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7/24/2019 Aula 7 Carlos Sandroni http://slidepdf.com/reader/full/aula-7-carlos-sandroni 1/22 ARTE I • DO LUNDU AO SAMBA 1. “Doces lundus, pra nhonhô sonhar...” a palavra “lundu” (grafada às vezes também “londu”, “lundum” etc.) designa na mús rasileira coisas diferentes, que são em geral consideradas como interligadas. Ela foi primeir ome de uma dança popular, depois o de um gênero de canção de salão e, finalmente, o de u po de canção folclórica. Tratarei aqui sobretudo do lundu de salão, tal como nos foi transmiti elas partituras que dele se publicaram em grande quantidade desde a década de 1830; os out spectos do lundu serão no entanto abordados no decorrer da exposição. O DFB  atribui origem remota à dança do lundu, afirmando que ela “já era tradicional e ortugal no século XVI”. 1  Mozart de Araújo mostrou que se trata de um engano, cuja origem afirmação do folclorista português Teófilo Braga, segundo a qual a legislação de Dom Manu ue reinou de 1495 a 1521, era “severíssima contra os bailes ou danças dos pretos como atuques, charambas, lundus”. 2  Se Braga estivesse certo, os primeiros registros do lundu estaria ntecipados em mais de 200 anos; tal não é o caso, porém. A pesquisa de Araújo mostrou qu rimeira proibição aos bailes dos negros ocorreu de fato em 1559, sob o reinado de Do ebastião, e que nela não havia nenhuma menção a lundus (nem a batuques ou charamb iás). É a partir de 1780 que de fato alusões à dança do lundu começam a aparecer com frequênc os documentos históricos. A mais antiga referência encontrada, segundo Oneyda Alvarenga ma carta datada de 10.6.1780, do conde de Pavolide, que havia sido governador ernambuco, onde defendia certos bailes dos escravos de acusações feitas ao Tribunal nquisição. 3  Lê-se nesta carta: “Os pretos ... dançam e fazem voltas como arlequins, e out ançam com diversos movimentos do corpo, que ainda que não sejam os mais inocentes s omo os fandangos de Castela, e fofas de Portugal, e os lundus de brancos e pardos daqu aís.” 4  O lundu também é mencionado por volta de 1780, em versos do poeta português Nico olentino; 5  e em dois entremeses populares portugueses de 1784 e 1787, que incluía ersonagens negros, há menções ao “baile” do lundu. 6  No Brasil, também em fins do sécu VIII, o poeta Tomás Antônio Gonzaga menciona a dança nas suas Cartas chilenas. 7 A origem africana do lundu-dança é ponto pacífico para os pesquisadores brasileiros: assi za o DMB, trata-se de uma “dança de origem afronegra, trazida pelos escravos bantos gião de Angola e do Congo”. 8  Mário de Andrade fala do lundu como “uma form aracterística do folclore negro, porventura a mais característica então [isto é, em fins do sécu VIII], e certamente a mais generalizada”. 9  E Araújo escreve que “o lundu ..., descenden reto do batuque africano, foi a válvula de equilíbrio emocional de que se utilizaram os escrav ara amenizar as agruras do exílio e os sofrimentos da escravidão”. 10

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ARTE I • DO LUNDU AO SAMBA

1. “Doces lundus, pra nhonhô sonhar...” a

palavra “lundu” (grafada às vezes também “londu”, “lundum” etc.) designa na mús

rasileira coisas diferentes, que são em geral consideradas como interligadas. Ela foi primeirome de uma dança popular, depois o de um gênero de canção de salão e, finalmente, o de upo de canção folclórica. Tratarei aqui sobretudo do lundu de salão, tal como nos foi transmitielas partituras que dele se publicaram em grande quantidade desde a década de 1830; os outspectos do lundu serão no entanto abordados no decorrer da exposição.

O DFB  atribui origem remota à dança do lundu, afirmando que ela “já era tradicional e

ortugal no século XVI”.1 Mozart de Araújo mostrou que se trata de um engano, cuja origemafirmação do folclorista português Teófilo Braga, segundo a qual a legislação de Dom Manu

ue reinou de 1495 a 1521, era “severíssima contra os bailes ou danças dos pretos como atuques, charambas, lundus”.2 Se Braga estivesse certo, os primeiros registros do lundu estariantecipados em mais de 200 anos; tal não é o caso, porém. A pesquisa de Araújo mostrou qurimeira proibição aos bailes dos negros ocorreu de fato em 1559, sob o reinado de Doebastião, e que nela não havia nenhuma menção a lundus (nem a batuques ou charambiás).

É a partir de 1780 que de fato alusões à dança do lundu começam a aparecer com frequêncos documentos históricos. A mais antiga referência encontrada, segundo Oneyda Alvarenga

ma carta datada de 10.6.1780, do conde de Pavolide, que havia sido governador ernambuco, onde defendia certos bailes dos escravos de acusações feitas ao Tribunal

nquisição.3 Lê-se nesta carta: “Os pretos ... dançam e fazem voltas como arlequins, e outançam com diversos movimentos do corpo, que ainda que não sejam os mais inocentes somo os fandangos de Castela, e fofas de Portuga l,  e os lundus de brancos e pardos daqu

aís.”4 O lundu também é mencionado por volta de 1780, em versos do poeta português Nico

olentino;5  e em dois entremeses populares portugueses de 1784 e 1787, que incluía

ersonagens negros, há menções ao “baile” do lundu.6  No Brasil, também em fins do sécu

VIII , o poeta Tomás Antônio Gonzaga menciona a dança nas suas Cartas chilenas.7

A origem africana do lundu-dança é ponto pacífico para os pesquisadores brasileiros: assiza o DMB, trata-se de uma “dança de origem afronegra, trazida pelos escravos bantos

gião de Angola e do Congo”.8  Mário de Andrade fala do lundu como “uma formaracterística do folclore negro, porventura a mais característica então [isto é, em fins do sécu

VIII], e certamente a mais generalizada”.9  E Araújo escreve que “o lundu ..., descendenreto do batuque africano, foi a válvula de equilíbrio emocional de que se utilizaram os escrav

ara amenizar as agruras do exílio e os sofrimentos da escravidão”.10

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 No entanto, as únicas fontes documentais citadas pelos mesmos pesquisadores onde, de fatoundu aparece como inequivocamente africano, são as portuguesas. No que tange ao Brasil, utores que examinei foram incapazes de fornecer um só documento em que o nome “lundeja usado para se referir a uma atividade exclusiva dos negros. O mesmo não se dá quanto

alavra “calundus”, que é referida neste sentido já no século XVII;11 mas a relação etimológ

ntre os dois termos é negada por Araújo.12

Mais ainda, já a primeira referência feita ao lundu, citada acima, falava de uma dança “

rancos e pardos”. Também nas mencionadas Cartas chilenas, quem dança o lundu é umulata. E nos versos de Tolentino, quem vai “tocar por pontos o doce lundum chorado” é naenos que um “loiro peralta adamado” (em bora, como o autor chama seus poemas de “sátira

ossamos pensar que se trata de uma ironia). Tam pouco as descrições clássicas da coreograo lundu nos autorizam a atribuí-la exclusivamente aos negros, pois nela é forte a influência

ndango ibérico, como notou Tinhorão.13

Esses dados indicam que, embora não se possa descartar a possibilidade de uma origefricana, o lundu foi no Brasil de fato uma dança “crioula”. O próprio Tinhorão (que a inclui e

ma parte intitulada “Músicas, danças e cantos de negros” de um livro que se intitula Os sons d

egros no Brasil ) admite que a dança do lundu será “mais cultivada por brancos e mestiços q

or negros”.14 Tal constatação, no entanto, não muda o fato de que o sentido atribuído desde fio século XVIII ao lundu-dança e transmitido no século XIX ao lundu-canção, chegando atéefinições dos pesquisadores modernos, é o de uma representação direta ou velada do univerfro-brasileiro.

