Biopolitica Focault

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    BIOPOLTICA SEGUNDO FOUCAULT E AGAMBENANDERSON ALVES ESTEVES

    RESUMO: O objeto deste artigo o conceito de biopoltica, elaborado porMichel Foucault, e trabalhado, posteriormente, por Giorgio Agamben, que otransformou em tanatopoltica. No primeiro filsofo, a biopoltica foi pensada emcompasso com o poder sobre o indivduo (disciplinarizao) e sob o contextoda histria da sexualidade; no segundo, em compasso com o estado de

    exceo como a regra da Modernidade. Em ambos, o conceito concerne aodomnio sobre a populao.

    PALAVRAS-CHAVES: Biopoltica - Disciplinarizao-Tanatopoltica - Estadode Exceo

    ABSTRACT: The aim of this article is the conception of the Biopolitcs, writtenby Michel Foucault, and afterwards worked by Giorgio Agamben, whotransformed it to Thanathpolitics. The previous philosopher thought aboutBiopolitics as the power on an individual discipline and about the history of

    sexuality; the latter philosopher, together with the state of exception as the ruleof Modernity. Both, the conception concerns to the domination on the wholepeople.

    KEYWORDS: Biopolitics - Disciplining-Tanatopolitic -State of Exception

    Mestrando em Filosofia (PUC-SP), especialista em Sociologia (FESPSP), bacharel em Filosofia (USP) eem Cincias Sociais (FSA), professor da Faculdade Interao Americana, autor de material didtico em

    Filosofia e de artigos cientficos.

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    INTRODUO

    Em Vontade de saber, fazendo uma histria da sexualidade, Foucault iniciou

    o que se convencionou chamar de biopoltica: a sexualidade no foi vista porele pela lgica da represso, como tradicionalmente vinha acontecendo emmuitos autores. Foucault notou que, no perodo abordado por ele (a partir dosculo XVII), houve tambm perodos de afrouxamento da represso, emespecial no sculo XX toleram-se relaes pr-nupciais, desqualifica-se operverso, eliminam-se tabus acerca da sexualidade infantil. A histria dasexualidade trabalhada por Foucault segue a lgica das tcnicas estetrabalho se inicia com um acompanhamento dos captulos IV e V de Vontadede sabere, em seguida, explora as primeira e ltima aulas de Em defesa dasociedade, textos fundamentais para a idia de biopoltica em Foucault e que,neste ltimo texto, a partir da idia de poder como uma relao de foras emconflito, h a desqualificao do poder de soberania sobre a vida e a morte dosindivduos. Cresce, ao mesmo tempo, as tcnicas de poder sobre o indivduo(disciplinarizao) e sobre a populao (biopoltica).

    Na trilogia Homo sacer, de Agamben, a interseco entre o biopolticoe ojurdico e a implicao da vida nuana esfera poltica so trabalhadas pelo autorde maneira nova, fazendo parte desta nova abordagem sobre biopoltica,tambm, um conceito de soberaniaque decorre do pensamento de Schmitt e a

    idia do estado de exceo como uma regra da Modernidade, permitindo aAgamben alcanar as idias de campo como o paradigma de governo napoltica contempornea, a permanncia do estado de exceo e a biopolticatransformando-se em tanatopoltica. Todos estes conceitos so expostos nesteartigo na medida em que a exposio sobre a argumentao de Agamben realizada.

    FOUCAULT

    Em Vontade de saber, Foucault diagnosticou um movimento na histria dasexualidade moderna que teve seu ponto de partida na represso, mas comum itinerrio que encaminhou-se, com o tempo, para o abrandamento: naReforma e na Contra-Reforma, por exemplo, a concupiscncia foi introduzidano discurso religioso a partir de tcnicas elaboradas desde o sculo XVI. Nomesmo esprito de incluso da sexualidade na esfera discursiva, o sculo XVIIItrouxera uma tecnologia de sexo inteiramente nova e independente doprocedimento eclesistico: a pedagogia encarregou-se das crianas, amedicina da fisiologia feminina, a economia da demografia alm do sexo

    tornar-se uma questo leiga, tornou-se tambm questo para o Estado. Napassagem do sculo XVIII para o sculo XIX, o sexo foi tomado como questo

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    da instituio mdica e de patologia, tanto que, dentro da Medicina, uma parteda mesma dedicou-se especificamente ao sexo, separando-se da Medicinageral do corpo. Trata-se de um projeto mdico e tambm de um projeto poltico:ocorre uma gesto estatal de casamentos, nascimentos e sobrevivncias:

    A medicina das perverses e os programas de eugenia foram, natecnologia do sexo, as duas grandes inovaes da segunda metadedo sculo XIX1.

    O ncleo slido das novas tecnologias do sexo foi o conjunto perverso-hereditariedade-degenerescncia, cuja crena era a o repouso da perversosexual em uma hereditariedade carregada de doenas; tal crena apregoava,ainda, que havia um esgotamento da descendncia destas pessoas por contade raquitismo e esterilidade das geraes futuras. Foi o exagero desta prticasocial de tecnologia do sexo que deu ensejo ao racismo de Estado. Com a

    Psicanlise, mais uma tecnologia que tratou do sexo, no fim do sculo XIX, osistema de degenerescncia foi rompido a Psicanlise libertou-se e se ops hereditariedade, ao racismo e eugenia.

    Seja como incluso da concupiscncia no discurso; seja como pedagogia,como medicina ou como economia; seja como teoria da degenerescncia oucomo Psicanlise, a histria da sexualidade moderna no combina, segundoFoucault, com a hiptese repressiva, j que, na Modernidade, por todas astecnologias do sexo acima expostas, houve um afrouxamento da represso.Nas palavras de Foucault:

    A genealogia de todas estas tcnicas com suas mutaes, seusdeslocamentos, suas continuidades e rupturas, no coincide com ahiptese de uma grande fase repressiva inaugurada durante a pocaclssica e em vias de encerrar-se, lentamente, no decorrer do sculoXX. Houve, ao contrrio, inventividade perptua, produo constantede mtodos e procedimentos, com dois momentos particularmentefecundos nessa histria prolfica: por volta da metade do sculo XVI, odesenvolvimento dos processos de direo e de exame deconscincia; no incio do sculo XIX, o aparecimento das tecnologiasmdicas do sexo2.

    Em seu curso no Collge de France, Em defesa da sociedade, Foucault

    tambm desvinculou a idia de poder da hiptese repressiva: a idia de poderno uma deduo da economia, como ocorre tanto com a concepo jurdicacomo com a concepo marxista, o poder seria, na primeira, um bem que sepoderia transferir ou alienar, e seria, na segunda, a manuteno das relaesde produo e do domnio da classe social que se apropriou das forasprodutivas em ambas as concepes, a poltica decorre da economia, j queo modelo dessas concepes a troca e a circulao de bens, em um caso, e

    1 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Traduo de Maria

    Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edies Graal, 3edio, 1980, p. 112.2 Op. Cit., p. 113.

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    uma funcionalidade econmica, em outra. Isto , Foucault est libertando aidia de poder do enclausuramento econmico e deslocando sua pesquisapara a idia de poder como relao de fora. Mas no como uma forarepressora ou como uma guerra contnua. A refutao da fundamentao dopoder na economia e na represso, libera o pensamento de Foucault de doissistemas:

    Um que seria o velho sistema que vocs encontram nos filsofos dosculo XVIII, se articula em torno do poder como direito original quese cede, constitutivo da soberania, e tendo o contrato como matrizdo poder poltico. E haveria o risco de esse poder assim constitudo,quando ultrapassa a si mesmo, ou seja, quando vai alm dosprprios termos do contrato, tornar-se opresso. Poder-contrato,tendo como limite, ou melhor, como ultrapassagem do limite, aopresso. E vocs teriam o outro sistema que tentaria, pelocontrrio, analisar o poder poltico no mais de acordo com oesquema contrato-opresso, mas de acordo com o esquema guerra-

    represso. E, neste momento, a represso no o que era aopresso em relao ao contrato, ou seja, um abuso, mas, aocontrrio, o simples efeito e o simples prosseguimento de umarelao de dominao. A represso nada mais seria que o emprego,no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contnua, deuma relao de fora perptua. Portanto, dois esquemas de anlisedo poder; o esquema jurdico, e o esquema guerra-opresso, oudominao-represso, no qual a oposio pertinente no a dolegtimo e do ilegtimo, como no esquema precedente, mas aoposio entre luta e submisso3.

