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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO
ROBERT BLANCHÉ
Introdução
A doutrina segundo a qual existe uma realidade mental oposta à realidade física
por caracteres específicos, mas acessível como ela, ainda que de outra maneira, à
observação, submetida como ela ao determinismo da natureza e entrando com ela na
composição do universo, esteve ligada estreitamente à concepção de uma Psicologia
científica, tal como ela se constituiu, ao longo do século XIX, como ciência dos fatos
mentais e de suas leis. Sabe-se das dificuldades que fez nascer esta doutrina,
notadamente quanto ao tema das relações entre os fenômenos físicos e os fenômenos
psíquicos. Após ter tentado resolvê-las por toda uma floração de hipóteses, os
psicólogos acabaram por renunciar a ocupar-se deste problema, remetendo-o aos
filósofos. Mas os embaraços que criava a idéia de uma realidade mental justaposta à
realidade física convidavam naturalmente a repor em questão esta idéia mesma. Como
contestar, no entanto, a existência dos fatos mentais? Fazê-lo, seria não somente
expor-se à censura de cultivar o paradoxo, mas também cobrir-se de ridículo, negando
a possibilidade de uma Psicologia empírica justamente no momento em que esta se
achava em pleno desenvolvimento.
Ora, desde há quase um século a situação modificou-se. As dificuldades de que
falamos subsistem, sem ter recebido solução. Em compensação, a Psicologia passa por
uma crise na qual a concepção clássica de uma ciência dos fatos mentais pouco a
pouco se apaga. Seria difícil encontrar hoje psicólogos que aceitassem sem reserva tal
definição: eles a julgariam ou estreita demais ou mesmo inteiramente falsa. O laço que,
de início, tinha unido, de modo aparentemente indissolúvel, a Psicologia científica e o
realismo psicológico começa a se desatar. Por isso mesmo, o valor do realismo
psicológico cessa de impor-se aos espíritos com a força de uma evidência, e sua
negação, se bem que transtorne ainda nossos hábitos de pensamento, não parecerá
mais tão paradoxal. O momento parece então apropriado para um minucioso exame
deste postulado da Psicologia clássica.
Que a Psicologia contemporânea tenda a renunciar a este postulado não basta
para tornar tal exame precocemente caduco. A dissociação do laço que unia realismo
psicológico e Psicologia científica já começou, mas está ainda longe de ter terminado.
Seria contribuir para sua plena realização tentar pôr a nu as obscuridades, as confusões
de idéias e os equívocos gerados pela noção de uma realidade mental suscetível de
fornecer alimento a uma “Física” do espírito.
Para justificar a oportunidade de nosso trabalho, gostaríamos de mostrar, por
alguns exemplos, como o realismo psicológico, ainda que não mais exibido tão
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Robert Blanché 2
ingenuamente quanto outrora, permanece vivo na Psicologia contemporânea: um curso
de Psicologia recentemente publicado continua a apresentar a distinção tradicional
entre os fatos psíquicos e os fatos físicos, a delimitação da Psicologia como ciência
dos fatos mentais ou dos fatos de experiência interna, a simetria desta experiência
interna com a observação sensível, em suma, a idéia de que o universo se compõe de
duas espécies de realidades (ou pelo menos de uma realidade se manifestando sob dois
aspectos), das quais uma é objeto da Física, a outra da Psicologia; abrindo o VIII
Congresso Internacional de Psicologia, Heymans, após ter lembrado as tendências
recentes dos psicólogos a abandonar a idéia de leis mentais e a constituir uma
Psicologia na qual o mental não tivesse mais lugar, vê nisso um acesso passageiro de
desencorajamento, convida a retomar a “via régia da Psicologia”, a encarar seu campo
de trabalho “sob o ângulo da hipótese do paralelismo universal”, e a buscar os “fatos
mentais capazes de entrar em leis mentais”; um psicólogo importante como Claparède
rejeita, como desprovidas de valor para o psicólogo, certas definições mais novas,
voltando à definição tradicional do psíquico como inextenso, não localizável no
espaço, irredutível ao movimento, interno, subjetivo e afetado de egoidade, por
oposição à espacialidade, à exterioridade, à objetividade, à existência independente de
nós dos objetos físicos, que podem sempre ser, no fim das contas, reduzidos a
movimentos materiais; será preciso lembrar o quanto as concepções de Freud, que tão
poderosamente contribuíram para renovar a Psicologia, permanecem impregnadas de
realismo?
Deixando de lado, agora, os autores que continuam a definir a Psicologia, por
oposição à Física, como a ciência dos fatos mentais, voltemo-nos para aqueles que a
concebem como a ciência do comportamento dos organismos. Há várias maneiras de
entendê-la, mas a idéia que esta definição quer sugerir é sempre a de uma ciência que,
em lugar de opor-se à Física como a ciência dos fenômenos internos e espirituais à
ciência dos fenômenos externos e materiais, situa-se, ao contrário, para além da
Biologia, no prolongamento da Física, incidindo como ela, e como todas as ciências,
sobre fenômenos acessíveis à experiência coletiva. Uma tal Psicologia repudiou o
realismo psicológico? Há, sem dúvida, behavioristas intransigentes. Mas, justamente, a
maior parte dos psicólogos protesta contra o behaviorismo radical, acusando-o de
negar paradoxalmente a existência da mente. Fora raras exceções, a Psicologia dita
objetiva admite, então, ela também, que a realidade física se duplica de uma realidade
mental cujos traços característicos permanecem sendo a interioridade e a
subjetividade. É, com efeito, porque esta realidade mental não cai sob a experiência
sensível e objetiva, é porque ela não pode ser inserida na rede espacial que se
preconiza, para atingi-la, um método indireto. O método mudou, o alvo derradeiro
permaneceu o mesmo. Apesar de apresentar-se como uma simples extensão da
Biologia, a Psicologia do comportamento mantém a pretensão de nada deixar escapar
do objeto da Psicologia clássica, estendendo seu domínio até as atividades intelectuais.
Através do comportamento, é, então, a atividade mental que ela, no fim das contas, se
propõe essencialmente estudar, e da maneira a mais realista. Para convencermo-nos
disto, basta ler o trabalho no qual Piéron, representante qualificado em França da
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Psicologia objetiva, expôs as grandes linhas desta Psicologia. Aí veremos que a noção
tradicional de “fatos mentais” concebidos como “internos” permanece tão vivaz que o
autor não estaria muito longe de pô-los no mesmo plano dos fenômenos fisiológicos
que se ocultariam no “interior” do organismo. Aí veremos, ainda, como a concepção
de uma Psicologia do comportamento, muita clara quando diz respeito a reações
elementares, com as quais não se deixa o determinismo biológico, se obscurece
quando se chega às “reações intelectuais”: ela se dobra então no sentido da Psicologia
clássica e restaura a idéia de um “determinismo mental”. Mesmo na Psicologia do
comportamento, o realismo psicológico subsiste, então, pelo menos em estado latente.
Nada talvez mostre melhor a sobrevivência deste realismo na Psicologia
contemporânea do que a natureza das reservas que são constantemente formuladas
pela maioria dos psicólogos à forma intransigente da Psicologia do comportamento.
Faz-se notar que o estudo do comportamento puro e simples, abstração feita de sua
significação, nada teria em comum com o que se costuma entender pela palavra
Psicologia. Mas acrescenta-se que só o recurso à introspecção permite dar um sentido
a um comportamento. O sentido do comportamento é, então, tomado por uma
realidade mental escondida atrás de sua realidade material e revelada, diretamente,
apenas ao sujeito. A dualidade da realidade e do pensamento se transforma assim no
dualismo ôntico do físico e do mental, característico do realismo psicológico
contemporâneo. Deste gênero de argumento, e desta transposição, qualquer um achará,
facilmente, exemplos. Tomaremos um, de um curto artigo no qual Charles Blondel
reivindica a “vida interior” como o objeto autêntico de toda Psicologia, mesmo a do
comportamento: “As Psicologias do comportamento, escreve ele, não fazem, talvez,
abstração da mente e de seus estados, tão completamente como desejariam. Se, entre
os comportamentos, elas contam o verbal, é óbvio que elas entendem por isso um
comportamento verbal inteligível. Mas as palavras que empregamos não têm sentido
para nós nem para nossos ouvintes se não são os signos de todo um jogo de
experiências que forçoso é, de qualquer modo, qualificar de mentais, e, para
compreender o que nos dizem, e mesmo o que dizemos, é preciso que façamos, mais
ou menos deliberada e conscientemente, uma volta a nós mesmos que se assemelha
muito à introspecção”. E ele conclui que toda obra psicológica deve, no fim das
contas, chegar a uma “referência necessária à experiência interior”, dando como
exemplo particularmente característico os estudos de Lévy-Brühl, que, analisando o
pensamento dos primitivos, nos informaria assim de sua “vida interior”. Ou nos
enganamos muito ou esta assimilação do pensamento à vida interior, da intelecção à
introspecção não é senão uma forma um pouco mais sutil da confusão, favorecida aliás
pelo duplo sentido da palavra reflexão, que fazem os estudantes de Psicologia quando
tomam por um caso de introspecção a meditação do filósofo ou do matemático,
quando tomam pela contemplação de uma realidade mental a própria atividade do
espírito. Até aqui deixamos de lado o caso daqueles dentre os behavioristas que são
bastante intrépidos para ir até a negação da existência dos fatos mentais. Pelo menos
repudiaram eles, assim procedendo, o realismo psicológico? Após o que acabamos de
dizer compreender-se-á como, sem buscar o paradoxo, podemos sustentar que, pelo
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contrário, esta negação mesma, no sentido em que eles a entendem, é dele uma nova
manifestação. Para os behavioristas, tanto quanto para seus adversários mentalistas, a
negação ou afirmação da realidade psíquica não se distingue da negação ou afirmação
da espiritualidade do pensamento. Toda a controvérsia limitando-se, então, a se
perguntar se a atividade do pensamento se reduziria a uma atividade corporal ou se
consistiria numa série de fenômenos especificamente mentais, irredutíveis a fenômenos
físicos. Mas, que as operações do pensamento sejam assimiláveis a fenômenos da
natureza é algo sobre o que não paira a menor dúvida, o ponto litigioso sendo apenas o
de saber se esses fenômenos são físicos ou psíquicos. Aí estaria, entretanto, toda a
questão, a assimilação dos pensamentos a fenômenos naturais sendo justamente a
essência do realismo psicológico. Digamo-lo logo, a oposição entre os behavioristas e
os mentalistas é uma falsa alternativa na qual pretendemos não nos deixar encerrar,
rejeitando tanto a negação do pensamento quanto a afirmação de uma realidade
mental. Mas a única maneira de escapar disto é precisamente abandonar o postulado
realista. Ponham que o pensamento é uma realidade, a questão não será mais do que
decidir se esta realidade é física, e apreensível pelos sentidos numa experiência
objetiva, ou psíquica, e apreensível por introspecção numa experiência estritamente
subjetiva. Desde então, vocês não poderão evitar as dificuldades da última tese senão
caindo na absurdidade da primeira. Rejeitem, ao contrário, o postulado realista,
dissociem as idéias de pensamento e de realidade e vocês poderão dar razão ao mesmo
tempo ao behaviorista, quando ele nega a existência de fenômenos mentais
específicos, e a seus adversários mentalistas, quando eles sustentam que a palavra
pensamento designa outra coisa que não simples fenômenos físicos. Nós nos
explicaremos sobre esse ponto no curso de nosso ensaio. Gostaríamos apenas de
assinalar, aqui, como a controvérsia que se instituiu a respeito do behaviorismo, não
tendo sentido a não ser pela adoção do postulado realista, testemunha da igual
persistência deste postulado nos dois campos. Tentar, como vamos fazê-lo, a crítica
deste postulado, tentar mostrar que a possibilidade de pesquisas psicológicas não está
ligada à existência de fatos mentais específicos, não será, então, em vista do estado
atual da Psicologia, um empreendimento supérfluo1.
1 É necessário precisar que se acontece, por abreviação, chamarmos simplesmente psicólogos os que
admitem o realismo psicológico, nosso estudo não é de maneira alguma dirigido contra a Psicologia,
mas apenas contra certa tese de que a Psicologia clássica permaneceu solidária sem ver seu caráter
metafísico, e da qual a Psicologia atual teria, acreditamos nós, todo interesse em se libertar. Não se
deve esquecer que a afirmação de uma Psicologia científica limitada ao estudo dos fenômenos não
era em sua origem senão o reverso da negação de uma Psicologia metafísica que pretendia provar
pela observação interior a substancialidade da alma. Esta negação conserva hoje ainda toda sua
força. Mas a alternativa do substancialismo e do fenomenismo que os psicólogos clássicos se
compraziam em estabelecer é tão falsa quanto o é, no interior do fenomenismo, a que faz nascer a
discussão do behaviorismo, e precisamente pela mesma razão. Que se trate, com efeito, de realidade
substancial ou de realidade fenomenal, é sempre às voltas com uma concepção realista do espírito
que estamos, e é essa concepção, ela própria, que, uma vez que impõe a escolha entre teses opostas
e igualmente embaraçantes, deveria, de saída, ser posta em discussão. À alternativa do
substancialismo e do fenomenismo, que permanece no plano do realismo, é necessário substituir,
ainda uma vez, a do realismo e de seu contrário.
A Noção de Fato Psíquico
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Repudiar o realismo é perfilar-se ao lado daqueles a que a tradição chama
idealistas. Mas, é preciso considerar que entre as doutrinas geralmente recobertas pelo
nome idealismo há uma que não podemos qualificar de outro modo que como realista.
Isto é, não podemos dar nenhum abrigo à noção de idealismo ontológico. Situando
nossa tese na corrente idealista, referimo-nos apenas a um idealismo epistemológico.
Mas, importa, no limiar deste exame, assinalar um singular engano que mais de uma
vez se cometeu a respeito deste último. Se o fazemos, não é apenas para evitar nele
recair, é também porque ele nos dá um novo testemunho da facilidade com a qual o
espírito deixa-se ir em direção ao realismo. Trata-se da curiosa confusão pela qual o
idealismo epistemológico, que implica a rejeição do realismo psicológico, é
identificado justamente a ele: como se a essência do idealismo consistisse em reduzir
toda existência à existência mental. Certamente, tal era bem a significação do
idealismo ontológico, pois as idéias às quais reduz ele as coisas são por sua vez
concebidas como coisas mentais, não como atos de intelecção. Mas, criticar o
idealismo epistemológico, tomando-o pelo idealismo ontológico, como o faz por
exemplo Russel, é enganar-se completamente de endereço. Suas objeções incidindo,
na verdade, contra um realismo psicológico de tendências subjetivistas, nada de
espantoso que esta transposição se revele inconsistente, e que o idealismo
epistemológico possa, aqui, concordar com seu adversário na repulsa a tal concepção.
Se nos reportarmos, por exemplo, às críticas que Russel formula em relação ao
idealismo, veremos que este poderia subscrever todas as proposições com as quais
Russel imagina fulminá-lo. “O que estabelece a Lógica, declara ele, ainda que se tenha
o costume de chamá-lo leis do pensamento, é tão objetivo, incidindo tão pouco sobre o
mental quanto a lei da gravitação”. “Seja a proposição 2+2=4. Para os idealistas, esta
proposição exprime uma lei do pensamento: quer dizer, que se será sempre forçado a
crer que há 4 coisas quando há 2 e 2, ainda que de fato possa ocorrer que haja 5 ou 3,
ou antes, que, à parte o espírito, as coisas não tenham número. Ora, é evidente que o
conteúdo do que se crê quando se crê que 2+2=4, não é que o espírito possui certa
propriedade; então, se 2+2=4 fosse uma lei do pensamento, seria uma lei que nos
forçaria a crer no que pode bem ser falso”. O idealista epistemológico não diria outra
coisa, pois sua tese se situa exatamente nas antípodas deste realismo psicológico, com
a única diferença de que ele não reconheceria como suas as teses que lhe são
atribuídas. E Russel conclui: “A Matemática é composta de proposições que não
contêm nenhum constituinte real, seja mental, como querem os idealistas, seja físico,
como dizem os empiristas. Há dois mundos, o da existência e o do pensamento. O erro
capital do idealismo consiste em querer achar para o mundo do pensamento um lugar
no mundo da existência, a saber, no espírito”. Situar a verdade no mundo da
existência, fazer dela uma realidade mental, é uma tese que nos parece merecer
propriamente o nome de realismo psicológico, é uma tese que o idealismo
epistemológico repele. A confusão destas duas teses opostas, a facilidade com a qual
se interpreta a segunda em função da primeira, revela a força do que não se pode
chamar de outro modo senão de preconceito realista. Empregando esta expressão,
queremos apenas afastar previamente, como nula e inaceitável, toda crítica que não
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ultrapasse o ponto de vista deste realismo espontâneo. Que as críticas desse gênero
não sejam raras, eis o que mostraria ainda a oportunidade de uma tentativa de
denunciar as dificuldades do realismo quando ele se aplica a uma concepção do
espírito e de suas relações com a matéria. Seria inútil multiplicar exemplos da
confusão que acabamos de assinalar. Permitir-nos-ão, entretanto, dar um outro, e
analisá-lo com algum detalhe, pois, desta vez, trata-se de um esforço positivo para
resolver o problema que está no centro de nosso próprio trabalho, o das relações entre
o físico e o psíquico. Em seu livro sobre A Alma e o Corpo, Binet ora fala a linguagem
do dualismo epistemológico, pelo qual se chega ao idealismo, ora a do dualismo
psicofísico, com o qual instalamo-nos em pleno realismo, e deste casamento
inconsiderado nasceu uma teoria verdadeiramente monstruosa.
