem, p.5859). Figura 8: Cena teatral da segunda parte do espetculo circense24

O intercambio, de saberes e tcnicas, consolidado pelos artistas das mais diferentes origens e experincias, com representaes teatrais, gestuais e musicais, ao trabalharem no espao que combinava picadeiro e palco (Idem, p.65). O circo torna-se uma arte24

Fonte: AVANZI; TAMAOKI, 2004, p.208.

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que copia, incorpora, adapta, cria, se apropria das experincias vividas, transformando-se em produtor e divulgador dos diversos processos culturais j presentes ou que emergiram nesta poca.

O espao circense consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais, com possibilidade para a criao e expresso das manifestaes culturais presentes naqueles setores. Atravs de seus artistas, em particular os que se tornaram palhaos instrumentistas/cantores/atores, foi-se ampliando o leque de apropriao e divulgao dos gneros teatrais, dos ritmos musicais e de danas das vrias regies urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender a construo do espetculo denominado circo-teatro (Idem, p.66-67).

Um outro fenmeno comea a aumentar as fugas de crianas e adolescente com o circo, muitos podiam ser os motivos, como indica Silva (2003):[...] o fascnio que o circo exercia nas pessoas, nos seus desejos de se tornarem artistas, de pertencerem a um grupo que percorria o mundo, alm das possveis imagens de que a vida nmade seria oposta ao trabalho fixo e s presses de uma vida cotidiana familiar (SILVA, 2003, p.75).

Devemos destacar aqui, que no fim do sculo XIX e inicio do sculo XX, um artista em especial muito importante para o desenvolvimento do circo nesta poca. Benjamim de Oliveira, um ex-escravo, relata que logo aps sua fuga com o circo, incorporado ao processo de formao e aprendizagem do cotidiano circense, apesar de sua origem. Seu primeiro paradeiro foi com o Circo Sotero, fugindo uma segunda vez, passa a viver com um grupo de ciganos. Trabalhou em diversos circos: circo de Jayme Pedro Adayme; circo de Manoel Barcelino (sendo mencionado em jornais da poca na regio de Campinas); Circo Fructuoso, estria como palhao, tendo muito sucesso; contratado depois pela companhia de Antonio Amaral. Passa por outras inmeras companhias e se torna um artista mltiplo como muitos daquela poca (Idem). No correr da dcada de 1880, diversas companhias adotam certo formato de apresentao, o espetculo era divido em duas partes: a primeira continuava a ser uma apresentao de variedades, mantendo a mesma estrutura que antes; a segunda parte era reservada para as cenas teatrais, em geral dramalhes e comedias leves, tendo enredos espalhafatosos e exagerados; adaptaes de romances melodramticos, tendo como eixo de relaes o gal, a donzela ingnua e o vilo (DUARTE, 1995).

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De acordo com a autora, muitos jornalistas da poca criticavam tais apresentaes, devido falta de profundidade e carter civilizador e moralizador, alm de serem sensacionalistas e exagerados. Mas a crtica no fazia jus a bilheteria, pois cada vez mais o pblico comparecia s apresentaes e se entretinha com os melodramas. Para ilustrar um pouco como eram estas performances, usamos um trecho do livro Noites Circenses:

Se os personagens so exagerados, o excesso no se resume a eles, mas estende-se a todos os elementos do melodrama. A ao saturada de emoes, com grandes golpes repentinos, reviravoltas inesperadas, raptos, duelos, combates, incndios, crimes, revelaes imprevisveis e descobertas impressionantes responsveis por uma constante reviravolta dos acontecimentos (Idem, p.210).

O elenco principal das montagens cnicas era composto pelos mesmos artistas da primeira parte do espetculo, no qual eram exibidos acrobacias de solo e area, animais, reprises e entradas de palhaos. Esta caracterstica fundamental, pois ser o marcador do conjunto que constituiu o circo-teatro e permaneceu com esta forma at por volta da dcada de 1970, e em alguns poucos grupos circenses at hoje.