A partir da década de 1830, portanto, quando tem início a impressão musical no Brasilalavra passa a servir também para designar um gênero de música totalmente independente

ualquer coreografia: gênero de canção de salão (mas que podia apresentar-se, raramente, sorma de peça instrumental, como mostram o “Grande lundu para piano-forte” incluído n

odinhas imperiais compiladas por Mário de Andrade, e o “Lundu con variaciones” para viol

presentado, segundo Vega, em Buenos Aires em 1835). 15  A passagem do lundu-dança undu-canção merece pois uma discussão mais detida.

Essa discussão não pode ser feita sem considerar a entrada em cena — entre as mençõeança do lundu na virada dos séculos XVIII e XIX e o aparecimento dos lundus-cançmpressos por volta de 1830 — do primeiro personagem histórico da música popular brasileira

adre mulato Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), natural do Rio de Janeiro, que foi paisboa em 1770 e lá viveu pelo resto dos seus dias. Caldas Barbosa é tido pelos estudiosos com

ntrodutor em Portugal não só do lundu, como também de um gênero de canção a estreitamente ligado, a modinha, de que falaremos em seguida: “No bojo de sua viola o nosaldas levou para a metrópole portuguesa a primeira manifestação da sensibilidade e

entimento musical do povo brasileiro — o lundu e a modinha”, escreve Araújo.16 E TinhorModinha e lundu eram criações populares da gente branca e mestiça dos principais centr

rbanos do Brasil ... divulgadas em Portugal por Domingos Caldas Barbosa.”17

O lundu e a modinha têm estado indissoluvelmente associados na historiografia da músi

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rasileira. O livro mais importante escrito sobre o assunto, o de Araújo, cham a-se justamenteodinha e o lundu no século XVIII , e o musicólogo Bruno Kiefer também escreveu um pequevro chamado A modinha e o lundu. Esse tratamento conjunto que os gêneros receberam p

arte dos estudiosos reflete o que Araúj o cham a de suas “conexões históricas”.18  Andrascreve em seu clássico estudo sobre a primeira: “O fato é que modinha e lundum andara

uitíssimo baralhados”.19 E Kiefer: “No século passado não era rara a confusão entre modin

lundu.”

20

 Para discutir o lundu será pois necessário abordar também a m odinha.É preciso ter em conta, em primeiro lugar, que “moda”, até o século XVIII, tanto eortugal como no Brasil, era uma maneira geral de designar as canções populares. É por isso qe pode ler numa narração de viagem, publicada no início do século XVIII, alusão à existênca Bahia, de um “famoso músico e tocador destas modas profanas”, sem que se pretenda que

xistisse numa data tão recuada o que se entende hoje por modinha.21 Além disso, como nuiz Heitor Corrêa de Azevedo no verbete que escreveu sobre o assunto para o  DFB, “está dole da língua e na tradição dos compositores este uso do diminutivo; o mesmo ocorre co

do e fadinho, polca e polquinha, tango e tanguinho, choro e chorinho etc.”22

É na mesma época em que aparecem as primeiras menções à dança do lundu, isto é, o iníos anos 1780, que também aparece em Lisboa a palavra “modinha” para designar um tipo anção em especial. Este tipo se apresenta em duas variedades: as modinhas portuguesas erasileiras. Estas últimas, se não foram introduzidas por Barbosa como parece provável e comeralmente se supõe, tiveram nele com certeza seu mais célebre representante.

Por outro lado, a existência dessa diferença — cujo conteúdo será discutido adiante — nãoada surpreendente se pensarmos que Caldas Barbosa, ao desembarcar em Lisboa, tinha 32 ane idade e como principal formação musical a frequentação das canções populares brasileidas quais parece legítimo supor que, após três séculos de colonização, já tivessem adquirierta personalidade própria). Estava longe de ser o que se costuma chamar um músico “eruditão frequentara escolas de música. Seu instrumento era, segundo Araújo (que não dá a fonte nformação), a viola-de-arame, tipo de guitarra popular, e mesmo “vulgar”, segundo

icionário musical   de Rafael Coelho Machado.23  Parece lógico supor que o repertório arbosa incluísse algumas das “modas profanas” mencionadas acima, e também que as da srópria lavra fossem moldadas no mesmo estilo geral. Aliás, vem em apoio a isto o fato de qnda em 1883, textos atribuídos a Caldas Barbosa apareciam nas colheitas folclóricas de Sílv

omero.24

Podemos pois supor, com Tinhorão,25  Araújo, Vasconcelos e outros, que Caldas Barbovou para Portugal as primeiras “manifestações da sensibilidade e do sentimento musical

ovo brasileiro” de que se guarda registro importante. Coisa muito diferente, no entanto, é penue essas manifestações já fossem chamadas desde o século XVIII no Brasil de “modinha”undu”, como também afirmam os autores mencionados. Não há, pelo que sei, um

ocumento que ateste a existência destes nomes, no sentido de gêneros de canção, no Brasil ano século XIX. O livro de Araújo, bem como o de Mário de Andrade, mostra à farta que, caez que se atribuiu o nome de modinha a canções brasileiras anteriores ao sucesso de Cald

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arbosa em Lisboa, foi ao arrepio da base documental.26 O próprio Caldas Barbosa, no primeolume da sua coletânea de poemas Viola de Lereno , chama suas composições de “Cantigapenas uma vez de “modinhas” e nunca de “lundus” (nome que só aparece no segundo volumublicado 26 anos depois de sua morte).

Tam bém José Ramos Tinhorão, tomando como fonte o romance  As mulheres de mantilha, oaquim Manuel de Macedo, tece numerosas considerações em torno da suposta popularidade

odinha e do lundu no Rio de Janeiro, entre 1760 e 1770.27 Acontece que esse romance é

870, e se propõe reconstituir fatos históricos ocorridos 100 anos antes. Tinhorão sabe disso, mcha que pode se fiar na exatidão do autor sem que um único documento da época venha em spoio. O romance é antes um testemunho muito rico da visão que da modinha e do lundu se tina época em que foi escrito.