    As pesquisas de Foucault apontavam em outra direo: as histrias dasexualidade, do direito penal e do poder psiquitrico ofereceram fragmentosque expressavam a eficcia das ofensivas dispersas e descontnuas quecriticavam as prticas, os discursos, as coisas e as prprias instituiesestudas por Foucault, deslocando a pesquisa das teorias totalitrias (globais,envolventes) para pesquisas locais. Ademais, estas crticas locais promoveramuma reviravolta dos saberes, uma insurreio de saberes que estavamsujeitados: saberes historicamente sepultados pelos conjuntos funcionais esistemticos de anlise foram recuperados por Foucault, saberes anteriormentedesqualificados e no reconhecidos por padres de cientificidade tambmpassaram a ter recepo por parte dele. Sem a tutela dos discursos

    englobadores, Foucault realizou, ento, uma genealogia que aclopou ascrticas locais aos saberes desqualificados e que ofereceu uma sabedoriasobre as lutas e as memrias dos combates (que a cincia centralizadora nooferece) a genealogia pde fazer intervir os discursos antes desconsideradospelos esquemas totalitrios.

    este o procedimento genealgico, exemplificado aqui com a periodizaoda sexualidade, que ajudou Foucault a formar o conceito de biopoltica: aperiodizao da sexualidade expressa, concomitantemente, a lgica das

    3 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France (1975-1976).Traduo de Maria Ermantina Galvo, So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 24.

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    tcnicas que ela segue e a hegemonia que a burguesia construiu: paraFoucault, as tecnologias do sexo maximizam a vida, atribuem longevidade a elae tentam impedir patologias nos descendentes, distribui os prazeres e osdiscursos de maneira que contrariam a hiptese repressiva. A burguesiainvestiu consideravelmente em um instrumento que lhe oferecia sade futura,uma higiene, uma descendncia que marcava a distino de classe (no maispelo sangue, como a aristocracia o fizera, mas pelo sexo, a partir de preceitosbiolgicos, mdicos e eugnicos) a partir de substrato biolgico(autossexualizao). A burguesia no castrou a sexualidade, ela crioudispositivos que expandiram a fora infinitamente, lhe ofereceram vida e sade,garantiram a perenidade. Trata-se de umagenciamento poltico sobre a vidaconstituda por dispositivos de sexualidade diagnosticados por Foucault na suaanaltica do poder.

    Aproximando-se mais ainda da idia de biopoltica, Foucault aborda asmudanas no direito de morte e o poder sobre a vida no ltimo captulo deVontade de saber: o primeiro momento foi o privilgio que o soberano tevesobre o direito de vida e morte de seus submetidos, que o pai de famliaromano tem sobre seus filhos e escravos. O segundo momento foi o expostopelos tericos clssicos: o direito de vida e morte foi atenuado na medida emque deixou de ser a forma principal de ao do soberano; Foucault considerouque, concomitante perda da primazia do confisco, houve a incitao, oreforo, o controle, a vigilncia, a majorao e a organizao das forassubmetidas. O poder de morte apresenta-se, a partir de tal situao, comocomplementoe como situao-limite do poder de majorao e exerccio sobrea vida. Neste esprito, o princpio de poder matar para viver tornou-se aestratgia dos Estados nacionais e deslocou a existncia para uma questobiolgica, no para uma questo jurdica: 1) o genocdio tornou-se umaquesto de poder exercido sobre a vida, a espcie, a raa, isto , dosfenmenos de toda uma populao; 2) a pena de morte foi dificultada namedida em que a gesto sobre a vida se multiplicou eficazmente. Estes doiscasos mostram a importncia da idia de biopoltica em Foucault: ela expressaum contexto no qual declina o poder de causar a morte e ascende o poder de

    causar a vida, no qual desqualifica-se a morte e fixa o poder sobre a gesto davida.

    Os sculos XVII e XVIII so os marcos identificados por Foucault em que opoder sobre a vida desenvolve-se a ponto de deslocar a questo da existnciados termos jurdicos para termos biolgicos, fazendo do corpo do indivduouma mquina e do corpo da espcie um alvo de interveno e controlepopulacional. Dois momentos, dois plos que seguem as caractersticasabaixo:

    (...) Um dos plos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao desuas aptides, na extorso de suas foras, no crescimento paralelo

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    de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas decontrole eficazes e econmicos tudo isso assegurado porprocedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: antomo-poltica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco maistarde, por volta da metade do sculo XVIII, centrou-se no corpo-espcie, no corpo transpassado pela mecnica do ser vivo e como

    suporte dos processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e amortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, comtodas as condies que podem faz-los variar; tais processos soassumidos mediante toda uma srie de intervenes e controlesreguladores: uma biopoltica da populao. As disciplinas do corpo eas regulaes da populao constituem dois plos em torno dosquais se desenvolveu a organizao do poder sobre a vida. Ainstalao durante a poca clssica, desta grande tecnologia deduas faces anatmica e biolgica, individualizante e especificante,voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos davida caracteriza um poder cuja funo mais elevada j no maismatar, mas investir sobre a vida, de cima para baixo4.

    Esta administrao dos corpos e esta gesto calculista sobre a vida,prprias era clssica, na qual as disciplinas se desenvolvem, o queFoucault chama de era do biopoder: em uma direo, o biopoder disciplina oscorpos, tal como as instituies exrcito e escola fazem com os submetidos a

    eles; em outra direo, o biopoder regula a populao a partir da demografia,

    da tabulao das riquezas e da circulao, da estimativa. Em ambas asdirees, no antitticas, a sexualidade um dispositivo importante para acoordenao das duas tcnicas da toda a importncia que Foucault atribui auma histria da sexualidade.

    Era clssica, era do biopoder, capitalismo: fenmenos histricos que no seseparam no pensamento de Foucault biopoder um elemento sem o qual oprprio desenvolvimento capitalista no abre mo na medida em que se fazmister um controle dos corpos no aparelho de produo e um ajustamento dosfenmenos populacionais aos processos econmicos. H exigncia decrescimento da produo em compasso com a utilidade e docilidade doscorpos e, assim, mtodos de majorao das foras e da vida so executadospara que o desempenho econmico seja eficaz, extraindo dos corpos o mximode tempo e de trabalho e mantendo-os sob perene vigilncia anatomia,biopoltica e capitalismo no se desarticulam5. Esta dinmica torna a vida alvode um imprescindvel controle de saber e de poder: ela torna-se objeto declculos explcitos e entra definitivamente para a histria no sentido de ser odestino de tcnicas polticas especficas de saber e de poder: os seres vivosso distribudos nos domnios do valor e da utilidade esta sociedades queconstruiu constituies, a partir do sculo XVIII, que normalizam a vida uma

    4 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade. Op. Cit., p. 131.5 (...) Esse novo tipo de poder, que j no , pois, de modo algum transcritvel nos termos desoberania, , acho eu, uma das grandes invenes da sociedade burguesa. Ele foi um dosinstrumentos fundamentais da implantao do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que

    lhe correlativo. Esse poder no soberano, alheio portanto forma da soberania, o poderdisciplinar (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France (1975-1976). Traduo de Maria Ermantina Galvo, So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 43).

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    sociedade, segundo Foucault, normalizadora, efeito histrico de umatecnologia de poder centrada na vida6.

    Na esteira desta poca do biopoder, a sexualidade um dispositivo querecebe um veemente investimento, j que ela relaciona-se tanto sobre a

    disciplinarizao dos corpos como na regulao das populaes (articuladisciplina e biopoltica, serve como matriz das disciplinas e como regulao davida populacional a exploso discursiva ocorrida na era clssica no foigratuita, como j foi tratado). Na era anterior a do biopoder, o sangue constituium elemento pelo qual os mecanismos de poder atuam (simblica do sangue);com o biopoder, os mecanismos de poder deslocam-se para o sexo, j quedirigem-se ao corpo e vida (analtica do sexo). O cuidado que Foucault toma,tambm, o de mostrar que a simblica do sangue e a analtica do poder nose sucedem, mas se justapem: h uma obsesso com o sangue e a lei porparte da gesto da sexualidade. A segunda metade do sculo XIX produziu umracismo estatal e biologizante com polticas de povoamento, de famlia, de

    casamento, de educao, de hierarquizao social, de propriedade, deconduta, de sade tudo para a proteo e para depurao do sangue, paratriunfar a raa, tal como o nazismo pretendeu. Para a sexualidade encontrar-seescrita no sistema da lei, a Psicanlise esforou-se para contempl-la a partirdas leis da aliana, da consanginidade interdita, do Pai-soberano. Seja comoobsesso com o sangue, seja como obsesso com a lei, o dispositivo desexualidade deve ser pensado a partir das tcnicas de poder que lhe socontemporneas7.

    Na ltima aula do curso Em defesa da sociedade, Foucault tambmarticulou os conceitos que refutam a idia de poder como represso com aformao do conceito de biopoltica. Ademais, o curso tambm conta com aexposio da desqualificao da idia de poder soberano sobre a vida e amorte dos indivduos: cada vez mais a morte uma interveno que se tornaencerrada como situao-limite, cada vez mais colocada fora das relaes depoder.