1.2. O circo como conhecimento da cultura contempornea

1.2.1. O circo novo

Como pudemos observar at o momento a histria do circo est repleta de momentos que foram necessrios e essenciais para que esta arte ganhasse fora e pudesse sobreviver, muitas vezes quase se dizimando em determinadas pocas, mas atravs de fortes ligaes com a sociedade perdura at hoje. Desde seu princpio na era moderna, at os dias de hoje, o circo vem disputando o pblico com outras formas de entretenimento, como visto anteriormente, o teatro, os bals, os music-halls e mais recentemente com a televiso e o cinema. Os circos fixos que fizeram sucessos nas capitais, em fins do sculo XVIII, durante o sculo XIX e incio do sculo XX, fecham as portas, podendo dizer que houve um retorno ao circo ambulante. Para Auguet (1974), os sintomas do declnio do circo esto ligados a decadncias das festas populares, devido ao no investimento dos governos dos vilarejos em tais

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festividades; na carncia de diretores, incapazes de atrair o pblico pelas novidades e qualidade de seus espetculos (Idem, p.220). Outra causa foi a conscincia profissional dos artistas (Idem, p.221). Alm do cinema e a televiso que oferecem ao circo uma concorrncia sria. O que devemos destacar que diversos fatores sempre influenciaram a sobrevivncia do circo, desde decretos polticos e religiosos, at a proibio das apresentaes circenses em dias de apresentaes teatrais (SILVA, 2003), o circo em nenhuma poca se extingue, sempre de uma forma ou de outra ele se transforma e recria seu espetculo. De acordo com Silva (2003):Para parte da bibliografia sobre o circo e alguns relatos de circenses, em vrios momentos da histria da produo do espetculo, a introduo de uma nova tcnica na representao, na confeco de um aparelho, na conduo do espetculo, ou at mesmo na presena de um novo artista, ou de um novo ritmo musical torna-se responsvel pela alterao ou deformao do que deveria ser o tpico espetculo do circo e, conseqentemente, tambm por suas crises e decadncias (SILVA, 2003, p.06).

Depois da revoluo Russa, em 1919 o novo governo sovitico cria decretos de nacionalizao do circo e dos teatros, e este projeto se concretiza em 1927, com a abertura do Curso de Arte do Circo. Isto aconteceu por uma razo poltica, muitos autores e diretores teatrais russos usam o circo como forma de divulgao dos ideais revolucionrios, como o caso de Meyerhold e Maiakovski25. A Unio Sovitica cria uma nova tendncia que influenciar muitas produes atravs do mundo, ficando marcada na histria do circo como uma vitrine cultural (JACOB, 1992). A primeira informao de uma escola de circo que conhecemos fora do processo de formao/socializao/aprendizagem que sempre foi dado sob a lona. Criou-se uma forma de ensino/aprendizagem diferente do lugar onde estava sendo realizada h sculos, mas no necessariamente o modo, a tcnica do que era ensinado. Com certeza este processo de ensino a partir da escola de Moscou, propiciou um dispositivo pedaggico diferenciado para a linguagem circense, mas isto no significa que o que se ensinava nesta escola era diferente do ensinado pelos circenses que viviam debaixo da lona. Na Frana, a primeira escola de circo foi a Escola Nacional de Circo Annie Fratellini. De acordo com Jacob (1992), esta escola foi inaugurada 1974 e neste mesmo ano,

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Referncia retirada de conversas com a historiadora Ermnia Silva.