Quanto ao lundu-canção, mesmo em Portugal as referências que remontam ao século XVão indecisas. Nos textos de Caldas Barbosa, assim como nos entremeses lisboetas citados pinhorão, fala-se sempre do lundu-dança; nos de Tolentino, também não se fala da canção, m

a música, a qual, pelo contexto, servia para acompanhar a dança.28  O Jornal de Modinh

ditado em Lisboa a partir de 1792 pelos franceses Milcent e Marchal, publica uma “Moda ndu” e um “Dueto novo por modo de londu”, mas não se pode dizer que a palavra “lond

gure aí como indicação de gênero.29 Mais importante, nestas duas peças não há quase nada qostre as características que viriam a definir o lundu-canção no século seguinte; e a única pe

ublicada por Milcent e Marchal que apresenta tais características não é chamada ali de “lundas de “Xula carioca”.

De fato, é só durante o século XIX que modinha e lundu passam a receber definiçõnequívocas da parte de seus autores, editores e consumidores, e a ser como tais reconhecív

or nós graças a determinado conj unto de características. Mas os pesquisadores modernnderam a aplicar retrospectivamente tais definições. Caso extremo desse anacronismo é o ee Teófilo Braga mencionado no início da presente seção, bem como outro, similar, tambéenunciado por Araújo em seu excelente livro, que consistiu em chamar o poeta Gregório

Matos (1623-1696) de “o Homero do lundu”, quando não se encontra qualquer menção ao term

m sua obra nem na de seus contemporâneos.30  Uma versão moderada do mesmo erro éometida pelo citado romance As mulheres de mantilha, em que inadvertidamente se base

inhorão, fazendo remontar o lundu ao terceiro quartel do século XVIII. b

A existência de modinha e lundu como gênero de canção no Brasil do século XVIII não esois, docum entada. Por outro lado, está fartamente docum entada a existência da modinha eisboa no final do século XVIII. Mais que isso, temos testemunhos da existência de dois tipos odinhas: as portuguesas e as brasileiras. A questão da diferença musical entre os dois tipos

e difícil solução, até a publicação, em 1968, de um estudo de Gérard Béhague sobre danuscritos até então desconhecidos, os Mss.1595 e 1596 da Biblioteca da Ajuda em Lisboa, q

atam do fim do século XVIII.31  O interessante nesses manuscritos é que eles mostram, ferença entre modinhas portuguesas e brasileiras, certos traços que serão encontrados no sécu

eguinte na diferença entre modinha e lundu; é como se esta última já estivesse, ali, começan

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se delinear.Esses manuscritos representam, ao lado da Viola de Lereno, já citada coletânea de poemas

aldas Barbosa, desprovidos da parte musical, as duas fontes principais sobre o assunto que nhegaram do século XVIII.

O primeiro volume da Viola de Lereno   saiu em vida do autor, pois data de 1798. Masegundo saiu somente em 1826, muito tempo depois de sua m orte. Ora, para o problema que ncupa — as definições de modinha e lundu — não se pode considerar os dois volumes como um

nidade, que eles não são. No primeiro volume, que é o único por cuja organização o autor poer totalmente responsabilizado, a palavra lundu não aparece, e a palavra modinha só aparema vez. Ali Caldas Barbosa chama suas composições de “cantigas”. É só no segundo volumue seis poemas são chamados de lundus.

O que distingue estes últimos do restante dos poemas é sobretudo a posição discursssumida pelo poeta. Aqui é preciso esclarecer que Caldas Barbosa possuía uma perso

erária, como era comum entre os chamados poetas árcades.32 O próprio título de seu livro usão a ela, pois trata-se do pastor Lereno Selinuntino, cujas musas eram as também pasto

ue atendiam pelos nomes latinos de Nerina, Márcia, Lília e Ulina.Pois bem, nos seis lundus do segundo volume, e só lá, Lereno desaparece sem deixar vestígem seu lugar surge outro personagem, que se designa a si mesmo como “o teu molequ

palavra que o DFB  define como “negrinho, o preto rapaz”);33  cujas musas são “iaiá”nhanhazinha” (definido pelo mesmo dicionário como “tratamento de ‘senhora’ ... dado pe

scravos às meninas da casa-grande”);34  e que usa em seu vocabulário termos comxarapim”, “arenga”, “moenga”, “angu” e “quingombô”, no que Mário de Andrade chamou

erdadeiro “compêndio de brasileirismos vocabulares”.35 Mais ainda, em alguns casos a relaç

ntre o sujeito lírico e sua musa assume a feição do que Tinhorão chamou de “posiçsicológica do moleque apaixonado [pela sua sinhá branca]”.36  Assim, encontramos mesmusões ao castigo físico, que põe em cena mais diretamente a escravidão e dá tom masoquisttuação amorosa:

Chegar aos pés de iaiáOuvir chamar preguiçosoLevar um bofetãozinho

É bem bom, é bem gostoso.37

O único poema, entre os seis em questão, que não apresenta tais características é o “Gen

e bem pegou nele”.38 Por outro lado, no volume há apenas um poema que não é dito lundu e

presenta, o “Doçura de amor”.c Assim, vê-se que quem organizou o segundo volume da Vi

e Lereno: 1) decidiu incluir nele um tipo de cantigas que o próprio Caldas Barbosa não inclua edição sob sua responsabilidade, cantigas em que o poeta se identifica não como o Pastereno mas como um afro-brasileiro; 2) adotou com rigor quase absoluto o critério de cham

ssas cantigas de lundus, critério que, como veremos, corresponde ao dos editores brasileiros ndus de 1830 em diante, mas que não pode sem anacronismo ser atribuído ao próprio Cald

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arbosa. Passemos agora aos manuscritos da Biblioteca da Aj uda, começando pelo que nos toais de perto, o Ms.1596, Modinhas do Brazil . Este documento anônimo do final do século XVI

uja autoria é atribuída a Caldas Barbosa por Béhague, apresenta, sob a designação modinhas”, várias peças com características que serão mais tarde imputadas aos lundus. Éresença dessas características que explica que Tinhorão não hesite em chamar aquelas peças

undus, mesmo com esse nome ausente do manuscrito original.39  O organizador da edição egundo volume da Viola de Lereno procede da mesma maneira, ao publicar sob a designação

undu a peça n06 do Ms.1596 (trata-se da única correspondência entre as duas fontes).As características encontradas nos lundus do segundo volume da Viola de Lereno   são p

ntecipadas por várias peças do Ms.1596, mas sob o nome de “modinhas do Brasil”. Aparecemais uma vez o tratamento de “iaiá”, “nhanhazinha”, o masculino “nhonhô”, e també

sinhá”, que não é apenas “uma maneira carinhosa de dirigir-se às moças”, como escrev

éhague no artigo citado, mas também “o tratamento dado pelos escravos à sua senhora”.40

rmo “moleque” não aparece, mas em uma das modinhas o autor se designa sem rodeios comnigrinho”; e outros brasileirismos aparecem — “mugangueirinha”, “fadar” etc.

