c i Ber Democracia

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  • A territorialidade e a dimenso participativa na

    CIBERDEMOCRACIA

    Edies

    VNI MRCIA CARVALHAL

    O CASO DO FRUM SOCIAL MUNDIAL

    UCSALUNIVERSIDADE

    CATLICA DO

    SALVADOR

  • OBRA DE LIVRE ACESSO E DISTRIBUIO PROMOVIDA POR:

    ISBN: 978-85-60936-08-3

    A territorialidade e a dimenso participativa na ciberdemocracia - o caso do frum

    social mundial / Marcia Carvalhal. -- Salvador, BA: Edies VNI / UCSAL, 2011.

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-60936-08-3

    1.Territrio, 2.Dimenso Participativa, 3. Ciberdemocracia I. Carvalhal, Marcia II.

    UCSAL.

    60936 CDD-600

    Edies

    VNI

    PPROGRAMA DE

    PS-GRADUAO EM

    PLANEJAMENTO

    TERRITORIAL E

    DESENVOLVIMENTO

    SOCIAL

    UCSALUNIVERSIDADE

    CATLICA DO

    SALVADOR

  • - Agradeo a meu grande amor Marcello Chamusca, por ter me escolhido como

    esposa e por todo carinho, dedicao, amizade e amor que tem por mim. Marcello

    alm de ser meu marido tambm o meu grande amigo e parceiro;

    - A minha me Maria Yvonne Carvalhal (in memorian), por tudo que me ensinou e

    pela me maravilhosa e carinhosa que foi para mim. Tenho orgulho de ter sido

    escolhida por Deus para ser filha dela;

    - Ao professor Peter Jos Schweizer, por ter sido um grande amigo e me apoiado

    dentro do Programa de Ps-graduao em Planejamento Territorial e

    Desenvolvimento Social, da Universidade Catlica de Salvador. Peter acreditou em

    mim e me deu oportunidade de ingressar no curso;

    - professora Maria Helena Flexor, pelo carinho, amizade, dedicao durante todo o

    perodo que estive na UCSal. A professora uma pessoa justa e tica alm de ser uma

    excelente profissional;

    - Ao professor Sylvio Bandeira, por ter me indicado livros valiosos para o meu

    trabalho e pelo apoio dado no curso;

    AGRADECIMENTOS

  • - Agradeo minha famlia, em especial a meus irmos Euvaldo Carvalhal e Ivomar

    Carvalhal, minha cunhada Eliete Britto, minhas sobrinhas Milena Britto, Ana Paula

    Britto e Paloma Britto. No posso esquecer das minhas tias queridas Diva Carvalhal e

    Iraci Carvalhal;

    - A minha sogra Solange Chamusca e meu sogro Everaldo Novaes agradeo pelo

    incentivo aos estudos;

    - Agradeo todos que responderam as minhas entrevistas para concretizao deste

    trabalho;

    - Agradeo Deus pela fora para continuar em frente.

  • SUMRIO

    PREFCIO ........................................................................................................... 7

    INTRODUO .................................................................................................... 9

    MARCOS HISTRICO-CONCEITUAIS ....................................................... 22

    DEMOCRACIA ............................................................................................... 23

    OPINIO PBLICA ....................................................................................... 37

    TERRITRIO .................................................................................................. 42

    CONSTRUO DA PARTICIPAO DEMOCRTICA ............................ 45

    DIMENSO NA IDADE MODERNA ........................................................... 46

    Revolues burguesas e o resgate da participao democrtica ....... 47

    DIMENSO PARTICIPATIVA DA DEMOCRACIA NA PS-

    MODERNIDADE ............................................................................................ 63

    NOVAS PERSPECTIVAS TERRITORIAIS E A DEMOCRACIA NA

    CONTEMPORANEIDADE .............................................................................. 70

    DA COMUNICAO DE MASSA COMUNICAO PS-MASSIVA .. 72

    DO ESPAO AO CIBERESPAO: DEMOCRACIA NOS ESPAOS

    VIRTUAIS ....................................................................................................... 78

    DO TERRITRIO AO CIBERTERRITRIO: A GORA D LUGAR

    INTERNET ....................................................................................................... 82

  • CIBERTERRITRIO, A INTERATIVIDADE E AS INTERFACES DIGITAIS

    .......................................................................................................................... 87

    DA DEMOCRACIA CIBERDEMOCRACIA ............................................. 92

    FRUM SOCIAL MUNDIAL E A APROPRIAO DO CIBERESPAO

    ............................................................................................................................... 96

    INTERNET COMO ESPAO DE LUTAS E CONQUISTAS POLTICAS . 104

    CIBERESPAO COMO ESFERA PBLICA .............................................. 120

    TECNOLOGIAS INFORMACIONAIS DIGITAIS POTENCIALIZANDO A

    EXPRESSO DAS MINORIAS ................................................................... 131

    Grupos minoritrios e o espao na Internet como campo de luta ....... 148

    BELM EXPANDIDA: A BUSCA DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

    POR MEIO DO EXERCCIO DA CIBERDEMOCRACIA ........................ 157

    REDES SOCIAIS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS .................................... 164

    CIBERTERRITRIO DE BELM EXPANDIDA ........................................ 167

    CONCLUSES ................................................................................................ 182

    REFERNCIAS ............................................................................................... 189

    A AUTORA ....................................................................................................... 216

  • 7PREFCIO

    Profa. Dra. Maria Helena Ochi Flexor

    Professora da Universidade Catlica do Salvador

    O prazer intelectual pode se concretizar de diversas formas. Apresentar o livro

    de Mrcia Carvalhal est me propiciando essa oportunidade. Em primeiro lugar por

    testemunhar a execuo de sua dissertao, que muitos reputaram inadequada a um

    Mestrado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Em segundo lugar

    por me permitir um autoconhecimento, principalmente na minha idade fsica, por

    verificar no ser to analgica, como estaria fadada a ser avaliada socialmente. Em

    terceiro lugar, e mais importante, pelos resultados apostos neste livro, sob o ttulo A

    territorialidade e a dimenso participativa na ciberdemocracia.