    Compreendendo o poder como uma relao de foras em conflito, comouma guerra8, Foucault notou que os processos histricos nos quais estarelao se insere tem a vida, a partir dos sculos XVIII e XIX, como objeto do

    poder, como estatizada. Ao contrrio da teoria clssica da soberania, quecoloca a vida e a morte em poder do soberano, um novo direito polticoconstitudo no sculo XIX, caracteriza-se muito mais em fazer viver e de deixarmorrer9: o fim da vida, antes um recurso inicial e ritualizado, agora evitado a teoria clssica da soberania tornou-se inoperante para organizar a vida nocontexto de uma sociedade em exploso demogrfica e industrializada. Fez-semister outra mecnica de poder:

    6 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade. Op. Cit., p. 135.7 Op. Cit., p. 141.8 Na aula de 21 de janeiro de Em defesa da sociedade, na qual Foucault fundamenta a poltica

    na guerra: esta uma relao social permanente entre sujeitos que ocupam lugares prprios ese engajam na defesa de seus interesses e no contexto histrico em que se encontram.9 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, Op. Cit., p. 287.

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    (...) Agora que o poder cada vez menos o direito de fazer morrer ecada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira deviver, e no como da vida, a partir do momento em que, portanto, opoder intervm sobretudo nesse nvel para aumentar a vida, paracontrolar seus acidentes, sua eventualidades, suas deficincias, dapor diante a morte, como termo da vida, evidentemente o termo, o

    limite e extremidade do poder. Ela est do lado de fora, em relaoao poder: o que cai fora de seu domnio, e sobre o que o poder ster domnio de modo geral, global, estatstico. Isso sobre o que opoder tem domnio no a morte, mortalidade. E nessa medida, normal que a morte, agora, passe para o mbito do privado e do queh de mais privado10.

    esta nova mecnica de poder que interessa entender, ela ocorre nombito das tcnicas de poder e no no mbito da teoria poltica. Em um nvel,h a tcnica orgnico-institucional, centrada no corpo dos indivduos,distribuindo-os, organizando-os, exercitando-os, treinando-os, tornando-osteis, docilizando-os e para que os indivduos fossem racionalizados dessaforma, so vigiados, hierarquizados, disciplinados processo que ocorre desdeo final do sculo XVII. Em outro nvel, uma tecnologia de poder biolgico-estatal que se remete a uma escala no individualizante, mas espcie, multiplicidade, massa global11 e, assim, ocupa-se do nascimento, damorte, da produo, da doena do homem como espcie. Esta tecnologiaprpria ao nvel da espcie foi denominada por Foucault de biopoltica:interessa a ela a natalidade, a longevidade, a reproduo, a mortalidade e,assim, as tcnicas de controle enveredam, agora, pela medio, pelaestatstica, em suma, por um saber-poder sobre a vida. Biopoltica no significa

    fazer o mesmo que, por exemplo, fizeram os tratamentos das epidemiasdurante a Idade Mdia. Significa tomar a vida como um problema no quadro deuma endemia: as doenas so tratadas como algo permanente na espcie eque prejudicam a fora da populao, o tempo de trabalho, aumenta os custoseconmicos um permanente risco de morte exige uma permanentemobilizao pela vida um poder contnuo, cientfico, que o poder de fazerviver12. Tal empreendimento medicalizou toda a populao, deu ensejo higiene pblica, centralizou informaes, instituiu servios de assistncia velhice, aos acidentes, s enfermidades, racionalizou a seguridade, pensou os

    problemas que o meio geogrfico representa populao (os problemas deviver em cidades, por exemplo).

    Para Foucault, o campo da interveno de poder especfico da biopoltica,assim, produziu, concomitantemente, um saber especfico para ela, alm de terproduzido tambm novidades importantes. A primeira foi a novidade de umanova personagem entrar em cena na vida poltica: se a biopoltica toma apopulao como objeto, e no apenas o indivduo, ela se torna importantepoltica e cientificamente o biolgico alvo do Estado. Na esteira deste

    10

    Op. Cit., pp. 295-296.11 Op. Cit., p. 289.12 Op. Cit., p. 294.

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    primeiro processo, um segundo tambm torna-se importante: tratam-se defenmenos coletivos, de mbito da massa e cujo resultado poltico e econmicoimportam muito. Para dar conta destes fenmenos, importante tambm omodo de abord-los, isto , tornam-se importantes as tecnologia peculiares biopoltica: previses, estimativas estatsticas, medies globais para intervirem fenmenos globais; por exemplo, estimulando a natalidade e baixando amorbidade para fixar um equilbrio, manter uma mdia, estabelecer umaespcie de homestase, assegurar compensaes13. No se trata, embiopoltica, de disciplinarizao de um indivduo, mas de uma regulamentaoda vida da populao: o primeiro nvel das tcnicas de poder tem um objeto e osegundo, outro.

    O objeto especfico desta regulamentao vida da populao, atecnologia de poder tem como objetivo controlar os eventos que se dirigem

    massa da populao, deixando para o outro nvel de tecnologia o treinamentoindividual e concentrando-se no equilbrio global, na segurana diante dosperigos internos naquilo que concerne aos processos biolgicos das massas14.A sexualidade, neste aspecto, de suma importncia, j que alvo tanto dadisciplinarizao (controle da masturbao por parte da famlia e da escola, porexemplo) como da regulamentao (interessa para a procriao). Destarte, asexualidade encontra-se em uma encruzilhada do corpo e da populao15cuja importncia remete-se ao organismo individual e ao fenmeno global; porisso, a medicina remete-se s conseqncias nestas duas sries amasturbao em exagero punida em uma criana, a sexualidade devassaatravessa e perturba geraes (teoria da degenerescncia). Como interessa aoorgnico e ao biolgico, a sexualidade objeto de interveno poltica por umsaber-poder, a medicina, que a disciplina e a regulamenta.

    Isto , a sexualidade um elemento que circula entre as duas sries e,assim, Foucault considera que ela objeto de normalizao:

    13 Op. Cit., p. 293.14

    Foucault considera que h duas sries de tcnicas de poder, uma disciplinar, de mbitoindividual, e outra regulamentadora, de mbito populacional; elas se sobrepe ao invs de seantagonizarem, se articulam ao invs de se exclurem: (...) A srie corpo organismo disciplina instituies; e a srie populao processos biolgicos mecanismoregulamentadores Estado. Um conjunto orgnico institucional: a organo-disciplina dainstituio, se vocs quiserem, e, de outro lado, um conjunto biolgico e estatal: a bio-regulamentao pelo Estado. No quero fazer essa oposio entre Estado e instituio aturarno absoluto, porque as disciplinas sempre tendem, de fato, a ultrapassar o mbito institucionale local em que so consideradas. E, depois, elas adquirem facilmente uma dimenso estatalem certos aparelhos como a polcia, por exemplo, que e a um s tempo um aparelho dedisciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem sempre institucional).E, da mesma forma, essas grandes regulaes globais que proliferam ao longo do sculo XIX,ns as encontramos, claro, no nvel estatal,, mas tambm abaixo do nvel estatal, com toda

    uma srie de instituies subestatais, como as instituies mdicas, as caixas de auxlio, osseguros etc. Op. Cit., pp. 298-299.15 Op. Cit., p. 300.

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    (...) A norma o que pode tanto se aplicar a um corpo que se querdisciplinar quanto a uma populao que se quer regulamentar. (...) Asociedade de normalizao uma sociedade em que se cruzam,conforme uma articulao ortogonal, a norma da disciplina e a normada regulamentao. Dizer que o poder, no sculo XIX, tomou posseda vida, dizer pelo menos que o poder, no sculo XIX, incumbiu-se

    da vida, dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfcie que seestende do orgnico ao biolgico, do corpo populao, mediante ojogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e dastecnologias de regulamentao, de outra16.

    Esta sociedade de normalizao, ento, encontra-se em um paradoxo,segundo Foucault: de um lado, a morte desqualificada e o poder desoberania recua consideravelmente, j que a biopoltica avana sem cessar, deoutro, a morte quando desejada pelo poder exercida por ele apesar destabiopoltica. Para Foucault, as sociedades regulamentadoras resolveram oparadoxo pela mediao do racismo, pela estatizao dele: por ele, h o divisor

    de guas entre o que deve viver e o que deve morrer; a distino, qualificaoe hierarquizao das raas, atribuindo vida a algumas (majorando-as) e mortea outras; matar a raa inferior para garantir a vida, a sade, a pureza da raasuperior, dando segurana biolgica para esta:

    (...) A morte do outro no simplesmente a minha vida, na medidaem que seria minha segurana pessoal, a morte do outro, (a morteda raa ruim, da raa inferior ou do degenerado, ou do anormal) oque vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura. Portanto,relao no militar, guerreira ou poltica, mas relao biolgica17.