Por outro lado, no Ms.1596 em nenhum momento o poeta se apresenta como Lereno, enico nome de sabor arcádico é a “Nerina” da Modinha 14. Assim, o contraste entre as duersonae  literárias que se verifica na Viola de Lereno   é atenuado nas Modinhas do Brazil . Tontraste, no entanto, reaparece com toda intensidade quando se comparam estas últimas comutro manuscrito da Biblioteca da Ajuda trazido à atenção por Béhague no mesmo artigo

Ms.1595, intitulado simplesmente Modinhas. O texto desta outra coleção, como afirma Béhagucorresponde exatamente ao tipo idílico da poesia popular portuguesa do século XVIII, domina

elos assuntos do am or e sofrimentos dele resultantes”.41  Ela emprega referências arcádic

Pastor, Anardas, Márcias etc.) em oito de suas 11 peças em português. E sua boa cepa europreafirmada (como se ainda fosse necessário) pela interpolação de uma peça em italiano, a á

Nel cor più non mi sento”, da ópera  L’ Amor contrastato , de Paisiello. No mundo do Ms.15orém, só há pastores, não há escravos nem iaiás: nenhum dos brasileirismos mencionadcima tem lugar ali.

 Note-se que existe um depoimento segundo o qual as alusões arcádicas seriam mais típicas modinhas portuguesas que das brasileiras: Link, que esteve em Portugal em 1797-99, nonta ao descrever um sarau: “A conversa logo se tornou geral e terminou em cantigas d

enhoras. Cantaram principalmente essas árias portuguesas lânguidas e queixosas que só contaales de amor e repetidamente se dirigem à ‘linda pastora’. Os ... cantos brasileiros n

ncantaram pela variedade maior etc.”42

É assim que as coisas aparecem nos depoimentos do final do século XVIII: faz-se a diferenntre modinhas portuguesas e brasileiras, seja para preferir estas últimas porque mais variadoviais, sensuais etc. (como Lord Beckford), seja para preteri-las porque grosseiras, vulgares e

omo Antonio Ribeiro dos Santos).43 Mas nunca se menciona uma diferença entre modinhaundu, diferença à qual, no entanto, se poderá assimilar a primeira. A última porém só

stabelece realmente no decorrer do século XIX, não mais como diferença entre Brasilortugal, mas como separação interna à música brasileira.

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Se para uma caracterização mais completa da Viola de Lereno   nos falta a escrituontemporânea da música que lhe correspondia, no caso do manuscrito Modinhas do Brazi

cuna é outra: tem os acesso à m úsica, mas não a comentários diretos dos contemporâneos soba. Para caracterizá-la, pois, passarei diretamente ao comentário musicológico produzido já

éculo XX. Eis o que diz Béhague: “O que há de especial nesta coleção [por oposição

Ms.1595, de modinhas portuguesas] ... vem, de fato, da sistematização das síncopes.”44  Ensistência das síncopes não é uma característica puramente formal, mas carrega

emanticamente: ela é associada com “Brasil”, com “negro” e com “popular”, três coisas qarecem por sua vez estar associadas entre si: “Melodias cantadas com síncopes sistemáticasodem ser associadas com o estilo ‘vulgar’ da modinha brasileira”; “a figura sincopaemicolcheia-colcheia-semicolcheia) é de fato identificada com as tradições dos negros ovo Mundo”; as síncopes seriam “traços rítmicos característicos da música popular e folclórrasileira”. Béhague fala também das “qualidades ‘nacionais’ das modinhas da coleção iblioteca da Ajuda”, que apresentariam “um caráter genuinamente brasileiro, no texto e

úsica”.45

éhague refere-se expressamente às fórmulas de acompanhamento utilizadas ao lon

as Modinhas nos8, 17, 18:

na Modinha no16, compasso 41:

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éhague faz uma distinção entre as síncopes encontradas nos acompanhamentos

ertas características das síncopes melódica:

A melodia da Modinha no5 sistematiza, de maneira típica, um processo rítmi

muito mais próximo dos hábitos musicais populares brasileiros do que as síncop

mencionadas acima. Trata-se de uma simples suspensão ( usando ligaduras en

compassos) empregada nas cadências, criando frases com terminações femininas.46

mesmo tipo de síncope seria valorizado por Andrade em sua análise do lundu “Lá argo da Sé”, que data de 1834:

... [algo] que só os compositores nacionais vivos, interessados no trabalho da maté

musical brasileira, haviam de especificar: a antecipação sincopada, passando du

compasso para outro, em movimentos cadenciais ... Caso raríssimo de que só conhe

[outro exemplo] na segunda metade do século ... Cândido Inácio da Silva

sistematiza firmemente a síncopa de colcheia no primeiro tempo do dois-po

quatro, como [os compositores de lundus da segunda metade do século XIX], e, m

que estes, com ouvido fino, as antecipações rítmicas do nosso canto popular;

extraordinário.47

anto Béhague quanto Andrade estabelecem implicitamente uma hierarquia entre do

pos de síncope: a síncope dentro do compasso — e mesmo dentro de um só tempo —

que passa de um compasso para o outro. A segunda é considerada mais próxima

rática musical popular no Brasil.

s os exemplos musicais correspondentes:

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os próximos parágrafos, tentarei estabelecer uma tipologia da contrametricidade

Ms.1596, com o intuito de ir mais longe na qualificação que vimos Béhague e Andrad

omeçarem a fazer das síncopes que encontraram.48 Com efeito, este último fala, com

mos, da “síncope característica”, enquanto o primeiro afirma que certas síncopes est

mais próximas dos hábitos musicais populares”.49  Estas afirmações criam um

ferenciação entre tipos de síncopes que contraria a vagueza com que muitas vezes

la das síncopes afro-americanas. Mas para mostrar, como pretendo, a existência de um

mudança de paradigma rítmico na música brasileira, é conveniente ir um pouco m

onge nesta diferenciação e definir as características da contrametricidade melódica q

orrespondem às fórmulas de acompanhamento do primeiro paradigma.

primeiro tipo de contrametricidade que encontramos em abundância no Ms.1596 é

ue chamaremos com Andrade de “síncope característica”. Ela é encontrada pxemplo na Modinha no1, compasso 2 entre vários outros:

ma das variações possíveis da síncope característica consiste em omitir sua prime

emicolcheia, como se faz muitas vezes na Modinha no17. Outra variação consiste e

ubstituir as duas colcheias do segundo tempo por uma nova síncope igual à primei

omo nas Modinhas nos4, 6, 16 e 17. Em alguns casos, estas duas síncopes iguais sã

nidas por uma ligadura, gerando um primeiro caso de síncope entre tempos, e n

mais no interior de um só tempo.

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utro caso é o das frases anacrústicas começando por síncopes de colcheia, como

Modinha no6, compasso 5 (e de resto em todo o estribilho desta Modinha):

m terceiro tipo de contrametricidade aparece, ao contrário do precedente, no fina

ão no início das frases musicais. Trata-se do já mencionado, que se verifica e

erminações femininas, e que foi considerado por Béhague “mais próximo dos hábit

opulares”.

ara concluir esta sumária apresentação dos diferentes tipos de contrametricidade q

ntram em jogo no Ms.1596, darei dois exemplos — bem menos frequentes, é verdade

m que os tipos examinados se somam, dando origem a frases fortemenontramétricas. Trata-se da Modinha no6, compassos 3 a 5, e da Modinha no1

ompassos 18 e 19:

exame da música contida no Ms.1596 permitiu estabelecer a ocorrência de três tip

e figuras rítmicas contramétricas: frases baseadas na “síncope característica” e su

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ariações; anacruses contramétricas; e terminações femininas contramétricas. Com

aço geral, constata-se uma preferência pelas síncopes internas aos tempos, e sobretu

o primeiro tempo do 2/4. A síncope entre tempos e entre compassos também apare

mas em proporção menor. Estas características serão à frente comparadas com as d

pos de contrametricidade que encontraremos em outros contextos.