A idéia central da obra, que subscreveríamos de bom grado, é bem a de criticar
o emprego do dualismo ôntico físico/psíquico na definição do que sejam matéria e
espírito. E substituí-lo pela dualidade epistemológica objeto conhecido/ato de
conhecer. “Nós não conhecemos outra coisa que não sensações. É então impossível
fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de conhecimento contido em toda
sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não pode passar por aí, uma vez que
ela separaria fatos idênticos”. Erram, então, aqueles que põem um abismo entre as
modificações cerebrais e as sensações, uma vez que a sensação, enquanto objeto de
conhecimento, se confunde com as propriedades da natureza física. É no interior da
sensação que deve operar-se o corte, e ele se estabelecerá entre o objeto de
conhecimento e o ato de conhecer, entre o conteúdo da sensação e a consciência desse
conteúdo, e é esta a distinção a mais geral que se possa traçar no domínio de nossos
conhecimentos. Binet faz notar que esta distinção não deve ser entendida no sentido
ôntico: “Nós dizemos que a matéria é algo que é sentido, mas não dizemos,
simetricamente, que o espírito é algo que sente. Empregamos uma fórmula bem mais
prudente, e bem mais justa, pondo o espírito no fato de sentir. Repitamos mais uma
vez: o espírito é o ato de saber, não é um sujeito que sabe.” Até aqui, a tese parece
nitidamente orientada no sentido do dualismo epistemológico. Mas, em que consiste
este ato de conhecer pelo qual Binet define o espírito? Apercebemo-nos, rapidamente,
ao lê-lo, que este ato não é efetivamente ativo, sendo tão pouco ativo quanto um
movimento material: como o seria para quem reduz a idéia à imagem, explica a
universalidade e a necessidade de certos juízos por associações não desmentidas, e
assimila o raciocínio a um mecanismo mental? A oposição do conteúdo e do ato não
pode ter sentido num pensamento empirista, que, por essência, não pode reconhecer
senão o dado, o que tem por resultado reduzir o próprio ato a certo conteúdo. Assim,
Binet não teme chamar de fenômenos mentais os atos de conhecimento, estabelecendo
uma oposição entre fenômenos tais como pedras, grãos de areia, pedaços de ferro,
cérebros e outros fenômenos denominados “estados mentais”. O ato de conhecer não é
senão um estado mental; a oposição do conteúdo sensível e do ato de pensamento não
significa para Binet nada mais que a oposição tradicional entre os fatos físicos e os
fatos mentais. Bem entendido, a transposição realista do ato de conhecimento acarreta,
por simetria, uma transposição análoga para o objeto conhecido, como a frase que se
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 7
acaba de ler já bem claramente o indica. E, falando de sua concepção realista da
matéria, referimo-nos simplesmente à maneira pela qual ele concebe a realidade física
fenomenal. Sua tese central a tinha identificado à sensação, ou, mais precisamente, ao
conteúdo da sensação, oposto ao ato de conhecimento; mas, como este ato é agora
assimilado ao tradicional “estado mental”, nada mais se pode fazer do conteúdo do
que identificá-lo à realidade física, no sentido ordinário do termo. Binet não deixa de
fazê-lo; mais exatamente, ocorre-lhe identificá-lo a esta parte do mundo físico que é
um movimento cerebral: “A sensação é o fenômeno que se produz e se experimenta
quando um excitante age sobre um dos nossos órgãos dos sentidos. Este fenômeno
compõe-se, então, de duas partes: uma ação exercida de fora por um corpo qualquer
sobre a nossa substância nervosa, e em seguida o fato de sentir esta ação”. Parece-nos
que tal maneira de opor o físico ao mental não se distingue da que Binet buscava evitar
escrevendo o que lemos já acima: “Nós não conhecemos outra coisa que não
sensações. É então impossível fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de
conhecimento contido em toda sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não
pode passar por aí, uma vez que ela separaria fatos idênticos”. A impressão será
confirmada se examinamos a maneira pela qual Binet põe o problema da união do
espírito e do corpo. Para ele, as principais dificuldades deste problema “provêm destes
dois fatos, que parecem incompatíveis: de uma parte nosso pensamento é
condicionado por certo movimento intra-cerebral de moléculas e átomos e, de outra
parte, este mesmo pensamento não tem consciência deste movimento molecular. Como
é possível que nossa consciência ignore este evento fisiológico do qual depende e,
como se jorrasse de nosso sistema nervoso, se volte para um objeto longínquo?”. Vê-
se que a tese de Binet é desprovida de toda significação, uma vez que ela consagra,
finalmente, a distinção tradicional a que ela parecia se opor, levando a enunciar o
problema das relações espírito/corpo nos mesmos termos em que o formulava o
realismo dualista inerente à Psicologia clássica. Que um autor tenha podido recair no
dualismo psicofísico, após ter definido o espírito pela atividade de conhecimento e tê-
lo assim distinguido ao mesmo tempo de um sujeito substancial e de todo conteúdo
fenomenal, eis o que seria, sem dúvida, inexplicável, se o realismo não tivesse se
imposto a ele com toda a força de um preconceito. É porque ele nos dava um exemplo
particularmente impressionante deste preconceito, e porque o dava aplicando-se,
justamente, ao problema que nos propomos tratar, que julgamos oportuno mencionar
aqui seu estudo.
Em resumo, se convém, como o dizíamos, liberar a Psicologia da tese do
realismo psicológico, isto é, da afirmação de que existe uma realidade mental
específica, esta primeira dissociação nos parece solidária de uma segunda, que
deveria, desta vez, operar-se na noção confusa de realidade mental, para separar as
duas idéias de espírito e de realidade. Assim se explicaria o caráter ilusório de uma
Psicologia concebida como “Física” do espírito e a divisão que tende espontaneamente
a estabelecer-se entre duas espécies de Psicologia, uma das quais é uma ciência da
natureza, mas nada tem a ver com o mental, e a outra um estudo do espírito, mas
profundamente diferente das ciências naturais. Ora, esta dissociação entre o espírito e
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 8
a realidade, nós a encontramos feita nesta forma de idealismo que é o idealismo
epistemológico. Explicando a objetividade do real pelas leis que o pensamento impõe
aos fenômenos, o idealismo epistemológico, por isso mesmo, distingue a atividade
intelectual ao mesmo tempo do dado sensível sobre o qual ela se exerce e do universo
objetivo que ela se esforça por construir. Ele evita, assim, confundir a ordem do
pensamento e a ordem da existência, e reduzir o espírito a uma espécie de realidade,
como o faz este realismo da idéia que se chama idealismo ontológico. Nós não
tivemos, por conseguinte, senão que nos deixar guiar por esta corrente de pensamento,
o idealismo epistemológico, quer dizer que nós não pretendemos originalidade para as
idéias diretoras do nosso trabalho. Restava-nos, somente, uma dupla tarefa a realizar.
Era preciso primeiro aplicar o princípio idealista ao problema que nós nos púnhamos.
Para isso, não bastava extrair deste princípio a condenação do realismo psicológico em
geral, nem mostrar que significação ele comandava atribuir à oposição do físico e do
mental. É este o objeto de nosso primeiro capítulo, mas ele não é senão preliminar. Era
necessário ainda, e sobretudo, seguir as consequências que acarretava o princípio em
cada uma das grandes classes de “fatos psíquicos” que a Psicologia clássica tinha
distinguido, para denunciar, em cada uma delas, a ilusão realista: donde nossos
capítulos sobre a imagem, o pensamento, a vontade e o sentimento. Entretanto, à
medida em que quitávamos esta primeira tarefa, a necessidade de uma segunda nos
aparecia com insistência. Em cada um de nossos capítulos, parecia-nos, com efeito,
que a aplicação do princípio idealista, ao mesmo tempo que permitia superar as
dificuldades que acumula o realismo psicológico, revelava uma lacuna no idealismo
epistemológico tradicional, desde que, deixando o problema do físico e do mental em
geral, girávamos em direção ao problema das relações entre espírito e organismo. Não
é seguro que esta questão não passe de um caso particular da precedente, como o
idealismo parece geralmente supor. Fomos assim levados a propor, sem nos afastar da
linha geral do idealismo epistemológico, uma concepção nova da natureza do corpo
próprio.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 9
CAPÍTULO I
Físico e Mental
Quando se põe o problema da distinção entre fatos físicos e fatos psíquicos,
considera-se que a dificuldade incide unicamente sobre a diferença que separa o
psíquico do físico, como se nenhuma incerteza reinasse quanto ao sentido da palavra
fato. Ora, acontece que esse termo é equívoco. É preciso, então, começar por dissipar
o equívoco que talvez seja a causa principal da dificuldade, pois, seria bem possível
que a distinção entre o psíquico e o físico coincidisse, justamente, por uma de suas
significações, com a distinção entre os dois sentidos da palavra fato. Que é, então, um
fato?
Um fato é, primeiramente, o que é suscetível de ser conhecido direta e
incontestavelmente, sem a intervenção de nenhuma operação intelectual que lhe sirva
de prova; é o que é tal que basta que seja mostrado para que não se possa de nenhum
modo duvidar de sua realidade. É um fato quer dizer: é assim e não de outro modo,
sem que eu compreenda por quê; impõe-se a mim, limito-me a constatá-lo sem poder
explicá-lo. O fato opõe-se, assim, à hipótese ou à teoria como o dado ao realizado.
Este sentido da palavra é usual. Mas é preciso notar que o domínio do fato, se se toma
a palavra estritamente nesta acepção, reduz-se a muito pouca coisa. Não é um fato que
a terra gire, pois a afirmação do movimento da terra é uma hipótese, repousando ela
própria sobre um grande número de outras hipóteses. Não é um fato que Napoleão
tenha sido imperador pois o passado escapa a toda observação. Não é um fato que
vivamos sob o regime republicano, pois um regime não é algo que possa ser visto,
tocado, nem constatado imediatamente de nenhuma maneira. Não é um fato que Paris
seja uma cidade de França, pois jamais vemos Paris, nem a França, mas apenas casas e
campos. Pode-se mesmo dizer que vemos casas e campos ou que a existência de um
objeto qualquer seja jamais para nós um puro fato? Afirmar a presença de um objeto é
sempre ultrapassar o dado atual. Assim, se quiséssemos achar o fato bruto, puro, livre
de toda interpretação, seria preciso buscá-lo aquém da percepção, pela qual afirmamos
a existência de objetos, e tender para a pura sensação, pela qual seríamos
simplesmente afetados de certa maneira. O fato bruto é o fenômeno, a imagem tal qual
se apresentaria a uma consciência de algum modo estúpida.
Esta maneira de conceber o fato não esgota, no entanto, a significação do termo.
Frequentemente, em lugar de chamarmos fato à imagem, distinguimos ao contrário um
do outro: opomos à simples imagem (subjetiva), o fato (objetivo); à aparência ilusória
(ou, pelo menos, incerta, e verdadeira somente a título de aparência), o fenômeno
físico; à presença em mim de uma sensação que me é própria, a existência de um o
objeto exterior, independente de minha sensação. A terra é aparentemente imóvel, o
bastão mergulhado na água está, aparentemente, quebrado: de fato, a terra gira, o
bastão não está quebrado. Reencontra-se assim a distinção entre o fato psíquico, que
não é um fato senão para aquele que se acha por ele afetado, e o fato físico, cuja
existência e cuja natureza independem da maneira pela qual aparece às consciências
individuais e ao qual, por esta razão, reserva-se propriamente o nome de fato. Ei-nos,
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 10
então, em presença de um outro sentido da palavra fato, repousando, ele também,
sobre o uso, e que se distingue do primeiro ou mesmo a ele se opõe. Mas, que
significa, exatamente, esta oposição entre o fato e a imagem? Não se trata, para dizer a
verdade, de uma separação entre dois tipos de fatos, dos quais um seria totalmente
estranho ao outro. A retidão do bastão não se opõe, de modo nenhum, à minha
sensação visual, e menos ainda a toda sensação possível. Perceber não quebrado o
bastão, enquanto que é quebrada a linha que dá sua imagem visual, é afirmar que o
bastão apareceria como não quebrado ao tato, e mesmo à visão se o retirássemos da
água. Não é, então, negar a imagem atual; é, ao contrário, afirmar que uma
necessidade a liga a outras imagens determinadas. A diferença que separa a imagem
subjetiva do fato objetivo não é outra senão a diferença que separa a imagem
considerada isoladamente da imagem integrada num sistema no qual cada uma está
ligada necessariamente a todas as outras. É, então, a concepção das leis da natureza,
leis segundo as quais a presença de cada imagem é determinável em função de outras
imagens, que nos permite passar da subjetividade da imagem à objetividade do fato.
Uma consciência reduzida, como o quer o sensualismo, a contemplar passivamente
uma sucessão de imagens, seria absolutamente incapaz de distinguir o fato da
aparência: para ela, não haveria senão aparências, mais ou menos vivas somente. O
laço que une as aparências para fazê-las entrar no sistema do conhecimento não pode
ser dado, mas apenas concebido. Só o pensamento é capaz de estabelecer relações
entre as aparências para assim constituir fatos. O fato é obra do espírito, que explica a
presença de cada imagem ligando-a a outras com a ajuda de leis convenientemente
escolhidas, e que, compreendendo-a, confere-lhe assim alguma objetividade.
Assim, quando dizemos: É um fato, referimo-nos, ora à experiência bruta (às
imagens tais como seriam dadas antes de toda tentativa de interpretação), ora à
experiência organizada (na qual o pensamento conseguiria compreender cada imagem,
determinando seu lugar no conjunto das imagens). Para dizer a verdade, a significação
habitual da palavra oscila entre essas duas significações extremas, em vez de coincidir
exatamente com uma ou com a outra, e esta indecisão favorece a confusão entre os
dois sentidos. De uma parte, não há jamais, para nós, fato bruto, não há jamais
imagem separada de toda interpretação: pois não há imagem senão para uma
consciência que é por ela afetada, e que não pode sê-lo sem saber ao mesmo tempo
que o é: em consciência há ciência. Esta pura imagem não é, então, senão um termo
ideal, que não pode ser efetivamente dado, uma vez que suporia ao mesmo tempo a
vigília e o sono da consciência. Assim é impossível falar dela propriamente, e sem se
deixar trair pela expressão. Todas as palavras de que nos servimos põem a dualidade
de uma consciência passiva e das imagens que ela acolheria, como a placa fotográfica
acolhe as impressões luminosas, enquanto que nesse estado de pura sensação a
dualidade do senciente e do sentido desaparece. Isso quer dizer que o fato bruto reduz-
se a um limite2. Mas o mesmo ocorre com o fato objetivo. Um fato qualquer só seria
2 Entendemos por imagem, ou por experiência bruta, o limite ideal para o qual tende uma análise
que parte de nosso conhecimento atual, e não um estado que precederia realmente a experiência
organizada. Falando de imagens, queremos dizer simplesmente que nosso conhecimento do real não
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 11
plenamente objetivo se o espírito fosse capaz de ligá-lo à totalidade dos outros fatos, o
que ele só poderia fazer se possuísse o sistema acabado das leis da natureza e o
conhecimento perfeito de todas as partes do universo. Pois não basta que uma imagem
seja relacionada a algumas outras para que se tenha o direito de conferir-lhe, com
certeza, a objetividade: é preciso ainda que esse sistema limitado de imagens venha a
ser, por sua vez, inserido no sistema universal. É inútil sublinhar que o
desenvolvimento da ciência, ainda que permitindo estender sobre as imagens uma rede
de leis cada vez mais vasta e cada vez mais cerrada, recua ao mesmo tempo para um
longínquo cada vez mais inacessível o acabamento do sistema que ela trabalha para
construir. Devemos, então, rigorosamente falando, duvidar em algum grau da
objetividade de todos os fatos, na medida em que não sabemos organizá-los em um
sistema único. E assim, tal como o fato bruto, o fato objetivo não passa de um limite,
aquele para o qual tende o espírito em seu esforço para constituir a ciência da
natureza.
Isolando e apresentando em toda sua pureza cada uma das duas significações
que comporta, confundidas, a acepção usual da palavra fato, chega-se a essa
afirmação: jamais nos achamos em presença de fatos brutos ou de fatos objetivos, mas
somente diante de fatos situados numa série que, segundo o sentido em que é
percorrida, tende, seja para o fato bruto, seja para o fato objetivo. O que chamamos
um fato é sempre um tecido de afirmações. Mas, de afirmações que jamais formam um
sistema que se possa inserir num sistema total perfeitamente coerente. Nenhum fato é,
então, para falar propriamente, bruto, nem objetivo. Todo fato tomará a fisionomia de
um ou do outro, conforme for comparado a um sistema mais vasto que o compreenda
ou, ao contrário, a um sistema menos vasto nele compreendido. É por isso que nenhum
dos exemplos que se possa dar de fato bruto ou de fato objetivo será exatamente
conveniente. Mas é útil, e mesmo indispensável, se se quer tranquilizar-se quanto ao
risco de confusão, pôr em relevo e apresentar separadamente as duas significações
extremas entre as quais oscila a significação ordinária da palavra fato. Que fique
entendido, então, que, doravante, quando, em nosso texto, falarmos de fato bruto ou de
fato objetivo, estaremos designando unicamente dois limites puramente ideais
distinguidos pela análise. Limites estes que são exatamente aqueles entre os quais se
move o conhecimento. O conhecimento consiste, não em acumular o maior número
possível de imagens, menos ainda em achar por trás das imagens uma realidade mais
profunda que elas dissimulariam, mas em relacionar, umas às outras, imagens dadas
das quais se parte, mediante laços necessários denominados leis da natureza. Em
se resolve num sistema de relações puramente formais como aquelas de que se ocupam as
matemáticas e a lógica, e que o valor de verdade das proposições físicas vem de que elas incidem
sempre, no fim das contas, sobre um dado sensível, mesmo se esse dado é cada vez mais mascarado
pelas afirmações que o interpretam. Estamos então longe de sustentar que o conhecimento comece,
cronologicamente, pela sensação bruta, para elevar-se progressivamente ao pensamento. Da
sensação bruta jamais seria possível sair, do mesmo modo que partindo do começo indefinidamente
recuado do tempo jamais se chegaria ao presente, mas pode-se, idealmente, remontar
indefinidamente do presente ao passado e, do mesmo modo, cortar pouco a pouco da percepção
atual as afirmações que a envolvem.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 12
outros termos, a obra do pensamento, primeiro na percepção, em seguida na ciência,
consiste em fabricar uma rede de relações que responda à dupla condição de constituir
um sistema inteligível e de aplicar-se às imagens dadas, conferindo assim, por uma
mesma operação, ao conhecimento, o valor objetivo, ao real, a inteligibilidade; ou
mais exatamente, fabricando ao mesmo tempo o conhecimento, conferindo-lhe um
valor objetivo, e o real, conferindo-lhe a inteligibilidade. Estas relações não devem ser
consideradas como reais, mas somente como verdadeiras3; elas não são nem fatos
brutos, uma vez que os supõem, nem fatos objetivos, uma vez que servem para
construí-los. Elas pertencem a uma outra ordem que não a do fato ou da realidade e
que se pode chamar a ordem do pensamento ou da verdade.
Isso posto, como convém entender a oposição tradicional entre o mental e o
físico?
Desde logo, a diferença que se estabelece entre a realidade das imagens e a
realidade do mundo físico não é, de maneira nenhuma, a que separaria duas espécies
de realidade justapostas num mesmo universo, mas a que separa dois planos de
realidades, os dois planos extremos, um dos quais marca o ponto de partida e o outro o
ponto de chegada, de nosso conhecimento do real. Ou o real é para mim o dado puro e
simples, abstração feita de toda afirmação de uma relação entre esse dado e alguma
outra coisa: ― o que é real são então as imagens que constituem o resíduo concreto de
meu pensamento atual, de tal maneira reduzindo-se, desse ponto de vista, a essas
imagens que ocupam atualmente minha consciência, que, nesse plano inferior de
conhecimento, todo o real seria psíquico. Ou o real é o objetivo, é aquilo cuja
existência, podendo ser estabelecida pelo pensamento, ultrapassa os limites de minha
individualidade e pode ser legitimamente afirmado por todo ser pensante: ― o que é
real então são os objetos materiais, ou antes, uma vez que a existência de um objeto só
é certa se esse objeto é ligado por leis à totalidade dos objetos, o que é real é o
conjunto do universo. As imagens isoladas perdem, assim, sua realidade: a realidade
consistindo na infinidade das imagens ligadas num único sistema por uma rede de
relações inteligíveis. Nesse plano superior de conhecimento, a única realidade é a
realidade física. Pode-se então dizer das imagens que elas são reais, pode-se também
dizer do universo material que ele é real, pode-se falar de fatos psíquicos e de fatos
físicos, mas é claro que perderemos o rumo se, desconhecendo a dupla significação
dos termos dos quais nos servimos, pretendermos justapor, num mesmo plano de
existência, a realidade da imagem e a realidade do universo. Seria o mesmo que
classificar em duas espécies biologicamente distintas os cães e as células que
compõem o organismo do cão. A oposição da realidade da imagem à realidade do
universo material reduz-se à distinção entre os elementos concretos irredutíveis do
universo material e o conjunto desse universo ele próprio, ou seja, à distinção entre 3 As denominações são livres, e pode-se, se se quer, empregar real no sentido de verdadeiro. É bem
o que se faz, cremos nós, quando se diz que as leis naturais são reais, ou quando se diz que elas
existem: tomam-se essas palavras num sentido laudatório, para exprimir que elas não são ilusórias,
que elas têm um valor objetivo, numa palavra, que elas são verdadeiras. Mas haveria um erro
evidente em passar dessa simples denominação à afirmação de que elas possuem os caracteres do
que se entende ordinariamente por realidade.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 13
parte e todo. Passar da imagem isolada às imagens ligadas num sistema de objetos
físicos não é cessar de considerar uma realidade para voltar-se em direção a outra, mas
introduzir na realidade dada as relações que a transformarão numa realidade
inteligível, deixando o plano da sensação para tentar atingir o plano de um universo
transparente ao pensamento. Assim, o dualismo comumente estabelecido entre o
psíquico e o físico não deve ser tratado como um dualismo ôntico, mas como a
oposição das duas formas extremas sob as quais o pensamento pode considerar a
realidade.