    Um trabalho deste gnero traz mais esclarecimentos sobre a evoluo da

    humanidade, especialmente, quanto s descobertas tcnicas, meios de comunicao e

    relaes humanas, que quebraram o j velho paradigma contemporneo. A partir da

    miniaturizao dos componentes eletrnicos, da vulgarizao dos circuitos

    integrados, do auxlio dos satlites, da criao da www, - world wide web -, a grande

    teia que abrange o mundo, atravs da rede da internet, - sem ser redundante -, e das

    redes sociais, as comunicaes, o mundo, ou pelo menos grande parte deste planeta,

    se modificou radicalmente. No sei exatamente como batizar a nova era, mas o certo

    que j se ultrapassou o paradigma do ps-modernismo.

  • A autora mostra que grande parte das sociedades mundiais faz parte da era

    digital, cujo territrio no est mais s sob seus ps, mas acima de todos, no

    ciberespao. Neste novo territrio ou ambiente virtual ou, ainda, ciberterritrio,

    possvel, atravs de equipamentos cada vez menores, se entrar em contato com

    diferentes pessoas, em qualquer parte da terra, devidamente equipada. Pode-se

    estabelecer trocas de idias e informaes com indivduos, com os mais variados

    saberes e formaes, com interesses diversos, idades indefinidas, sem mesmo

    conhecer pessoalmente esses personagens envolvidos, de maneira democrtica.

    Mrcia Carvalhal tomou como base para estudo o Forum Social Mundial que,

    oportunamente aconteceu em Belem do Par (2009) e em Salvador (2010), quando se

    tornaram possveis relaes pessoais e reais. Registrou, nesses eventos, depoimentos

    de vrias autoridades, permitindo verificar como milhares de pessoas, presencial ou

    virtualmente, atraves das tecnologias informacionais, podem, contnua e

    demomocraticamente, discutir e buscar solues para os problemas sociais que

    afligem os humanos.

    8

  • INTRODUO

    Edies

    VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    PLANEJAMENTO TERRITORIAL E

    DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL

    UNIVERSIDADE

    CATLICA DO

    SALVADOR

  • 10

    Historicamente a participao democrtica sempre esteve diretamente

    vinculada perspectiva territorial, ainda que as literaturas especficas sobre

    democracia e territrio no tenham se apropriado desta constatao para o

    desenvolvimento de uma teoria sobre essa relao. Os espaos territoriais, em

    principio, desde os primrdios da democracia, do base a toda e qualquer forma de

    participao do cidado no seu processo, nas discusses polticas e na formao da

    opinio pblica, de um modo geral.

    Tomando-se o exemplo da Grcia, na sua origem no sculo V A.C.,

    especialmente em Atenas, a participao democrtica se dava a partir da gora , lcus

    fsico, territorial, onde os gregos se encontravam para se relacionar e discutir temas

    voltados ao bem estar da populao, bem como temas macropolticos e sociais de

    interesse daquela sociedade . Era o espao territorial da gora que possibilitava as

    discusses acontecerem e, portanto, a dimenso participativa da democracia de se

    concretizar. O territrio demarcado da gora, portanto, era o espao fsico que dava

    base existncia de todo o processo democrtico. Neste sentido, a compreenso da

    dimenso territorial pressuposto para que se possa comear a pensar o processo

    democrtico nas suas outras diversas dimenses.

    1 gora era a praa principal na constituio da polis, a cidade grega da Antiguidade clssica. Normalmente

    era um espao livre, configurada pela presena de mercados e feiras nos seus limites, envolvido por edifcios

    de carter pblico (GORA, 2007).

    2 Na democracia grega apenas os gregos machos e adultos tinham poder de voz e de voto, excluindo as

    mulheres, os escravos e estrangeiros do processo de deciso poltica. Apesar disso, os empoderados chegavam

    a cerca de 10% da populao. Em comparao com o Brasil atual, por exemplo, como se dos 190 milhes de

    brasileiros, 20 milhes pudessem ter vez e voz no processo de deciso do governo, ou seja, algo

    absolutamente significativo e inquestionvel, em termos de participao democrtica.

    1

    2

  • Entender como se dava a relao direta da participao democrtica com o

    territrio, na origem da democracia na Grcia, passa pela constatao de que sem a

    gora, ou qualquer outro espao fsico de referncia, no haveria a participao dos

    gregos no processo democrtico, pois era ela que garantia a presena do homem para

    o estabelecimento das discusses em torno dos temas centrais da sociedade grega

    ateniense. A utilizao da gora, como espao de discusso, ou como chamaria

    Habermas (1987), como esfera pblica , representava, em ltima anlise, o uso do

    territrio para o exerccio poltico democrtico, ou seja, da apropriao por parte das

    pessoas de um determinado pedao de terra para uso especfico que, neste caso, servia

    de delimitao geogrfica para um espao institudo de poder e participao dos

    homens gregos nas discusses democrticas.

    A democracia ateniense, na medida em que exigia no seu processo de afirmao

    um determinado local, pessoas, suas idias, discusses sobre essas idias, e a busca de

    consenso em torno delas, estava completamente envolta da noo de territorialidade,

    uma vez que, independentemente do aspecto que se busque analisar, seja fsico,

    poltico, simblico, cultural ou econmico, em todos eles estavam as relaes de

    pertencimento das pessoas com os seus espaos de convivncia, suas ambincias e

    suas apropriaes do territrio, para o estabelecimento de relaes sociais.

    importante observar que a prpria concepo de governo do povo, que vem

    da origem da palavra democracia, no podia se estabelecer se no houvesse uma

    relao direta das pessoas (povo) com um determinado territrio a ser governado,

    3 Conceito de Habermas (1987), relacionado ao espao de participao genuna do cidado no processo

    democrtico, para a formao da opinio pblica.

    3

    11

  • pois a base de toda a natureza de um governo est estruturada nas noes de

    delimitao territorial e fronteiras espaciais, que determinam exatamente a sua rea

    de atuao geogrfica e o seu legado de atuao poltica que, por sua vez, tambm

    podem ser determinados pelo que Musso (2001, p.19) entende como territrios

    histricos, territrios vividos e territrios projetados por um povo, uma sociedade.

    O significado de governo e povo para os atenienses, entretanto, so

    completamente distintos da concepo das democracias modernas e

    contemporneas. Em Atenas no se entendia por governo um grupo poltico formado

    por representantes eleitos para governar, e o povo como todos os cidados de uma

    nao, mas governo como sendo a assemblia ekklesia - que tomava decises

    diretamente, sem intermediao de representantes, e o povo como os homens

    atenienses maiores de idade (WIKIPEDIA, 2010) .