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Silvia Montfort e Alexis Grss abrem as portas de sua escola, cole du Cirque. O governo Francs cria, em 1984, na cidade de Chlons-em-Champagne, um estabelecimento de ensino profissional de arte circense que utiliza o modelo sovitico como linha norteadora, denominado de CNAC (Centre National des Arts du Cirque Centro Nacional das Artes Circenses). A multiplicao das escolas de circo um passo decisivo para a democratizao deste tipo de saber (JACOB, 1992), conhecimento que se encontrava enraizado nas tradies circenses, e agora pode ser aprendido e usufrudo por inmeras pessoas que buscam nesta arte as mais diferentes finalidades, na Frana, em 2000, foram enumerados mais de 500 estabelecimentos. De acordo com Mauclair (1995), a arte da rua volta a influenciar de maneira marcante o circo. Os futuros diretores do circo novo foram os mesmos artistas que tiveram seu primeiro contato direto com o pblico nas praas, aprimorando a tcnica clownesca suscitando numa nova gerao dentro do picadeiro (Idem, p.60). De acordo com Jacob (1992):

Os pioneiros do circo novo tiveram como tema de seus espetculos as constantes do universo como um todo ou do circo tradicional. Eles os teatralizaram, tentando abolir as rupturas ou quebras entre os diferentes nmeros, criaram um ritmo novo e, sobretudo, envolveram todos os artistas num senso de explorao (JACOB, 1992, p106).

Na Frana, a partir dos anos 70, foram formados diversos grupos circenses, Trapanelle Circus, o Cirque Amour, Cirque Univers, Cirque Nu, Circo Zngaro, Cirque Baroque, entre outros. Em vrios pases simultaneamente acontecem mesma situao, na Austrlia, com o Circus Oz (1978), e na Inglaterra, com os artistas de rua fazendo palhaadas, truques com fogo, andando em pernas de pau e com suas mgicas (VIVEIROS DE CASTRO, s/d). No Canad, os ginastas

comearam a dar aulas para alguns artistas performticos e a fazer programas especiais para a televiso e em ginsios em que os saltos acrobticos eram mais circenses. Em 1981, criouse a primeira escola de Circo para atender aFigura 9: Maquiagem no Cirque du Soleil26

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Fonte: www.southbeach-usa.com

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demanda dos artistas performticos. Em 1982, surge em Quebec o Club des Talons Hauts, grupo de artistas em pernas de pau, malabaristas e pirofgicos. Esse foi o grupo que em 1984 realiza o primeiro espetculo do Cirque du Soleil (Idem). Hoje o Cirque du Soleil tem como caracterstica contratar ex-atletas, principalmente os ligados s ginsticas, para fazer parte de seu elenco. Para Baroni (2006), o circo contemporneo utiliza-se das caractersticas dos esportes como a motricidade especifica, o rendimento dos movimentos tornando-os, seguindo uma linha tecnicista, perfeitos e de um nvel tcnico extraordinrio. Mas se distingue no seu objetivo final que ao invs de pontos, tempo e distncia, tem um espetculo artstico a ser representado e trocado para e com o pblico (Idem, p.91). De acordo com Jacob (1992), passado o tempo da emergncia de formas diferentes, inspiraes e estmulos pelo novo, insufladas pelas escolas, no fim dos anos 80, prefervel chamar estas novas tendncias de Circo Contemporneo.

Figura 10: Cirque Plume espetculo Plic Ploc27

Podemos destacar que muitos estudiosos no concordam com tal nomenclatura, por achar que o contemporneo aquilo que est presente hoje, o que faz parte do cotidiano das

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Fonte: www.cirqueplume.com

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pessoas, reconhecendo o circo como um espetculo contemporneo a cada poca vivida, um modo de produo artstica que influencia de forma marcante a sociedade em geral.A contemporaneidade do espetculo circense no se dava apenas com relao questo artstica, mas tambm com relao aos temas presentes no cotidiano social do pas e dos homens e mulheres que o vivenciavam. Os espaos e as linguagens se misturavam, mantendo ao mesmo tempo a herana europia e se modificando. O intercmbio com o espetculo teatral e os ritmos permitia que Joaquim Teles, em sua Barraca Das Trs Cidras do Amor, realizasse a variedade que os prprios circenses j apresentavam no picadeiro, assim como as salas dos teatros de music-halls e de vaudevilles que tambm misturavam a msica, a dana, o circo e sainetes cmicos (SILVA, 2003, p.51).