Mas esta oposição entre dois planos extremos de realidade implica, por sua vez,
uma nova dualidade, a da realidade e do pensamento. O pensamento não pode, com
efeito, de nenhuma maneira, ser considerado como real. Ele não pertence à realidade
bruta: como esta, por definição, exclui todo pensamento, nenhuma magia conseguirá
achá-lo ali nem dali fazê-lo sair, as tentativas sensualistas sendo destinadas, de
antemão, ao fracasso. Ele tampouco é, como o queria o materialismo, uma parte da
realidade objetiva, que ele tem justamente por missão constituir e na qual, por
conseguinte, não pode ser incluído. Mas, se o pensamento não pertence a nenhum
plano da realidade, é ele que permite elevar-se de um plano de realidade a um plano
superior; se ele não é real, é a condição da realidade objetiva do universo. Pois esta
realidade não se distingue da realidade bruta da sensação senão pelas leis que ligam as
imagens umas às outras de maneira que cada uma delas apareça como necessária
relativamente a todas as outras e seja assim liberada da subjetividade das impressões
individuais. E, essa rede de leis pelas quais são ligadas todas as imagens, é o
pensamento que as estabelece. Somente, tais laços são laços inteligíveis, de modo
nenhum laços reais. As leis da natureza não são uma realidade que viria justapor-se à
realidade do universo, como um fio se acrescenta às pérolas para compor um colar. As
relações estabelecidas pelo pensamento, a menos que se tome por elas as fórmulas que
as exprimem, não podem ser dotadas de existência, mas somente de verdade; e como o
verdadeiro só é verdadeiro enquanto é compreendido, a inteligência dessas relações e
seu estabelecimento são uma única e mesma operação. Estabelecer relações entre as
imagens não é, então, acrescentar às coisas uma nova coisa, é tornar inteligível um
dado incoerente: o estabelecimento das relações entre as imagens fazendo com que
elas ganhem um sentido; é como se, de dois homens em presença do mesmo texto da
Ilíada, um soubesse grego e o outro não. Se, então, pode-se dizer que o pensamento
está no universo, é somente no sentido de que ele é imanente ao universo, no sentido
somente de que a existência do universo supõe como condição a verdade das relações
que permitem explicar não importa qual de seus elementos em função dos outros. O
pensamento está no universo constituído pela ciência como a intenção do pintor está
no quadro concluído. Assim, a tradicional distinção do espírito e do mundo físico se
justifica, mas de maneira diversa da justificação concebida pelo realismo psicológico.
Ela só se justifica se se renuncia a ver no espírito e na matéria duas espécies de coisas
que entram na composição de um mesmo universo, se se faz do espírito, não uma
realidade ao lado da realidade do mundo físico, mas uma condição da realidade
objetiva desse mundo.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 14
Chegamos assim à idéia de duas dualidades solidárias, nenhuma das quais
permite pôr como um problema de relações entre fenômenos o problema das relações
entre os dois termos que elas opõem. A primeira é a dualidade dos planos extremos
entre os quais se move nossa noção do real: é a dualidade da imagem e do universo,
que não são duas realidades numericamente distintas que entrariam como ingredientes
complementares na composição do universo, mas duas maneiras diferentes de
conceber a realidade. A segunda dualidade é a da realidade e do pensamento, que
também não são duas realidades, uma vez que a idéia total de realidade forma um dos
termos da oposição (que, efetivamente, só se estabelece entre a atividade intelectual,
de um lado, e do outro, o dado sobre o qual ela se exerce e ao qual ela se esforça por
conferir ao mesmo tempo inteligibilidade e objetividade). A primeira dualidade
implica, aliás, a segunda, pois a distinção entre os dois extremos da realidade,
significando a distinção de uma realidade cega e de uma realidade penetrada de
pensamento, obriga a estabelecer uma nova dualidade, a da ordem da realidade ou da
existência e a ordem do pensamento ou da verdade.
Ora, a Psicologia clássica confunde esta dupla dualidade sob a única oposição
do físico e do psíquico, se representando, além disso, esta oposição como a de duas
séries de fenômenos igualmente reais e sobre as relações das quais a ciência da
natureza poderia se pronunciar. Misturando a ordem da existência e a ordem da
verdade, ela junta, ilegitimamente, para constituir os “fatos mentais”, o dado e o
pensado, a realidade bruta que se impõe ao espírito passivo e as relações inteligíveis
que estabelece a atividade espiritual. Depois, esquecendo que o dado se reduz à pura
sensação, e pertence, por conseguinte, integralmente ao mundo mental, esquecendo
que o universo tira sua objetividade das leis estabelecidas pelo pensamento, põe,
diante da realidade psíquica, tal como a compreendeu, e como uma realidade dada
absolutamente distinta da primeira, a realidade física do mundo material. É difícil
imaginar confusão maior. Desde logo, os termos reunidos para formar a realidade
psíquica são completamente heterogêneos, um deles não podendo, de nenhuma
maneira, ser tratado como uma realidade: quando se passa da consideração das
imagens à consideração das operações intelectuais, não se passa de uma classe a outra
de fatos psíquicos, passa-se da ordem do fato, suscetível de ser dado ou não, à ordem
do pensamento, suscetível de ser verdadeiro ou falso. Depois, uma vez que se
etiquetou como realidade psíquica tanto as qualidades que nos dão as sensações
individuais quanto a afirmação das relações em virtude das quais cada elemento do
dado, aparecendo como necessariamente ligado a todos os outros, nos aparece, por
isso mesmo, como independente do que há de individual na sensação, nada mais resta
para constituir a realidade objetiva do mundo físico. Seu conteúdo (as qualidades
sensíveis) e sua forma (o sistema das leis naturais) foram previamente absorvidos pelo
que se nomeou a realidade psíquica. O universo físico nada mais sendo do que a
realidade bruta das imagens organizadas de dentro pelo pensamento, nada há nele que
subsista para formar contraste com o mental. O que há de espantoso se, após uma tal
confusão desde o princípio, cresçam os embaraços à medida que se avança, seja
querendo estabelecer as leis naturais ligando uns aos outros os diferentes fatos
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 15
psíquicos (como se tudo o que se junta de qualquer maneira sob esse nome pudesse
ser considerado como real), seja se interrogando sobre as relações que eles entretêm
com os fatos físicos (como se se estivesse em presença de dois dados)?
Mas a oposição dos fenômenos físicos e dos fenômenos mentais, tal como a
concebe o realismo psicológico, é, ainda hoje, tão comumente aceita, faz de tal
maneira parte dessas noções correntes em torno das quais vêm se organizar milhares
de idéias secundárias, que não podemos nos orgulhar de fazer renunciar a ela de um
único golpe. Examinemos, então, o que se deve pensar das oposições às quais se liga
diretamente a do físico e do psíquico: a oposição do objetivo e do subjetivo e a
oposição da experiência externa e da experiência interna.
A separação do físico e do mental coincide, para a psicologia clássica, com a do
objetivo e do subjetivo. Mas esses termos são equívocos, e, por conseguinte, também
o é a correlação que se estabelece entre eles. Num primeiro sentido, a diferença entre
o objetivo e o subjetivo, é a diferença entre o que é válido para todos e o que só o é
para alguns, é a diferença entre o “sinômico” e o individual. Já encontramos esta
distinção: é a das duas formas extremas sob as quais o espírito pode considerar a
realidade, é a oposição da experiência bruta, ou do real tal qual ele é dado a cada um
na pura sensação, à mesma experiência, mas organizada num sistema pelas relações
que estabelece o pensamento entre seus elementos e liberada assim das
particularidades individuais. A imagem isolada é subjetiva; o universo material é
objetivo. Esta distinção entre subjetivo e objetivo é perfeitamente clara; ela concorda
com a distinção dos dois sentidos extremos da palavra fato e, por conseguinte, se nos
servimos dos qualificativos de psíquico e de físico para precisar estes sentidos, com a
distinção do fato psíquico e do fato físico. Mas ela pode também, numa acepção bem
diferente, dizer respeito à distinção do pensamento e do objeto pensado. Esta distinção
nos é ainda familiar: ela corresponde com exatidão ao dualismo precedentemente
reconhecido entre a ordem do pensamento ou da verdade e a ordem da existência ou
da realidade. Ela é, ela também, perfeitamente legítima. Somente, é preciso evitar
confundi-la com a distinção precedente entre o individual e o universal. Pois o
pensamento não tem, como pensamento, nenhum caráter individual; pelo contrário, é
ele que, estabelecendo relações inteligíveis e universalmente válidas entre as imagens
(até então isoladas), transforma as impressões individuais infinitamente diversas num
universo idêntico para todos. Somos então vítimas de uma confusão de linguagem
quando reunimos numa mesma realidade mental, a pretexto de serem igualmente
subjetivos, os pensamentos e as imagens. Subjetivos eles o são, mas não no mesmo
sentido; longe disso, cada um aparece bem antes como objetivo no sentido em que o
outro é subjetivo. As imagens são individuais, mas são objetos de pensamento; o
pensamento é a atividade que ocorre num indivíduo, mas tem um valor universal e é,
por esta razão, condição da objetividade do mundo. A distinção do objetivo e do
subjetivo não traz então nenhuma força à distinção tradicional do físico e do mental.
Ao contrário, o que toma uma força nova é a obrigação de conceber de outra maneira
a oposição do físico e do mental e de separar nitidamente os dois sentidos que
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 16
acreditamos dever atribuir-lhe, uma vez que a oposição do objetivo e do subjetivo
revela, quando examinada, o mesmo equívoco.
Igualmente obscura, e por razões análogas, é a diferença estabelecida pela
Psicologia clássica entre duas formas irredutíveis de experiência, uma das quais nos
revelaria os fatos físicos, a outra os fatos psíquicos. Certamente, o contraste entre dois
gêneros de experiência inteiramente dissemelhantes, se fosse nitidamente marcado,
traria um argumento fortíssimo para justificar a cisão operada pelo psicólogo entre os
fatos que caem sob a experiência externa sensível e aqueles que dá a experiência
interna ou psicológica. Mas, esse contraste não é, na verdade, o de duas experiências
distintas e completamente heterogêneas; é o de duas formas extremas de uma mesma
experiência. Se, relaxando os laços que estende entre as imagens a atividade
intelectual, aproximamo-nos do plano inferior de conhecimento no qual o espírito
limitar-se-ia a acolher estupidamente o dado, toda a experiência torna-se interna e
psicológica, pois todo o dado consiste em sensações, isto é, em “estados mentais”, e,
nesta atitude de extrema distensão intelectual, nada pode fazer figura de objeto físico
nem de mundo exterior. É um turbilhão incessante de imagens que surgem para logo
desaparecer, sem nada que ofereça um gancho pelo qual se possa retê-lo; é o perpétuo
escoar de um rio de águas sempre renovadas, tema sobre o qual toda uma literatura
psicológica bordou infinitas variações. Mas, o progresso da percepção consiste em sair
deste torpor contemplativo para substituir pouco a pouco à consideração das imagens a
consideração dos objetos, tratando-as não mais como coisas, mas apenas como
qualidades das coisas. A realidade à qual a experiência nos faz então atingir é um
mundo de objetos físicos que apresenta uma relativa estabilidade, e que o pensamento
constrói, ligando, umas às outras, as qualidades que as sensações revelam. A
experiência tende assim a tornar-se inteiramente externa e sensível. E ela o seria
exclusivamente, se o espírito fosse capaz de reunir, num sistema acabado, a totalidade
das imagens, de maneira que cada uma aparecesse como um fragmento necessário da
história do universo. Enfim, a diferença entre experiência interna e experiência externa
se reduz finalmente à diferença entre dois graus de experiência, porque a diferença
entre o psíquico e o físico se reduz à diferença entre dois planos de realidade. Será
isto, entretanto, tudo? Não reencontraremos também aí, confundida com a primeira, a
diferença entre a ordem do fato e a ordem do conhecimento ? É o que vai mostrar o
exame desta curiosa ruptura de equilíbrio pela qual é logo perturbada, na Psicologia
clássica, a simetria primeira das duas formas de experiência. Pois a experiência
psicológica, que se tinha, de início, simplesmente justaposto, sobre o mesmo plano de
conhecimento, à experiência sensível, não tarda a avançar sobre ela, a tal ponto que
acaba por recobri-la inteiramente. Quando, pela experiência externa, uma sensação
revela um fato físico, esta sensação constitui, por sua vez, um fato psíquico que, como
tal, será ele mesmo revelado pela experiência interna. Esta deve, então, aparecer como
uma espécie de sentido comum abraçando todos os outros, um olho interior aberto ao
mundo dos fatos mentais, e por conseguinte às sensações, como os sentidos são
abertos ao mundo exterior. Dir-se-á, então, que a experiência sensível é apenas
mediata, uma vez que ela, mesmo ela, é conhecida por intermédio da mente, e que a
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 17
ciência a mais próxima do fato e, por conseguinte, a menos duvidosa de todas, é a
Psicologia; toda a Física não passando, aliás, de um capítulo da Psicologia, ciência
universal. A experiência sensível não se opõe mais agora à experiência psicológica, é
apenas um de seus casos. Mas, por quê parar aí ? Afirma-se que as qualidades são
conhecidas pelas sensações, depois, que as sensações são conhecidas pela mente: por
que não uma terceira forma de experiência, pela qual, do mesmo modo que a mente
conhece este conhecimento das qualidades que é a sensação, seria por sua vez
conhecido este conhecimento das sensações que é a mente, e depois uma quarta forma
para conhecer esse conhecimento da mente? Não é verdadeiro que, assim como não
podemos experimentar uma sensação sem saber que a experimentamos, tampouco
podemos saber isto sem saber que o sabemos, e sem saber isto ainda? Este
encaixamento ilimitado de experiências, que a experiência sensível, previamente,
suporia, é como que uma prova por absurdo do erro que comete o psicólogo quando
interpõe, entre o espírito e o conhecimento sensível, um conhecimento introspectivo.
Vítima da ilusão realista (que comanda tudo situar no plano da existência), ele toma
por uma coisa de uma espécie nova o conhecimento das coisas; de tal modo que ele
deverá supor, para explicar que se possa conhecer uma coisa, uma espécie de
conhecimento de segundo grau pelo qual se conhece, previamente, esta coisa mental
que é o conhecimento da coisa. A verdade é muito mais simples: é que toda
experiência supõe a dualidade de um objeto de experiência e de um ato de
conhecimento. Os objetos de experiência, os únicos que podem ser dados, são as
imagens que nos dão os sentidos, de sorte que toda a experiência é sensível. Mas a
sensação supõe, além da qualidade sensível, o espírito ao qual ela seja dada e que a
põe como qualidade sensível: é por isso que a pura sensação não é senão um limite
inacessível. Em outros termos, não há, falando propriamente, “dados de consciência”,
só há dados dos sentidos e a consciência desses dados; consciência, isto é,
conhecimento, e não realidade a conhecer; a consciência é um ato, o próprio ato de
saber, e não um objeto de contemplação. A oposição da experiência interna à
experiência externa, convenientemente interpretada, nada mais significa agora do que a
obrigação de distinguir, na própria experiência, o pensamento que conhece e a
realidade conhecida. Esta oposição é, então, equívoca: ora ela marca a distância que
separa duas maneiras extremas de considerar a realidade, ora ela designa a correlação,
no interior de todo conhecimento, do ato de conhecer e do objeto conhecido. Pela
terceira vez, chegamos à mesma conclusão: que se examine a oposição tradicional do
físico e do mental, ou a do objetivo e do subjetivo, ou ainda a da experiência externa e
da experiência interna, por toda parte encontram-se, confundidas numa única
dualidade, a dupla dualidade de dois planos extremos de realidade, de um lado, da
ordem da realidade e da ordem do pensamento, do outro.
Esta confusão sendo reconhecida, nada impede a conservação da distinção entre
o físico e o mental, desde que se a traduza, tacitamente, numa ou noutra das duas
distinções que ela recobre, de maneira a não aplicar a uma o que só convém à outra.
Ora a oposição do físico e do mental significará a oposição do fato objetivo ao fato
bruto, ou seja, do universo à imagem; ora designará a oposição da realidade e do
A Noção de Fato Psíquico
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pensamento (caso em que seria necessário ainda dar a saber se a realidade que se
distingue do pensamento é a realidade da imagem ou a do universo). Qualquer que
seja, aliás, dessas duas traduções, a que se adote, jamais se deverá interpretar o
dualismo psicofísico como um dualismo ôntico, justapondo num mesmo universo duas
espécies de realidades.
Esta revisão do sentido tradicionalmente atribuído à oposição do físico e do
mental acarreta a obrigação de submeter a exame certas idéias conexas, uma delas
sendo a concepção que convém fazer do que são pesquisas psicológicas.
O “fato psíquico”, propriamente dito, reduzindo-se à sensação, o domínio da
Psicologia, se se quisesse continuar a defini-la como a ciência dos fatos mentais,
estaria longe de estender-se à totalidade do espírito. No interior do espírito, é preciso
traçar uma linha de separação entre as imagens, que, só elas, podem ser dadas ou não,
e às quais poderá, por conseguinte, convir o nome de fatos psíquicos, e as operações
do pensamento, suscetíveis de ser válidas ou não, mas que não podem ser
consideradas como dados, uma vez que seria preciso então supor um pensamento de
segundo grau ao qual o primeiro fosse dado, e isto indefinidamente. A Psicologia, na
medida em que ela se apresenta como uma ciência de fatos, não pode, então, incidir
sobre as operações intelectuais. A idéia de considerar a atividade intelectual como um
mecanismo dado, do qual seria possível descrever, a partir de observações minuciosas,
todas as engrenagens e explicar em seguida o funcionamento, não é natural senão entre
aqueles para quem o próprio pensamento nada mais é do que certa combinação de
representações e o espírito uma mera coleção de imagens. Não é por acaso que os
criadores da Psicologia clássica foram empiristas. A pretensão de escrever um tratado
Da Inteligência seguindo o mesmo método com o qual se escreveria um tratado Do
Calor ou Da Respiração supõe a tese de que os atos intelectuais são fenômenos
naturais acessíveis à observação, e como só as imagens podem ser consideradas como
fatos, envolve a suposição de que os atos intelectuais se reduzem a sucessões de
imagens, o que é precisamente uma das afirmações essenciais do empirismo. Assim,
não é um medíocre tema de espanto ver uma Psicologia quase oficial, a que expõem a
maior parte dos livros destinados ao ensino, tratar das operações intelectuais ao
mesmo tempo em que, por um lado, se define como ciência natural e, por outro, rejeita
o empirismo. Entre os dois seria preciso escolher; e, se o empirismo parece incapaz de
dar conta das operações intelectuais, deve-se ou renunciar a introduzir essas operações
no domínio da Psicologia ou cessar de concebê-la como ciência dos fatos mentais.
Como, ademais, e isto será visto mais tarde, a vontade e o sentimento não podem ser
explicados sem menção à atividade intelectual, seria preciso concluir que a Psicologia,
se se persistisse em defini-la como ciência dos fatos mentais, não teria outro objeto
que não o mundo das imagens.
Pode-se mesmo dizer, propriamente, que ela seria ciência do mundo das
imagens no mesmo sentido em que se diz que a Física é a ciência do mundo material?