    Pelo racismo, nota-se, a sociedade normalizadora aceita retirar a vida, apesarda biopoltica que caracteriza esta sociedade. E mais, biopoltca e racismo nose excluem neste aspecto, este a condio18 para que o Estado exera odireito de matar; afinal, em compasso com o racismo, Foucault lembra queocorreram a colonizao e o evolucionismo. Pelo racismo, lembra tambm,populaes so expostas a uma guerra permanente: preciso eliminar oadversrio poltica e biologicamente, garantindo a prpria segurana e aregenerao de um ponto de vista biolgico articula-se o direito de morte (deuns) com a proteo vida (de outros), a funo de morte com a economia dobiopoder, a eliminao e a purificao das raas.

    A abordagem que Foucault, neste aspecto, faz do nazismo esclarecedorapara a biopoltica: trata-se de um estado que combina assassinato, racismo,disciplina e regulamentao biolgica:

    (...) Poder disciplinar, biopoder: tudo isso percorreu, sustentou amuque a sociedade nazista (assuno do biolgico, da procriao,da hereditariedade; assuno tambm da doena, dos acidentes).No h sociedade a um s tempo mais disciplinar e mais

    16

    Op. Cit., p. 302.17 Op. Cit., p. 305.18 Op. Cit., p. 306.

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    previdenciria do que a que foi implantada, ou em todo casoprojetada, pelos nazistas19.

    Ao mesmo tempo, o nazismo desencadeou o direito de morte. Mas, ao declarara guerra e ao assassinar o inimigo, exps-se, concomitantemente, a prpria

    raa ao perigo da morte o risco de morte e a obedincia caracterizaram apoltica nazista de exposio da populao morte, garantindo para esta aconstituio de si mesma como raa superior e a possibilidade daregenerao perante s raas inferiores. Em outros termos, o nazismogeneralizou tanto a biopoltica como o direito soberano de matar.

    AGAMBEN

    Na introduo de Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, Agambensituou conceitualmente o leitor dos seus textos a partir de dois momentoshistricos no Ocidente: segundo ele, os gregos usavam dois termos parareferirem-se vida zocomo um viver comum a todos os seres humanos ebos como uma forma prpria de viver concernente a um indivduo ou a um

    grupo, isto , uma vida qualificada, particularizada. A vida natural, portanto,entre os gregos, enquadra-se como zoe excluda da polis: o homem dapolisno aquele que limita a vida reproduo, o homem da poltica cujosentido viver segundo o bem. O segundo momento considerado porAgamben a Idade Moderna: nela a vida natural comea a ser includa nosmecanismos de poder estatal, trazendo a zo para a esfera da poltica,expandindo a noo de poltica para biopolticae trazendo consigo um controledisciplinar e uma srie de tecnologias de poder para docilizar os corpos daspessoas, comenta Agamben a partir da produo foucaultiana: ocorre umacrescente implicao da vida natural do homem nos mecanismos e nos

    clculos do poder. Outra referncia citada por Agamben para demarcar aespecificidade do perodo moderno foi a obra de Hannah Arendt: ela trabalharao modo como a vida biolgica ocupou o centro da cena poltica naModernidade, fazendo declinar o espao pblico neste perodo.

    Foucault investigara o poder por duas diretrizes, segundo Agamben, sendoque a primeira constituiu-se do estudo das tcnicas polticas pelas quais oEstado assume e integra a vida natural dos indivduos, j a segunda constituiu-se do estudo das tecnologias do eu nas quais a subjetivao vincula a

    identidade e a conscincia do indivduo ao poder de controle externo a ele.19 Op. Cit., p. 309.

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    Agamben deseja encontrar uma convergncia de toque entre estes dois pontosde individualizao e totalizao:

    (...) possvel, em um mbito to decisivo, contentar-se comexplicaes psicolgicas, como aquela ainda que no desprovida desugestes, que estabelece um paralelismo entre neuroses externase neuroses internas? E diante de fenmenos como o podermiditico-espetacular, que est hoje por toda parte transformando oespao pblico, legtimo ou at mesmo possvel manter distintastecnologias subjetivas e tcnicas polticas?20

    Diante destas candentes questes, Agamben definiu com clareza seu objeto nolivro: trata-se de investigar a interseco entre o que jurdico-institucional e oque biopoltico e no separar estes dois mbitos um do outro. Trata-se,ainda, de mostrar as implicaes da vida nua na esfera poltica como ncleooriginrio do poder soberano21, de mostrar como a contribuio original dopoder soberano foi o corpo biopoltico a vida nua entra na poltica a partir deuma qualificao, de uma mediao.

    O que torna necessrio explicar a relao entre poltica e vida nua noOcidente, cuja caracterstica a excluso da segunda pela primeira, apolitizao da vida nua, absorvendo esta na poltica e, portanto, acategorizao poltica da Modernidade reside em uma zo-bos, excluso-incluso22. Assim, Agamben marca seu ponto de distino tanto de Aristtelescomo de Foucault:

    20 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo deHenrique Burigo, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 14.

    21 Op. Cit., p. 14.22 A imagem que Agamben busca para esta situao a do homo sacer: trata-se daquele que,no direito romano arcaico, fora includo porque fora, anteriormente, excludo da sociedade dealgum modo, aquele que fora condenado pelo Estado e encontrava-se exposto a ele sua vidaestava exposta, era matvel, nua, mas o Estado no findava com ela. Ver Homo sacer,primeiro captulo da segunda parte de Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Agamben,no terceiro captulo da mesma parte, ainda comenta que a vida se torna sacra no seguintesentido: a vida da pessoa posta para fora da jurisdio sem que adentre na vida divina e,

    assim, a violncia executada contra ela no era sacrlega; por isso, a analogia com a exceosoberana ocorre na medida em que a lei aplica-se desaplicando-se o homo sacerpertence aDeus na forma da insacrificabilidade e includo na comunidade na forma da matabilidade,aquele cuja vida se encontra nua sob o bando soberano. A analogia entre a sacratio e aexceo soberana, alis, estrutural, segundo Agamben: (...) Aquilo que capturado no bando soberano uma vida humana matvel e insacrificvel: o homo sacer. Se chamamosvida nua ou vida sacra a esta vida que constitui o contedo primeiro do poder soberano,dispomos ainda de um princpio de resposta para o quesito benjaminiano acerca da origem dodogma da sacralidade da vida. Sacra, isto , matvel e insacrificvel, originariamente a vidano bando soberano, e a produo da vida nua , neste sentido, o prstimo original dasoberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberanocomo um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrrio, em suaorigem, justamente a sujeio da vida a um poder de morte, a sua irreparvel exposio na

    relao de abandono. (Op. Cit., p. 91). Fora do mbito religioso e do mbito profano, todos sosoberanos frente ao homo sacer; fora do mbito religioso e do mbito profano, todos sohomines sacrifrente ao soberano eis um espao poltico em sentido prprio, j que se est

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    (...) A tese foucaultiana dever, ento, ser corrigida ou, pelomenos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza apoltica moderna no tanto a incluso da zona polis, em siantiqssima, nem simplesmente o fato de que a vida como talvenha a ser um objeto eminente dos clculos e das previses dopoder estatal; decisivo , sobretudo, o fato de que, lado a lado

    com o processo pelo qual a exceo se torna em todos oslugares a regra, o espao da vida nua, situado originariamente margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir com oespao poltico, a excluso e incluso, externo e interno, bosezo, direito e fato entram em uma zona de irredutvelindistino23.

    Assim, as democracias modernas encontram-se em uma situao aportica namedida em que, ao colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens soba questo da vida nua, submetem esta ao seu domnio, j que bos e zoacabaram por no se discernirem, fazendo Agamben chamar a ateno doleitor, alis, para uma solidariedade entre a democracia e totalitarismo.

    Como Agamben explora o conceito schimittiano de soberania e o paradoxoali existente, no qual o soberano aquele que est dentro e fora doordenamento jurdico, aquele que decide se a constituio deve ou no sersuspensa, ele pde notar um compasso entre este paradoxo e o paradoxo daexceo, no qual o que est em jogo a suspenso da lei o monoplio detais decises encontra-se com o soberano e, por encontrar-se, ento, fora dodireito, ele inclui a partir da excluso. A exceo deliberada pelo soberano aregra da Modernidade segundo a anlise de Agamben: a vida nua

    incorporada no clculo poltico, tal como ocorre em um campo deconcentrao. Por tal caracterstica, a soberania no pode ser entendidaapenas como categoria jurdica e poltica, se a exceo a estrutura dasoberania, a estrutura dela a estrutura de bando24:

    (...) Chamemos bando(...) a esta potncia (...) da lei de manter-sena prpria privao, de aplicar-se desaplicando-se. A relao de

    em uma esfera que excede tanto as esferas do direito como do sacrifcio, abrindo uma zona deindistino que Agamben quer definir.23 Op. Cit., p. 16.24

    Agamben ilustra a estrutura de bando da soberania com o texto Diante da Lei, de Kafka, noqual a lei se afirma na sua forma mais pura na medida em que nada prescreve o camponsencontra-se totalmente entregue lei, mas esta nada lhe exige. E, para Agamben, o esquemada exceo soberana concernente na medida em que a lei aplica-se desaplicando-se. Trata-se de uma lei que vigora sem significado e, assim, a figura de Kant que trazida tona porAgamben, j que a tica kantiana coloca o sujeito tico diante de uma lei que vigora semsignificar. Lei e vida, ento, na literatura kafkiana e na tica kantiana, so indiscernveis e esteprocesso semelhante ao estado de exceo. No entanto, a partir de Jean Luc Nancy queAgamben pinta com mais preciso a estrutura ontolgica do abandono: A soberania , de fato,precisamente esta lei alm da lei qual somos abandonados, ou seja o poderautopressuponente do nmos, e somente se conseguirmos pensar o ser do abandono alm detoda idia de lei (ainda que seja na forma vazia de uma vigncia sem significado), poder-se-dizer que samos do paradoxo da soberania em direo a uma poltica livre de todo o bando.