A associação do Ms.1596 com o universo afro-brasileiro é consideravelmente reforçaelas indicações verbais que precedem duas das partituras: “Este acompanhamento devecar pela Bahia”, lê-se na de número 8, e

“Rasgado”, na de número 17 (também se referindo ao acompanhamento).Béhague interpreta a primeira frase como uma atribuição de origem (“pela Bahia” =

ahia), enquanto Tinhorão a interpreta como uma indicação estilística (“pela Bahia” = à mane

aiana).50  Qualquer das duas interpretações associaria este acompanhamento aos negrasileiros, pois, segundo Béhague, “as tradições negras do Novo Mundo são melh

presentadas no Brasil pelo estado da Bahia”.51Quanto ao “rasgado”, Béhague o vê como “um coloquialismo muito específico, uma gí

gnificando ‘com entusiasmo ou impetuosidade’”.52 Ou seja, como uma indicação de caráxpressivo. Como tal, a palavra aparece também em fontes do século passado, como a coméd

juiz de paz na roça, de Martins Pena.53 O interessante nessa palavra, no entanto, é que elriginalmente indicação, não de expressão, mas de técnica instrumental empregada pela mreita ao tocar a viola: “rasgado” como a forma portuguesa do espanhol rasgueado, quandoão direita toca todas as cordas ao mesmo tempo com todos os dedos, e não uma com ca

edo como no punteado (em português, “ponteado”).54 Ainda mais: o Dicionário de música 

orba e Graça55 associa a técnica do “rasgado” precisamente à viola-de-arame, dizendo qste instrumento — atribuído como vimos por Araújo a Caldas Barbosa — seria especialmendequado àquela técnica.

A transição entre o sentido técnico e o expressivo da palavra “rasgado” pode ser notada nurtigo publicado por volta de 1880, onde se descreve uma apresentação de um tocador de viom que este, depois de demonstrar as possibilidades do instrumento na música de concerto (e

ue se toca ponteado), passa ao repertório popular (o articulista menciona o fado, o cateretê eamba): “e espalmando a mão direita sobre o bojo do instrumento, enquanto que a esquerercorria-lhe as cordas, arrebatou todos os circunstantes com um desses rasgados que têm sid

erdição de muita gente séria”.56 A descrição do “rasgado” do ponto de vista técnico é perfeo mesmo tempo, o que é “a perdição de muita gente séria” não é a técnica em si, mas

xpressão afetiva que dela se desprende. A origem dessa expressão afetiva é a carga semântionferida ao “rasgado” pelo repertório que (no Brasil) lhe é peculiar. A palavra “rasgado”

rtigo citado designa ambas as coisas, e talvez aconteça o mesmo no Ms.1596.d  É por cau

essa associação com um repertório já ele mesmo associado aos negros (fado, cateretê

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amba) que a presença da palavra no início da Modinha nº 17 pode ser significativa.57

Podemos pois concluir a caracterização geral do contraste entre os dois manuscritos por uequeno quadro, que nos leva da oposição entre “modinhas portuguesas” e “brasileiras” à qerá discutida com mais vagar adiante, entre modinha e lundu:

 Modinhas: Portuguesas Bra Persona

poética:Pastor Nig

 Musa: Anarda etc. Sin Influência

musical:

Itália (áriade Paisiello)

“PeBahia”

 Rítmica: regular sin E de 1830

em diante:modinhas lun

* * *

em 1834 que a impressão musical começa a existir no Brasil, com o estabelecimento ancês Pierre Laforge no Rio de Janeiro. Mas já em 1830 se imprimia em Viena uma coleçe modinhas do carioca J. Francisco Leal que continha dois lundus, “Menina vossé” e “E

oite”.58 Quanto à letra, a primeira delas poderia sem problem as ser a tribuída a Caldas Barbos

Menina, você que tem

Que comigo se enfadou

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Será porque seu Negrinho

A seus pés não se curvou? etc.59

Quanto à segunda, apresenta um problem a importante na caracterização dos textos de lundua inclusão na categoria não se deve a qualquer alusão ao mundo afro-brasileiro, que ela nontém (ou só contém de maneira indireta, como veremos), mas a uma outra característicaue ela é “desprovida da tristeza sentimental do assunto das modinhas”, como escreve Andrad

u, para dizê-lo de modo positivo, sua abordagem do amor é risonha e mais propriamente sexue romântica. Em vez de sentimentalismo, o humor de um duplo sentido:

Esta noite, oh céus, que dita,Com meu benzinho sonhei ...Eu passava pela rua,Ela chamou-me, eu entrei ...Deu-m e um certo guisadinhoQue comi muito e gostei

Do ardor das pimentinhas Nunca mais me esquecerei.

Este lundu é o mais antigo exemplo que conheço de uma imagem muitíssimo recorrente úsica popular brasileira (e provavelmente não só aí), que consiste em usar a comida cometáfora do sexo. Uma lista sumária de lundus e sambas onde essa imagem aparece inclu

Muqueca sinhá” (1889), “O mugunzá” (1892), “Canjiquinha quente” (Sinhô, 1930), “Vatap

Dorival Cay mmi, 1942), e “Os quindins de iaiá” (Ary Barroso, 1941).e Sem intenção de min

arte, mas não por acaso, todos os exem plos citados nesta pequena lista remetem à Bahia, ouretamente pelo quitute escolhido, ou bem no interior da letra. Isso parece indicar que

exualização da comida seria em si uma alusão ao afro-brasileiro, pois a mulata, sendo o alredileto dos desejos masculinos nos lundus e em muitos sam bas, era também quem ncarregava, na cozinha, dos repastos de seu senhor.

Mas, correta ou não a interpretação, resta o fato de que “Esta noite” não é um caso isoladue inúmeros lundus, do ponto de vista da letra, foram considerados lundus somente por somicidade e não por suas alusões afro-brasileiras, diretas ou veladas. Vejamos por quê.

Mário de Andrade, ao analisar o lundu “Lá no Largo da Sé”, que é uma sátira ao progresomposta em 1834 e sem sombra de afro-brasileirismo, escreve:

... este [lundu] tem ... um antilunduísmo. O seu assunto discrepa do conceito ideológico textem que o lundu [de salão] iria se afirmar. ... O verdadeiro e legítimo “estilo” textual dlundus [implica num] texto sexual mas cômico, ou mais geralmente gracioso, risonhdesprovido da tristeza sentimental das m odinhas. O lundu de Cândido Inácio da Silva nada tede amoroso, e muito menos se refere a negras e mulatas sexuais, como é do melhor e mcaracterístico “estilo” do lundu tradicional burguês. Como caráter do seu texto, “Lá no Lar

da Sé” só é lundu por encarar risonhamente ... o assunto.60

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Andrade estabelece aqui as características do texto do que chama de “lundu tradicionurguês”. Primeira: com icidade; segunda: assunto sexual; terceira: referência a mulatasegras. O lundu típico (“verdadeiro e legítimo”, “melhor e mais característico”) reúne as tondições. O lundu “Esta noite”, de que falamos acima, só reúne as duas primeiras; “Lá argo da Sé”, por seu lado, só preenche a primeira. Mas o lundu de Cândido Inácio da Silmbém não é uma exceção: ele antecipa, neste ponto, boa parte dos lundus impressos

egunda metade do século XIX, que tratarão dos assuntos mais diversos sob o signo comum

omicidade.É justamente essa importância assumida pela comicidade na caracterização do lundu qndrade tentará explicar pela argumentação que começa no parágrafo seguinte ao trecho qtamos, e que vai até o final do artigo, ocupando o último terço deste.