Certamente, é possível estabelecer leis que liguem as imagens umas às outras e
constituir, assim, uma ciência das imagens. Mas esta ciência não é a Psicologia, é a
Física. Pois, estabelecer leis que permitam calcular cada imagem em função de
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 19
algumas outras é reunir as imagens em sistemas e compor assim objetos físicos, é
deixar o plano da experiência bruta ou psicológica, na qual se estaria absorvido na
contemplação estúpida do dado, para tentar compreender este dado e, por uma mesma
operação, constituir um universo objetivo. A diferença entre a atitude psicológica e a
atitude científica é exatamente a que separa as duas atitudes extremas que podemos
adotar para considerar a realidade: é ,então, claro que não podemos adotá-las
simultaneamente. Ou tomamos as imagens no estado de isolamento no qual cada uma é
uma realidade indiscutível, pondo-se por sua mera presença: a realidade que
consideramos é então psíquica, mas nossa atitude é a negação mesma da atitude
científica; ou, adotando a atitude científica, tentamos explicar cada imagem
relacionando-a, segundo leis, a outras imagens: constituiremos assim uma ciência da
natureza, a Física (as imagens tornando-se simples qualidades das coisas e a realidade
sendo transferida das imagens aos objetos). Enfim, se o dado, na medida em que é
dado, é inteiramente psíquico, toda ciência do dado é necessariamente Física. É por
isso que a tentativa de constituir, em simetria com a ciência dos fenômenos físicos,
uma ciência dos fenômenos psíquicos, buscando as leis que os ligam uns aos outros,
tem algo de contraditório. A única ciência possível da natureza é aquela que, partindo
dos dados, isto é, das imagens, se propõe a elaboração de um sistema de leis que os
liguem uns aos outros, de maneira a torná-los inteligíveis, permitindo ver na presença
de cada imagem um efeito necessário da presença das outras.
Segue-se daí que a Psicologia pode tomar dois caminhos, dos quais um não leva
a nenhum conhecimento verdadeiro, e foi de fato abandonado pelos psicólogos,
enquanto que o outro permitiria um saber psicológico autêntico. Pode-se,
primeiramente, continuar a dar como objeto da Psicologia a consideração dos “fatos
mentais”. A Psicologia se distinguirá, então, das ciências da natureza, não por seu
objeto, que será sempre o dado sensível, mas, pela atitude intelectual adotada, que será
a inversão da atitude científica. Ao invés de buscar ligar os elementos do dado para
entender cada um em função dos outros, renunciará a interpretar as sensações para
tentar experimentá-las da maneira a mais ingênua, isto é, dando as costas à ciência, e
tendendo para o caos das impressões puras. Desta atitude de distensão o artista poderá
tirar proveito, mas não há grande coisa a extrair para o conhecimento. É, então, uma
outra direção a que será tomada pelas pesquisas psicológicas, se elas querem chegar à
cientificidade, no sentido amplo em que esta palavra designa todo verdadeiro
conhecimento. Renunciar-se-á, então, a considerar fatos mentais. Ou o estudo incidirá
sobre fatos que se tentará ligar por leis, e então a Psicologia, em lugar de opor-se à
Física, será somente um de seus capítulos; ela não se ocupará de um mundo mental
distinto do mundo material, ela se ocupará desses fenômenos ou imagens aos quais se
reduzem, como todos os fenômenos físicos, os movimentos de um organismo, para
tentar ligá-los ao resto das imagens e fazê-los entrar, assim, no sistema do universo
objetivo; ela prolongará a Biologia, do mesmo modo que a Biologia não se tornou uma
ciência senão prolongando a Físico-química. Ou bem é ao psíquico, por oposição ao
físico, que ela se aplicará; nesse caso, deixará de considerar as imagens e é para o
estudo das operações intelectuais que ela se voltará, renunciando, do mesmo golpe, à
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 20
cientificidade, no sentido estrito em que esta palavra designa o estudo dos fatos e a
busca de leis naturais, e se definindo como um aperfeiçoamento da Psicologia vulgar
(aquela que todo mundo pratica, sem o saber, em suas relações com seus semelhantes)
e não como um prolongamento da ciência da natureza. Quer dizer que o caminho que
podem tomar pesquisas psicológicas bifurca-se desde o início para levar seja a uma
Psicologia do comportamento, seja a uma Psicologia da interpretação: a primeira
incidirá sobre certos fatos físicos, a segunda, sobre a atividade do pensamento, e as
explicações que elas tentarão diferirão exatamente como um fenômeno difere de uma
explicação de texto.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 21
CAPÍTULO II
A Imagem
A tese que faz da sensação e do objeto físico duas realidades heterogêneas
incluídas no mesmo universo parece, inicialmente, a expressão a mais fiel da
experiência corrente. Quando nasce uma sensação, parece difícil negar que estejamos
diante de dois termos bem distintos: um objeto material extenso, perceptível por todos,
e um fato mental conhecido apenas por quem o experimenta e estranho ao espaço. A
distinção se confirma se se considera a relatividade das sensações, ou seja, a
diversidade das representações suscitadas por um objeto idêntico que nos obriga a
opor a realidade subjetiva dos primeiros à realidade objetiva do segundo. Bem mais, a
relação entre estas duas espécies de realidade não parece menos manifesta, à primeira
vista, do que sua dualidade. Como basta, quando as condições fisiológicas requeridas
são preenchidas, fazer aparecer, variar ou desaparecer o estado mental, tudo se passa
como se o objeto fosse, por intermédio dos fenômenos fisiológicos, a causa do estado
mental. Esta relação parece mesmo suficientemente precisa para que se tenha querido
ver, na relação entre a sensação e o excitante, um caso privilegiado que permite ligar o
mundo mental ao mundo físico por uma lei funcional, e de dar assim um primeiro
passo para integrar ao domínio da ciência positiva, pelo estabelecimento de um
determinismo psicofísico, o velho problema das relações da alma e do corpo.
Mas, as dificuldades surgem desde que se tenta precisar a natureza desse
determinismo. Pode-se concebê-lo de duas maneiras. Ou os fatos mentais figurarão
como elementos constituintes na trama do determinismo universal, tal como os fatos
físicos, aos quais, por conseguinte, eles reagiriam. Ou, determinados por certos
fenômenos físicos, eles não exercerão sobre eles nenhuma influência recorrente, de
sorte que será permitido negligenciá-los totalmente no estabelecimento do
determinismo físico o mais rigoroso. A primeira hipótese concorda mal com o
princípio da conservação de energia; isso foi tão notado que se invocou, para
permanecer em regra com ele, um “equivalente mecânico da mente”, suposição não só
gratuita, mas sem sentido numa teoria dualista, uma vez que ela assimilaria a mente a
uma força de natureza física. Ademais, os progressos da fisiologia, cerrando,
constantemente, as malhas do determinismo físico-químico, afastam, cada vez mais, a
idéia de uma intervenção da mente nos fenômenos biológicos. Seria preciso, então,
escolher a outra hipótese, que, no entanto, após ter conhecido um momento de voga,
caiu hoje num tal descrédito que se pode, sem dúvida, se dispensar de lembrar todas as
dificuldades que justificam seu abandono. Acabar-se-á por reter, da hipótese
epifenomenista, apenas o que ela tinha de bem fundado, isto é, a afirmação de que o
determinismo físico forma um sistema fechado, e deve poder se constituir sem que
jamais se tenha que nele introduzir elementos mentais. O estudo da sensação tornar-se-
á, então, o estudo dos reflexos desencadeados, diretamente ou por via associativa, pela
excitação. A própria palavra sensação será evitada, ou, se a empregam, fazem-no
unicamente no sentido “objetivo” que vem de ser indicado. Que resta, doravante, da
hipótese dualista de que tínhamos partido? Não grande coisa, seguramente.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 22
Certamente, sempre se poderá admitir que há, atrás do mecanismo que se descreve,
certos estados subjetivos análogos aos que qualquer um experimenta quando abre seus
sentidos: tratar o estado mental como negligenciável não equivale a negar-lhe a
existência. Somente, não se vai mais saber que fazer dele. Pois, se se recusa a admitir
a idéia de fenômenos absolutamente fortuitos, e se, por outro lado, se evita deslizar de
novo para hipótese epifenomenista, não restará outro recurso senão o de justapor ao
determinismo físico, que se basta a si próprio, um determinismo mental autônomo, e
considerar os eventos que se sucedem numa mente como outro sistema fechado, sem
laço com o mundo físico. Em vez de recorrer a esse monadismo, será mais simples
negar, pura e simplesmente, com os behavioristas mais intransigentes, a existência da
mente, e chegar, assim, a um monismo radical em favor do objeto.
Mas, essa posição extrema é, por sua vez, insustentável. Pois, se é permitido ao
behaviorista tratar todos os seres vivos, aí compreendidos seus semelhantes, como
puros autômatos, pelo menos ele, que pensa assim, e justamente porque é pensante,
não pode considerar-se a si próprio da mesma maneira. Uma negação radical do
pensamento é, ao pé da letra, absolutamente impensável. Assim, quem jamais teria
sequer imaginado tomar esta posição desesperada se não estivesse como que acuado
pelas dificuldades do dualismo? Ora, o próprio embaraço de tal situação deveria
sugerir a porta de saída. Que seja tão impossível acrescentar a mente ao mundo físico,
quanto subtraí-la dele, não seria o índice de que a verdadeira questão é muito menos a
da escolha entre esta afirmação ou esta negação do que a do sentido a dar à
proposição sobre a qual se discute? O que é sujeito à contestação não é bem a tese do
monismo do objeto ou a do dualismo do objeto e da sensação, mas a tese realista
subjacente às duas outras. Gostaríamos de mostrar como o problema da percepção se
esclarece quando se abandona todo realismo e se substitui, ao dualismo de realidades
(a física e a mental) justapostas no mesmo plano de existência, o duplo dualismo dos
níveis de realidade (imagem e objeto) e das ordens da realidade e do pensamento.
Trataremos agora, então, de precisar que relação une a sensação e o objeto. Mas, antes
de mostrar que esta relação não é, de maneira nenhuma, assimilável à que une
fenômenos e cuja determinação é o alvo das ciências da natureza, convém responder a
uma questão prévia.
Poderiam, com efeito, recusar audiência a nossa análise, acusando-a de ser
antecipadamente desmentida pela existência de uma lei natural, perfeitamente
verificável, segundo a qual a sensação varia em função do excitante. A objeção seria
pertinente se fosse verificado que o termo ao qual a relação dita “psico-física” une o
excitante é bem a sensação, realidade psíquica radicalmente heterogênea à realidade
física. Poucos psicólogos admitiriam ainda, nos dias de hoje, tal interpretação. Que
esta relação tenha um valor científico, não obriga a tomar ao pé da letra, e a aceitar
também, como o enunciado de um resultado cientificamente adquirido, o próprio nome
que continuou a designá-la. Ela comporta duas interpretações um pouco diferentes,
segundo se adote a atitude do sujeito ou a do experimentador. Mas, nem num caso,
nem no outro, teremos a comparar fatos psíquicos e fatos físicos como duas realidades
igualmente dadas em nossa experiência. Se adotamos a atitude do experimentador, é
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 23
claro que, fazendo o experimento sobre outrem, jamais atingiremos, para pô-las em
relação com outra coisa, suas sensações. Constataremos, apenas, como um fato de
comportamento objetivamente verificável, que, se pedimos a uma pessoa comum que
julgue os valores relativos de vários excitantes, a série que ela terá ordenado em
progressão aritmética, dará, de acordo com as medidas da Física, uma progressão
geométrica. Se queremos analisar mais de perto o fenômeno, empregaremos a técnica
da Fisiologia, e, medindo as respostas reflexas à excitação, por exemplo, a grandeza
da contração da pupila a claridades crescentes, observaremos que ela varia, para as
intensidades médias, como o logaritmo do excitante. O que teremos posto, então, em
relação, é o excitante e a reação: teremos feito Fisiologia e não “psico-física”
(Psicologia). Consideremos, agora, a interpretação da experiência pelo sujeito, e
admitamos, para simplificar a exposição, que ele esteja só durante a experiência. Ele
tomará intensidades luminosas crescentes. Ele as medirá, primeiramente, apenas com
os olhos, de maneira que cada grandeza da série difira das duas vizinhas apenas o
bastante para que a diferença seja perceptível. Depois, ele as medirá com o fotômetro,
e se dará conta de que, aos valores primitivos 1, 2, 3, 4... corresponde uma nova série,
na qual cada valor é obtido pela multiplicação do precedente por um mesmo
coeficiente. Mediu ele, no primeiro caso, estados de consciência, e, no segundo,
fenômenos físicos heterogêneos aos primeiros? De modo nenhum: é visível que ele
mediu sempre as mesmas coisas, intensidades luminosas. Ele apenas empregou dois
métodos de medida. De modo que a experiência “psico-física” significa comparar os
resultados obtidos medindo grandezas físicas por dois métodos diferentes, dos quais
um é o dos crescimentos apenas perceptíveis, o outro sendo tomado de empréstimo à
prática corrente dos físicos. Sem dúvida, o primeiro método tem o duplo inconveniente
de ser menos preciso e de acarretar, se o adotamos, uma maior complicação das leis
em que a intensidade luminosa figura como variável. O físico tem, então, excelentes
razões para não empregá-las, e se poderá dizer, por conseguinte, que os resultados aos
quais ela conduz não são medidas “físicas”. Mas, isto significa apenas que o físico as
negligencia, não que elas seriam medidas extra-físicas, incidindo sobre fenômenos de
que não se ocupa o físico. Assim, nem o sujeito, nem o experimentador põem uma
grandeza física em relação com uma realidade mental essencialmente diferente,
estabelecendo como que uma ponte entre dois mundos. O valor da lei dita psico-física
não nos obriga, então, de modo nenhum, a afirmar, como um fato de experiência, o
dualismo ôntico. Afastado este obstáculo, examinemos, com base num exemplo
simplificado, como deve ser interpretada a relação entre a sensação e o objeto.
Eis-me aqui imóvel num quarto escuro. De súbito, a luz se acende, e percebo
um objeto, uma cadeira se destacando contra uma parede. Há aí um evento que ocorre
para mim, e que, ocorrendo apenas para mim, pode ser chamado subjetivo ou psíquico:
é que sou afetado de certa imagem visual. Mas, é, para mim, o único evento que
ocorre, então. De meu ponto de vista, não me são dados dois fatos, um físico que seria
a presença da cadeira iluminada e um psíquico que seria como que o reflexo do
primeiro em minha mente. O único fato é a aparição da imagem visual, e se eu
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 24
permanecesse perfeitamente imóvel, se meu espírito permanecesse absolutamente
passivo, a isto se limitaria, para mim, a experiência.
Mas, meu espírito não permanece inativo; e se eu estou, por ora, imóvel, não foi
sempre assim. Sei que a imagem que me aparece não é um fenômeno inexplicável, sem
qualquer relação com o resto da experiência. Sei que esta imagem é ligada a outras;
que levantando os olhos numa certa direção, eu seria afetado por uma sensação de luz
intensa; que orientando em outra direção meu rosto, eu teria tido em vez da imagem de
uma cadeira, a de um homem tocando um interruptor de luz; que se eu me desloco,
minha imagem visual se transformará gradualmente em tais outras; que se faço tais
movimentos, ela será acompanhada necessariamente de outras imagens igualmente
previsíveis. Todos esses juízos, e muitos outros do mesmo gênero, se resumem neste:
há diante de mim uma cadeira. A cadeira, cuja existência objetiva assim afirmo, é
seguramente distinta da simples imagem visual primeiramente considerada; é mesmo,
num sentido, independente dela, uma vez que, mesmo se eu jamais tivesse
experimentado essa imagem, mas tivesse experimentado algumas outras, poderia
afirmar a existência da cadeira, e da mesma cadeira. Mas, se ela é independente de
uma imagem, não o é de toda imagem; e se é outra coisa que não uma coleção de
imagens, pelo menos não se põe diante de minha consciência como uma realidade que
me seria estranha, uma vez que consiste em imagens ligadas por leis, e que leis não
são coisas exteriores ao pensamento, mas relações inteligíveis. O objeto é construído
por meu pensamento com a ajuda de minhas sensações, e constituído por essas
sensações mesmas, relacionadas umas às outras segundo as leis da natureza. Se
minhas sensações não se sucedem segundo as leis que eu tinha afirmado declarando é
uma cadeira, o objeto que eu construíra inicialmente será destruído, e meu
pensamento se esforçará por construir um outro que me permita dar conta das novas
imagens. Suponhamos que me deslocando eu assista a inesperadas transformações da
imagem visual: buscando ver a cadeira de lado, em lugar de ver aparecer o que
esperava, é a face que se estreita regularmente, sem que a perspectiva se modifique. O
objeto muda então para mim, e minha imagem primitiva, ainda que permanecendo a
mesma, será relacionada a outro objeto, uma pintura sobre uma parede ou ainda, se as
imagens táteis diferem das que me faziam prever as imagens visuais, se minha mão
atravessa a cadeira sem experimentar resistência, acreditarei num fenômeno de ótica e
falarei de uma “imagem virtual”. Enfim, se estas últimas hipóteses são, por sua vez,
desmentidas por imagens novas, direi que nada compreendo, e que não sei o que vejo:
o que significa, não que eu ignore de que imagem visual sou agora afetado, mas que
ignoro a que outras imagens ela se liga, que sou incapaz de prever que imagens farão
surgir para mim meus movimentos. Nada nos obriga, então, a falar de um objeto
exterior material que subsistiria por si e que se refrataria em minha consciência sob o
aspecto de uma sensação: o objeto não é dado, fora das sensações, como sua causa,
mas é, ao contrário, com as sensações, que só elas são dadas, que o pensamento busca
compor o objeto.
Esta conclusão será, entretanto, contestada. É verdadeiro, convir-se-á, que só
posso apreender em mim imagens, e que constituo o objeto exterior com as imagens
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 25
que experimento. Mas, a explicação que precede supõe que sou só no mundo e que o
mundo não é senão minha representação. Entretanto, não duvido, de modo algum, que
imagens semelhantes afetem outras consciências que não a minha, e que elas sejam
função dos objetos exteriores, qualquer que seja o modo que se conceba estes últimos.
Suponhamos que, na experiência que se vem de imaginar, eu tenha sido, não o
paciente, mas o operador, que eu mesmo tenha acendido a luz. Poder-se-á repetir, a
meu respeito, o que se disse do paciente: como ele, apercebi a cadeira, que, admitamo-
lo, se reduz para mim a certas imagens de que sou afetado, e a relações fixas que
concebo entre elas e outras. Mas há outra coisa na experiência, é a aparição de uma
imagem na consciência do paciente. Essa imagem é, sem dúvida, um estado de
consciência, mas não de minha própria consciência; e, por outro lado, esta imagem é
algo bem diverso da própria cadeira ou de uma parte da cadeira. Eis, então, um fato
que nem é um objeto material, nem um estado de minha própria consciência. Não é
evidente que é a cadeira iluminada, objeto material, que causa a sensação do paciente?
E, nessas condições, não devo eu, a menos que pretenda loucamente fazer de mim o
centro do mundo, supor que as coisas se passem exatamente para mim como para ele e
que minha sensação é determinada pela presença do objeto exterior4?
