Bachelard Gaston 3

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    Do corpo

    no ar ao fogo

    do corpo:

    Opus Corpus

    STPHANE MALYSSE

    STPHANE MALYSSE antroplogo visual,artista multimeiose professor de Artese Antropologia na USPLeste.

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    pus: orifcios corporais abertos aos corpos conectados para

    que eles penetrem um corpo humano bem vivido. Entrando

    no Opus Corpus aparece o Mundus Corpus, o mundo visto

    como a multido dos tpicos do corpo, como a proliferao das

    representaes antropolgicas do corpo.

    Corpus: corpus multimeios de Antropologia das Aparncias

    Corporais, Opus Corpus visita, um aps o outro, todas as regies

    e pases do corpo. Abrindo novos caminhos, Opus Corpus uma

    observao clnica dos estados visuais e culturais do corpo, uma

    navegao em textos, sons e imagens, dentro desse misterioso

    rgo dos possveis.

    Este artigo uma reflexo/apre-sentao sobre o trabalho de ps-doutorado do autor, realizado soba forma do websiteOpus Corpus(http://opuscorpus.incubadora.

    fapesp.br), no Departamento deMultimeios do Instituto de Artesda Unicamp.

    o

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    CORPO NO AR

    Meio da luz, do perfume e da cor, o ar sim-

    boliza sempre a vida invisvel, chamando

    as vozes interiores da espiritualidade.

    Ativo e masculino como o fogo, invisvele transitrio como a gua, o ar o elemento

    que tempera o fogo interno do corpo e que

    provoca, aos indivduos de temperamento

    sangneo, sonhos de vo de passarinhos,

    de corridas, de festim e de todas as coisas

    que temos medo de nomeAr.

    As asas so, acima de tudo, smbolos de

    vo, de alvio, de desmaterializao e de

    liberao seja da alma ou do esprito de

    passagem ao corpo sutil, voltil (Gaston

    Bachelard).

    Anthony Gormley,Feeling

    Material, 2005

    Charles Estienne,Fogo do Corpo,

    Paris, 1546

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    FOGO DO CORPO

    Da mesma maneira que o mundo tem o

    seu fogo central, o corpo humano tem o seu

    princpio de calor nas partes genitais, fontes

    de vida. O desejo faz parte do corpo quetende a temperar o seu calor interno pelo ar

    frio da respirao. Assim. para quem sonha

    com fogo, incndios, guerras e destruio,

    um corpo humano aparece, quando se

    acende a centelha do vivo, quando pega este

    fogo interno que nunca parar de queimar

    at se consumir.

    O amor a primeira hiptese cientfica para

    explicar a reproduo objetiva do fogo e,

    antes de ser o filho da madeira, o fogo ofilho do homem (Gaston Bachelard).

    Louise Bourgeois, sem ttulo, 1999

    Louise Bourgeois, sem ttulo, 1986

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    Pensando sobre o corpo, pode-se imagi-

    nar as roupas que o escondem e o esculpem,

    as doenas que o maltratam e o condenam,

    as emoes e as sensaes que dele transbor-

    dam e o transcendem, as fotografias, as obras

    de arte e os filmes que o colocam em cena.

    Quem pretende pesquisar as aparncias cor-

    porais de maneira sistemtica encontra-se

    logo numa situao de grande embarao: a

    proliferao dos discursos, das imagens, a

    multiplicidade das aparncias, das roupas,

    das poses, dos gestos, das tcnicas de tra-

    balho braal ou de cuidado com a sade e a

    beleza colocam o pesquisador num jogo de

    espelhos. Onipresente no campo das artes e

    das cincias, o corpo aparece fragmentado

    pelo conhecimento. Atualmente, a fronteira

    que separa o corpo da sua prpria imagem

    prejudica a apreenso das realidades cor-

    porais, pois as divises disciplinares no

    ajudam a entender a importncia do olhar

    na reunificao do saber sobre o corpo.

    Reagindo contra essa fragmentao da

    noo de corpo, minha pesquisa procura

    reunir referncias sobre os enigmas do

    corpo ao experimentar os multimeios como

    instrumentos de ligao entre as diversas

    cincias e artes do corpo, reconstruindo oespelho fragmentado do corpo. Segundo

    David Le Breton (1990), a primeira quali-

    dade necessria ao pesquisador interessado

    nos sentidos do corpo a sua faculdade de

    espanto. Portanto, a questo central que

    desencadeou a elaborao deste vasto pro-

    jeto : em que medida a representao do

    corpo em imagens pode suscitar espanto e

    proporcionar mais respostas ao pesquisador

    do que um ensaio terico? Stela Senra (2000,

    p. 6) responde a essa questo de forma indi-

    reta ao explicar que a informtica operou

    uma mudana de escala que transformou

    a imagem em informao, abrindo novas

    perspectivas para a cincia e desvendando

    uma viso do corpo e da pele que se estendeu

    ao campo da arte.

    Nesse sentido, os multimeios so uma

    possibilidade de quebrar os quadros dis-

    ciplinares que limitam tradicionalmente o

    pensamento sobre o corpo. Estimulando o

    dilogo interdisciplinar e a criao de cin-

    cias diagonais e transdisciplinares, os mul-

    timeios suscitam curiosidade e exercitam a

    faculdade do espanto na interatividade do

    navegador com o conhecimento. A escrita

    hipertextual constitui-se da relao entre

    texto, som e imagem, portanto, na tela do

    computador o acesso ao conhecimento

    transita pela interpretao do que visto,do que lido e pela forma de navegao

    escolhida.