    A democracia, desde a Grcia Antiga, vem se transformando, mudando suas

    caractersticas, se modernizando, no s pelas variveis relacionadas ao tempo, como

    4 Apesar de boa parte da comunidade cientfica ainda possuir restries a respeito da Wikipedia, pelo fato

    desta ser uma enciclopdia colaborativa, a mesma j se configura como a maior do mundo na atualidade. Vale

    observar que a Wikipedia possui um processo de validao das informaes que so inseridas ou atualizadas

    para garantir a qualidade da informao que disponibiliza. Quando um verbete no est devidamente

    validado, ou no se encontra dentro dos critrios enciclopdicos, aceito e disponibilizado, para garantir o

    ambiente de livre expresso e colaborao, mas esse assinalado com uma observao na parte superior da

    pgina, indicando que aquelas informaes no se encontram dentro dos critrios enciclopdicos. Alm disso,

    quando ocorre de serem inseridas informaes polmicas, em que dois ou mais editores autorizados

    discordam entre si, o verbete tambm assinalado com a indicao de que no se encontram dentro do

    princpio da imparcialidade enciclopdica. Nenhuma informao utilizada nesta dissertao se encontra com

    qualquer indicao de falta de valor enciclopdico.

    4

    12

  • tambm pelas relacionadas com o espao, ou seja, ganha novos conceitos e

    aplicaes em momentos histricos e locais diferentes do mundo. Foi concebida

    originalmente para ser participativa, mas a sua forma mais difundida a

    representativa. Saiu da gora grega e se instituiu nos espaos das cmaras,

    assemblias e congressos nacionais. Saiu da esfera pblica, na qual, segundo

    Habermas (1987), formava a opinio pblica genuna pela discusso de questes

    controversas, e passou, na modernidade, a ser encenada, forjada pelas mdias

    existentes.

    Toda a transformao do processo democrtico e os seus mltiplos conceitos,

    entretanto, se deu paulatinamente, ao longo de cerca de vinte e cinco sculos de

    histria e a partir de adequaes a grupos sociais e a sociedades com caractersticas

    diferenciadas. Nos ltimos 20 anos, em que muitos autores tratam de um novo

    processo de ruptura de paradigmas histricos e se fala em um tambm novo perodo

    histrico, a ps-modernidade , retoma-se algumas caractersticas da democracia

    original, que apesar de ser questionvel em diversos pontos, mantinha uma

    arquitetura de participao direta dos cidados atenienses, sem eleio e

    representao nos espaos de poder institudos.

    Neste sentido, partiu-se do pressuposto de que o contexto atual destaca a

    retomada gradativa da dimenso participativa da democracia e de que possvel que

    5Alguns autores renomados e referenciados em todo o mundo, como Anthony Giddens (1991), ainda

    contestam a existncia de uma ruptura e a conseqente inaugurao de um novo perodo histrico na

    humanidade. Esses autores observam que os fenmenos indicados como ps-modernos podem no ser

    exatamente elementos de ruptura, mas a radicalizao da modernidade, que cria descontinuidades e fragmenta

    o processo histrico, dando a falsa sensao de ruptura.

    5

    13

  • se esteja criando novamente uma espcie de esfera pblica para a discusso e

    formao de uma opinio pblica genuna, a partir da participao direta dos

    cidados, influenciando no poder decisrio dos governos. A diferena da dimenso

    participativa do processo democrtico original para a que se esboa nesta hipottica

    nova esfera pblica que agora o espao no mais a gora, onde as caractersticas

    territoriais fsicas so quem do base aos agentes sociais, mas a Internet, que

    possibilita o surgimento de um espao territorial hibrido, caracterizado e

    concretizado pela interseco do ciberespao e do espao fsico, que potencializa a

    interao social, que aqui ser chamado de ciberterritrio.

    importante observar que o momento contemporneo da democracia

    potencializado pela comunicao mais acessvel, que se traduz em um processo

    tecnolgico que envolve vrias etapas de desenvolvimento, que podem ser

    subdivididas em, pelo menos, quatro momentos bsicos.

    O primeiro o mais longo e se inicia com a inveno da prensa grfica de

    Johannes Gutenberg (1398-1468), em 1450, que apesar de s ter se popularizado

    alguns sculos depois de ter sido inventada, revolucionou a comunicao entre as

    pessoas, na medida em que possibilitava a impresso de informaes e a sua

    reproduo em larga escala. O invento de Gutenberg, de certa forma, reduziu o poder

    da Igreja Catlica e alterou a natureza do conhecimento que se baseava no controle

    poltico e religioso (AMARAL, 2007). Em termos de comunicao interpessoal, essa

    a Era da correspondncia e da comunicao face-a-face.

    O segundo momento pode ser demarcado entre a chegada do rdio, no final do

    sculo XIX e a sua difuso comercial no incio do sculo XX, que inaugurou os meios

    eletrnicos de comunicao e impulsionou o desenvolvimento da comunicao de

    14

  • massa em todo o mundo. Segundo Vargas (1994, p. 323), a primeira transmisso

    comercial de rdio ocorreu em Pittsburgh, EUA, em 1920, utilizando o que seria

    chamado de transmissor heterdino na faixa mdia de freqncias. Do ponto de

    vista da comunicao entre as pessoas, esta a fase em que a inveno de Graham

    Bell (1847-1922), o telefone, tornou-se a grande atrao, pois possibilitava, pela

    primeira vez na histria, a conversao, em tempo real, entre pessoas que esto

    espacialmente distantes. Graham Bell patenteou a inveno em 1876 nos EUA

    (VARGAS, 1994, p. 317).

    O advento da eletrnica, na metade do sculo XX, depois da Segunda Guerra

    Mundial, pode ser o marco temporal do terceiro momento, pois, foi a partir dele, que

    equipamentos de comunicao mais sofisticados comearam a surgir. Do ponto de

    vista comercial, um bom exemplo foi a televiso, que iniciou com vlvulas e depois

    passou para os transistores. Segundo Vargas (1994, p. 325), as primeiras

    transmisses regulares pblicas de TV ocorreram nos EUA, em 1941, mas o esforo

    de guerra obrigou as indstrias eletrnicas a produzir outros itens, e s em 1946 a

    televiso vingou inaugurando um tremendo mercado de consumo at ento

    inexplorado. J do ponto de vista da comunicao interpessoal, o fax representou

    bem esta fase da comunicao.