4 Tal seria, para dar um exemplo, a opinião de Claparède (Point de vue du psychologue et point de
vue du sujet, Archives de psychologie, t. XXIII, no 89, abril 1931). Claparède aceita a identificação
da sensação à qualidade sensível quando ela é feita do ponto de vista do sujeito. Mas contesta que
ela permaneça válida do ponto de vista do psicólogo, isto é, do cientista que observa o sujeito de
fora para estudá-lo. “É só para o sujeito que a sensação coincide com o objeto sentido, pois, para o
psicólogo, há sempre duas coisas: o objeto, o excitante, de um lado, e de outro, a reação do sujeito
a este excitante (a sensação, a percepção)”. Mas toda a questão seria justamente a de saber se o
observador tem o direito de assimilar a reação do sujeito a uma sensação. Claparède escreve que o
psíquico, considerado do ponto de vista do psicólogo, “só pode ser algo de inextenso, de não
espacial e de interior ao sujeito, designando por “interior” o fato de que os fenômenos desta ordem
só são conhecidos do próprio sujeito. Esses caracteres (inextenso, interior, etc), não dependem de
qualquer teoria, eles são puramente empíricos. Eles apenas exprimem, apenas descrevem, a situação
de fato diante da qual se encontra o psicólogo”. Como pode-se dizer que, afirmando esses
caracteres, o psicólogo exprima simplesmente um fato, quando se admite que o fenômeno psíquico,
por natureza, lhe escapa, sendo conhecido apenas do próprio sujeito? O fato em presença do qual me
encontro aqui, eu psicólogo, é que esses fenômenos psíquicos “se furtam a meus sentidos, que eu
não posso esperar, mesmo com os aparelhos de radioscopia mais aperfeiçoados, apercebê-los um dia
dentro do crânio do meu sujeito”. Como posso afirmar, então, o que quer que seja? Seria o mesmo
que afirmar como um fato de experiência a presença nesta gaveta de um fenômeno inextenso,
inacessível aos sentidos, e conhecido apenas da mesa, e alegar como prova a impossibilidade
absoluta de percebê-lo. A conclusão normal de experiências negativas desse gênero é que não há
nada. A menos que se pense ter razões de crer na existência da sensação no sujeito, e é,
evidentemente, o que quer dizer Claparède. Essas razões são as próprias declarações do sujeito, que
fazem parte de sua reação ao excitante, e que trariam ao psicólogo uma informação sobre a
existência duma realidade que ele próprio não perceberia. Evidentemente, o cientista tem o direito de
aceitar as informações que lhe dão testemunhas competentes e de boa fé, mas é preciso que ele
interprete corretamente o sentido de suas declarações, mesmo verídicas. Ora, a realidade da qual o
sujeito que diz “vejo uma árvore” assinala a existência, é a árvore, objeto físico, e não uma imagem,
duplicata psíquica do objeto. Claparède concorda com isto. “Do ponto de vista do sujeito, declara
ele, é sempre o objeto que é medido ou avaliado, e não a imagem ou a percepção mentais
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 26
Tal interpretação impõe-se tão pouco do ponto de vista do operador quanto do
ponto de vista do paciente. O operador afirma que a cadeira iluminada determina uma
sensação visual no paciente. Como deve-se entender esta afirmação? Seguramente, o
operador não conhece por uma experiência direta o estado psíquico do paciente. Sua
experiência é limitada a algumas imagens: a visão da cadeira iluminada, a do paciente
tendo a cabeça voltada para o lado da cadeira, certos movimentos do paciente, por
exemplo, movimentos labiais acompanhados do som de certas palavras, tais como,
“vejo uma cadeira”. Estas imagens são ligadas umas às outras pelo operador, e ele
afirmará que a cadeira iluminada é causa das modificações que ele constata no
paciente. Enfim, para o operador, o paciente é um objeto, tal como a cadeira e o
aparelho de iluminação: é composto, ele também, por um sistema de imagens ligadas
entre si, e em relação com outros sistemas de imagens. A interpretação da experiência
é, então, de mesma natureza, seja que nos coloquemos do ponto de vista do paciente,
seja que nos coloquemos do ponto de vista do operador. A experiência é apenas mais
complexa no segundo caso, porque os objetos considerados são mais numerosos, e
porque um deles, sendo extraordinariamente complicado, nos é muito difícil, ou antes,
totalmente impossível, ligar por leis estritas as imagens que nós lhe relacionamos às
que relacionamos aos objetos vizinhos. Mas, num caso como no outro, só algumas
imagens são dadas, com as quais o pensamento se esforça por constituir objetos que
ajam, uns sobre os outros, segundo leis.
Somente, o operador, conservando sua atitude de observação, põe-se, pelo
pensamento, na perspectiva do paciente. Ele sabe que, se estivesse em seu lugar, no
momento em que se faz a luz, ele seria afetado de certa imagem visual bem
determinada, e diferente da que ele experimenta agora. Ele sabe que este objeto que
ele tem diante de si e que profere palavras, não é um objeto como uma cadeira, mas
também um sujeito como ele próprio. Assim, afirma ele que a cadeira iluminada
produz nele não somente certos efeitos físicos, imagens extensas e perceptíveis a
todos, de mesma natureza que as que compõem a cadeira, mas também certo efeito
interno ou psíquico, conhecido apenas do paciente. Ora, é aqui que se introduz o erro.
Uma vez que se admitiu, explicitamente ou não, a tradicional distinção entre objetos
extensos e visíveis a todos e as sensações inextensas conhecidas apenas pelo sujeito,
esta interpretação da experiência se imporá sem dúvida. Mas, é esta distinção que é
inaceitável. A imagem da cadeira não é inextensa, uma vez que ela tem uma forma,
recobre outras, cresce ou diminui conforme o sujeito se aproxime ou se afaste; o que
não tem forma nem grandeza, não é a sensação, mas os juízos que a acompanham, por
exemplo, aquele pelo qual se afirma que tal sensação é experimentada. Por outro lado,
esta imagem não é conhecida apenas pelo sujeito, uma vez que o operador afirma sua
existência. Sem dúvida, a imagem dada não á a mesma para o paciente e para o
operador, pois eles olham o objeto de dois lugares diferentes. Mas o operador sabe
correspondentes a este objeto. Para o sujeito, a avaliação incide sempre sobre objetos. Para o sujeito,
não há sensações, só há excitantes”. Nessas condições, pergunta-se que razões subsistem para
afirmar a existência desses “fatos psíquicos” que não são acessíveis a ninguém, escapando tanto ao
conhecimento do sujeito quanto à experiência do psicólogo.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 27
que uma imagem visual se deforma quando nos deslocamos, e sabe que essa
deformação é regida por leis estritas, mesmo se não tem conhecimento preciso delas.
De sorte que ele é capaz de conhecer mais ou menos a imagem do paciente, e que uma
ciência suficiente das leis da perspectiva, permitir-lhe-ia calculá-la com exatidão. O
que ele chama, por oposição ao objeto, o estado psíquico do paciente, não é, então, de
modo nenhum, esta realidade subjetiva e inextensa, propriedade privada e inalienável,
que gosta de descrever o realismo psicológico. É, simplesmente, o aspecto que
apresenta o objeto a partir do lugar ocupado pelo paciente, aspecto evidentemente
aberto no espaço e perceptível a quem quer que tome o lugar apropriado.
Nada em tudo isso nos obriga a situar a sensação num outro mundo que não o
mundo do objeto. Não encontramos, de modo algum, de um lado, um objeto público e,
do outro, uma pluralidade de imagens privadas deste objeto. A única realidade dada
são as imagens. Mas, como estas imagens variam segundo leis que a ciência pode
formular, elas não dependem do capricho individual. Assim, não são pessoais nem
incomunicáveis. Pelo contrário, cada uma delas pode, de direito senão de fato, ser
calculada com precisão. E é nesta dependência rigorosa em que elas estão umas das
outras que consiste a objetividade do mundo. O objeto não é a causa das sensações,
ele é construído pelo pensamento com a ajuda das sensações. Certamente, os
“objetos” aos quais chega a Física contemporânea não se assemelham aos que nos dá
a percepção; pode parecer que toda imagem sensível desapareceu completamente.
Mas é evidente que estas construções intelectuais, sob pena de permanecerem
inteiramente vãs, devem alcançar, finalmente, a experiência sensível, e que estas redes
superpostas de relações inteligíveis só têm valor de verdade porque se estabelecem a
partir de dados concretos. Assim, distinguir a sensação ou o estado psíquico da coisa
exterior ou objeto físico significa distinguir entre o fato bruto, a imagem dada
isoladamente, e o fato objetivo, aquele que a ciência busca construir. Querer
estabelecer entre estes dois fatos uma relação de causalidade seria um
empreendimento ilusório, uma vez que a palavra fato não tem, nos dois casos, a
mesma significação. É claro que não é o segundo termo que é causa do primeiro, uma
vez que, pelo contrário, o supõe. Dizer, com o realismo materialista, que o objeto é
causa de minha sensação é o mesmo que afirmar que a ciência é causa da experiência.
Aliás, seria igualmente irrazoável reverter entre esses dois termos a relação de
causalidade. O mundo não é composto de outros elementos que não de imagens, mas é
preciso, para que as imagens componham o mundo, que elas sejam relacionadas umas
às outras pelo pensamento. Pode-se então dizer, mas em dois sentidos um pouco
diferentes, seja que o mundo só é composto de imagens, seja que ele é algo mais que
um conjunto de imagens. Do mesmo modo, pode-se dizer de uma casa, seja que ela só
é composta de pedras, seja que ela é algo mais que um conjunto de pedras: este algo
mais é o plano do arquiteto, que não é um objeto acrescentado às pedras, mas um
plano que presidiu a distribuição da pedras. A imagem é comparável à pedra, o objeto
físico, à casa. A diferença entre o objeto físico e a sensação não é a de duas realidades
heterogêneas que entram como ingredientes na composição de um mesmo universo, é
a das sensações ligadas pelo pensamento e da sensação considerada isoladamente. As
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 28
sensações não são produtos e como que dejetos do mundo, elas são os materiais com
os quais o pensamento constrói o mundo.
Não se pode então nem distinguir onticamente sensação e objeto, nem reduzir
pura e simplesmente o objeto à sensação, nem a sensação ao objeto. A distinção só
pode ser a de dois planos de realidade, o que implica a distinção correlativa de duas
ordens: a ordem da realidade e a ordem do pensamento.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 29
CAPÍTULO III
O Pensamento
1. O Pensamento Reflexivo
As operações intelectuais podem ser tratadas como eventos ligados entre si e
aos outros eventos do universo por leis naturais? A sorte da Psicologia, concebida
como uma Física do espírito, depende da resposta a esta questão. Aceitar a negativa,
não é apenas dar à Psicologia limites estreitos, excluindo de seu domínio uma parte
importantíssima do psiquismo. Se é verdadeiro, como logo esperamos mostrar, que a
vontade e o sentimento não podem ser entendidos sem referência à atividade
intelectual, todo o objeto da Psicologia escapará à “Física” do espírito se apenas lhe
escapam as operações da inteligência. É por isso que uma das teses principais do
realismo psicológico é a assimilação do juízo, operação intelectual fundamental, a um
fenômeno natural. Um juízo não é, com efeito, suscetível de ser explicado, como
qualquer fenômeno, por fenômenos antecedentes ou concomitantes? Ele não é algo de
arbitrário, surgindo de um golpe, subitamente, sem que haja para isso uma razão. Ele é
acarretado por percepções, por juízos anteriores, por desejos, paixões, de modo que,
estes sendo o que são, o juízo atual não pode não ser, e não ser exatamente como é.
Deve, então, haver leis naturais segundo as quais todo juízo é necessariamente ligado a
seus antecedentes psíquicos, e, por conseguinte, a ciência que busca estabelecê-las, é
perfeitamente legítima. Tal é a tese da Psicologia clássica.
Ora, é verdade que um juízo é explicável, que ele nada tem de arbitrário. Mas,
passar daí à afirmação de que ele é inevitavelmente decorrente de certos antecedentes
psíquicos, segundo uma necessidade natural, é ser vítima de uma confusão de
linguagem, porque é identificar duas formas radicalmente diferentes de necessidade. É
preciso lembrar aqui a distinção entre a necessidade natural e a necessidade lógica,
uma vez que o psicólogo faz como se a ignorasse, ou pelo menos como se a estimasse
sem fundamento. Dizemos que uma demonstração acarreta necessariamente certa
conclusão; e dizemos, do mesmo modo, que o movimento de uma bola de bilhar
acarreta necessariamente o movimento de uma outra com a qual ela se choca. Mas a
conclusão não é, de maneira nenhuma, acarretada do mesmo modo que o movimento
da bola que recebeu o choque; e a necessidade da qual falamos no primeiro caso não
pode ser reduzida à de que falamos no segundo. No caso de um juízo, necessariamente
quer dizer normalmente; no caso de um fenômeno físico, quer dizer inevitavelmente.
Dizer que certa conclusão é acarretada necessariamente por outros juízos, significa
que esse juízo é uma sequência legítima dos primeiros, e não que ele lhes sucederá de
fato, no sentido de uma consecução temporal de eventos. Não se trata, então, aí, de
uma necessidade natural, como aquela em virtude da qual o movimento da bola que
recebeu o choque é acarretado inelutavelmente pelo choque. Enquanto que um evento
é dito necessário quando ele não pode não ocorrer se tais outros eventos ocorrem, um
juízo é dito necessário quando ele não pode não ser verdadeiro se tais outros juízos
são verdadeiros. Enfim, a relação que liga entre si vários juízos é uma relação de
princípio a consequência, não é de modo nenhum uma relação de causa a efeito. Que
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 30
um juízo não seja arbitrário, não significa, então, que ele seja determinado segundo
uma necessidade natural, mas, ao contrário, que ele é acarretado pela necessidade
lógica. E a possibilidade, para o pensamento, de seguir a necessidade lógica, é
justamente o que constitui a liberdade do espírito. Os partidários, declarados ou
dissimulados, do determinismo psicológico, imaginam sempre que seus adversários
defendem não sei que liberdade de indiferença, segundo a qual o espírito poderia
arbitrariamente, num momento dado, julgar isso ou bem o contrário disso. Mas a
liberdade do juízo não consiste na indiferença e no capricho. Consiste no poder de não
ceder senão à ligação lógica, e de resistir vitoriosamente a não importa que força
natural, tanto ao que se chama as forças morais, como o constrangimento da opinião
pública ou o interesse que apresenta para nós tal verdade, quanto às forças
propriamente físicas; ela se manifesta nisto que não há procedimento mecânico capaz
de levar o espírito a julgar uma coisa antes que outra, e nisto que o meio mais seguro
para modificar uma opinião é o uso do raciocínio. As operações do pensamento são
livres, pois nenhuma necessidade natural as comanda, mas nada tem de arbitrário, a
necessidade lógica as guia. Nenhum juízo pode, então, ser integrado ao determinismo
dos eventos, uma vez que todo juízo, mesmo se logicamente necessário, escapa à
necessidade natural.
Mas, isto não é tudo. Não encaramos ainda senão o caso mais simples, aquele
em que um juízo é extraído, como consequência, de certos princípios já postos.
Quando as duas premissas de um silogismo são dadas previamente, quando a
demonstração de um teorema está feita, a liberdade de julgar reduz-se, então, ao
mínimo. Certamente, é preciso já um esforço de pensamento para apreender a relação
entre as duas premissas ou para compreender a demonstração. Mas, se a relação é
apreendida, se a demonstração é compreendida, não há lugar, doravante, senão para
uma única conclusão. Se tal conclusão é totalmente independente da necessidade
natural, pelo menos é necessária logicamente, duma necessidade que exclui qualquer
escolha. Mas, em muitos casos, a coisa é bem diferente. Certos juízos sendo postos, o
espírito pode afirmar, a partir deles, vários outros novos juízos, diferentes uns dos
outros, todos, entretanto, legítimos. É o que acontece sempre que o espírito procede
por análise. Quando, partindo de certos juízos, se trata, não mais de achar que juízos
eles condicionam, mas, ao contrário, de buscar que juízo ou sistema de juízos pode ser
considerado como a condição, há lugar, logicamente, para um número indefinido de
soluções. Se se põe que nenhum inquieto é feliz e que todo avarento é inquieto, não se
pode legitimamente extrair outra conclusão que não a afirmação: nenhum avarento é
feliz. Mas, se se põe primeiro que nenhum avarento é feliz e se pede a justificativa
deste juízo, não basta mais, para resolver o problema, deixar-se guiar pela necessidade
lógica, esperando que ela leve a uma solução determinada, pois há uma multidão de
justificações válidas, seu número não tendo outros limites que não os da
engenhosidade do pesquisador. Manifesta-se, aqui, o poder de invenção do espírito:
ele é livre, não somente nisto que ele não sofre constrangimento físico, mas também
nisto que, no interior dos limites que lhe traça a lógica, ele é capaz de criações
imprevisíveis. Estas criações não serão equivalentes para a razão, uma vez que umas
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 31
darão ao problema uma solução mais simples ou mais direta que as outras; mas serão
equivalentes do ponto de vista da pura lógica, uma vez que um raciocínio longo e
complicado, desde que seja rigoroso, possui o mesmo valor demonstrativo que uma
raciocínio curto e simples. Ora, uma atividade desse gênero está longe de ser
excepcional. Todos os problemas técnicos, todos os que põem cada homem no
exercício de seu ofício, comportam estas operações analíticas, já que consistem em
buscar os meios capazes de levar a certos fins, isto é, em remontar do resultado
almejado às condições suscetíveis de levar a ele: como obter uma clientela numerosa,
como construir tal casa, como curar este doente, como conseguir uma abundante
colheita. Nenhum desses problemas comporta uma solução única, de maneira que se
possa, conhecendo exatamente as circunstâncias, prevê-la com certeza. Peça a vinte
engenheiros o projeto de uma máquina para um uso determinado e tudo o de que você
poderá estar seguro é de que vinte projetos diferentes lhe serão apresentados. E se
você consegue prever com bastante exatidão, não, certamente, o detalhe do projetos,
mas, pelo menos, suas grandes linhas comuns, não foi seguindo no espírito de seus
engenheiros não sei que mecanismo psicológico pelo qual se fabricaria neles a
invenção da máquina, é que você mesmo, engenheiro ocasional, buscou resolver por
seus próprios meios o problema que você lhes tinha posto. Mas esta contingência dos
juízos não é limitada à solução dos problemas técnicos; ela se estende por toda parte
onde o espírito procede por análise; ela se encontra então no enunciado das leis
naturais, planando, assim, sobre o conjunto das ciências da natureza. Os que
pretendem descobrir as leis do funcionamento do espírito imaginam que há leis da
natureza, perfeitamente definidas e em número bem determinado, e que para descobri-
las, basta ao cientista saber lê-las uma a uma na experiência graças a engenhosos
métodos. Ora, as leis não são de modo algum estabelecidas previamente, de modo que
reste apenas descobri-las; é preciso fazê-las, inventá-las, e nesta invenção da ciência
se manifesta o poder criador do espírito. O cientista, em presença dos fatos que ele
deve explicar, acha-se numa situação comparável à do homem a quem se pede que
formule premissas capazes de justificar um juízo. Todo vigor de uma inteligência
preocupada com evitar a menor falta de ordem lógica é aqui impotente para achar uma
resposta que se imponha, pois há uma infinidade de respostas possíveis. Em particular,
quando o sistema das leis físicas está já parcialmente constituído, a liberdade criadora
do espírito se acha reduzida na mesma proporção, uma vez que é preciso velar para
que o novo princípio não esteja em desacordo com os já estabelecidos. Ocorre ainda
que esta restrição pode sempre ser levantada, desde que se tome cuidado de modificar
os antigos princípios para pô-los de acordo com o que se quer introduzir. Arriscar-se-
ia muito, seguramente, de chegar assim a uma física extremamente complicada, mas
ela permaneceria tão verdadeira quanto a outra, permitindo a previsão dos fenômenos
e as aplicações técnicas tão seguramente quanto ela, senão tão facilmente. É mesmo
pela invenção de paradoxos desse gênero que por vezes a face da ciência é mudada, e
que, em lugar de uma complicação nova, uma simplificação admirável se acha
introduzida no sistema das leis naturais: simplificação imprevisível, jamais se teria
produzido se tal gênio não a tivesse inventado, ou que seria feita de um modo muito
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 32
diferente e que não se pode imaginar a menos que se seja o gênio criador e que se
invente efetivamente. Todo nossa sistema físico é então radicalmente contingente.
Uma infinidade de outros teriam sido possíveis, muitos dos quais, sem dúvida, seriam
menos satisfatórios que o nosso, mas, dos quais não é permitido afirmar que nenhum
satisfaria mais. A ciência não está inscrita na natureza como um livro, e o cientista não
é como o escolar de quem se exige que saiba lê-lo. A construção da ciência é um jorrar
de imprevisíveis criações. Essa criações são livres, não somente nisto que nenhuma
necessidade natural as determina, mas nisto que a necessidade lógica, ela própria, não
permite, partindo de um estado dado da ciência, deduzir seu desenvolvimento futuro.
