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Álvaro Domingues Bestiário do Imobiliário 1. Mete dó Esta em primeiro plano sou eu, a cabra. O pasto é uma porcaria e eu estou grávida. Já sei que é uma imprudência nos tempos que correm mas é a vida. Foi um cabrão. A vida é uma carneirada. Aquelas nove ovelhas não são menos tolas que eu; convenceram-me a comprar uma daquelas casas em banda porque o curral estava um esterco e quando chove não se pode estar no pasto por causa da humidade e da artrite reumatoide. Começou tudo muito bem. As casas são lindas, perto do pasto e com vistas para o campo. O projecto de paisagismo para os arranjos dos espaços exteriores é do melhor: muros aparelhados em pedra de junta seca; esteios re-usados de uma vinha metafísica; caminhos em saibro e muito espaço verde (ralo). As casas nunca foram acabadas; passaram directamente para o estado de vandalismo. Estão sequinhas reduzidas a betão, sem caixilharias, vidros, nem loiça de quarto de banho e até os fios da instalação eléctrica foram para o gang do metal. O banco fez um leilão com as casas. Foi tudo comprado por um músico alemão que diz que uma de preto e outra de branco dá um belo teclado. A nossa casa parece que vai ser um fá sustenido! Tem outras notas mas mete dó. 2. Aquaparque

Bestiário do Imobiliário I - Álvaro Domingues

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Bestiário do Imobiliário I por Álvaro Domingues publicado na Revista Punkto em 2013

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Álvaro Domingues

Bestiário do Imobiliário

1. Mete dó

Esta em primeiro plano sou eu, a cabra. O pasto é uma porcaria e eu estou

grávida. Já sei que é uma imprudência nos tempos que correm mas é a vida.

Foi um cabrão. A vida é uma carneirada. Aquelas nove ovelhas não são menos

tolas que eu; convenceram-me a comprar uma daquelas casas em banda

porque o curral estava um esterco e quando chove não se pode estar no pasto

por causa da humidade e da artrite reumatoide. Começou tudo muito bem. As

casas são lindas, perto do pasto e com vistas para o campo. O projecto de

paisagismo para os arranjos dos espaços exteriores é do melhor: muros

aparelhados em pedra de junta seca; esteios re-usados de uma vinha

metafísica; caminhos em saibro e muito espaço verde (ralo). As casas nunca

foram acabadas; passaram directamente para o estado de vandalismo. Estão

sequinhas reduzidas a betão, sem caixilharias, vidros, nem loiça de quarto de

banho e até os fios da instalação eléctrica foram para o gang do metal.

O banco fez um leilão com as casas. Foi tudo comprado por um músico alemão

que diz que uma de preto e outra de branco dá um belo teclado.

A nossa casa parece que vai ser um fá sustenido! Tem outras notas mas mete

dó.

2. Aquaparque

Era um dia especial. Parecíamos um rebanho, todas vestidas de igual,

agasalhadas, contentes! Depois de meses de transumância por montes de

escassas ervagens, íamos ao aquaparque, aos escorregas. Estava um dia lindo

e quente! Eis senão quando começaram a correr as névoas e o céu se cobre de

cinza e frio. Nem tirámos os agasalhos. Mais uma tarde aborrecida, ouradas

de tanto tempo de cabeça para baixo a pastar debaixo daquelas vertigens

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tubulares pintadas de azul cueca, secas com a tinta esfolada e a ferrugem das

águas de cloro.

Uma méééééééé...erda, foi o que foi.

3. Mutante

Sou estagiária na MUTANT – Architecture & Design, everything written in

stranger that is the language that best understands and is immune to the

orthographic agreement. We do, perdão, fazemos casas minimais em betão

branco tipo micro-ondas com aplicações em madeira, cipreste à porta e uma

gaja para dar escala e sex appeal e um lago. Não vem cá ninguém, não se faz

nada, não se vende nada. Passou aqui um tipo e pôs-se a tirar retratos. Pensei

que era um cliente, mas não. É desses que não deve ter mais nada para fazer.

Se não fosse ovina de cérebro rarefeito, deitava-me deste muro abaixo.

Perguntei-lhe se estava interessado na casa (ela de facto não existe, pertence

aos mercados de futuros incertos) mas o gajo não deve ter percebido. Dizem

que temos um vocabulário simplório e uma fonética de mmms e éééééés que

soa sempre ao mesmo. É exactamente o que eu penso do que ouço na política

e nos programas sobre economia. Cada um sabe de si, como diz o povo

(quemmméé o povo?).

4. Introspecção bovina acerca da lei de solos

Tenho estado amofinada e sinto até um peso na cabeça mas dizem-me que é

da cornadura que tem as pontas desacertadas e destes brincos que me

desfiguram as orelhas. Em todo o caso, o assunto não me sai da mioleira.

Tenho um filho, um verdadeiro bezerro que dá saúde só de olhar para ele…, e

queria-lhe fazer uma casinha neste terreno; não é coisa grande, uma corte

seria o suficiente. Dizem-me da Câmara que não, que este terreno é, diz que,

reserva agrícola imprescindível para matar a fome à nação. Não é verdade.

Este terreno é uma coisa pequena, sem importância…, sete ou oito videiras,

um poste da EDP, uns muritos…, pouco mais que dez montes de estrume e fica

uma estrumeira. Não percebo. O meu vizinho que está para França tinha um

terreno igual, fez uma casa, deu rumo à vida e até tem parabólica. Eu fungo de

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nervoso mas não adianta e até me alarga os buracos do nariz e erisipela nas

beiças. Não é que eu seja invejosa. Deus me livre! É mesmo coisa de vaca

(galega); o lado bovino do real.

Os senhores que sabem disto, que me ajudem, caramba; este país não é para

vacas. Muuuuuuito obrigado!

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Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. (Fotografias do autor).