Álvaro Domingues
Bestiário do Imobiliário
1. Mete dó
Esta em primeiro plano sou eu, a cabra. O pasto é uma porcaria e eu estou
grávida. Já sei que é uma imprudência nos tempos que correm mas é a vida.
Foi um cabrão. A vida é uma carneirada. Aquelas nove ovelhas não são menos
tolas que eu; convenceram-me a comprar uma daquelas casas em banda
porque o curral estava um esterco e quando chove não se pode estar no pasto
por causa da humidade e da artrite reumatoide. Começou tudo muito bem. As
casas são lindas, perto do pasto e com vistas para o campo. O projecto de
paisagismo para os arranjos dos espaços exteriores é do melhor: muros
aparelhados em pedra de junta seca; esteios re-usados de uma vinha
metafísica; caminhos em saibro e muito espaço verde (ralo). As casas nunca
foram acabadas; passaram directamente para o estado de vandalismo. Estão
sequinhas reduzidas a betão, sem caixilharias, vidros, nem loiça de quarto de
banho e até os fios da instalação eléctrica foram para o gang do metal.
O banco fez um leilão com as casas. Foi tudo comprado por um músico alemão
que diz que uma de preto e outra de branco dá um belo teclado.
A nossa casa parece que vai ser um fá sustenido! Tem outras notas mas mete
dó.
2. Aquaparque
Era um dia especial. Parecíamos um rebanho, todas vestidas de igual,
agasalhadas, contentes! Depois de meses de transumância por montes de
escassas ervagens, íamos ao aquaparque, aos escorregas. Estava um dia lindo
e quente! Eis senão quando começaram a correr as névoas e o céu se cobre de
cinza e frio. Nem tirámos os agasalhos. Mais uma tarde aborrecida, ouradas
de tanto tempo de cabeça para baixo a pastar debaixo daquelas vertigens
tubulares pintadas de azul cueca, secas com a tinta esfolada e a ferrugem das
águas de cloro.
Uma méééééééé...erda, foi o que foi.
3. Mutante
Sou estagiária na MUTANT – Architecture & Design, everything written in
stranger that is the language that best understands and is immune to the
orthographic agreement. We do, perdão, fazemos casas minimais em betão
branco tipo micro-ondas com aplicações em madeira, cipreste à porta e uma
gaja para dar escala e sex appeal e um lago. Não vem cá ninguém, não se faz
nada, não se vende nada. Passou aqui um tipo e pôs-se a tirar retratos. Pensei
que era um cliente, mas não. É desses que não deve ter mais nada para fazer.
Se não fosse ovina de cérebro rarefeito, deitava-me deste muro abaixo.
Perguntei-lhe se estava interessado na casa (ela de facto não existe, pertence
aos mercados de futuros incertos) mas o gajo não deve ter percebido. Dizem
que temos um vocabulário simplório e uma fonética de mmms e éééééés que
soa sempre ao mesmo. É exactamente o que eu penso do que ouço na política
e nos programas sobre economia. Cada um sabe de si, como diz o povo
(quemmméé o povo?).
4. Introspecção bovina acerca da lei de solos
Tenho estado amofinada e sinto até um peso na cabeça mas dizem-me que é
da cornadura que tem as pontas desacertadas e destes brincos que me
desfiguram as orelhas. Em todo o caso, o assunto não me sai da mioleira.
Tenho um filho, um verdadeiro bezerro que dá saúde só de olhar para ele…, e
queria-lhe fazer uma casinha neste terreno; não é coisa grande, uma corte
seria o suficiente. Dizem-me da Câmara que não, que este terreno é, diz que,
reserva agrícola imprescindível para matar a fome à nação. Não é verdade.
Este terreno é uma coisa pequena, sem importância…, sete ou oito videiras,
um poste da EDP, uns muritos…, pouco mais que dez montes de estrume e fica
uma estrumeira. Não percebo. O meu vizinho que está para França tinha um
terreno igual, fez uma casa, deu rumo à vida e até tem parabólica. Eu fungo de
nervoso mas não adianta e até me alarga os buracos do nariz e erisipela nas
beiças. Não é que eu seja invejosa. Deus me livre! É mesmo coisa de vaca
(galega); o lado bovino do real.
Os senhores que sabem disto, que me ajudem, caramba; este país não é para
vacas. Muuuuuuito obrigado!
--------------
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. (Fotografias do autor).