Enfim, enquanto que na síntese dedutiva a liberdade do espírito se manifesta apenas
pela obediência à necessidade lógica, em toda operação analítica, esta liberdade
comporta, mesmo quanto à lógica, a mais larga indeterminação.
Mas, isto não é tudo. Mesmo na dedução se encontra a espontaneidade criadora
do espírito. Poder-se-ia desde logo notar que um bom número dos princípios dos quais
dependem as deduções resultam de análises prévias, são fruto de um trabalho de
criação original do pensamento. Donde resulta que a necessidade lógica jamais
constrange absolutamente o espírito, mesmo quando ele segue a ordem sintética. Com
efeito, ela não obriga a aceitar uma conclusão senão com a condição de que ele aceite
os princípios: ora, há certos princípios que é sempre permitido contestar, porque é
sempre teoricamente possível achar outros que preencham também rigorosamente,
ainda que talvez com menos simplicidade, o mesmo papel. Mas, sem insistir mais
sobre esta nota, e não considerando senão o próprio trabalho da dedução, sem se
preocupar com a maneira pela qual são achados os princípios, nem com as razões que
se têm para admiti-los, pode-se mostrar que esse trabalho não exclui toda
contingência. Certamente, uma vez postos e compreendidos os princípios, não resta
mais nenhum esforço de invenção a fazer para tirar a conclusão. Não é aí então que se
deve buscar a atividade do pensamento que deduz. Justamente porque a conclusão é
comandada pelos princípios, o espírito nada mais tem a fazer senão que se deixar
levar, de algum modo, pela necessidade lógica. Ainda será preciso que os princípios
tenham sido postos, e postos juntos. Se se deixa de lado o caso em que o espírito se
limita a seguir um raciocínio dedutivo já feito, o trabalho da dedução consiste
precisamente em aproximar os princípios suscetíveis de levar a uma conclusão. Ora,
essa aproximação é ainda uma livre criação do espírito, contingente tanto em relação à
necessidade lógica quanto em relação à necessidade natural. Quem não poderia citar
verdades que conheceu isoladamente durante muito tempo antes que sonhasse em
relacioná-las e extrair daí uma conclusão inesperada. A história da ciência, e
principalmente a da matemática, forneceria, à vontade, exemplos análogos; se tal
matemático não tivesse existido, tal teorema jamais teria sido enunciado, e entretanto
ele resulta necessariamente de teoremas já conhecidos, mas era preciso que alguém se
desse conta disso. A direção segundo a qual progredirá a cadeia das consequências a
partir de um sistema complexo de princípios é contingente, e tanto mais quanto mais
complexo é o sistema. A impossibilidade de prever como se desenvolverá uma
sequência de raciocínios é então encontrada mesmo no caso em que esses raciocínios
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 33
são dedutivos. Sendo dado um sistema complexo de princípios, pode-se, quando
muito, obter uma previsão grosseira do desenrolar das consequências; e o meio de
obtê-lo não é pedir a uma física mental que nos dê as leis segundo as quais
calcularemos esse desenrolar; é de desenrolarmos nós mesmos as consequências,
raciocinando como o faria, segundo a natureza dos princípios postos, um matemático,
um físico, um engenheiro, um advogado.
É, então, vão buscar as leis naturais que regeriam o curso do pensamento. O
curso do pensamento é livre, e duas vezes livre. Primeiro, nisto que ele é liberado da
necessidade natural, e não sofre outro constrangimento que o da necessidade lógica, de
sorte que ele não obedece a leis mas a regras. Em seguida, nisto que essas regras
deixam lugar à contingência, à possibilidade de sequências diferentes de juízos. É por
isso que o conhecimento o mais detalhado das circunstâncias nas quais eclodiu uma
obra de arte, uma invenção técnica, uma idéia moral ou um conceito científico, se é útil
para compreender sua gênese, jamais poderá dar delas senão uma explicação
insuficiente, e mesmo duplamente insuficiente. Primeiro, porque os fatos invocados
como causa não exercem sobre o espírito verdadeira causalidade, o espírito sendo
subtraído à causalidade natural. Em seguida porque, no próprio interior do espírito, a
submissão à necessidade lógica deixa ainda campo livre a uma multidão indefinida de
possíveis. Sem dúvida, as operações do espírito não comportam o arbitrário: os
pensamentos novos dependem sempre dos antigos, de maneira que se pode sempre,
mas só depois, a eles vinculá-los. Mas, dependem como uma solução depende um
problema, não como o estado de um sistema mecânico depende do anterior. Ora,
frequentemente, um problema complexo comporta várias soluções, ou pelo menos,
várias maneiras de chegar a uma mesma solução, igualmente válidas do ponto de vista
lógico. Nesse caso, encontrar o enunciado do problema permitirá explicar uma das
soluções; mas o mesmo enunciado explicaria igualmente bem, quer dizer, igualmente
mal, uma das outras soluções. Eis porque a previsão do porvir é, nas obras do espírito,
impossível. Não se pode prever senão depois de realizadas, e, de algum modo, a
contrapelo, remontando do que é a prever, ou mais exatamente, a explicar, a certas
idéias ou circunstâncias antecedentes, de maneira que, entre sua infinidade, a escolha
das idéias ou das circunstâncias interessantes seja precisamente ditada pelo
conhecimento do que se quer explicar. Ou então, se a previsão pretende se exercer
verdadeiramente sobre o porvir, ela só tem chances de sucesso se quem quer prever
realiza ele próprio o trabalho intelectual cujo resultado quer antecipar: o que é
justamente transformar o porvir em presente, e substituir a previsão pela realização.
Mas seria vão buscar prever o curso futuro de um pensamento, e, por exemplo, as
obras que farão um matemático ou um filósofo, pela constituição de uma física do
espírito. A atividade intelectual resta irredutível ao determinismo da natureza.
Esforçando-se por reduzir a dependência lógica à dependência natural, as
operações do espírito aos fenômenos do universo, o realismo não empreende apenas
uma tentativa quimérica, empreende uma tentativa absurda. Querendo fazer penetrar a
necessidade das coisas no espírito, reverte-se a ordem verdadeira. Bem longe de
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 34
estender-se até o pensamento, a necessidade natural supõe como condições a liberdade
criadora do espírito e a necessidade lógica.
A atitude do realismo psicológico, consistindo em considerar as operações
intelectuais como fatos determinados por outros fatos segundo uma necessidade
natural, implica a idéia de que essa necessidade existe por si na natureza, impondo aos
fenômenos, como uma legislação inviolável, o rigor de uma ordem preestabelecida.
Ora, a natureza não é submetida a uma necessidade desse gênero. Não há nenhuma
necessidade nas próprias coisas. A experiência não ofereceria, a um espírito que se
supusesse contemplá-la passivamente, mais que um turbilhão de imagens incoerentes
sem qualquer laço entre si. Cada imagem dada é dada: impõem-se por si mesma, mas
nada impõe além de si mesma. “Qualquer uma pode seguir qualquer outra”. Enfim, a
categoria que se aplica à coisa é a da realidade, não a da necessidade. Mas o espírito,
em presença do caos das imagens, tenta ordená-lo segundo suas exigências próprias,
tenta transformar esta poeira de experiências em uma experiência organizada: é isto a
obra da ciência, esboçada no trabalho da percepção. Em que consiste esta obra? O
espírito nada pode compreender se não o deduz, segundo a necessidade lógica, de
princípios admitidos como verdadeiros. Será preciso então, para explicar a presença de
uma imagem, considerar a imagem dada, ou, mais exatamente, a afirmação de que esta
imagem é dada, como uma consequência da qual trata-se de achar as premissas. Estas
premissas se repartirão em dois grupos, segundo esse esquema de raciocínio que é o
silogismo. As primeiras, desempenhando o papel da maior, afirmarão as leis universais
segundo as quais certas imagens são ligadas a outras. As segundas, desempenhando o
papel da menor, enunciarão o estado das imagens antecedentes ou concomitantes.
Compreender um fato é então compreender um juízo que põe a realidade do fato; e
esse juízo só é compreendido, se se vê que ele resulta, a título de consequência, de
certos outros juízos. A necessidade natural, segundo a qual um fato nos parece
inevitavelmente acarretado por outros, resulta assim duma aplicação ao dado da
necessidade lógica. A afirmação do determinismo dos fenômenos reduz-se à
afirmação de que toda asserção verdadeira incidindo sobre um fato decorre, a título
de consequência, em virtude da necessidade lógica, de asserções verdadeiras
incidindo sobre outros fatos, e da enunciação de leis; ou, mais brevemente, ela se
reduz à afirmação da dedutibilidade perfeita do real 5.
5 Será necessário sublinhar que se trata aqui de uma dedutibilidade de direito, e não de fato? A
afirmação do determinismo, no sentido em que a entendemos, é da ordem da razão “constituinte”, e
esta exigência do pensamento deve ser distinguida da concepção positiva que permite se fazer do
determinismo o estado da ciência do momento dado de seu desenvolvimento. É por isso que nós não
tínhamos que levar em conta o “indeterminismo” da nova física. Nós não temos, com efeito, que nos
ocupar das dificuldades com as quais os espírito se choca em seu esforço para entender o universo.
O essencial é que ele não se deixa intimidar por elas, e que ele põe em princípio que jamais qualquer
uma delas deve ser declarada inultrapassável. Se o estado atual da microfísica obriga modificar
alguma coisa em nossa idéia habitual do determinismo da natureza, poderemos falar nesse sentido
numa crise do determinismo, que será ao mesmo tempo uma crise do pensamento “constituído”. Mas
é claro que nada pode nos obrigar a renunciar a uma exigência tão geral e tão formal quanto a da
inteligibilidade do real.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 35
É verdadeiro que as leis que tornam possível esta dedução consistem, por sua
vez, na enunciação de relações necessárias entre as imagens; de sorte que pode
parecer que, ao lado da relação lógica de princípio a consequência que liga os juízos,
haja lugar para outras relações necessárias que liguem as imagens umas às outras, e
que assim se encontra na própria natureza uma necessidade distinta da necessidade
lógica. Somente, essas relações não são incluídas na experiência. Entre os fatos tais
como eles se apresentam não há relações, pois uma relação não pode ser dada, mas
apenas concebida. A observação dos fatos não dá nada mais que o conhecimento dos
fatos observados e não permite afirmar a menor relação entre os fatos. O cientista não
tem que descobrir na experiência leis naturais que aí estariam já inscritas e que seria
necessário apenas distinguir e desembaraçar. Sua obra consiste em fabricar um sistema
de proposições universais tais que permitam deduzir, do conhecimento de certos fatos
o conhecimento de alguns outros, e por isso mesmo, compreender estes últimos. Ora,
há sempre vários sistemas, e mesmo, teoricamente, uma infinidade, respondendo a esta
condição. O estabelecimento das relações pelas quais as imagens se prestam a ser
reunidas umas às outras é, então, o resultado de livres criações do espírito. Estas
relações são tão pouco inscritas na natureza, que a afirmação de uma delas não é, por
si só, nem verdadeira nem falsa: tudo depende do sistema de definições, de princípios
e de outras leis no qual elas sejam incluídas. Sem dúvida, o espírito não é livre para
afirmar indiferentemente qualquer relação. Destinada a um uso determinado, a criação
das leis da natureza é, por isso mesmo, sujeita a certas condições. Estas leis devem ser
tais que permitam tirar do conhecimento de certos fatos o conhecimento de outros, e
que formem também entre si um sistema tão coerente e tão simples quanto possível.
Mas, é este um problema de tão grande complexidade que ele comporta muitas
soluções, cada uma das quais não pode ser encontrada a não ser se é verdadeiramente
inventada pela atividade criadora do pensamento. As relações entre as imagens,
enunciadas pelas leis da natureza, não se acham então de modo nenhum na natureza,
mas são estabelecidas penosamente pelo espírito, que só pode compreender alguma
coisa ligando-a, a título de consequência, a princípios admitidos, e que se esforça, a
fim de tornar o dado inteligível, por conceber proposições universais que lhe possam
servir de princípios para deduzi-los.
A afirmação da necessidade natural em virtude da qual os fenômenos se
determinam uns aos outros, decompõem-se, então, na afirmação de duas espécies de
relações, nenhuma das quais existe na natureza, todas as duas supondo um espírito
livre da necessidade natural. De uma parte, é afirmar que a relação lógica de princípio
a consequência é universalmente aplicável, que nada é em princípio ininteligível, que a
totalidade do dado se presta a entrar num vasto sistema dedutivo; é, em outros termos,
afirmar o valor ilimitado e incondicional da necessidade lógica. Assim, bem longe de
acarretar, como queria o realismo psicológico, a exclusão ou pelo menos a redução da
necessidade lógica, a afirmação da necessidade natural consiste em estender a
necessidade lógica ao conjunto do universo. Não há razão, então, para invocar o
determinismo da natureza como prova de que o curso do pensamento é regido por leis
naturais; pois, afirmar o determinismo, é precisamente afirmar que o pensamento não
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 36
pode aplicar-se à natureza a não ser submetendo-a à necessidade lógica. Mas, a
afirmação da dedutibilidade perfeita do real implica, por sua vez, a afirmação de que é
possível formular proposições universais suscetíveis de servir de princípios a esta
dedução, isto é, leis que enunciem relações entre os diferentes aspectos do dado. Ora,
esta segunda espécie de relações, tal como a primeira, não pode ser constatada na
experiência. Constata-se que uma imagem é dada, depois outra; mas, o laço que
acarretaria a segunda após a primeira escapa a toda observação. Desde há muito
mostrou-se quão ilusória é a imaginação vulgar da causalidade, segundo a qual os
eventos se produziriam uns aos outros à maneira da geração dos seres vivos, e,
entretanto, quando pretende introduzir no espírito o determinismo da natureza, o
realismo continua a raciocinar como se os fenômenos possuíssem, independentemente
de toda afirmação do espírito, uma virtude criadora pela qual eles engendrariam os
seguintes. Em realidade, se é permitido conservar, em razão de sua comodidade, o uso
da palavra causa, deve-se reduzi-la a significar o conjunto das condições de que
fazemos depender a aparição de um fenômeno: a lei sendo escolhida precisamente de
maneira a tornar possível o estabelecimento desta dependência. As relações que
enunciam as leis da natureza, relações cuja possibilidade é implicitamente afirmada na
exigência do pensamento de que a natureza seja inteligível, são obra do pensamento
aplicando-se a constituir esta inteligibilidade. Em outros termos, quando se pergunta se
há, entre os elementos da realidade, relações necessárias, a resposta não pode parecer
duvidosa senão devido ao equívoco ao qual se presta a noção de realidade. Se se fala
da experiência bruta, do real tal qual é dado ao pensamento, é claro que ele não pode
conter relações necessárias, nem mesmo, mais geralmente, nenhuma espécie de
relação, uma vez que uma relação é inseparável de um espírito que a afirme. Se é
questão, ao contrário, da experiência objetiva, do real tal qual é construído pelo
pensamento, então, sem dúvida, é verdadeiro que ele comporta, entre seus elementos,
relações necessárias, uma vez que é precisamente o estabelecimento dessas relações
que transforma a experiência bruta numa experiência objetiva; mas, essas leis naturais,
longe de sujeitar o pensamento, trazem ao contrário, o mais fulgurante testemunho de
seu poder, uma vez que são obra sua.
Pouco importa então que se possa conceber, como o implica o projeto de uma
“Física” da inteligência, que uma necessidade natural, constituída independentemente
do pensamento, penetre até mesmo no espírito para reger suas operações, ou que, pelo
contrário, a necessidade natural suponha, ela própria, como condições, a relação lógica
de princípio a consequência e a liberdade espiritual criadora das leis físicas. A
possibilidade de uma ciência do real, da qual a Psicologia clássica tirava argumento
para provar a possibilidade de uma ciência natural do espírito, implica, pelo contrário,
a impossibilidade de uma tal ciência, uma vez que uma ciência, qualquer que ela seja,
é obra de um espírito livre da necessidade natural e criador desta mesma necessidade.
Assim, não devemos nos espantar se a extensão das concepções realistas às
operações intelectuais, reduzindo-as a fenômenos naturais, acarreta uma absurdidade
manifesta. Tentemos, com efeito, tratar os atos intelectuais como simples fatos,
análogos aos fatos físicos, e obedecendo, como eles, a leis naturais. É já bem
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 37
surpreendente que a necessidade cega que determina a sequência desses eventos tenha
justamente levado, por um acaso que se diria prodigioso, a produzir alguns que sejam
precisamente tais que contenham a explicação de todos, a sua própria explicação
inclusive. Que concurso admirável de circunstâncias não foi necessário para que, em
um momento dado da história do universo, ocorresse essa série de eventos que é a
concepção do realismo psicológico, com a afirmação que ela comporta do
determinismo mental? E que probabilidade havia para que entre a infinidade de juízos
possíveis, o simples jogo das leis naturais indiferentes à verdade, tenha feito surgir
juízos sistematicamente ordenados, e, entre a infinidade do sistemas possíveis de juízo,
precisamente o único verdadeiro sistema? Se fosse verdadeiro que os atos intelectuais
não são eventos entre outros, seria extremamente pequena a probalidade para que
tenha podido produzir-se um dia este evento que seria a própria afirmação de que os
atos intelectuais são eventos. Mas não insistamos neste argumento. Sempre se poderia
responder que uma probalidade mínima não equivale a uma probalidade nula. É
preferível ir direto à dificuldade essencial. Um evento não é verdadeiro nem falso.
Tudo o que se pode dizer dele é que é real ou não. Se, então, nossos juízos são apenas
eventos, não há mais verdade nem erro. Juízos incompatíveis são igualmente reais, uns
e outros existindo tal como existem rosas brancas e rosas vermelhas, sem que se possa
atribuir um valor superior a uns ou aos outros. Uma vez que são reputados depender
de juízos anteriores e concomitantes, segundo a estrutura psico-fisiológica de cada
indivíduo, e mesmo segundo a da humanidade em geral, todos os juízos, cujo conjunto
constitui nossa ciência, nada têm que os ponha acima dos que teria formulado uma
espécie de seres pensantes cuja constituição nervosa e mental fosse inteiramente
diferente da nossa. A menos que se creia que uma Providência expressamente
organizou o universo para permitir a aparição final de um animal pensante dotado de
uma organização exatamente apropriada à descoberta da verdade, e não de uma outra,
dever-se-á, na hipótese realista, negar todo valor de verdade a esta sequência acidental
de eventos que é a formulação das regras de nossa Lógica, ou ao encadeamento dos
teoremas de nossa Geometria. Enfim, admitindo que os atos intelectuais sejam fatos,
chega-se naturalmente a esta conclusão: não há verdadeiro nem falso; e esta
conclusão não pode ser afirmada sem absurdidade, uma vez que afirmá-la seria tê-la
por verdadeira. Poderia ser dito ainda, para melhor fazer aparecer esta absurdidade: se
a tese do determinismo psicológico é verdadeira, ela não é verdadeira, uma vez que
resulta da própria tese que não há verdadeiro nem falso.
Aqui, um psicólogo não deixaria de invocar a distinção tradicional entre o ponto
de vista lógico e o ponto de vista psicológico. Deixando ao lógico o cuidado de
estudar em que condições as operações intelectuais são válidas, ele se limitaria, por
sua parte, a considerar essas relações como fatos que se trata de explicar ligando-os
por leis a outros fatos, sem se cuidar de estabelecer entre eles uma diferença de valor,
mas sem negar que haja uma, nem contestar à Lógica a legitimidade das regras que ela
formula. Assim como o químico não pretende que não haja diferença de nocividade
entre o açúcar e o vitríolo, sob pretexto que eles são igualmente naturais, o psicólogo
não pensaria, apesar de encarar os juízos como fenômenos dados, em abolir a
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 38
distinção entre os juízos verdadeiros e os juízos falsos. Enfim, haveria duas maneiras,
igualmente legítimas, de tratar de operações da inteligência; o modo explicativo e o
modo normativo, longe de se excluírem, se completariam. Consideremos uma obra
espiritual como a Crítica da Razão Pura. O lógico pode tomá-la como objeto de
estudo. Ele pesquisará como os pensamentos aí se encadeiam uns aos outros, se
aplicará a descobrir os paralogismos, a distinguir o que está provado e o que é apenas
avançado, a remontar aos princípios implícita ou explicitamente admitidos. Este exame
comportará, a cada instante, juízos sobre o valor de tal ou qual parte da obra.