    O quarto e ltimo momento inaugurado com a micro-informtica e reforado

    com o advento da Internet. A Internet , na prtica, uma rede mundial de

    computadores, que ao se conectarem em escala planetria, permitem aos seus

    usurios comunicao sem fronteiras, potencializando a discusso poltica, em todas

    as escalas territoriais, na medida em que encurtam distncias e tornam, conforme

    Friedman (2005), o mundo plano.

    15

  • Esta fase, alm da reconfigurao social que todo novo meio de comunicao

    traz naturalmente, representa uma ruptura no processo de evoluo histrica dos

    meios de comunicao, pois, os meios digitais, modificaram os modelos de fluxos

    informacionais de forma significativa, ao liberar o plo de emisso. Se, at a fase

    anterior, os meios de comunicao seguiam o fluxo do modelo paradigmtico de um

    para todos, em que apenas os veculos tradicionais de comunicao emitiam

    informao de forma massiva, na fase atual, os meios so socializados e a produo e

    distribuio de informaes podem ser realizados por qualquer pessoa que tenha

    acesso a eles. Do ponto de vista da comunicao interpessoal, hoje, no s possvel

    a relao entre pessoas, em tempo real, por voz, mas tambm com recursos de

    imagem bastante desenvolvidos que, em algumas situaes, transcendem s meras

    videoconferncias e os videochats e podem at simular um encontro real, como nos

    ambientes de realidade virtual.

    Nesse admirvel mundo novo do sculo XXI, idealizado por Huxley (2007),

    em 1932, quando ningum nunca poderia imaginar que um chip seria inventado,

    que as discusses e articulaes polticas comeam a se fortalecer entre pessoas que

    esto geograficamente distantes e as organizaes que lutam por justia social e

    direitos para as minorias comeam a se apropriar desses novos meios, que permitem

    uma maior participao do cidado comum e das instituies menos favorecidas

    economicamente.

    Com base nesse contexto, buscou-se o recorte especfico para um estudo sobre a

    relao do territrio com a participao democrtica, interfaceada pelas tecnologias

    informacionais digitais. Como principal objetivo, esta dissertao busca desenvolver

    argumentos a respeito da relao direta da noo de territrio com a dimenso

    16

  • participativa da democracia, baseando-se no pressuposto de que o advento das

    tecnologias digitais no a desvincula do territrio, ao contrrio, cria ainda mais

    vnculos, na medida em que potencializa a participao cidad, que exercida por

    pessoas e essas so indissociveis do territrio.

    Para tanto, procura sistematizar os conceitos necessrios ao entendimento das

    argumentaes desenvolvidas, como os conceitos de democracia, opinio pblica e

    territrio, para o primeiro momento contextual. importante tambm caracterizar,

    mesmo que superficialmente, o processo histrico da dimenso participativa da

    democracia, desde a sua origem na Antiguidade, passando pela perda da participao

    direta no perodo Moderno, at chegar ao momento contemporneo, quando se

    pressupe um aumento da participao, proporcionado pela nova conjuntura

    tecnolgica digital, que encurta distncias e permite que pessoas que se encontram

    em diversas partes do mundo possam se agrupar para debater temas de interesse

    comum.

    Na sua construo, uma srie de novos conceitos, vinculados a essa

    ambincia tecnolgica digital, surgiro e precisaro ser caracterizados, tais como

    ciberespao, ciberdemocracia e ciberterritrio. Este ltimo, pelo fato de ser de

    autoria prpria, sistematizado com mais critrio. Para o conceito de ciberterritrio

    buscou-se um vis mais social, estabelecendo-o como um possvel espao de luta por

    transformaes e desenvolvimento social dentro do contexto contemporneo.

    Optou-se pela metodologia de um estudo de caso, porque se vislumbrou no

    Frum Social Mundial (FSM) um excelente exemplo da relao discutida pelo objeto

    central do estudo, pois esse movimento poderia trazer discusses fecundas sobre o

    processo de participao democrtica na ciberdemocracia, visto que organizado em

    17

  • redes sociais, estruturadas a partir de interfaces digitais, e que mantm um encontro

    presencial por ano, ou mesmo vrios encontros descentralizados em um determinado

    perodo do ano, e todo o resto do tempo as articulaes para a construo de uma

    agenda reivindicativa para o desenvolvimento social em todo o mundo, sobretudo,

    nos pases pobres, so realizadas atravs das redes estabelecidas em territrios

    hbridos, que aqui se chamar de ciberterritrios.

    Uma extensa reviso bibliogrfica necessria para se chegar ao estado da arte

    do objeto de estudo, pois o termo democracia muito utilizado dentro e fora do

    ambiente acadmico e tem sido relacionado com temticas distintas. As maiores

    contribuies para o recorte escolhido so de Habermas (1987), Ratzel (1990),

    Raffestin (1993), Santos (2001, 2005), Silva e Silva (2003; 2006) e Albagli (2004), na

    construo contextual, e Levy (1993, 1999), Haesbaert (1994, 2002), Souza (1995),

    Lemos (1995, 1999, 2002, 2005), Castells (1999) e Friedman (2005), para anlise do

    objeto de pesquisa at o perodo contemporneo.

    O mtodo de abordagem utilizado complementar entre qualitativo,

    comparativo e histrico. Com a abordagem qualitativa se analisa os objetivos do

    Frum Social Mundial e sua efetiva consecuo, frente aos marcos tericos. Com o

    mtodo comparativo, se confronta as caractersticas da dimenso participativa da

    democracia original e a sua relao com o territrio fsico, bem como a relao entre

    ciberdemocracia contempornea com o territrio hibrido fsico e virtual , buscando a

    compreenso da importncia da noo de territrio, seja ele fsico ou hibrido, na

    dimenso participativa da democracia.