    Uma pura forma da lei apenas a forma vazia da relao; ,mas a forma vazia da relao no mais uma lei, e sim uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado deexceo (Op cit., p. 66).

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    exceo uma relao de bando. Aquele que foi banido no , naverdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco o limiarem que vida e direito, externo e interno se confundem. Dele no literalmente possvel que esteja fora ou dentro do ordenamento (...). neste sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma:

    no existe um fora da lei. A relao originria da lei com a vida no a aplicao, mas o Abandono. A potncia insupervel do nomos, asua originria fora de lei, que ele mantm a vida em seu bandoabandonando-a25.

    Sujeitos a um poder de morte, a vida do homo sacerentra na cidade com adupla exceo da matabilidade e da insacrificabilidade, trata-se de uma vidasacra uma zona de indistino na qual bos e zo se constituem emcompasso por esse abandono a um poder de morte que a vida (nua)humana se politiza, j que um elemento poltico originrio da soberania.

    O fato da soberania estar contemplada no Estado de direito em nadadiminui o paradoxo da soberania, segundo Agamben: desde Pndaro, oOcidente caracteriza-se pela composio entre violncia e justia, tornando-osindistintos o soberano o ponto de indiferena entre violncia e direito, olimiar em que a violncia transpassa em direito e o direito em violncia26. Ou,para explorar outras fontes, Agamben tambm cita Plato (Grgias484b, 1-10)e expem a violncia aplicando-se aos justos, aplicando-se natureza e, maisuma vez, coincidindo violncia e direito. Em Hobbes, a indistino entre direitoe violncia foi trabalhada pelo poder do soberano ser a violncia do mais forteaplicada sobre os demais e, dessa forma, a figura do soberano faz sobreviver o

    estado de natureza expandindo o paradoxo da soberania, agora, a natureza ea lei so indistintas, o homem e o lobo so iguais e, sob o estado de natureza,a condio de cada um para com o outro a de homo sacer, de vida nua, e sobre essa condio que a soberania opera com um espao autenticamentepoltico. O estado de natureza , de Hobbes a Rousseau, um estado deexceo e a fundao da sociedade civil mantm, mediante a decisosoberana, a vida nua, o homo sacer homem e lobo, natureza e culturaencontram-se em uma zona de indiferena. Eis o relacionamento poltico-jurdico originrio, a saber, o bando: assim que vida nua e poder soberano se

    mantm unidos27

    . Com Schimitt, nota-se que o nmosda soberania aproxima-se tambm do estado de natureza: recorrendo a Pndaro, Schimitt observa a

    25 Op. Cit., p. 36.26 Op. Cit., p. 38.27 esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relaes polticas e nosespaos pblicos em que ainda vivemos. Mais ntimo que toda interioridade e mais externo quetoda a estraneidade , na cidade, o banimento da vida sacra. Ela o nmos soberano quecondiciona todas as outras normas, a espacializao originria que torna possvel e governatoda localizao e toda territorializao. E se, na modernidade, a vida se coloca sempre maisclaramente no cento da poltica estatal (que se tornou, nos temos de Foucault, biopoltica), se,

    no nosso tempo, em um sentido virtualmente como homines sacri, isto somente possvelporque a relao de bando constitua desde a origem a estrutura prpria do poder soberanoOp. Cit., p. 117.

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    superioridade do nmosdo soberano frente concepo positivstica da lei e,dessa forma, aproxima o nmosdo soberano e o estado de exceo:

    (...) Estado de natureza e estado de exceo so apenas as duasfaces de um nico processo topolgico no qual, como numa fita deMoebius ou em uma garrafa de Leyden, o que era pressuposto comoexterno (o estado de natureza) ressurge agora no interior (comoestado de exceo), e o poder soberano justamente estaimpossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceo,phsis e nmos. O estado de exceo, logo, no tanto umasuspenso espao-temporal, quanto uma figura topolgicacomplexa, em que no s a exceo e a regra, mas at mesmo oestado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelooutro. justamente nesta zona topolgica de indistino, quedeveria permanecer ocultar aos olhos da justia, que ns devemostentar em fixar o olhar.

    O fato de existir um poder constituinte e deste se relacionar com o poder

    constitudo tambm em nada diminui o paradoxo da soberania: de um lado, opoder constitudo est no estabelecido na ordem do Estado, de outro, o poderconstituinte situa-se fora dele. Porm, recorrendo a Sieys, Agamben observaque a constituio se pressupe como poder constituinte e, por isso, exprime oparadoxo da soberania: se o poder soberano se pressupe como estado denatureza,

    que assim mantido em relao de bando com o estado de direito,assim ele se divide em poder constituinte e poder constitudo e seconserva em relacionamento com ambos, situando-se em seu pontode indiferena28.

    Em termos aristotlicos, a relao entre poder constituinte e poder constitudo traduzida por Agamben pela relao entre potncia e ato: em relao ao ato, apotncia o precede, o condiciona e permanece nele e, ainda, continuaautnoma em relao a ele, j que pode ou no passar ao ato. Assim, arelao da potncia com o ato uma relao de suspenso ela decidesoberanamentesobre a realizao ou no do ato. Para Agamben, o paradigmada soberania foi exposto por Aristteles nesta doutrina do ato e da potncia:

    estrutura da potncia, que se mantm em relao com o atoprecisamente atravs de seu poder no ser, corresponde aquela dobando soberano, que aplica-se exceo desaplicando-se. Apotncia (no seu dplice aspecto de potncia de e potncia de no) o modo atravs do qual o ser se funda soberanamente, ou seja,sem nada que o preceda e determine seno o prprio poder no ser.E soberano aquele ato que se realiza simplesmente retirando aprpria potncia de no ser, deixando-se ser, doando-se a si29.

    Como a soberania dplice, j que, como potncia, se auto-suspende e semantm, isto , mantm uma relao de bando consigo mesma, h uma zonade indistino entre ato e potncia puros e esta indistino que caracteriza osoberano.

    28 Op. Cit., p. 48.29 Op. Cit., p. 54.

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    Foi Benjamin quem notou o nexo entre direito e violncia como umapremissa necessria para o estudo da soberania: a violncia ou pe o direitoou o conserva. Desta forma, preciso encontrar, tambm, uma figura querompa com esta dialtica circular e a sada benjaminiana a idia de violnciadivina: no se trata de por ou de conservar o poder, mas de dep-lo noestado de exceo, a violncia conserva e suspende o direito, existeexecutando-o. Isto , a violncia soberana abre uma zona de indistino entrelei e natureza, o que externo e o que interno, entre a violncia e o direito ecabe ao soberano a deciso. Assim, exceo e regra so indiscernveis, j quea violncia tanto pe como conserva o direito, isto , o depe, a violncia omeio que estabelece o direito e o fim pelo qual o direito executa-seviolentamente. Neste nexo entre direito e violncia, a vida nua e a sua relaocom a violncia jurdica, segundo Agamben, precisam ser explorados; afinal, odomnio do direito sobre o vivente coextensivo vida nua e encontra seus

    limites nela e, por outro lado, um fim da violncia jurdica remonta culpa davida nua natural e entrega o vivente pena, purificando-o legalmente30.