Esta afirmao que destacamos da autora, nos faz refletir a respeito desta contemporaneidade do circo, pois ela faz meno a um artista que viveu no sculo XIX, destacando que os artistas circenses e o circo sempre foram considerados modernos e buscavam o novo de uma multidisciplinaridade cultural e artstica em relao s tcnicas, aos materiais e aos aparelhos.A interao das tcnicas espetaculares entre o teatro e o circo a crescente busca pelo domnio e a utilizao da mmica pelo ator da poca; a pista circular que aproximava a ao do espectador; o palco unido ao crculo por rampas laterais, que se levantavam como uma plataforma e todo o maquinrio necessrio para isto; o pano de boca, que permanecia fechado durante as apresentaes das provas circenses e, quando iniciava a pantomima com um quadro no picadeiro, descobria uma cenografia, que respondia cnones ilusionistas do momento: fortalezas, bosques, lagos, marinas, etc., pintados sobre a tela e iluminados por lamparinas; os mesmos artistas saltando no solo ou em cavalos e representando as pantomimas intercalando arena e palco -, esboava tambm a formao de um novo campo de trabalho e um novo tipo de profissional. Na maioria dos cartazes pesquisados e em algumas crnicas destaca-se a informao de que todos os artistas da companhia tomavam parte nas encenaes das pantomimas (Idem, p.65-66).

Estamos levantando este debate para que fique claro que os circenses em todas as pocas estiveram estritamente ligados com o novo, com o que havia de mais tecnolgico no momento. Sua formao era multidisciplinar, pois aprendiam desde as tcnicas envolvidas nos nmeros propriamente ditos, como a tocar instrumentos musicais, a danar, a montar e desmontar tudo que dizia respeito ao circo de uma forma nova e criativa.O circo, desde seu surgimento [...], sempre buscou influncias em todas as linguagens e nos avanos tecnolgicos de sua poca, assim como nos assuntos importantes para a sociedade naquele momento histrico. Ou seja, o circo est como sempre esteve, ou hoje como sempre foi: um devorador de novidades, um espelho da sociedade na qual

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aquele circo est inserido, um observador atento histria que corre com ele. Sempre moderno, sempre contemporneo, sempre em transformao (MATHEUS, s/d).

O que o circo novo traz realmente de novo a abertura dos conhecimentos e dos saberes circenses, aqueles que foram construdos e desenvolvidos ao longo de sculos por aqueles que viviam o circo diariamente, para pessoas que no faziam parte desta forma de vida e o mais importante que estes saberes podem ser aprendidos fora do circo, dos quais destacamos as escolas especializadas, os centros culturais, as escolas formais e as atividades recreativas. A partir da apario e formalizao do circo novo, os artistas podem iniciar sua formao tanto nos moldes tradicionais, dentro da lona, como tambm neste novo modelo, em escolas especializadas. Devemos destacar que esta abertura tem transformado a forma de ensino/aprendizagem, pois inmeros profissionais de diversas reas vm tornando-se colaborador nesta transformao. Ns, pesquisadores e professores de educao fsica estamos preocupados neste momento com uma, das inmeras possibilidades que se abre com o circo novo: o processo de ensino e aprendizagem desta cultura singular no mbito escolar, mais diretamente, como este conhecimento vai ser abordado na disciplina de educao fsica, como trataremos a seguir.

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2. O CIRCO E A EDUCAOComo j aconteceu com outras atividades, tais como o esporte, a pintura, teatro e a dana, o circo deixou de ser uma atividade unicamente profissional (corpo espetculo um meio de trabalho). Atualmente observamos muitas pessoas estudando - sua histria, sua treatralidade, suas relaes sociais e culturais alm de praticar as atividades circenses como forma de lazer-recreao, com fins educativos e sociais (BORTOLETO; MACHADO, 2003). O circo considerado um fenmeno multidisciplinar, o qual muitos profissionais observam e analisam-no a partir de um particular ponto de vista. O artista busca uma performance com um maior impacto, uma maior espetacularidade. O biomecnico analisa os princpios fsicos que envolvem as habilidades circenses. O tcnico/treinador observa as melhores estratgias e diferentes formas para dominar as habilidades. Enquanto o professor observa quais e como estas manifestaes desenvolvem-se e dentre elas as que podem ser socializadas no mbito escolar, criando metodologias adequadas a cada um dos diferentes contextos escolares.