    J a abordagem histrica necessria para abranger as instncias democrticas,

    desde a Grcia Antiga, passando pelo perodo Moderno, chegando at o Ps-moderno

    18

  • e contemporneo, subsidiando as anlises qualitativas da dimenso participativa da

    democracia, com dados histricos e no caso do Frum Social Mundial.

    A partir das premissas at aqui expostas, busca-se confrontar dados de

    pesquisa, obtidos em campo, com diversas lideranas de movimentos sociais de

    vrias partes do mundo, durante a realizao do evento presencial anual de 2009, que

    se deu no ms de janeiro, na cidade de Belm/PA; das entrevistas realizadas ao longo

    do ano de 2009 com autoridades polticas, religiosas, acadmicas e profissionais de

    vrias reas do saber, setores da sociedade e segmentos polticos, ideolgicos e

    religiosos, bem como representantes de organizaes privadas, governamentais e do

    Terceiro Setor; alm das entrevistas realizadas no evento temtico descentralizado

    que aconteceu em Salvador/BA, em janeiro de 2010.

    Um total de 113 entrevistas (vide lista no anexo I) serve para analisar a

    importncia das mediaes das tecnologias informacionais digitais no processo de

    articulao de um movimento de mbito planetrio de luta por justia social. Como

    forma de mensurar essa importncia, busca-se observar na amostra da sociedade,

    representada por pessoas de todos os grupos e segmentos j citados, se entendem a

    Internet como campo de luta e conquistas polticas; se o ciberespao pode se

    constituir em uma espcie de esfera pblica, no sentido habermasiano, de lugar para a

    construo de uma opinio pblica genuna; sobre o potencial das mdias sociais para

    a expresso dos movimentos sociais e minorias; sobre o nvel de importncia das

    dimenses fsica e virtual para o movimento dos movimentos ; alm de questes

    que buscam sintetizar constataes de participantes e catalizar percepes diversas

    6

    6 Como o FSM se autodenomina

    19

  • sobre a relao da dimenso participativa da democracia com a territorialidade, tema

    central da dissertao.

    Duas hipteses centrais so previamente levantadas. A primeira a de que os

    ciberterritrios, utilizados pelo Frum Social Mundial como campo de luta e de

    mobilizao popular, potencializam a participao dos cidados comuns nas

    discusses que esto em pauta e permitem, inclusive, que eles agendem as suas

    prprias discusses. Neste sentido, o advento do ciberterritrio pode estar

    contribuindo para a formao de um novo espao pblico, de participao direta do

    cidado, alargando assim a dimenso participativa da democracia na

    contemporaneidade. A segunda hiptese de que se o alargamento da dimenso

    participativa da democracia, potencializado pelos ciberterritrios, no proporcionar

    efetivamente o que se pode entender como uma nova esfera pblica para a formao

    de uma opinio pblica genuna, pelo menos, pode favorecer o desenvolvimento

    social, na medida em que d oportunidade aos atores sociais reivindicativos um

    espao fidedigno para publicizar idias e mobilizar pessoas e instituies em torno da

    luta por mais desenvolvimento e justia social.

    Tambm se toma como premissa que o ciberterritrio constitui-se em uma

    ferramenta imprescindvel para o alargamento da dimenso participativa da

    democracia, visto que, na construo do seu entendimento, constata-se o seu

    potencial como instrumento de transformao social, pois tem sido percebido pelos

    analistas do contexto contemporneo como um espao alternativo de discusso e

    participao, em que o cidado volta a ter voz e poder de deciso no processo

    democrtico.

    Este livro dividido em cinco partes. A primeira contextual e sistematiza

    20

  • alguns dos principais conceitos utilizados ao longo do trabalho, como os conceitos de

    democracia, opinio pblica e territrio. A segunda traz uma base histrica que

    subsidia anlises sobre a relao da dimenso participativa da democracia com o

    territrio fsico e espacial.

    Na terceira parte, aprofunda-se na ambincia tecnolgica digital, mostrando

    como ela tem potencializado o alargamento da dimenso participativa da democracia,

    a partir da formao dos ciberterritrios. A quarta parte se volta para o estudo do

    Frum Social Mundial, tentando entender como os participantes do movimento veem

    a sua insero no atual contexto das tecnologias digitais de comunicao e

    informao e a sua participao no ambiente da ciberdemocracia. Esta parte traz

    opinies de diversos entrevistados, dentre eles vrios participantes do FSM, que

    revelam suas impresses sobre a Internet como campo de luta e conquistas polticas, e

    sobre o ciberespao como espao de debate pblico e de ampliao das articulaes

    dos grupos minoritrios por direitos sociais.

    Na quinta e ltima parte, se analisa o uso efetivo das tecnologias digitais pelo

    FSM, atravs do ciberterritrio da Belm Expandida, ambincia hibrida fsica e

    virtual de proposio e realizao de aes e eventos a partir de qualquer lugar do

    planeta, para se discutir a possibilidade de um mundo melhor para todos. A iniciativa

    da Belm Expandida dimensiona o movimento e amplia significativamente as

    aes e discusses do FSM, em 2009.

    21

  • MARCOS

    HISTRICOS-CONCEITUAIS

    Edies

    VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    PLANEJAMENTO TERRITORIAL E

    DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL

    UNIVERSIDADE

    CATLICA DO

    SALVADOR

  • Discorrer a respeito do territrio na construo da participao democrtica

    uma tarefa que exige a articulao de alguns conceitos essenciais. Numa primeira

    instncia, a articulao necessria a que diz respeito relao da democracia com a

    opinio pblica, visto que, nesta relao, podem estar intrnsecos os principais

    aspectos de outra relao que mais interessa: o territrio e a dimenso participativa da

    democracia.

    Coloca-se, inicialmente, o conceito de democracia, buscando

    propositadamente dar nfase questo da sua dimenso participativa, uma vez que

    foi este o vis de reflexes que se pretende definir para, em seguida, se trabalhar o

    conceito de opinio pblica, buscando as relaes entre os dois conceitos e o de

    territrio, para o completo entendimento que se buscar dos sucessivos focos.

    DEMOCRACIA

    A democracia desde que foi criada e difundida na cidade de Atenas, na Grcia

    Antiga, sempre esteve diretamente relacionada noo de participao dos cidados

    na vida poltica da sua cidade-estado. A prpria etimologia da palavra no deixa

    dvidas: demos, em grego, significa povo, e, cracia que vem de kratus, significa

    autoridade ou governo, ou seja, em uma traduo simples, democracia significa

    governo do povo (BETTO, 2006).