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    O objetivo do websiteOpus Corpus

    guiar o usurio por caminhos metodolgi-

    cos e epistemolgicos apresentando as

    disciplinas e os saberes do corpo de forma

    organizada e temtica. Assim, o navegador

    alcana as informaes que procura deslizar

    por pistas corporais, que lhe proporcio-

    nam novas conexes de idias. Para pensar

    a arquitetura geral desse site, a influncia

    de Gaston Bachelard foi decisiva, pois,

    tal como construiu a sua obra filosfica, o

    siteest dividido em quatro corpos, dois

    homens e duas mulheres, que representamos quatros elementos:

    Propomos de marcar os diferentes tipos de

    imaginao do corpo humano pelo signo

    dos elementos materiais que inspiraram

    as filosofias tradicionais e as cosmologias

    antigas. Cremos que seja possvel fixar,

    no reino dos imaginrios do corpo, uma

    lei de quatro elementos que classifica as

    diversas imaginaes materiais onde elas

    se associam ao fogo, ao ar, gua e terra

    (Gaston Bachelard, 1942).

    Owebsite de fato, um banco de conhe-

    cimentos sobre o corpo humano organizado

    em quatro partes, quatro corpos simboli-

    zando os quatros elementos. Os bancos de

    conhecimentos so um conjunto organizado

    de dados informativos cuja codificao

    simblica geralmente mais rica do que

    os chamados bancos de dados, pois nos

    bancos de conhecimentos imagens e textosso interligados pelo sentido. Portanto, a

    escrita hipertextual exige uma economia

    de signos (escrita, imagem e sons) e uma

    reflexo sobre os modos de interpretao,

    que organizam sua economia semiolgica.

    Essa escrita mascarada um convite feito

    ao navegador para desvendar as interfaces

    do conhecimento ou as zonas corporais

    escondidas.

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    No site, o navegador orientado para

    atravessar os mltiplos sentidos do corpo,agindo com o seu prprio pensamento,

    interagindo com as suas representaes e

    seguindo os seus humores do momento.

    O site constitudo de quatro corpos hu-

    manos, corpos cujos orifcios corporais

    ou meios de comunicao com o mundo

    foram fechados artificialmente, pois nessa

    interao do navegador com esses corpos

    fechados que a visita comea. Assim,

    cada orifcio corporal leva o navegador a

    um tema especfico de antropologia das

    aparncias corporais, e, aps ter escolhido

    o elemento que quer explorar, o navega-

    dor pode penetrar um dos treze orifcios

    corporais, fechado hermeticamente, e

    digitalmente recoberto de pele.

    So 52 temas de antropologia das aparn-

    cias corporais, que podem ser visitados,

    lendo, vendo, ouvindo as informaes,

    consultando a bibliografia e imprimindo

    artigos sobre o tema escolhido. A abertura

    dos caminhos de navegao ou fluidos

    corporais exige do navegador a mesma

    cirurgia de textos e imagens que con-sistiu em editar o site. A noo de teoria

    dos humores (Vincent, 1986, p. 37) de

    Hipcrates foi o ponto de partida da

    estrutura embrionria do site, pois essa

    proposio orientou as metforas corpo-

    rais de navegao e a arquitetura orgnica

    das informaes. Como os filsofos da

    Antigidade, Bachelard analisou esses

    elementos, mostrando que permanecem

    profundamente interligados s estruturas

    antropolgicas do imaginrio humano,

    como hormnios da imaginao.

    Para Bachelard (1943), primeiro, o

    homem imagina, depois ele v, e s vezes

    ele se lembra. Da imaginao lembrana,

    tal seria a navegao ideal dentro do site,

    pois entre o corpo anatmico e o imaginrio

    do corpo, entre a arte e a cincia, entre

    imagem-corpo, corpo-objeto e corpo-texto,

    o site tenta aproveitar as possibilidades

    heursticas da escrita hipertextual, sem se

    esquecer de que

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    ________. LAir et les Songes: Essai sur LImagination du Mouvement. Paris, Livre de Poche, 1943.________. La Psychanalyse du Feu. Paris, Gallimard, 1954.

    ________. La Terre et les Rveries du Repos. Paris, Jos Corti, 1962.

    LE BRETON, D. Anthropologie du Corps et Modernit. Paris, PUF, 1990.

    ________. La Sociologie du Corps. Paris, PUF, 1995.

    ________. Les Passions Ordinaires. Anthropologie des motions. Paris, Armand Colin, 1997.

    MALYSSE, S.(H)alteres-ego: Olhares Franceses nos Bastidores da Corpolatria Carioca, in M. Goldemberg (org.). Nus

    e Vestidos: Onze Antroplogos Revelam a Cultura do Corpo Carioca. Rio de Janeiro, Record, 2001.

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    SAMAIN, E. (org.). O Fotogrfico. So Paulo, Hucitec/CNPq, 1998.

    SENRA, Stela. A Tela e a Pele, in Folha de S. Paulo (caderno Mais!), So Paulo, 30/4/2000, pp. 5-9.VINCENT, J-D. Biologie des Passions. Paris, Odile Jacon, 1986.

    a navegao na rede e o hipertexto

    introduzem uma conversao ttil na

    qual predomina a mo, e no o olhar,

    quando a navegao no funo de uma

    busca, mas da resposta a uma imagem

    presente. Com o desaparecimento do

    sentido orgnico do tato, a continuidade

    epidrmica olho/imagem do computador

    suprime a distncia esttica do olhar, dis-

    seminando na tela nossos olhos que en-

    tram numa espcie de coma imaginrio

    (Senra, 2000, p. 7).

    S falta, agora, convidar o leitor deste

    artigo a entrar nesse coma imaginrio, a

    acessar o sitee penetrar literalmente nos

    corpos entreabertos do ar, do fogo, da gua

    e da terra.

    http://opuscorpus.incubadora.fapesp.br