    Como j foi exposto, Agamben leva a reflexo sobre a biopoltica a umpatamar bem diferente daquele que Foucault e Hannah Arendt alcanaram.Graas ao conceito de vida nua ou de vida sacra, Agamben pde convergir opensamento deles e entrelaar de modo mais ntimo os mbitos da poltica eda vida; assim, a vida nua torna-se inteligvel mediante a poltica e,

    concomitantemente, a poltica moderna torna-se inteligvel ao se levar emconta a vida nua. Assim, Agamben citou Karl Lwith como o primeiro a definirpolitizao da vida a peculiaridade dos estados totalitrios e a semelhanadestes com os estados democrticos: a vida aparece inscrita na ordem estatal,a nuance do processo fica por conta da primazia do privado sobre o pblico nademocracia burguesa e da vida biolgica como critrio poltico por excelnciadas escolhas soberanas nos estados totalitrios; porm, em ambos os casos, abiopoltica o que caracteriza as duas formas e expe a vida nua em umazona indistinta de operao poltica, jurdica, mdica, cientfica e sacerdotal

    alm de biopoltca, a denominao de tanatopoltica tambm usada porAgamben, j que a deciso sobre a vida e a morte das pessoas por parte dosoberano pensada a partir da simbiose destas diferentes reas. Somente poreste campo da biopoltica possvel entender a poltica moderna, somente por

    30 Para Agamben, estas questes so objeto de um frutfero debate entre Benjamin e Schmitt e tal debate o objeto do captulo 4 de Estado de exceo: (...) A discusso se d numa mesmazona de anomia que, de um lado, deve ser mantida a todo custo em relao com o direito e, deoutro, deve ser tambm implacavelmente libertada dessa relao. O que est em questo nazona de anomia , pois, a relao entre violncia e direito em ltima anlise, o estatuto daviolncia como cdigo da ao humana. Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever

    a violncia no contexto jurdico, Benjamin responde procurando, a cada vez, assegurar a ela como violncia pura uma existncia fora do direito. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo:homo sacer II, 1. Traduo de Iraci D. Poleti, So Paulo: Boitempo, 2edio, 2007, p. 92.

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    ela se entende os primeiros registros de Habeas corpus, em 1679, e seentende como a vida nua entra para o nvel de um sujeito poltico, fazendo ademocracia moderna nascer da reivindicao e exposio do corpo, destacentralidade do corpo31.

    por isso que no se pode entender as declaraes sobre os direitos dohomem independentemente da emergncia dos estados nacionais: a vidanatural agora inscrita da ordem jurdico-poltica dos estados nacionais est noprimeiro plano da estrutura do Estado e do prprio fundamento/legitimidadedeste; afinal, a Declarao de 1789 expressa a vida nua como fonte do direito do nascimento do homem nao (nascere) os direitos se conservam, a vidanua regulamentada pela biopoltica. Ao invs de soberania rgia de origemdivina, h agora a soberania nacional e a passagem de uma para a outraocorre pelo nascimento como portador imediato da soberania32 deixa-se de

    ser sdito e passa-se a ser cidado, mas com a vida nua investida pelo estadodesde o nascimento. Esta articulao entre nascimento e nao toimportante para se entender a poltica moderna que, quando se passou poruma crise da funo das declaraes dos direitos e a articulao e o estado-nao entram em crise, formou-se um movimento biopoltico que fez da vidanatural o local por excelncia da deciso soberana33, a saber, o fascismo e onazismo. Outra questo moderna inteligvel a partir dos presentes conceitos devida nua e biopoltca a dos refugiados: a quebra da relao entre nascimentoe nacionalidade gera a crise da soberania moderna, j que os refugiadosrompem com o nexo nascimento-nao e deslegitimam a ao do estado-nao. Ao mesmo tempo, e mais significativamente, os mesmos estados doorigem a normas que permitem desnaturalizar e desnacionalizar em massa osseus prprios cidados:

    (...) uma das poucas regras s quais os nazistas se ativeramconstantemente no curso da soluo final, era a de que somentedepois de terem sido completamente desnacionalizados (at dacidadania residual que lhes cabia aps as leis de Nuremberg), oshebreus podiam ser enviados aos campos de extermnio34.

    Tanto o problema dos refugiados como o problema do nazismo mostram a

    crise do nexo nascimento-nao e a soberania nacional que da decorre a partirda declarao dos direitos: os estados discriminam no seu prprio interior umavida nua privada de valor poltico e, tambm, no caso dos refugiados, osdireitos do homem separam-se deste na medida em que a pessoa expulsa doseu estado at que seja recodificada em uma outra identidade nacional.

    Se os estados nacionais j encontravam-se, no sculo XX, na discriminaopoltica das vidas nuas no interior dos seus domnios, eles alcanaram tambm

    31 AGAMBEN, Giordio. Homo sacer:o poder soberano e a vida nua I. Op. Cit., p. 131.32

    Op. Cit., p. 135.33 Op. Cit., p. 135.34 Op. Cit., p. 139.

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    o patamar de declarar que algumas destas vidas eram indignas de seremvividas: citando Karl Binding e Alfred Hoche, Die Freigabe der Vernichtunglebensunweten Lebens, Agamben comenta que um homem vivente temsoberania sobre a sua existncia e, por isso, alguns se suicidam e impossvelque sejam punidos. Desta discusso, os autores derivam a necessidade deautorizao do aniquilamento das vidas que sejam indignas de serem vividas,segundo eles: trata-se daqueles com doenas incurveis e de idiotasincurveis e que, eles ou sua famlia, expressaram o desejo de morte; a partirdeste desejo, uma comisso estatal composta de um mdico, um psiquiatra eum jurista teria o poder de deciso final da questo. No se trata, portanto, dehomicdio, mas da fixao de um limiar alm do qual a vida cessa de ter valorjurdico, trata-se da vida nua do homo sacer Agamben considera que estelimite alargou-se na histria do Ocidente e chegou, hoje, ao interior de todavida humana e de todo cidado, deixando de ser apenas confinada a uma

    categoria definida e ocupando o ser biolgico de cada vivente. No nazismo, porexemplo, o programa de eutansia alargou-se para os judeus e para todos osoutros indesejveis ao estado a biopoltica nazista converte-se emtanatopoltica na medida em que, ao zelar pelo corpo biolgico da nao, adeciso soberana de aniquilar a vida matvel executada. Isto , a biopolticamoderna caracteriza-se pelo estabelecimento da soberania no poder dedeciso sobre o valor ou desvalor da vida como tal e, conseqentemente, oencaminhamento da mesma vida ou a morte.

    Ademais, ao politizar a vida biolgica de tal modo, valorizando-a/desvalorizando-a, o nazismo colocou a vida biolgica como a prpria base desua (bio)poltica e regulando-a pela eugenia a poltica policia a vida biolgicaimpedindo a degenerao gentica e promovendo a sade hereditria para oReich. Poltica e vida so imediatamente ligadas uma outra, usando umaexpresso de Verschuer, Agamben mostra que a poltica tem por missojustamente dar forma vida do povo a vida , ao mesmo tempo, sujeito eobjeto da poltica estatal. Levando a questo a um mbito ainda mais geral,Agamben conclui:

    (...) Quando vida e poltica, divididos na origem e articulados entre siatravs da terra de ningum do estado de exceo, na qual habita avida nua, tendem a identificar-se, ento toda a vida torna-se sacra etoda a poltica torna-se exceo35.

    E mais: alm da vida, a morte tambm politizada: as cobaias humanas(Versuchepersonen) no incio do sculo XX, nos crceres dos EUA, e osinmeros casos sob o nazismo mostram que estas cobaias eram os excludosda comunidade poltica e, portanto, privados dos direitos condenados morteou detentos dos campos de concentrao eram vida nua, homines sacri, mata-se, mas no se trata de homicdio. Mas a politizao da morte talvez seja ainda

    35 Op. Cit., p. 155.

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    mais forte a partir da idia de alm-coma, um estado em que a dependncia dasobrevivncia tecnolgica. Porm, os aparelhos no evitavam a mortecerebral e, assim, apesar desta, o corpo tinha suas funes vegetativas emfuncionamento graas ao aparelho. Isto , a morte passa por uma redefinio:a vida nua do alm-comatoso controlada tecnologicamente pelo homem, uma vida que se pode encerrar sem que se cometa o homicdio, umapolitizao da vida e da morte em grau elevado e que contemplada tanto nototalitarismo quanto nas democracias modernas.

    Diante de tal biopoltica e tanatopoltica modernas, Agamben entocaracteriza a matriz do espao poltico em que vivemos, a saber, o campo. Ocampo aquele espao no qual se superou o conceito jurdico de crime: em1896, os espanhis montaram um em Cuba; no incio do sculo XX, osingleses aprisionaram os beres em campos; na Alemanha, uma lei prussiana

    de 1851 j tratava da Schutzhaft (custdia preventiva) e sob a Repblica deWeimar, em 1923, baseada na Schutzhaft, criou-se a Konzentrationslager frAuslnder, que hospedava comunistas e judeus orientais refugiados. Osnazistas fizeram o mesmo, mas com a novidade de confundir o estado deexceo com a prpria norma, a ponto dos juristas nazistas falarem em umestado de exceo desejado. E, com o estado de exceo tornando-se regra,o campo de concentrao o espao caracterstico situao ao invs desuspenso temporal do ordenamento, ocorre uma disposio permanente eestvel fora do mesmo ordenamento. No entanto, comentando que o campo deconcentrao est localizado dentro do prprio territrio nacional, Agambenmostra que este local est fora do ordenamento jurdico normal e o objeto queele recebe capturado fora do campo de concentrao e dentro do territrionacional, isto , ele inclui mediante a excluso, ele normaliza a exceo, tornafato e direito indiscernveis:

    (...) O campo , digamos, a estrutura em que o estado de exceo,em cuja possvel deciso se baseia o poder soberano, realizadonormalmente. O soberano no se limita mais a decidir sobre aexceo, como estava no esprito da constituio de Weimar, combase no reconhecimento de uma dada situao factcia (o perigopara a segurana pblica): exibindo a nu a ntima estrutura de bando

    que caracteriza o seu poder, ele agora produz a situao de fatocomo conseqncia da deciso sobre a exceo. Por isso,observando-se bem, no campo a quaestio iuris no maisabsolutamente distinguvel da quaestio facti e, neste sentido,qualquer questionamento sobre a legalidade ou ilegalidade daquiloque nele sucede simplesmente desprovido de sentido. O campo um hbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornaram-seindiscernveis36.