2.1. As escolas de circo no Brasil interessante notar que no Brasil, a partir das dcadas de 1940/50 (SILVA, 1996), a idia da formao do artista circense, como a aprendizagem dada no prprio circo, passa a ser substituda pela idia transmitida pela classe hegemnica, de que a nica forma de aprendizagem que leva ao desenvolvimento da pessoa a sistemtica e dentro da educao formal, isto acarretou modificaes para a famlia circense que deixa de transmitir seus conhecimentos e seu legado cultural s geraes seguintes. Observamos este fato no texto de Ermnia Silva28:Eu mesma e mais dezesseis primos fazemos parte da quarta gerao, no Brasil, de uma famlia que veio da Europa na segunda metade do sculo XIX. Inicialmente eram saltimbancos e depois artistas de circo, que transmitiam o conhecimento da arte circense aos descendentes. Diferentemente de nossos antepassados, no podemos dar continuidade aprendizagem dentro do circo, pois somos uma gerao que no mais recebe os ensinamentos circenses. No possumos qualquer relao profissional com esta arte, somos profissionais urbanos sedentrios (Idem, p. 13).

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Como j foi visto Ermnia Silva descendente de famlia circense e tornou-se pesquisadora e Professora Doutora em historia do circo seguindo estes preceitos.

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Os pais que viviam no circo, nmades, enviavam seus filhos, com idade escolar aos parentes com residncia fixa para iniciar os estudos e construir um futuro diferente, melhor que a vida que nossos pais haviam herdado (Ibidem). A memria do circo, que at a primeira metade do sculo XX era transmitida no interior do circo-familia (SILVA, 1996), corria o risco de perder-se, porque as pessoas que eram suas depositrias estavam, literalmente, morrendo e seus descendentes diretos no mais garantiam a continuidade de seus saberes (Ibidem), pelo menos nos moldes de uma transmisso grupal, comunitria e familiar.Quanto transmisso oral dos conhecimentos, desde a dcada de 1950 os artistas de circo comearam a se voltar para a educao formal de seus filhos, o que significa que muitos deles deixaram de ser portadores daqueles saberes. Aqueles que permaneceram e permanecem trabalhando nos circos de lona no tm mais o aprendizado coletivo como condio de formao. De artistas mltiplos, tornaram-se, dia a dia, especialistas no s dos nmeros apresentados, mas tambm com relao parte administrativa do circo (SILVA; CMARA, s/d).

De acordo com Viveiros de Castro (s/d), a primeira escola de Circo foi a Academia Piolin de Artes Circenses, instalandose em 1977, no estdio do Pacaembu, na cidade de So Paulo. Teve o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, atravs da Comisso de Circo, sob direo de Miroel da Silveira. interessante notar que foi uma iniciativa dos circenses aliada a uma parceria institucional governamental (Idem, s/d). Em 1982, surgiu a Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro, e seusFigura 11: Montagem da Lona do Circo Nerino29

argumentos se baseavam em pressupostos semelhantes aos dos paulistas, ou seja:[...] de que a tradio familiar no seria suficiente para garantir a perpetuao da arte circense ao longo do tempo; que um nmero maior de pessoas talentosas nascidas dentro ou fora das famlias circenses deveria ter condies de aprimoramento e, por fim, que como o processo ensino-aprendizagem era inerente vida do circo, uma escola seria a29

A imagem retrata a montagem da Lona do Circo Nerino, um dos conhecimentos que fazia parte dos saberes circenses transmitidos pela famlia circense. Fonte: AVANZI; TAMAOKI, 2004, p