 Nessa argumentação, o primeiro ponto que o autor procura estabelecer é a resistência quociedade brasileira teria oferecido, desde sua form ação colonial até a metade do século XIX,anifestações artísticas do negro. Andrade reconhece que tais manifestações existiram, foraleradas e às vezes até incentivadas. Mas insiste em que elas não se fundiram com anifestações dos brancos, permanecendo ambas como “compartimentos estanque

mpenetráveis”: “de maneira que mesmo as palavras afronegras, designadoras de coioreográficas ou musicais, samba, urucungo, marimba etc., designavam exclusivamente coi

e negros, e não dos brasileiros em geral” (grifo do original).61

Ora, para Andrade, teria sido justamente o lundu a primeira dessas “coisas de negros”encer a impermeabilidade da sociedade branca:

O lundu ... é a primeira forma musical afronegra que se dissemina por todas as class brasileiras e se torna música “nacional”. É a porta aberta da sincopação característica ... É

 porta enfrestada do texto cantando sexualmente os amores desonestos [entre senhoresescravos], as mésalliances, e se especializa na louvação sobretudo da mulata.62

Mas a abertura dessa “porta” entre dois compartimentos estanques teria sido facilitada pm recurso tático:

A comicidade, a caçoada, o sorriso, era o disfarce psicossocial que permitia a difusão [lundu] nas classes dominantes. ... A mulata principiava, e a negra e o negro, senliterariamente consentidos nas classes da alta e da pequena burguesia ... Mas ... o lunretirava deles qualquer dor e qualquer drama ... É um fenômeno idêntico ao aparecimenitálico da opera buffa, em que o personagem do povo foi consentido dentro da aristocracia

ópera ..., mas consentido pela comicidade.63

Assim, a comicidade é explicada, em última análise, pela referência ao negro encontrada rigem do lundu. Este seria, em essência, uma canção que põe em cena o universo negro; eeguida, por uma espécie de distorção devida à pressão das condições sociais, seria uma cançômica — mostrando não o duro cotidiano do trabalho escravo, mas o negro que dança e q

obretudo faz rir seus senhores brancos; finalmente, o lundu se estabelece como canção cômi

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ut court , dispensando qualquer referência à sua presumida fonte última, e por assim dizutonomizando-se dela, como no caso de “Lá no Largo da Sé”. Andrade vê na comicidade undu o que a psicanálise chamaria de um “sintoma”, manifestação que expressa de mane

storcida um conflito recalcado, no caso o conflito social latente entre senhores e escravos.Mas a autonomia conquistada pelos lundus apenas cômicos, como o de Cândido Inácio

ilva, seria relativa, pois se a referência ao negro está ausente do texto literário, Mário ndrade a vê no texto musical. Exatamente como no estudo de Béhague sobre o Ms.1596,

ferência é atribuída às síncopes. E exatamente como naquele estudo, àquelas síncopes ribui um caráter não somente negro, mas ao mesmo tempo popular e brasileiro:

Aqui a síncopa bem brasileira vem copiosamente sistem atizada. ... Está claro que não afirmque estes sejam processos exclusivam ente brasileiros de sincopação, mas ninguém discuticreio, que são ritmos caracteristicamente nacionais, e mesmo particularmente nossos, denda sincopação negrizante de toda a América atlântica, dos Estados Unidos à ArgentiAssim, não há dúvida possível que certas constâncias bem caracteristicamente brasileiras

sincopação popular já existiam nos tempos de Cândido Inácio da Silva.64

A última frase merece nossa atenção. Da existência das síncopes em questão na partitura ndu de Silva, Andrade deduz a existência das mesmas na música praticada pelo povo. Es

edução se nota também no trecho em que o escritor afirma que no lundu em questão cer

ncopes brasileiras seriam “dicionarizadas” pela primeira vez.65  Ora, uma palavra sócionarizada quando seu uso quotidiano se generalizou a tal ponto que ela passa a conhecida no mundo da gramática oficial. Mas supõe-se que ela já existia antes, no u

orrente do povo ou de um dado segmento social; o que lhe faltava era estabilidad

conhecimento ou importância suficiente para romper a barreira da cultura acadêmica.A comparação assim estabelecida entre a música e o léxico prossegue quando Mário

ndrade emprega a expressão “brasileirismos” para se referir às síncopes de “Lá no Largo

é”.66  Um “brasileirismo”, de acordo com o Aurélio, é “palavra ou locução própria

rasileiro, modismo próprio da linguagem dos brasileiros”.67 Assim, as síncopes empregadas pândido Inácio da Silva refletiriam, numa partitura, hábitos correntes na música popurasileira.

É esse emprego de procedimentos rítmicos supostamente presentes na música popular q

va Mário de Andrade a atribuir ao compositor a condição de mulato. O número e a variedaas síncopes na peça em questão seria tão maior que no restante da documentação provenieno século XIX, conhecida pelo musicólogo, que só seria explicável pela “espontaneidade

angue e do convívio e não apenas [pelo] ouvido ... do observador”.68 O “sangue e o convívito é, a condição mestiça do compositor, são inferidos pelo musicólogo da suas síncoplativamente mais abundantes: dificilmente se poderia encontrar ilustração melhor do vínculo

entido que une no Brasil certas figuras rítmicas à cultura negra.Mário de Andrade deduz pois a condição mestiça de Cândido Inácio da Silva diante

spanto que lhe causa a variedade e sutileza das síncopes empregadas por aquele composi

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uma data tão recuada como 1834; o que não diria diante das peças do Ms.1596, que antecipailva em 50 anos e cuja “sincopação” é ainda mais variada e sutil? Leve-se em conta ainda qaquele caso se trata de toda uma coleção com as mesmas características, ao passo que no cae Silva tratava-se de uma peça apenas, o lundu “Lá no Largo da Sé”.