    Como direito e fato se confundem, Hannah Arendt j havia dito que no campode concentrao tudo era possvel. O que Agamben introduz a idia de que

    36 Op. Cit., p. 177.

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    este campo um espao biopoltico jamais visto anteriormente37, j que a vidanua est diante do poder sem nenhuma mediao e a deciso polticasoberana opera a partir da indiferenciao entre fato e direito, vida e poltica (neste sentido que se compreende que a palavra do Fhrer era a lei) apoltica torna-se biopoltica e o homo sacer se confunde virtualmente com ocidado38. A rigor, a argumentao de Agamben para demonstrar como ocampo o espao poltico peculiar Modernidade: o estado-nao quefunciona a partir no nexo entre localizao (territrio), ordenamento (Estado) eregras de inscrio da vida (nascimento ou nao) encontra-se em crise e,ento, o Estado assume os cuidados da vida biolgica diretamente ser apartir do campo que regular a inscrio da vida. guisa de concluso sobre apoltica moderna, eis as palavras de Agamben:

    (...) O estado de exceo que era essencialmente uma suspensotemporal do ordenamento, torna-se agora uma nova e estvel

    disposio espacial, na qual habita aquela vida nua que, emproporo crescente, no pode mais ser inscrita no ordenamento. Odescolamento crescente entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nao o fato novo da poltica do nosso tempo, e aquilo quechamamos de campo o seu resduo. A um ordenamento semlocalizao (o estado de exceo, no qual a lei suspensa)corresponde agora uma localizao sem ordenamento (o campo,como espao permanente de exceo). O sistema poltico noordena mais formas de vida e normas jurdicas em um espaodeterminado, mas contm em seu interior uma localizaodeslocante que o excede, na qual toda forma de vida e toda normapodem virtualmente ser capturadas. O campo como localizaodeslocante a matriz oculta da poltica em que ainda vivemos, quedevemos aprender a reconhecer atravs de todas as suasmetamorfoses, nas zones dattentede nossos aeroportos bem comoem certas periferias de nossas cidades. Este o quarto, inseparvelelemento que veio a juntar-se, rompendo-a, velha trindade Estado-nao (nascimento)-territrio39.

    O campo, de modo geral, e Auschwitz, como um dos exemplos, a normado espao poltico contemporneo e, levando a anlise s ltimasconseqncias, , tambm, o paradigma biopoltico moderno: a vida nua, nele, exposta da forma que os muulmanos40 eram expostos em Auschwitz comoobjetos do que a biopoltica, como Foucault j apontara, morrer, isto ,

    37 Como no h nada no corpo que impea a ao do soberano, no h como se pensar umanova economia de prazer para ele e, assim, se fundar uma nova poltica alm dos dispositivosdo poder existentes, argumenta Agamben contra Foucault (Op. Cit., pp. 192-193).38 Op. Cit., p. 178.39 Op. Cit., 182.40 Sobre a denominao de muulmano aos que estavam expostos, resignados e sem aocontra a SS, em Auschwitz, Agamben considera que o mais provvel que o termo foi usadopor se remeter, etimologicamente e pela acepo que, desde a Idade Mdia, os europeusfaziam dos muulmanos , a quem se submete incondicionalmente vontade de Deus. Osmuulmanos foram os que morreram em srie e que no sobreviveram para, mais tarde,testemunhar o ocorrido; so os sobreviventes que falam por eles e, estes, no so as

    testemunhas, portanto, que expressam a voz dos prprios muulmanos. AGAMBEN, Giorgio. Oque resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). Traduo de Selvino J.Assmann, So Paulo: Boitempo, 2008, p. 52.

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    biopoltica e tanatopoltica na medida que o racismo inerente a um estadototalitrio e biopoltico como o nazismo. Em O que resta de Auschwitz,Agamben diz:

    O no-ariano transmuta-se em judeu, o judeu em deportado (...), o

    deportado em internado (...), at que, no campo, as cesurasbiopolticas alcancem o seu limite ltimo. O limite o muulmano.

    (...) Compreende-se ento a funo decisiva dos campos no sistemada biopoltica nazista. Eles no so apenas o lugar da morte e doextermnio, mas tambm, e antes de qualquer outra coisa, o lugar deproduo do muulmano, da ltima substncia biopoltica isolvel nocontinuum biolgico. Para alm disso, h somente a cmara degs41.

    Para Agamben, mais que deixar morrer, a especificidade da biopoltica dosculo XX a de fazer sobreviver, separando certos tipos de vida e

    qualificando-os como vida orgnica ou vida animal, o no-humano do humano,o muulmano da testemunha, a vida vegetativa da vida consciente, entre zoebos separado dos outros, o muulmano, por exemplo, torna-se a substnciabiopoltica absoluta.

    Como j foi exposto laconicamente, a caracterstica da poltica moderna,alm de estar ambientada em um campo, a de constituir-se em umpermanenteestado de exceo e, ademais, tal estado de exceo tambmbiopoltico. Em Estado de exceo: homo sacer II, Agamben exps estas idiase, neste artigo, seguiu-se sua argumentao para aquilo que concerne commais proximidade ao presente objeto.

    Para Agamben, a situao moderna a de um permanente estado deexceo: logo que assumiu o poder, Hitler promulgou o Decreto para aproteo do povo e do Estadoe este jamais foi revogado. Esta permanncia doestado de exceo o paradigma de governo dominante na polticacontempornea42, independentemente da democracia ou do absolutismo: nosdois casos h uma estrutura biopoltica de incluso do vivente em uma

    excluso do direito conforme os exemplos das leis ps 11 de Setembro dosEUA ratificam ao anular o estatuto jurdico do indivduo e deixando-oinominvel e inclassificvel (a military orderque autoriza a indefinitive detentionde cidados suspeitos e o USA Patriot Act, promulgado pelo senado, quepermite manter preso o estrangeiro que seja suspeito de atividades perigosas segurana dos Estados Unidos). Nota-se a expanso do poder executivo(iniciada por conta das duas guerras mundiais) e uma reduo do legislativo ratificao de disposies promulgadas pelo executivo sob a forma de

    41

    Op. Cit., p. 90.42 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo: homo sacer II, 1. Traduo de Iraci D. Poleti, SoPaulo: Boitempo, 2edio, 2007, p. 13.

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    decretos com fora-de-lei43 (repblicas deixam de ser parlamentares paratornarem-se governamentais) tanto no caso do decreto de Hitler como no casodemocrtico44: o estado de exceo como regra , para Agamben, uma tcnicade governo usada em ambos os casos. Em termos jurdicos, apesar de unsdefenderem a incluso do estado de exceo no ordenamento e outrosdefenderem a excluso, Agamben considera que, na verdade, a discussocorreta no esta, mas o lugar onde a incluso e a excluso se indeterminam,isto , a zona de indiferena entre o fora e o dentro.

    Para Agamben, a construo mais rigorosa de uma teoria do estado deexceo levando em conta as questes de mbito jurdico foi a obra de CarlSchmitt: em 1921, Schmitt apresentou o estado de exceo mediante a figurada ditadura, que pode ser de dois tipos, a saber, a ditadura comissria e aditadura soberana. A primeira pretende defender ou restaurar a constituio

    vigente45

    . A segunda alcana a mxima crtica da exceo. J no livro de1922, a questo se remete diretamente para o estado de exceo e para aquesto da soberania: embora ocorra uma suspenso da ordem jurdica, harticulao do estado de exceo com a ordem jurdica; afinal o que seinscreve no direito algo exterior a ele. Articulao paradoxal, segundo Schmittem Die Diktatur: na ditadura comissria a inscrio operada pela distinoentre normas do direito e normas de realizao do direito, na ditadura soberana a distino entre poder constituinte e poder constitudo que opera a inscrio.J em Politische Theologie, o que opera a inscrio do estado de exceo naordem jurdica a distino entre norma e deciso, considerando-se amboscomo autnomos o soberano decide pelo estado de exceo e ancora suadeciso na ordem jurdica. Fora da ordem jurdica por decidir em suspend-la,o soberano encontra-se, concomitantemente, dentro dela j que oresponsvel pela deciso em suspenso da constituio:

    Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal a estruturatopolgica do estado de exceo, e apenas porque o soberano quedecide sobre a exceo , na realidade, logicamente definido por elaem seu ser, que ele pode tambm ser definido pelo oximoroxtase-pertencimento

    46.