Mas, é possível adotar também, em relação à obra, uma outra atitude, a do
psicólogo. Considerando-a, agora, como um dado, todas as partes do qual, porque
igualmente dadas, apresentando um interesse igual, o psicólogo se proporá a explicá-
la, investigará como os pensamentos que a compõem, verdadeiros ou falsos, claros ou
confusos, provados ou não, se formaram; recolherá, com este alvo, tudo o que puder
saber da vida mental de Kant; sua educação, sua experiência da vida, suas leituras,
suas obras anteriores, suas notas, sua correspondência, fornecer-lhe-ão documentos
que permitem explicar como as idéias de Kant se elaboraram progressivamente em seu
espírito. Uma explicação desse gênero esclarecerá consideravelmente o sentido da
Crítica, e constitui mesmo o mais seguro meio de chegar a uma interpretação exata da
obra. Uma mesma obra comporta, então, ao lado de um estudo lógico, um estudo
psicológico, sem que um prejudique em nada o outro.
Esta distinção dos pontos de vista lógico e psicológico é clássica. Mas terá
algum fundamento? Não pomos em questão a atitude do lógico. Deve-se, entretanto,
fazer, a esse respeito, uma nota indispensável: é que adotar, em relação ao texto da
Crítica, o que se chama a atitude do lógico, é exatamente adotar a atitude daquele que
se esforça por compreender o texto. Um conjunto de pensamentos não é um objeto que
se possa apreender primeiramente, para tentar em seguida explicá-lo e compreendê-lo.
Apreender pensamentos é, justamente, compreendê-los, é refazer, por sua própria
conta, a mesma série de atos intelectuais que aquele que os formou pela primeira vez.
A menos que se faça da Lógica uma concepção caduca, deve-se reconhecer que a
explicação lógica de um texto não vem acrescentar-se à inteligência do texto, mas
consiste exatamente nessa inteligência, comportando apenas uma formulação refletida
das relações lógicas que é preciso espontaneamente apreender para compreender o
texto. Nessas condições, a explicação dita psicológica do texto reduz-se, finalmente, a
uma explicação lógica, uma vez que tem também por objeto a compreensão dos
pensamentos. A única diferença é que, em lugar de tomar em consideração apenas os
pensamentos expressos na Crítica, tentará ligá-los a outros pensamentos de Kant, mas,
bem entendido, segundo os laços que podem unir pensamentos, isto é, laços lógicos, e,
de modo nenhum, segundo os laços que unem fenômenos, isto é, leis naturais. A
explicação “genética” de um pensamento nada tem de comum com a explicação que se
pode dar, por exemplo, da formação de um organismo animal. Não se aprecia de fora
o desenvolvimento de um pensamento como se pode apreciar o de um embrião: é
preciso refazer em si próprio, e por si próprio, este desenvolvimento, porque um
pensamento só pode ser apreendido de dentro, ou, mais precisamente, não pode ser
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 39
apreendido, mas apenas pensado. A explicação dita psicológica não difere em natureza
da explicação lógica, difere apenas nisso de que ela incide sobre um conjunto mais
vasto.
Quer dizer que não há outra explicação possível, que não se pode dar conta da
existência da Crítica ligando-a, segundo leis naturais, a outros eventos do universo?
Sem dúvida, uma vez que a obra existe é preciso que ela esteja ligada ao resto da
existência. Somente, uma explicação desse gênero incidirá, evidentemente, apenas
sobre o que, na Crítica, pode propriamente ser dito existir, isto é, sobre o manuscrito,
e ela será, evidentemente, tal como a explicação de qualquer coisa que exista, uma
explicação física. Na medida em que existente, a Crítica nada mais é do que um objeto
material entre aqueles que compõem o universo, definido por seu peso, formato, cor,
desenho das letras, enfim, por um conjunto de imagens. Para explicar a formação deste
objeto seria necessário ligá-lo, com a ajuda das leis da natureza, ao conjunto dos
eventos do universo. Somente, tal explicação ultrapassa de muito nossa ciência. Somos
inteiramente incapazes de saber, por exemplo, que impressão os caracteres do Ensaio
sobre o entendimento humano de Hume puderam fazer no cérebro de Kant, que
modificações deste cérebro determinaram os movimentos da mão que redigiu a
Crítica. Intervém, então, o psicólogo, que, para explicar a influência do Ensaio sobre a
composição da Crítica, substitui os objetos materiais que são essas obras por sua
significação, mas que, continuando a tratar essas significações como objetos, objetos
psíquicos e não mais objetos físicos, imagina que se possa ligar, por leis naturais, a
existência do segundo objeto à existência do primeiro. Ele justapõe à causalidade
física, uma causalidade psicológica em virtude da qual o pensamento de Hume,
encarado como um dado, teria contribuído para produzir o de Kant, encarado como
outro dado. É claro, entretanto, que se deixa, assim, de considerar o Ensaio e a Crítica
como objetos de pensamento. Ora, o Ensaio e a Crítica não são objetos de nosso
pensamento, eles são nosso próprio pensamento. E quando perguntamos como um
pôde contribuir para produzir o outro, o que é buscado são as relações lógicas que
ligam estes dois conjuntos de idéias. Refazemos, então, o trabalho de pensamento de
Hume, depois o de Kant refazendo o de Hume. Longe de seguir, no espírito de Kant,
não sei que determinismo psicológico em virtude do qual se fabricaria seu pensamento,
nós nos esforçamos por pensar tal como Kant pensou. A explicação tentada pelo
psicólogo não passa, então, de uma confusão das duas espécies possíveis de
explicação, tratando como fatos, não mais os signos verbais, mas, seu sentido, e
tentando servir-se do método do físico, destinado à explicação de eventos, para
explicar pensamentos. É permitido explicar a verdade de um pensamento ou a
realidade das imagens que o exprimem, mas pretender explicar, assim como o quer o
psicólogo, a realidade de um pensamento, é o que nos parece não oferecer qualquer
sentido. Podemos chamar reais as imagens brutas, reais também os objetos
constituídos pelas imagens, mas, em hipótese alguma, o pensamento pode ser tomado
por uma realidade. Em resumo, é verdadeiro que uma obra espiritual pode sempre ser
considerada de dois pontos de vista diferentes, mas esta dualidade não coincide com a
que se estabelece habitualmente entre o ponto de vista da Psicologia e o das ciências
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 40
normativas. Que se trate de uma escultura, de um ato amoroso, ou de uma descoberta
matemática, o trabalho do espírito se manifesta por fenômenos físicos, que podem ser
ligados ao resto do universo; é, então, legítimo afirmar que esta obra pode ser
encarada do ponto de vista da existência: somente, a realidade que se estuda, então, é
física e não mental. Se, agora, negligenciando as manifestações físicas do trabalho
intelectual, é este trabalho, ele próprio, que nos propomos apreender, o único meio de
chegar a isso é refazer por nossa conta o trabalho em questão. Nesse caso, tampouco é
sobre uma realidade mental que incidirá nosso pensamento: seu objeto não será o
pensamento de outrem, mas o mesmo objeto que o do pensamento de outrem; não
pensaremos o pensamento de outro homem, mas o mesmo problema que outro homem
pensou. Considerando uma obra do espírito como uma manifestação de atividade do
pensamento cessamos de considerá-la como uma realidade: ela tornou-se a atividade
de nosso próprio pensamento e não o objeto dessa atividade. O desdobramento que
comporta uma obra do espírito é então a separação entre o pensamento e suas
manifestações físicas. Mas, o pensamento não comporta o desdobramento, que nele
gostaria de operar o realismo psicológico, entre a existência e a verdade; pensamento e
verdade são uma única coisa.
Mas eis que, de novo, contra-ataca o psicólogo. Você afirma, diz ele, que todo
pensamento é verdadeiro, esquecendo o erro, e esquecendo que os juízos falsos levam
a melhor em número sobre os juízos verdadeiros. Você supõe que o espírito humano é
pura inteligência, raciocinando sempre segundo as regras da Lógica. Se assim fosse,
você teria razão de pretender que a Psicologia se confunde com a Lógica. Ora, como
explicar o erro? Quando o espírito se engana, você não pode sustentar que é a
necessidade lógica e as conveniências racionais que o guiam, e, se não há, então,
razões que tornem legítima sua afirmação, é preciso que haja causas que a tornem
explicável. Com efeito, só excepcionalmente os juízos dos homens são justificados de
maneira racional, a maior parte deles é acarretada por sentimentos, desejo, paixões.
Longe então de absorvê-la, a Lógica não passa de um capítulo da Psicologia, e mesmo
de um capítulo da Psicologia da inteligência, a saber, a Psicologia da inteligência pura.
Enquanto o lógico se pergunta como são determinados os juízos verdadeiros, o
psicólogo estuda a maneira pela qual são determinados juízos quaisquer, verdadeiros
ou falsos.
Será possível justificar dessa maneira a distinção entre Psicologia e Lógica? O
interior do espírito representado como comportando a oposição de duas potências
hostis comandando as opiniões, uma boa, a outra má, a primeira produzindo a verdade,
a segunda o erro? Ora, para que duas potências entrem em concorrência, é necessário
pelo menos que tenham, sob sua diversidade, alguma coisa em comum. Compreende-
se que dois exércitos se defrontem, compreende-se que uma controvérsia se instaure
entre duas teorias científicas; mas como conceber a rivalidade de um exército e de uma
teoria? Pois dizem-nos que os juízos são produzidos ora por razões, ora por causas;
ora pela necessidade lógica, ora pela necessidade natural. Dualidade incompreensível,
porque não há duas espécies de necessidade colocadas lado a lado no mesmo plano,
porque nenhuma comum medida pode ser estabelecida entre uma razão e uma causa.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 41
Razão pela qual se é levado, a fim de dar à tese a aparência de inteligibilidade, a
reduzir razões a causas, a não ver nas regras lógicas senão uma espécie particular de
leis naturais, aquelas segundo as quais funcionaria uma inteligência pura. A
necessidade lógica nada mais seria, assim, do que um caso particular da necessidade
natural6, e a dualidade da Lógica e da Psicologia se reduziria a uma simples diferença
de extensão: a Lógica diferiria da Psicologia como a Mecânica, por exemplo, difere da
Física. Estranha maneira, é preciso confessá-lo, de distinguir a Lógica da Psicologia:
se se quisesse confundi-las, não se procederia de outra maneira. Mas, não é isto o
essencial. O essencial é que esta concepção reduz a necessidade lógica à necessidade
natural, a verdade à realidade, redução cuja absurdidade esperamos ter mostrado. Em
duas palavras, se alguns juízos forem determinados por causas naturais, todos o serão,
uma vez que não se pode fazer concorrer com a necessidade natural uma necessidade
lógica que dela fosse radicalmente distinta; e se todos os juízos são determinados pela
necessidade natural, não há mais verdade.
Será preciso, então, negar a influência dos sentimentos sobre as opiniões? Seria
negar a evidência. Mas esta influência não se exerce segundo a causalidade natural;
ela reduz-se à influência lógica segundo a qual os juízos condicionam-se uns os outros.
O sentimento não é uma realidade psíquica existente por si própria, independente de
todo pensamento, e dotada de uma força própria capaz de resistir à força lógica. Se ele
goza de um poder sobre o pensamento, este poder é precisamente aquele de que goza
o juízo. A raiz de todo sentimento é um juízo de valor admitido como incontestável.
Que é o amor, senão a afirmação de que certa mulher é a mais perfeita das mulheres?
Que é a cupidez, senão a afirmação de que a riqueza é o maior dos bens? O orgulho,
senão o juízo favorável a respeito do próprio mérito? Ora, como é, logicamente,
inadmissível que haja contradição entre nossos juízos, se alguém tem por indubitável
um juízo como esses, para satisfazer à necessidade lógica, deverá pôr seus outros
juízos de acordo com ele. A sequência de seus pensamentos será impecável e, se se
concede o princípio, não é possível subtrair-se às consequências. Dizer que o juízo
deste homem sobre os atributos que definem a beleza é causado por sua paixão, não
significa então que seu juízo seja o efeito de um outro fenômeno psíquico ao qual o
liga uma necessidade natural; isto significa dizer que ele é uma consequência lógica de
outros juízos. Naturalmente, se o juízo que serve de base é falso, tudo que se seguir
será duvidoso: não se dirá, entretanto, que ele raciocinou mal, ou que ele simplesmente
6 Goblot, Traité de Logique, Paris, Colin, 1918, § 7, p.22 e 23: “Se eliminamos todas as causas não
intelectuais do juízo, as que restam não diferem mais do que se chama uma razão. Isolando a
inteligência, obrigando-a a trabalhar sozinha, determinamos o domínio da Lógica, talhado, assim, no
da Psicologia. Podemos distinguir das outras causas do juízo as razões, isto é, de suas causas extra-
intelectuais suas causas puramente intelectuais. Como elementos puramente intelectuais, isto é,
juízos, determinam outros juízos? Este segundo problema é propriamente lógico, e ele é psicológico:
quais seriam as formas e os processos de uma atividade intelectual subtraída às influências do
sentimento e ao arbítrio da vontade? As leis lógicas não são senão as leis naturais de uma inteligência
pura. É porque uma inteligência pura é uma abstração que suas leis parecem outra coisa que não leis
naturais, e que a Lógica parece opor-se à Psicologia como uma ciência do ideal a uma ciência do
real.”
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 42
não raciocinou. Os erros do apaixonado não provam que suas opiniões sejam
desconexas, pelo contrário, são sistemáticas, somente, o sistema depende de um erro
inicial, eis tudo. Mas, enfim, insistirão, por que admitiria ele esta primeira idéia falsa,
senão precisamente porque está apaixonado? Não será o sentimento a causa deste
juízo? “Não sei por que, diz o velhinho, os arquitetos fazem agora as escadas mais
íngremes”. Eis um juízo harmonizado com outros juízos do ancião: a consciência de
uma dificuldade crescente em subir os degraus, e a crença de que suas forças não
declinaram. Mas, este último juízo não seria um efeito já do amor próprio? O
sentimento não seria, aqui, a causa do juízo? Não, responderemos, o amor-próprio não
é, de modo nenhum, a causa deste juízo, mas consiste justamente na produção de
juízos deste gênero. Assim, invocar o amor-próprio para explicar tal juízo é dar uma
explicação verbal e vazia, pois poder-se-ia igualmente dizer que é, ao contrário,
porque se recusa a ver sua decrepitude que ele tem amor-próprio. As duas explicações
se equivalem, reduzindo-se, ambas, a simples tautologias. Do mesmo modo, se um
homem pensa que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas, em nada se
explicará esta opinião dando-lhe como causa a paixão da avareza, pois ser avarento e
julgar que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas é uma única e mesma coisa.
Numa palavra, se é verdadeiro que toda paixão tem por raiz um juízo de valor, não é
lícito ver na paixão a causa deste juízo, nem, mais geralmente, ver na paixão uma força
psíquica comparável a forças naturais e estranhas ao poder do pensamento.
Caímos sempre na mesma conclusão. O pensamento não pode ser tratado ao
mesmo tempo como verdadeiro e como real, como obediente à necessidade lógica e à
necessidade natural, como prestando-se a ser estudado pelo lógico e pelo psicólogo.
Das duas uma: ou bem o determinismo psicológico, e, então, a supressão de todo
valor, e, por conseguinte, a impossibilidade, entre outras da Lógica; ou bem a
legitimidade da Lógica e, então, a liberdade do espírito, e, por conseguinte, a
impossibilidade de uma “Física” da inteligência. Ou a Lógica é legítima, ou é legítima
a Psicologia, mas entre as duas é preciso escolher. Mas, escolher a Psicologia é
absurdo, uma vez que essa escolha, implicando a supressão da verdade, exclui logo a
verdade da própria Psicologia. A Psicologia da inteligência, concebida como uma
ciência natural do espírito, não pode pretender constituir-se sem que esta pretensão
envolva sua condenação.
Em definitivo, o erro da Psicologia clássica, desta ciência positiva dos fatos
mentais, é o de passar do pensamento à existência, deslizando de pensamos a logo,
existem pensamentos. Não vê que só se pode falar de uma existência objetiva se o
objeto é ligado por leis ao resto do universo; que essas leis são relações afirmadas pelo
pensamento, e que essas relações, condições da existência, não são, de maneira
nenhuma, suscetíveis de existência, mas apenas de verdade; e que, assim, toda
existência objetiva supõe como condição a verdade e o pensamento.
2. O Automatismo Mental
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Robert Blanché 43
Mas, talvez, dificuldades sejam evitadas, e grandes, quando, para mostrar que o
funcionamento do pensamento não se reduz a um mecanismo natural, escolhe-se, para
sobre ele fazer incidir a discussão, o pensamento reflexivo, isto é, a forma de
pensamento a mais afastada do automatismo. Muitos psicólogos renunciaram a
tentativa de reduzir toda atividade intelectual a um puro mecanismo mental.
Certamente, esta renúncia vem limitar grandemente o domínio da Psicologia: o estudo
dos fatos mentais e das leis naturais que os regem deixa agora escapar as operações
intelectuais propriamente ditas. Pelo menos resta ainda lugar (ao lado ou abaixo da
atividade pela qual o espírito se esforça por organizar seus juízos num sistema
inteligível) para o jogo anárquico das representações abandonadas a si mesmas.
Quando a atenção se relaxa, as idéias não cessam, por isso, de se suceder na mente; e,
uma vez que esse curso de pensamentos não obedece mais às conveniências lógicas, é
preciso que ele seja regido por um mecanismo mental, cujas leis restaria descobrir.
Haveria, assim, como que dois graus de pensamento, um pensamento disciplinado e
um pensamento anárquico, o segundo dos quais, pelo menos, reduzir-se-ia a um
automatismo, objeto de estudo para uma Psicologia positiva. Mas, como conceber esta
dualidade no funcionamento do pensamento? A hipótese que se apresentaria em
primeiro lugar seria de fazer simplesmente com que se alternassem no espírito esses
dois modos de pensamento. Nos momentos de distensão, como por exemplo no
devaneio, as idéias se sucederiam segundo as leis estritas do automatismo, e nos
momentos de atenção essas sequências incoerentes de idéias seriam substituídas por
uma sucessão inteligível. Ora, como admitir que as mesmas idéias possam ser
submetidas alternadamente a duas legislações absolutamente heterogêneas, e que, de
fenômenos naturais, levados à existência por uma necessidade cega, elas venham
subitamente a mudar-se em verdades cujo encadeamento seria regido pelas exigências
lógicas? Um determinismo natural cujo curso pudesse a todo instante ser suspenso por
um simples decreto da vontade cessaria, por isso mesmo, de ser um determinismo: a
idéia de uma necessidade facultativa é uma absurdidade. Se certos objetos são uma
vez submetidos ao determinismo da natureza, sempre o serão. De resto, sem ter
necessidade de invocar este argumento teórico, é fácil constatar não só que há
intermediários entre o mais relaxado devaneio e o pensamento o mais refletido, mas
que, mesmo nos momentos de forte tensão intelectual as idéias não surgem
imediatamente na ordem a mais satisfatória para o espírito, e que, inversamente, as
imaginações as mais descabeladas jamais são tão descosidas que não ser possa nelas
achar alguma lógica. É, então, impossível admitir a alternância no espírito de dois
modos absolutamente diferentes de sucessão de idéias. Se se quer manter a distinção
entre pensamento reflexivo e pensamento anárquico, é de outro modo que será preciso
concebê-la.