Se, como supõe Béhague e como tudo indica, a música do Ms.1596 é de autoria de Caldarbosa, que era mulato, a suposição de Andrade com relação à “espontaneidade do sangustaria neste caso justificada. Mas prefiro tomar essa alusão ao sangue como uma figura

nguagem , pondo-a na conta do poeta que Mário de Andrade tam bém foi. A etnomusicologiaos ensinou suficientemente que, em matéria de estilo musical, é o convívio que conta, e nãoangue; ou melhor, o sangue só conta como índice do convívio (o que nos permite entendeentido da expressão de Andrade). Entre os compositores profissionais de lundus da segunetade do século XIX, muito menos “sincopantes” que Cândido Inácio da Silva, é certo qguns dos mais célebres eram portugueses, como Francisco de Sá Noronha ou Rafael Coel

Machado; mas é provável que alguns fossem tão mulatos quanto Silva possa ter sido, e p

enos dois o eram com certeza — Arvellos Filho e o Dr. Nunes Garcia.69

Quanto a Caldas Barbosa, seu “convívio”, isto é, sua situação social, era certamente beferente da de seus sucessores do tempo do Império. Não era compositor profissional, movador palaciano e padre por conveniência, sustentado pelos aristocratas para quem chegouscrever poemas de baj ulação. Se cantava, como supomos, as modinhas do Ms.1596, certameão foi ele quem as transformou em partituras — pois, ao que indica sua biografia, não sabazê-lo —, mas um escriba fiel e de fino ouvido.

Já os lundus que nos chegaram do Império e dos primeiros anos da República são múserfeitamente burguesa, isto é, com posta por profissionais (cuja formação técnica se fez eoldes europeus, e cuja função se distingue da dos letristas), sustentada financeiramente atrav

a venda de partituras, interpretada nas casas das famílias que possuíam piano e nos teatros ariedade a ingresso pago. Esses compositores empregavam síncopes à maneira dos atorancos que se pintavam de preto: o dialeto musical do lundu burguês é “marcado”, como uotaque caipira. Arvellos, Sá Noronha, Coelho Machado etc., todos empregavam nas suomposições para orquestra ou corais, nas suas polcas ou modinhas, o estilo “clássico-românticnternacionalmente dominante, no qual as síncopes, se entram, é com toda discrição. Na hora ompor o lundu, ao contrário, elas entravam espalhafatosamente, como ingrediente aracterização, como imitação do que seria, para os ouvidos brancos de então, a “negritud

usical (não é à toa que a figura semicolcheia-colcheia-semicolcheia é chamada por Mário ndrade e outros de “síncope característica”).f 

Caso se examine em detalhe o Ms.1596 se verá, pelo contrário, que as síncopes não estãoara caracterizar nada. Tanto nos textos que, pelos critérios do século XIX, seriam considerad

de modinha” (como os das Modinhas nos1, 2, 4 e outras) quanto “de lundu” (como os d

Modinhas nos5,7 e 16), a música é de um tipo que pelos mesmos critérios seria considerada“de lundu”. Romântico ou cômico, com ou sem africanismos, o compositor sincopa. I

arece indicar que a “sincopação”, para o autor das peças do Ms.1596, não era elemento

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aracterização, mas estilo geral. Ele não teria sincopado para imitar o estilo dos negros fazereúsica, mas porque fosse seu próprio estilo.

* * *

coleção de lundus impressos da BNRJ é provavelmente a mais completa, e consta de 40 lund

ditados no Rio de Janeiro entre 1837 e 1900.g As características gerais dos lundus da coleção s

s mesmas já detectadas até aqui: síncopes, comicidade, alusões ao mundo afro-brasileiro. Estimas, em alguns casos, são indiretas, como neste lundu atípico, com sua letra de modinnclusive na referência à m ais afortunada musa da lírica brasileira), que é o “Marília, meu doem ” (anônimo, 1855-62), que ao retomar a figura tão frequentada dos “olhos que m atam” gloa última estrofe:

Porém se teus olhos matamSabem dar vida tambémPor um certo requebrado

Que tudo pode, meu bem

O lugar-comum literário faz os “olhos” substituírem a região do corpo diretamente ligada exo, no que a psicanálise chama de “deslocamento”; mas a estrofe citada põe a nu, por asszer, este mecanismo, quando fala do “requebrado”, palavra que designa o movimento d

adeiras típico das coreografias afro-brasileiras.Mas há também muitos lundus do caso clássico descrito por Mário de Andrade: humorístic

alusivos ao intercurso sexual entre senhores e escravos. Nos lundus da coleção BNRJ qxaminamos, o tipo mais frequente nesta categoria é o que descreve a tentativa de sedução egra ou mulata pelo “sinhozinho”. O “Gentis, você já vio já?” (“composto pelo curioso B.Bosto em música pelo professor Dorison”, 1850) diz, imitando a maneira de falar dos escravos

Gentis, gentis [sic, “gentes”], você já vio [sic, “viu”] jáIôiô mais sidotô [sic, “sedutor]?

 Na mesma linha, o “Lundu das beatas” (Januário da Silva Ramos, 1862-63)anta:

Yôyôsinho, vá-se emboraqu’eu não gosto de brincar 

 Não venha com seus carinhosMinha reza atrapalhar.

Por fim, “Sinhô Juca” (M.J. Coelho, anterior a 1869) diz:

Sinhô Juca é forte teima

 Não bula comigo não... Sinhô Juca arrede lá

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Senão leva bofetão... Ah meu Deus, Sinhô JuquinhaVocê é os meus pecadosVá-se embora, já lhe disse

 Não me queira dar cuidados... As artes de Sinhô MoçoSão mesmo artes do demônio

 Não me posso livrar delas Nem rezando a Santo Antônio etc.

“Ioiô”, “sinhô” e “nhonhô” são as formas masculinas do tratamento usado pelos escravara se dirigirem aos senhores.

Estes lundus têm um antepassado na “Xula carioca” publicada no Jornal de Modinhas Milcent e Marchal, que canta, já em fins do século XVIII:

Onde vais, linda negrinha?

... Não fujas com tanta pressa Não te faças tão ingrataSou sinhorzinho do Reino

 Não sou nenhum patarata.70

E têm sucessores pelo século XX adentro, demonstrando a constância do tema na sociedarasileira — como a canção carnavalesca que empolgou o carnaval de 1905 no Rio de JaneiroVem cá, mulata”:

 — Vem cá, mulata! — Não vou lá não! — Sou Democrata

De coração.h

Como o leitor terá notado, estes lundus apresentam uma mudança de posição discursiva colação às peças equivalentes de Caldas Barbosa: lá, era o “negrinho” quem falava, apaixona

or sua Sinhá; aqui, é da “negrinha” perseguida por seu nhonhô que se trata. Este último cas

ue Andrade define como sendo o clássico; do outro, com efeito, não encontrei um únxem plo na coleção da BNRJ.

como se comportam os lundus aqui examinados no que se refere à metricidade?

rimeira coisa a notar é que eles se diferenciam do Ms.1596 por sua preferência aind

mais acentuada pelas síncopes internas aos tempos. São raros, nos lundus da BNRJ,

asos de síncope passando de um compasso para o outro, ou mesmo do primeiro

egundo tempo do 2/4, casos que eram frequentes, ainda que minoritários, no Ms.159

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Mas o que interessa ainda mais é o caráter das fórmulas de acompanhamento

resentes. Trata-se das três variantes do paradigma do tresillo, que estudamos n

remissas Musicais. (Veremos adiante que este traço fundamental diferencia, do ponto

sta rítmico, o universo do lundu e equivalentes do universo do samba carioca poster

1930.)