    Outra distino feita por Schmitt foi entre norma do direito e norma derealizao do direito: na ditadura comissria o segundo momento autnomoem relao ao primeiro; na ditadura soberana a velha constituio foi suprimidae a nova , ainda, constituinte, isto , se aplica uma lei que no est em vigor.Em 1989, Derrida falou, baseando-se na Revoluo Francesa, da distinoentre eficcia da lei, que leva em conta a atividade legislativa e seus efeitos

    43 Op. Cit., p. 18.44 No item 1.7 de Estado de exceo, Agamben exps uma breve histria do estado deexceo na qual o dispositivo tem origem na Revoluo Francesa decretado pela Assemblia

    Constituinte em 1791. Tanto na democracia como na ditadura, argumenta Agamben.45 Op. Cit., p. 53.46 Op. Cit., p. 57.

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    jurdicos, e fora-de-lei, decretos que podem ser realizados pelo poderexecutivo e que, assim, diferem da essncia da lei na medida em que soaplicveis pelo soberano tal como se a fora-de-lei operasse sem lei.

    Ainda sobre a relao entre o estado de exceo e o direito, Agamben

    encontrou um dispositivo no Imprio Romano que trs luz relao entreambos e permite observar o estado de exceo em sua forma paradigmtica, asaber, o iustitium:

    Quando tinha notcia de alguma situao que punha em perigo aRepblica, o Senado emitia um senatus consultum ultimumpor meiodo qual pedia aos cnsules (ou a seus substitutos em Roma, interrexou pr-cnsules) e, em alguns casos, tambm aos pretores e aostribunos da plebe e, no limite, a cada cidado, que tomasse qualquermedida considerada necessria para a salvao do Estado (rempublicam defendant, operamque dent ne quid respublica detrimenticapiat). Esse senatus-consulto tinha por base um decreto que

    declarava o tumultus (isto , a situao de emergncia em Roma,provocada por uma guerra externa, uma insurreio ou uma guerracivil) e dava lugar, habitualmente, proclamao de um iustitium(institium edicere ou indicere)47.

    Trata-se, portanto, de uma interrupo do direito e, conseqentemente, umaproduo de um vazio jurdico; uma situao que no se limita apenas aditaduras, como este exemplo, e tambm os exemplos modernos, expressam na ditadura ou na democracia, trata-se de uma zona de anomia caracterizadapela desativao das determinaes jurdicas e que, ao mesmo tempo, essencial ordem jurdica na medida em que assegura uma relao com ela,salvando a ordem jurdica a partir da situao de emergncia. Essa zonaindefinvel , como foi dito, uma fora-de-lei sem lei.

    A evoluo semntica do termo iustitium de designao de estado deexceo para a designao de luto pblico pela morte de um soberano ou deum parente seu , segundo Agamben, importante para o entendimento daforma paradigmtica do estado de exceo. A partir da monografia de AugustoFraschetti sobre Augusto, que evidenciou o significado poltico do luto pblico emostrou o tumulto que os funerais do soberano provocavam, isto , estes

    tumultos eram administrados pelo iustitiume este foi assimilado quele. Com amorte do soberano, a suspenso do direito tornou-se parte integrante do ritualfnebre e, isto o importante, o estado de exceo e a anomia ligada pessoado soberano liberta-se da subordinao ao direito. O soberano uma lei viva e,assim, est desobrigado do direito; porm, concomitantemente, como a leicoincide no prprio soberano, este continua relacionando-se com ela. Este onexo que o estado de exceo estabelece entre um fora e um dentro da lei e,nesse sentido, constitui o arqutipo da teoria moderna da soberania48. Otumulto era controlado e o estado de exceo era transformado em luto pblico

    47 Op. Cit., p. 67.48 Op. Cit., p. 107.

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    e este em iustitium eis a indiscernibilidade entre o nomos e a anomia docorpo do soberano, a indiscernibilidade entre estado de exceo e luto pblico.Indiscernibilidade e solidariedade entre anomia e direito. O mesmo ocorre comas festas peridicas que suspendem as hierarquias jurdicas e sociais ecaracterizam-se pela permissividade temporria, tal como o carnaval umaanomia e uma tolerncia em relao a ela, uma suspenso da lei e umaconexo com ela (indiscernibilidade e solidariedade). Direito e vida serelacionam em anomia com o direito se aplicando ao caos e vida, sob oestado de exceo.

    Para Agamben, esta relao entre direito e vida (biopoltica) e este poderque o senado romano tem em suspender o direito, a auctoritas do senado,marcam profundamente toda a poltica ocidental. No contexto do ImprioRomano, auctoritas, no direito privado, remetia-se propriedade do auctor,

    quele que interfere dando validade jurdica ao ato de um sujeito que, sozinho,no goza desta possibilidade, tal como um pai autoriza o matrimnio de umfilho, expressando a auctoritasdo pai a partir da prpria condio que este temde pai. No direito pblico, auctoritasdesigna a prerrogativa prpria ao senadoque tem o poder de ratificar, por exemplo, as decises populares e de colocar oiustitiumem vigncia, suspendendo, assim, a ordem jurdica:

    (...) A auctoritas parece agir como uma fora que suspende apotestas onde Lea agia e a reativa onde ela no estava mais emvigor. um poder que suspende ou reativa o direito, mas no temvigncia formal como direito49.

    Ao mesmo tempo que se excluem, auctoritas e potestas se suplementam.Ainda no contexto do direito pblico, a auctoritas patrum promove ointerregnum, isto , com a morte do monarca, o senado nomeava um interrexpara garantir o exerccio do poder suspendendo a constituio (suspendendo apotestas) cabe ao interrexnomear o prprio sucessor. Na hostis iudicatioaauctoritas tambm suspende o poder: se a segurana da repblica fosseameaada por um cidado, este era declarado pelo senado inimigo pblico eperdia seus direitos a auctoritassuspendia o estatuto do cidado em questo.Augusto, reivindicando a auctoritas como fundamento do prprio status deprincepsexpressa uma auctoritas principis: a auctoritasderiva, aqui, da pessoae se constitui a partir da prpria pessoa, vivendo e desaparecendo com ela. Eisaqui, uma biopoltica:

    (...) Para compreender fenmenos modernos como o Ducefascistae o Fhrernazista, importante no esquecer sua continuidade como princpio de auctoritas principis. (...) As qualidades de Ducee deFhrer esto ligadas diretamente pessoa fsica e pertencem tradio biopoltica da auctoritas e no tradio jurdica dapotestas50.

    49 Op. Cit., p. 121.50 Op. Cit., p. 127.

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    Se a auctoritas inerente pessoa viva, h uma imanncia do direito vida o poder carismtico teorizado por Max Weber liga, por exemplo, a auctoritaspessoa do chefe poltico e, nos casos do fascismo e do nazismo, tal carismaaparece em compasso com a suspenso da ordem jurdica. Direito e vida searticulam mediante a auctoritas que faz com que um implique o outro(biopoltica).

    E mais: nota-se que o Ocidente tem uma tradio poltica caracterizada pelaauctoritase pela potestassendo que o primeiro um elemento normativo e osegundo um elemento anmico: para ser aplicado, o elemento normativoprecisa do anmico, embora se afirme somente se validar ou suspender apotestas o que permite a relao entre os dois elementos o estado deexceo, a partir dele os dois entram na zona de indiscernibilidade. Agambencomenta que quando os dois elementos coincidem em uma s pessoa, fazendo

    do estado de exceo uma regra, o sistema jurdico-poltico torna-se umamquina letal:

    (...) O estado de exceo, hoje, atingiu exatamente seu mximodesdobramento planetrio. O aspecto normativo do direito pode ser,assim, impunemente eliminado e contestado por uma violnciagovernamental que, ao ignorar no mbito externo o direitointernacional e produzir no mbito interno um estado de exceopermanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito51.

    51 Op. Cit., p. 131.

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    REFERNCIAS

    AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo

    de Henrique Burigo, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.____. Estado de exceo: homo sacer II, 1. Traduo de Iraci D. Poleti, SoPaulo: Boitempo, 2edio, 2007.

    ____. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III).Traduo de Selvino J. Assmann, So Paulo: Boitempo, 2008.

    FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Traduode Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio deJaneiro: Edies Graal, 3edio, 1980.

    ____. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France (1975-1976).Traduo de Maria Ermantina Galvo, So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    ____. Vigiar e Punir: nascimento da priso. Traduo de Raquel Ramalhete,Petrpolis: Vozes, 25edio, 2002.