    Tratava-se de um sistema de organizao poltica que garante aos cidados o

    direito de participar dos rumos da sociedade em que estavam inseridos, influenciando

    diretamente nas decises relativas gesto de assuntos pblicos. Em tese, em um

    23

  • sistema democrtico, as pessoas possuem liberdade para se expressar e manifestar

    suas opinies. Do contexto original aos dias atuais, entretanto, o conceito de

    democracia passou por uma srie de transformaes, acrscimos e releituras de

    pensadores dos mais diversos, que buscaram, cada um a seu modo, adequar o

    conceito realidade e ao contexto em que viviam.

    O conceito atual de democracia comeou a ser elaborado no sculo XVII, com

    as primeiras formulaes tericas do filsofo britnico e idelogo do liberalismo

    John Locke (1632 - 1704), o primeiro a afirmar que o poder dos governos nascia de

    um acordo, livre e recproco, e, assim, preconizar a estrutura do estado democrtico

    moderno, pela separao dos poderes legislativo e judicirio. Mas, foi Montesquieu

    ( - ) que conseguiu organizar as idias que estavam no inconsciente

    coletivo, traduzidas na obra O esprito das leis . Nesse livro, ao tratar dos trs

    diferentes tipos de governo: o desptico, fundamentado no temor; republicano, na

    virtude; e, monrquico, na honra, esse pensador acreditava que a forma de governo

    mais prudente e sbia seria a monarquia constitucional, pois era baseada, no apenas

    na honra do rei, mas tambm na liberdade poltica garantida pela independncia dos

    poderes legislativo, executivo e judicirio. Essa proposta viria a ser o principal

    fundamento das democracias modernas e sua essncia enquanto sistema poltico que

    permitia o exerccio do poder, em nome do povo, por meio das instituies que dele

    emanam (TRE-RO, 2009).

    A primeira nao a assumir o moderno sistema democrtico foram os Estados

    Unidos da Amrica, mas sem seguir rigorosamente a proposta de Montesquieu, uma

    1689 1755

    7

    7 Obra lanada originalmente em 1748.

    24

  • vez que o fez atravs de uma repblica constitucional e no de uma monarquia, como

    propunha o autor. O sistema democrtico republicano estadunidense se consolidou

    em virtude da derrota imposta monarquia britnica, na guerra pela sua

    independncia. Existem alguns estudos que tentam, a partir de critrios especficos,

    mensurar o processo democrtico em todo o mundo. Um deles o ndice de

    Democracia, compilado pela revista The Economist (2008). Foram ao todo 167 pases

    investigados e analisados, a partir de cinco variveis: o processo eleitoral e

    pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, participao poltica e

    cultura poltica. Os pases foram classificados em quatro categorias: democracias

    plenas, democracias imperfeitas, regimes hbridos, e regimes autoritrios (ver quadro

    1 abaixo). O Brasil ficou em 41 lugar e foi classificado como um pas de democracia

    imperfeita (WIKIPEDIA, 2009).

    Quadro 1. Classificao do ndice de democracia por pas

    Fonte: , acessado em novembro de 2009. http://pt.wikipedia.org/wiki/ndice_de_Democracia8

    8 As informaes da revista The Economist que se encontram na Wikipedia so inseridos por pessoas

    autorizadas pela prpria revista e disponibilizadas atravs desta enciclopdia colaborativa, que j se configura

    como a maior do mundo na atualidade.

    25

  • Mapa 1. Indice de democracia dos pases

    Fonte: , acessado em novembro de 2009.http://pt.wikipedia.org/wiki/ndice_de_Democracia

    No Mapa 1, que foi atualizado em 2009, os pases representados pelas cores

    mais claras foram avaliados como os mais democrticos. A Sucia foi considerado o

    pas mais democrtico, obtendo o ndice de 9.88, numa escala de 0 a 10. J os pases

    representados pelos azuis mais escuros apresentaram os ndices mais baixos. A

    Coria do Norte foi considerado pelo estudo como o pas menos democrtico, com

    1.03 de ndice.

    26

  • A democracia , entretanto, desejada pela maioria dos pases do mundo. O

    Mapa 2 comprova essa afirmao. Ele representa a auto-identificao dos pases com

    relao democracia. Percebe-se que quase todos os pases do mundo, inclusive, os

    comunistas, que o resto do mundo identifica como ditaduras, se identificam como

    democrticos.

    Mapa 2. Auto-identificao dos pases em relao a democracia

    Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Democracy_claims.svg

    27

  • Uma outra tentativa de mensurao da democracia no mundo foi realizada pela

    organizao americana Freedom House , em 2007 e 2008, com a inteno de

    identificar as democracias eleitorais. Os resultados deste estudo pode ser visualizado

    no Mapa 3, que mostra os pases considerados democracias eleitorais (em azul),

    identificando os pases em que so realizadas eleies diretas para os representantes

    de governo. Neste Mapa, diferente do Mapa 2, j no se encontra um nvel de

    identificao to alto, o que equivale a dizer que existem pases que se consideram

    democrticos, mas sequer realizam eleies diretas para os seus representantes nas

    instncias de poder e deciso polticas.

    9

    9 Freedom House uma organizao sediada em que realiza pesquisas

    em defesa da , e . Ela publica um da avaliao

    do grau de percepo das liberdades democrticas em cada pas, que usado em por cursos de

    em todo o mundo.

    no-governamental Washington, EUA,

    democracia liberdade poltica direitos humanos relatrio anual

    cincia poltica

    28

  • Mapa 3. Pases que possuem democracias eleitorais

    Fonte: , acessado em novembro de 2009.http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Electoral_democracies.png

    As formas mais difundidas de democracia desde a sua origem at o momento

    contemporneo so a direta e representativa. Em uma democracia direta, em tese,

    todos os cidados podem participar diretamente do processo de tomada de decises

    sobre as questes de ordem pblica. J na democracia representativa os cidados no

    participam diretamente do processo decisrio, visto que a sua participao se resume

    a eleger uma pessoa ou um grupo para decidir por eles nas instncias de poder

    estabelecidas, sejam elas municipais, estaduais ou federais, em senados, cmaras ou

    assemblias.