al traço não é entretanto igualmente forte no conjunto dos lundus em questão. N

erdade, no decorrer do século XIX o que se vê é a progressiva afirmação das fórmulas companhamento mencionadas, tanto nos lundus quanto no resto da música impre

onsiderada como “tipicamente brasileira” (polcas brasileiras, tangos brasileiros etc

os lundus mais antigos, estas fórmulas se limitam a alguns compassos, e coabitam co

órmulas de acompanhamento totalmente cométricas (arpejos em semicolcheias, bai

e Alberti etc.). Nos lundus do final do século XIX, o paradigma do tresillo, especialmen

a sua versão “síncope característica”, se impõe em toda parte.

e qualquer forma, todos os lundus que examinei apresentam ou fórmulas

companhamento contramétricas, ou melodias sincopadas, ou ambas as coisas.

ncope melódica parece ser o traço mais generalizado. Ela pode ocorrer na presença

m acompanhamento totalmente cométrico, como acontece em “Marília, meu doc

em” (anônimo, 1855-62), compassos 9, 11, 19, entre outros. Ou em “Querem ver est

menina”, do Padre Telles (circa 1850), que apresenta síncopes entre compass

raticamente de dois em dois compassos. O caso contrário — acompanhamen

ontramétrico e melodia cométrica — não foi encontrado por mim.

ejamos agora o que se passa com a música de três lundus cujas letras foram citadcima.

Gentis, você já vio já?, compassos 16-8

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Gentis, você já vio já?” é um lundu com introdução e primeira parte em 2/4, e segun

arte em 3/4. A primeira parte é quase totalmente cométrica. A “síncope característic

parece uma vez na introdução (compasso 8) e uma vez no acompanhamen

com passos 16 e 17), enquanto a m elodia apresenta uma frase de três síncopes.

Lundu das beatas, compassos 17-20

o “Lundu das beatas” é quase inteiramente construído sobre a “síncope característic

m sua melodia como em seu acompanhamento. A introdução, de 8 compassos, tem

ompassos sincopados e 5 regulares. A partir da entrada do canto (compasso 9),

companhamento é sincopado, e assim até o compasso 29, onde reaparece um arpe

ométrico que dura até o final. Quanto à melodia, é composta de 12 frases, das quais

ão totalmente cométricas e 8 apresentam “síncope característica”.

Sinhô Juca, compassos 45-8

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Quanto ao lundu “Sinhô Juca”, cuja letra também foi citada acima, o que há

specialmente interessante é a variedade das figuras rítmicas. Nos compassos 11 e 15,

mão direita do pianista toca a versão não subdividida do paradigma; nos compassos

47, o canto mais a mão direita do piano fazem “ritmo de habanera”, e fazem “sínco

aracterística” nos compassos 44 e 48; esta última é empregada pelo canto sozinho n

ompassos 34, 36 38 e 40. O resto da peça, em contraste, apresenta figuras rítmic

ométricas, tanto no acompanhamento (acordes arpejados, baixo de Alberti) como

anto.

 Nosso estudo do lundu nos levou a partir do lundu-dança, de que os primeiros vestígmontam ao século XVIII, a passar por Caldas Barbosa e pelas “modinhas brasileiras”

Ms.1596 (que poderíamos chamar de “protolundus”), até chegar ao lundu-canção, curimeiras partituras foram impressas a partir de 1830, e que alcançou o final do século como upo de cançoneta cômica no teatro de revista. Tal estudo nos mostrou a forte presença, n

xtos, de alusões ao universo afro-brasileiro, e na música, de certo tipo de contrametricidaue encaro como outras tantas alusões musicais a este mesmo universo. Na sequência, vam os ver o que se passa com outros gêneros que foram praticados no Bra

o final do século XIX, para completar o quadro da família musical que se enquadra no qhamei de paradigma do tresillo.

Este é um verso de “Bancarrota blues”, de Edu Lobo e Chico Buarque.

Essa insistência em ver a modinha e o lundu-canção como gêneros estabelecidos no Brasipresentados já prontinhos por Caldas Barbosa na metrópole, apesar da falta de documentaçonsistente apontando neste sentido, é devida talvez a certos pendores patrióticos dos quaisstoriografia da música brasileira nem sempre escapou. A intenção subjacente seria a ostrar que estes gêneros foram criados no Brasil e não em Portugal.

Caldas Barbosa, Viola de Lereno , vol.II, p.32-6. No entanto, uma autoridade na matéria com

raújo não hesitou em considerar o “Doçura de amor” um lundu, quando afirmou queCaprice pour le pianoforte sur un londú brésilien” de Sigismund Neukomm poderia ter aquanção como fonte ( Rapsódia brasileira, p.144).

A metáfora implicada pelo uso do verbo “rasgar” se refere ao gesto da mão, que toca ordas de maneira mais agressiva do que no caso do ponteado — como se fosse realmenasgá-las. Mas a mesma metáfora é empregada pela palavra “síncope”, que, segundo o verbespectivo no Dictionnaire de musique  de Riemann na edição francesa sob direção de And

chaeffner, vem da palavra grega para “dilacerar”, “rasgar.

A palavra “quindim”, aliás, se hoje é conhecida em todo o Brasil como o nome de um do

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opularíssimo, queria dizer originalmente “requebros, graças típicas, peculiares e característice uma menina ou moça” ( DFB, verbete “Quindim”, p.641). A palavra aparece com este exaentido num outro lundu da coleção editada por Doderer: “Minha Lilia quem desfruta teuindins e teus miminhos etc.” ( Modinhas luso-brasileiras, p.9).

A ideia de que o lundu burguês é uma “modinha m arcada” se exprime também, a m eu ver,ato de que esta nunca perdeu completamente a vocação genérica que a palavra tinha no sécuVIII, e tendeu às vezes a englobar aquele. Assim, foram publicadas muitas “Coleções

odinhas” em que alguns lundus eram incluídos. Esse hábito chegou até Mário de Andrade, qcluiu um lundu em sua coletânea Modinhas imperiais.

A datação deles não é simples. São raros os que trazem uma data impressa, e a maioria naz nem número de chapa de impressão. Para chegar a uma data aproximada, a principal fonmpregada foi o excelente verbete escrito por Mercedes Reis Pequeno para a  EMB, “Impressusical no Brasil”. Temos ali a lista dos principais editores de música que trabalharam no Rio

aneiro no século passado, com as datas em que funcionaram, se associaram e se desassociaram que estiveram num determinado endereço ou em outro. Assim, como as capas das partitur

ostumavam trazer o nome e o endereço da firma de edição, é possível chegar pelo menos a ueríodo dentro do qual cada lundu foi publicado. Outras fontes úteis para a datação de algundus foram o livro Raízes da  MPB, de Vasconcelos, e, para os lundus cantados no teatro vista, a “Cronologia” que consta no final do livro de Ruiz, Teatro de revista no Brasil .

“Ser Democrata” aí é um jogo de palavras: significa pertencer ao Clube dos Democráticma das principais agremiações carnavalesca cariocas, e ao mesmo tempo alude, como partestratégia de sedução, à “democracia amorosa” em que brancos e mulatas confraternizaurante o reinado de Momo.