Há, com efeito, uma outra maneira de dar lugar, no funcionamento do
pensamento, ao automatismo e à reflexão: a aparição das idéias na mente, tanto na
investigação mais atenta quanto nos mais desatados dos sonhos, é sempre determinada
pelo jogo de certas leis naturais, o papel da atenção consistindo apenas em reter, no
caos das idéias automáticas, as que apresentam alguma relação lógica com a questão
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 44
que se examina, deixando escapar todas as demais7. O argumento essencial invocado
em favor desta tese é que atividade judicativa só pode exercer-se se dispõe,
previamente, de algo sobre o que se exercer: as ligações lógicas entre idéias, longe de
serem causas de sua aparição, supõem que as idéias se ofereçam previamente ao
espírito. O pensamento reflexivo seria, então, diverso do automatismo, mas deveria ao
automatismo todos os materiais sobre os quais trabalha, sem que ele próprio nada
possa mudar na ordem de sua apresentação: esta ordem, independente da reflexão,
seria inteiramente submetida à legislação da natureza.
Tal hipótese é tão pouco satisfatória quanto a precedente. A separação entre a
atividade judicativa e os materiais sobre os quais ela se exerce seria legítima se
coincidisse com a distinção pensamento/imagem. Ora, é claro que aqui, uma vez que é
a existência de um pensamento automático que se quer provar, ela é entendida de um
outro modo. Os materiais sobre os quais se exerce a reflexão não são somente
imagens, mas, sobretudo, juízos. Quando minha atenção se concentra para resolver um
problema prático ou teórico não é de imagens que tenho necessidade, tampouco de
conceitos isolados; o que me vem ao espírito são conhecimentos, suscetíveis de
verdade ou de erro. E, sem dúvida, eu não caio imediatamente sobre aqueles de meus
conhecimentos que seriam os mais apropriados à resolução do problema; sem dúvida,
eles surgem com certa desordem, de sorte que eu deveria em seguida fazer escolhas
entre os que se tiverem apresentado e organizar de uma maneira nova os escolhidos.
Mas, enfim, é já sobre pensamentos que se exerce minha reflexão, e não sobre dados
puros e simples; e esses pensamentos, submetidos à norma do verdadeiro e do falso,
não é possível tratá-los como objetos da natureza situados no plano da existência. Se,
então, a ordem da aparição das idéias difere da ordem que a reflexão estabelecerá
depois entre elas, pelo menos esta diferença não pode ser radical. As idéias, sendo
afirmações e não realidades, não se evocam segundo uma necessidade natural que
faria existir esta após aquela; sua evocação só pode ser regida pela necessidade lógica,
que faz com que a afirmação de uma implique a afirmação de outra. Assim, só uma
diferença de grau deverá ser achada entre o pensamento espontâneo e o pensamento
reflexivo; e a única maneira de explicar uma sucessão incoerente de idéias será tentar
encontrar, dentro dela, relações de implicação lógica. Não que tais relações posam ser
consideradas como causas da aparição das idéias. Tem-se perfeitamente razão de
dizer, por exemplo, que “a semelhança concebida como “causa produtora” não tem
nenhum sentido, nem na ordem psicológica, nem na ordem fisiológica”8. Mas, toda a
questão é justamente saber se o encadeamento das idéias deve se explicar por causas,
segundo a ordem da necessidade lógica; ou, em outros termos, se as idéias devem ser
consideradas como fenômenos que só se explicam pelas relações naturais que fazem
com que sua existência dependa da de outros fenômenos, ou como afirmações que só
se explicam pelas relações lógicas que fazem com que sua verdade dependa da
verdade de outras afirmações. Neste último caso, a noção de um automatismo das
idéias nada mais poderia significar senão a dialética em virtude do qual as idéias se
7 W. James, Précis de psychologie (1892), chap. XVI (trad. Fr., Paris, Rivière).
8 W. James, ibid; p.302
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 45
condicionam umas as outras; de sorte que, o pensamento automático, em lugar de
opor-se radicalmente ao pensamento lógico, deveria poder, de algum modo, reduzir-se
a ele.
Mas, se se duvidasse ainda da impossibilidade de tratar as idéias como
fenômenos mentais, achar-se ia, entretanto, uma razão para rejeitar a teoria que
superpõe a atividade do juízo ao desenrolar automático das idéias logo que se notasse
que esta hipótese nos leva, no fim das contas, de volta à primeira, já examinada, e
segundo a qual a intervenção da atenção suspenderia o automatismo mental e
substituiria, no curso de nossas idéias, a legislação da natureza pela legislação da
razão. A ordem de sucessão de nossas idéias, diz-se, sendo independente das relações
que a reflexão pode, depois, estabelecer entre elas, é inteiramente determinada por um
mecanismo, mental, ou cerebral; mesmo nos momentos de alta tensão intelectual, a
reflexão em nada muda o desenrolar das idéias: ela se limita a escolher, entre as que
lhe oferece o mecanismo, as que julga pertinentes. Mas, isto não é dizer, precisamente,
que a reflexão muda alguma coisa no desenrolar das idéias? Se ela escolhe, se ela
retém certas idéias, ela transtorna a ordem de aparição das idéias seguintes. Assim,
escolhendo como exemplo, para fazer sobre ela incidir minha crítica, esta concepção
das relações entre o automatismo e a reflexão, eu altero, seguramente, o curso ulterior
de meus pensamentos: objeções me ocorreram, que jamais me ocorreriam, não tivesse
eu retido esta hipótese para examiná-la. Em verdade, caso a reflexão em nada
modificasse o desenrolar dos pensamentos, seria inútil dar-se o trabalho de refletir. E
se ela de fato o modifica, deveremos, então, ou admitir que o mecanismo natural que
rege a aparição das idéias pode ser suspenso, e recairemos, assim, nas dificuldades da
primeira hipótese, ou convir que não há pensamento automático, e que o curso do
pensamento anárquico requer o mesmo gênero de explicação que o do pensamento
reflexivo.
A distinção entre pensamento automático e pensamento reflexivo, designando
uma diferença de natureza, por corrente que seja, carece, então, de todo fundamento.
Sem dúvida, as idéias não se desenrolam do mesmo modo no distraído que deixa
vagabundear seu pensamento e no matemático, absorto numa determinada pesquisa, e
será preciso dar conta da diferença. Mas, ela não pode ser tão profunda quanto a que
separa sucessões empíricas de fenômenos de sucessões inteligíveis de conceitos, pois
a coexistência no espírito de duas ordens tão heterogêneas seria inconcebível. A
consequência logo aparece. Se não é possível admitir uma dualidade fundamental no
pensamento, e se, por outro lado, as mais altas operações intelectuais restam estranhas
ao plano da existência objetiva constituída pela armadura das leis naturais, escapando,
por isso mesmo, a uma “Física” do espírito, a mesma coisa deverá, então, ser dita das
operações inferiores da inteligência: nenhuma sucessão de idéias pode ser tratada
como um simples desenrolar de “fenômenos mentais”, comandado por um
automatismo mental.
Resta mostrar, com mais precisão, que, inserindo-as num determinismo mental,
a Psicologia clássica fracassa, necessariamente, em seus esforços para explicar as mais
humildes operações intelectuais, e que só se pode, ao contrário, esperar dar conta
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 46
delas renunciando a decalcar sua explicação das explicações científicas dos fenômenos
físicos e buscando o princípio de sua inteligibilidade na própria natureza do
pensamento. Como o tipo dessas manifestações inferiores da inteligência nos é
fornecido pela chamada associação de idéias, é a associação de idéias que será preciso
agora examinar. Mas, a questão da associação está em conexão estreita com a da
memória, o laço associativo sendo em geral invocado para explicar o retorno das
lembranças à mente. Por outro lado, o problema da memória nos traz uma excelente
ilustração das dificuldades nas quais nos embaraçamos quando seguimos o caminho do
realismo psicológico. Assim, retomaremos esse problema em seu conjunto, para aí
reencontrar, em seu devido lugar, a questão do retorno automático das idéias.
3. A Memória
O realismo psicológico considera a lembrança como uma existência psíquica,
submetida, como fenômeno mental, a um determinismo natural. A própria definição
que habitualmente se dá da memória manifesta já esta concepção: o poder de fazer
reviver um estado mental passado, reconhecendo-o como passado.
A lembrança é, então, essencialmente a reprodução, apercebida como tal, de um
evento psíquico. É ainda a mesma concepção que implica a distinção tradicional das
quatro operações da memória. A lembrança é certa coisa que, vista uma primeira vez
pela mente, reapareceria após uma ausência mais ou menos longa, sendo então
reconhecida e relacionada a certo momento do passado. Não se exageraria muito se se
dissesse que após ter reduzido a lembrança a uma imagem revivescente, a Psicologia
clássica se representa esta imagem mental à imitação de uma fotografia que primeiro
contemplamos, depois conservamos na gaveta, para ir reencontrá-la mais tarde,
reconhecendo-a e sabendo desde quando a possuímos9. Quando se tenta constituir uma
“Física” do espírito e se toma a lembrança como um dos objetos desta ciência, é
preciso tomá-la como nada mais do que uma coisa mental que deverá poder ser
explicada pelo jogo de certas leis naturais. Tal concepção solicita, desde logo uma
primeira reserva. As quatro funções atribuídas à memória ― conservar, lembrar,
reconhecer e localizar a lembrança ― não apresentam qualquer homogeneidade.
Deveremos reparti-las em dois grupos, um dos quais vai já escapar à ciência dos fatos
mentais. Pois, se a conservação e a lembrança podem ser concebidas como fenômenos
naturais, não ocorre, seguramente, o mesmo com o reconhecimento e a localização,
que são, evidentemente, operações intelectuais. Reconhecer e localizar (situar num
momento do tempo) é afirmar, é julgar. Assim, não espanta que o realismo psicológico
fracasse diante desses dois últimos problemas. Se restamos, com a ciência positiva, no
plano da existência, com as lembranças como eventos psíquicos, jamais poderemos
explicar que elas sejam reconhecidas nem, com mais forte razão, localizadas. Um
evento passado, uma vez que passou, desapareceu; só os eventos do presente estão
presentes. Sem dúvida, pode ocorrer que certos eventos se repitam, que o evento
presente reproduza o evento passado. Mas, uma vez que o evento passado passou,
9 Cf. James, ibid., p. 379: “Um homem que busca uma lembrança em sua memória assemelha-se a
um homem que busca um objeto perdido em sua casa”.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 47
como compará-lo com o evento presente para afirmar que eles se assemelham? Pouco
importa que duas coisas se assemelhem, jamais nos daremos conta da semelhança se
uma delas permanece absolutamente invisível. Compreender-se-ia, ainda, que eu possa
reconhecer m objeto já visto comparando-o com a lembrança que guardei dele, mas
não se compreende de modo nenhum como a lembrança seria, por sua vez,
reconhecida. Com que, com efeito, a compararia eu? Não com a percepção passada,
uma vez que ela não é mais presente, passou; nem com o traço que ela deixou em meu
espírito, uma vez que este traço nada mais é do que a própria lembrança. Enfim, se a
lembrança não passa de um fenômeno de revivescência, se se reduz à reprodução atual
de um fato mental passado, ela nada mais será do que um fato mental presente, sem
nada que lhe confira sobre os outros fatos mentais presentes o privilégio de ser uma
lembrança. A lembrança, se dela se quer fazer uma realidade mental, aparece, então,
como um verdadeiro monstro, devendo ser ao mesmo tempo presente (uma vez que se
trata de um dado atual) e passada (uma vez que é de ser reconhecida como passada
que ela tira sua natureza de lembrança). Eis porque o problema do reconhecimento,
pelo qual o estado mental presente seria relacionado ao passado, é uma das pedras no
caminho da Psicologia clássica. A verdade é que a impossibilidade de tratar os atos
intelectuais como “dados mentais” leva a um primeiro deslocamento na teoria
psicológica da memória: é preciso convir que, na operação total da memória, se
sucedem duas fases bem distintas, a primeira delas apenas, comportando conservação
e lembrança, se passaria sob a legislação da natureza e diria respeito às aventuras de
certa realidade.
Mas, esta primeira limitação é ainda insuficiente. Não somente a metade das
operações mnemônicas escapa à competência de uma Física do espírito, mas também a
redução da lembrança a um dado mental puro e simples dificilmente permite
compreender como ela se conserva e dificilmente permite achar as leis naturais de sua
evocação.
Consideremos primeiramente a conservação. O realismo tem apenas duas
maneiras de concebê-la. (1) Ele poderá atribuir à lembrança, realidade psíquica, uma
conservação de natureza igualmente psíquica. Dirá então que ela subsiste em estado
inconsciente. Solução cômoda, mas cômoda demais, pois é claro que ela é puramente
verbal; e mesmo a dificuldade de conceber um modo de conservação para uma coisa
mental convidaria, por si só, a pôr em dúvida o postulado fundamental do realismo
psicológico. (2) Ele dirá que o que se conserva não é a realidade mental, a lembrança,
são as condições fisiológicas de sua reaparição. Mas, esta nova hipótese comporta
duas interpretações. Se se pretende com ela explicar o que se passa na mente, recai-se
nas dificuldades das teorias da interação psico-física, seja que se queira abrir a rede do
determinismo biológico para introduzir, como efeitos de fenômenos cerebrais, certos
fenômenos psíquicos, seja que se reduza os fenômenos mentais a simples
epifenômenos. Uma teoria fisiológica da memória só será então legítima ser ela
sustentar que não se pode estudar cientificamente a memória senão negligenciando o
aspecto mental da lembrança para voltar-se na direção dos únicos fatos suscetíveis de
cair sob a experiência objetiva; mas nesse caso, rejeita-se como estranha à ciência a
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 48
concepção psicológica da lembrança. Assim, o realismo psicológico, se ele obriga a
conceber a lembrança como uma realidade mental que se conservou, torna ininteligível
o modo desta conservação.
O psicólogo dirá talvez que, no fim das contas, ele pode desinteressar-se deste
problema, que ele entende por conservação da lembrança simplesmente a possibilidade
de recordá-la, e que assim basta-lhe pesquisar as condições de sua evocação. Seja.
Quais são, então, para ele, essas condições? O dualismo psico-físico permite invocar
duas espécies de condições: fisiológicas ou psicológicas. Se se apela para condições
fisiológicas, cai-se no mesmo dilema de há pouco. São então leis propriamente
psicológicas que seria preciso poder enunciar, e se pensará naturalmente na associação
mecânica das representações. Ora, não é mais necessário criticar teorias que
pretendam dar conta do retorno à mente de um estado passado mediante a invocação
do laço associativo que o une ao estado atual, a força desse laço sendo função da
vivacidade, da frequência, da recência, etc., das associações. Entretanto, os psicólogos
não se decidem abandonar uma concepção deste gênero. É que ela é a única
compatível com uma Psicologia concebida como ciência natural dos fatos mentais e de
suas “leis”. Assim, conservam geralmente as “leis” da associação, corrigindo apenas
sua reconhecida insuficiência pelo acréscimo de uma nova “lei”, a do interesse: as
preocupações atuais do espírito tornam-se um dos fatores da evocação das idéias, e
mesmo o fator preponderante, uma vez que é ele que opera a escolha entre todas as
associações. Mas, como não ver que se superpõe à antiga explicação uma nova
explicação totalmente heterogênea, com a qual abandona-se a atitude do cientista?
Pois a pretensa lei do interesse é completamente estranha à legislação da natureza. Em
lugar de explicar a aparição de uma idéia, considerada como fenômeno mental, pela
necessidade natural que a une a outros fenômenos, explicam-na pelas relações lógicas
e pelas conveniências racionais que ela apresenta com o sistema atual de idéias.
Substitui-se a explicação de um fato segundo a ordem da existência pela explicação de
um pensamento segundo a ordem da verdade. Assim, as respostas que os psicólogos
são obrigados a dar ao problema da evocação envolvem uma confissão de impotência
de resolvê-lo e mesmo de pô-lo nos termos do realismo psicológico, uma vez que não
podem pô-lo a não ser cessando, seja de falar duma evocação de idéias, seja de
considerar esta evocação como regida por leis naturais. Ou, com efeito, pô-lo-ão
como um problema científico: as condições materiais da reprodução de certos atos,
entre os quais poderão naturalmente figurar atos verbais, é, então, o que será estudado;
a memória passando a meros hábitos corporais, as leis psicológicas, a casos
particulares de leis fisiológicas extremamente gerais, e não estarão mais em questão
estados mentais. Ou, é à lembrança, na medida em que manifestação da atividade
mental, que o psicólogo se aplicará, e nesse caso será substituída a consideração da
existência pela consideração do pensamento, a consideração de fenômenos naturais
com suas relações de causa e efeito, pela consideração das idéias com suas relações de
princípio e consequência.
Esta nota nos leva a reconhecer, na teoria psicológica da memória, uma terceira
lacuna, que nos ajudará a compreender as precedentes. A Psicologia clássica fala
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 49
sempre como se a lembrança nada mais fosse do que uma imagem revivescente, o que
testemunham os exemplos geralmente citados, o nome de lembrança-imagem
frequentemente dado à lembrança e, enfim, a curiosa controvérsia sobre a memória
afetiva, que não se conseguia conceber, para negar ou para afirmar sua existência,
senão como um poder de fazer reviver “imagens afetivas”. Ora, esta assimilação da
lembrança à revivescência de uma imagem é uma visão a priori comandada pelo
postulado realista. E se é fácil confirmá-la invocando numerosos exemplos, esses
mesmos exemplos poderiam voltar-se contra a teoria que deveriam de ilustrar.
Suponhamos, com efeito, que a evocação de lembranças seja uma operação intelectual
e não um fenômeno mecânico: deverá ocorrer, então, que, quando se tentar evocar
artificialmente lembranças, a busca será guiada pela idéia que se terá feito previamente
da lembrança-tipo, de sorte que as observações assim provocadas confirmariam
sempre a teoria preconcebida da memória. Para evitar toda parcialidade, seria preciso,
então, estudar a memória nos momentos em que, nos afazeres da vida, faz-se
realmente apelo a ela, ou mesmo, o que será mais fácil de notar, nos momentos em que
se constata uma de suas falhas. Facilmente, então, nos daremos conta de que a
lembrança que escapa nunca é uma imagem concreta que em vão se tenta fazer
reviver: o esquecimento é muito menos uma ausência do que uma ignorância.
Esqueci, por exemplo, a data de um encontro, a missão da qual me encarregaram, uma
teoria científica, filosófica ou política, as regras do jogo de xadrez, o enredo de um
romance lido no ano passado, se respondi a uma carta, em que época fiz certa viagem,
qual o editor do livro de que tenho necessidade. Em todos esses casos, lembrar quer
dizer saber. O que se chama a evocação de uma lembrança não consiste de modo
nenhum na reprodução de um estado mental passado, mas numa afirmação atual em
conformidade com uma afirmação feita outrora. A lembrança-tipo nos aparece sob
traços bem diferentes dos que lhe empresta a Psicologia clássica: ela não é a
revivescência de uma imagem, mas o conhecimento de uma verdade.
Este defeito nos dá a chave das dificuldades com as quais se choca a teoria
psicológica da memória. O realismo psicológico é inevitavelmente levado a pôr a
imagem no primeiro plano da vida mental. Pois a atividade mental reduzindo-se, para
ele, a um desenrolar de fenômenos, a um desfilar de dados, como só há dados
sensíveis e o pensamento, entretanto, ultrapassa a sensação presente, será preciso
inventar um sensível de segunda zona, um dado que não seja físico, mas
exclusivamente mental. Assim, a realidade mental por excelência será a imagem,
concebida como algo análogo a um desenho cujas cores e cujos traços tivessem sido
empalidecidos e atenuados pelo tempo. A memória será, precisamente, esta
conservação psicológica do sensível, a palavra conservação sendo tomada aqui no
sentido realista