    29

  • Se na sua origem, a democracia, apesar de permitir a participao qualitativa do

    cidado grego, limitava essa participao a apenas alguns membros da sociedade, na

    democracia moderna, representativa, a participao atribuida a todos os cidados,

    indiscriminadamente. Vale ressaltar, entretanto, que essa participao mesmo sendo

    ampliada para todos os cidados, no representa alargamento no processo de

    participao democrtica, visto que nessa forma de democracia, o cidado no se

    encontra entre os que decidem. A sua participao est to somente limitada

    indicao de algum que o representar nas instncias de deciso e que, em ltima

    anlise, decidir por ele sobre os rumos da sua vida. Ex.: a participao democrtica

    da populao da cidade de Salvador/BA se resume em ir as urnas no dia da eleio

    para indicar quem so os seus cadidatos preferidos para vereador e prefeito da cidade.

    Depois disso, ela no tem mais nenhuma participao direta nas decises que os

    vereadores e prefeito eleitos vo tomar durante quatro anos de mandato.

    A estrutura da democracia representativa estabelece a separao entre os que

    decidem e os que devem acatar as decises tomadas pelos que decidem, pois os que

    decidem tm status de dirigentes e o povo, que na democracia original, direta e

    participativa, era quem decidia, passa inesplicvel condio de dirigido, o que pode

    suscitar as seguintes questes: se a prpria palavra democracia significa governo do

    povo, como o povo em algum momento desse processo pode ter sido relegado a

    simples condio de governado ou dirigido? Neste caso, o real sentido da palavra

    democracia teria se esvaziado ao longo dos tempos? Onde afinal ficou o governo do

    povo?

    Uma grande objeo a respeito da prtica da democracia direta, para aqueles

    que no acreditam que esta possvel de se estabelecer na prtica, o fato de que a

    30

  • maioria das pessoas que compem uma cidade cidados no teria conhecimentos

    tcnicos e, consequentemente, argumentos plausveis e sustentveis para balizar as

    decises mais acertadas de governo, visto que os cidados comuns tm as suas

    prprias atribuies dirias e no podem se dedicar ao aprofundamento dos

    acontecimentos polticos, econmicos e sociais. Isso faria com que acontecesse

    constantemente tomada de decises incoerentes como votar por reduo radical de

    impostos e aumento significativo de oramento para as reas de Sade, Educao,

    Habitao, etc., sem a verdadeira conscincia de que a queda de impostos interfere

    diretamente na capacidade do governo investir nas reas indicadas.

    A democracia direta no contexto atual enfrenta um outro grande problema: o

    alto custo e a lentido do processo decisrio, visto que, diante do contingente das

    grandes cidades, a nica forma encontrada foi a de referendos e plebiscitos, que se

    constituem numa espcie de votao geral, nos moldes de uma eleio, que tem o

    objetivo de consultar a opinio da populao sobre um determinado tema. A diferena

    bsica entre referendo e plebiscito que este ltimo uma consulta feita antes do

    estabelecimento da lei ou norma e o referendo aplicado para conhecer a opinio da

    populao em relao a algo que j est em andamento.

    Os argumentos contra a democracia direta esto quase todos eles ligados ideia

    de que esse tipo de sistema no funciona bem nas cidades com grandes contingentes

    populacionais. Estas possuem um nvel de complexidade muito grande, o que

    compromete a eficincia do sistema que, por sua vez, baseado na opinio da maioria

    e que, por isso mesmo, pode suprimir direitos das minorias. Alm disso, os plebiscitos

    31

  • e referendos podem ser utilizados para sancionar regimes totalitrios, como o de

    Salazar , entre 1932 e 1968, em Portugal.

    Por outro lado, pensando especificamente o caso brasileiro, o desgaste que o

    modelo representativo sofreu nas ltimas duas dcadas tem comprometido

    sobremaneira a sua eficcia. Percebe-se no discurso popular que h uma idia quase

    consensual de que neste modelo de democracia representativa, o povo s

    importante s vsperas de uma eleio, pois s consultado uma vez a cada quatro

    anos, para legitimar os mandatos dos polticos profissionais. E que estes, aps serem

    eleitos, agem como bem entendem e no se preocupam com a opinio dos seus

    eleitores para tomar as decises, at que chegue novamente a hora de uma nova

    eleio.

    A separao entre quem dirige e quem dirigido pode fazer com que os

    dirigentes se atenham muito mais s suas prprias vontades e se distanciem da

    vontade dos dirigidos, quando a postura deveria ser contrria a essa, visto que o poder

    que o dirigente possui no lhe pertence de fato, mas apenas de direito, pois foi

    delegado pelo eleitor, que deveria ser o balizador das suas decises e no apenas o

    meio de conseguir renovar o seu mandato, no caso do Brasil, de quatro em quatro

    anos.

    Neste sentido, a democracia direta e participativa tornaria o processo poltico

    muito mais intenso e poderia trazer discusses bastante produtivas, que pudessem

    verdadeiramente mobilizar a sociedade em torno de questes de interesse geral. No

    10

    10 Poltico portugus e professor catedrtico da Universidade de Coimbra, que governou Portugal de 1932 e

    1968 de forma autoritria e ditatorial.

    32

  • Brasil existem algumas iniciativas que buscam a participao popular, num modelo

    que se pode chamar de democracia semi-direta, a exemplo da Comisso de

    Legislao Participativa (CLP), da Cmara dos Deputados, que foi criada em 2001

    com o objetivo de facilitar a participao da sociedade no processo de elaborao das

    Leis.

    Atravs da CLP, a sociedade, por meio de qualquer entidade civil

    organizada, ONGs, sindicatos, associaes, rgos de classe, apresenta

    Cmara dos Deputados suas sugestes legislativas. Essas sugestes vo

    desde propostas de leis complementares e ordinrias, at sugestes de

    emendas ao Plano Plurianual (PPA) e Lei de Diretrizes Oramentrias

    (LDO). Para ampliar o acesso da populao ao Poder Legislativo, a CLP

    tambm disponibiliza um Banco de Idias, formado por sugestes

    apresentadas ao Parlamento pelos cidados e cidads brasileiros

    individualmente (CMARA, 2009).

    Alm de iniciativas como a CLP da Cmara dos Deputados, no Brasil, a

    Constituio Federal de 1988 prev uma forma de participao direta do cidado no

    processo decisrio, em seu Art. 14, que diz: "a soberania popular ser exercida pelo

    sufrgio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos

    termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular". Este

    artigo permite a qualquer cidado brasileiro o exerccio da democracia no seu sentido

    pleno, pois, lhe assegura a iniciativa de um projeto de lei de autoria prpria, bastando

    apenas que este consiga o apoio expresso, atravs de assinaturas, de 1% do eleitorado

    33

  • nacional, que hoje representa em torno de 2 milhes de pessoas, em, pelo menos,

    cinco estados da Federao, o que certamente no tarefa fcil de ser alcanada por

    um cidado comum, dada a grandeza do Pas. A Cmara dos Deputados poder

    aceitar ou recusar o projeto, assim como acontece com o projeto de qualquer

    parlamentar eleito.

    Os estados brasileiros tambm incorporam o direito de iniciativa do cidado

    atravs de projetos de lei, garantido em nvel federal pela Constituio. Vale ressaltar

    que em alguns deles a iniciativa pode ser inclusive de propostas de emendas

    Constituio. Mas o poder de participao cidad realmente ampliado no mbito

    municipal, visto que vrias cidades do Brasil adotaram o oramento participativo, um

    instrumento que possibilita ao cidado o exerccio da democracia participativa.

    Trata-se de um mecanismo que d direito ao cidado de opinar sobre os destinos dos

    recursos financeiros municipais. Neste processo o poder absoluto, potencialmente,

    pode ser retirado da elite poltica e econmica e repassado diretamente para a

    sociedade civil.

    Para Genro (2001), o oramento participativo capaz de desenhar um novo

    espao pblico, pois um instrumento que pode promover uma distribuio mais

    adequada dos investimentos que, por sua vez, pode promover um ambiente muito

    mais favorvel ao desenvolvimento social. Ao estimular a democracia direta, o

    oramento participativo contribui para redemocratizar a prpria democracia,

    observa o autor.

    Em outubro de 2007 foi criada a Rede Brasileira de Oramento Participativo

    (RBOP), que congrega municpios de todo o Brasil, interessados na ampliao e no

    alargamento da dimenso participativa do cidado na gesto dos recursos pblicos. A

    34

  • RBOP mantm uma estrutura horizontal e um ambiente colaborativo, como o

    objetivo de intercambiar conhecimento, bem como superar desafios, alm de mapear

    as experincias brasileiras com este mecanismo de participao popular. Em 2009,

    participavam da RBOP 57 municpios de quatro regies brasileiras, e outros 17

    estavam em processo de adeso. um total de 74 municpios inseridos ou se

    inserindo nesse processo. Apesar de representarem apenas cerca de 1,4% das 5.565

    cidades existentes, agrega seis grandes metrpoles, capitais dos seus estados (RBPO,

    2009).

    Na regio Sudeste participavam municpios dos estados de Minas Gerais, So

    Paulo e Esprito Santo. So Paulo lidera com 13 municpios, mas a capital no

    estava includa entre as 13. J Minas Gerais , que ficou em segundo lugar, com sete

    cidades, tinha a sua capital entre elas. O Estado do Esprito Santo contava com seis

    municpios na Rede, dentre eles, a capital Vitria. Apenas um municpio do Rio de

    Janeiro adotou o oramento participativo.

    A Regio Nordeste contava com 14 cidades na RBOP. So elas: Anadia

    (Alagoas), Caapora, Cajazeiras, Campina Grande, D. Ins, Joo Pessoa, Patos, Picu

    e Pombal (Paraba), ,

    . O Estado da Paraba o mais engajado, com oito municpios

    na Rede.

    Crateus e Fortaleza (Cear) Lauro de Freitas (Bahia) e Paudalho

    e Recife (Pernambuco)

    11

    12

    13

    11 Guarulhos, Osasco, Santo Andr, So Bernardo, So Vicente, Suzano, Vrzea Paulista, Monte Alto,

    Diadema, Embu, Francisco Morato, So Carlos e Araraquara.

    12 Belo Horizonte, Betim, Congonhas, Contagem, Montes Claros, Nova Lima e Botelhos.

    13 Vitria, Aracruz, Cachoeira do Itapemirim, Serra, Viana e Cariacica.

    14 Marica.

    14

    35

  • No Norte do Brasil apenas a capital do estado de Amazonas, Manaus,

    participava da Rede. No Sul, apenas os estados do Rio Grande do Sul, Paran e Santa

    Catarina participam da Rede, com 15 municpios, dentre eles, a capital do Rio Grande

    do Sul, Porto Alegre (RBPO, 2009).

    O oramento participativo e outros instrumentos de participao democrtica

    do cidado fazem com que o exerccio da cidadania no se resuma ao voto, mas faa

    com que a democracia possa se constituir em um efetivo mecanismo de controle da

    sociedade civil sob a administrao pblica.

    Quando se d vez e voz ao cidado no processo de deciso dos assuntos

    pblicos, se estabelece o debate pblico, entre cidados livres e em condies iguais

    de participao. Esse debate d lugar ao que se chama opinio pblica, conceito que

    se tratar a seguir.

    15

    15 Bag, Bento Gonalves, Canoas, Caxias do Sul, Esteio, Garibaldi, Gravata, Nova Hartz, Porto Alegre,

    Santa Maria, Santa Rosa, So Leopoldo, Sapucaia do Sul, (Rio Grande do Sul), Campo Largo (Paran) e

    Joinville (Santa Catarina).

    36

  • OPINIO PBLICA

    O conceito de opinio pblica algo que vem sendo difundido desde a

    Antiguidade e, ao longo da histria, foi ganhando conotaes diferenciadas. Na

    literatura da Grcia e Roma antigas, bem como ao longo da Idade Mdia, os filsofos

    tinham inteira conscincia da importncia da opinio das massas. A frase 'voz populi,

    vox Dei' data da ltima parte da Idade Mdia (CHILDS, 1967, p. 44) e no deixa

    dvida de que o conceito j estava entranhado nas sociedades ocidentais, desde a Alta

    Idade Mdia.

    Quando os gregos conclamavam que a voz do povo a voz de Deus,

    conforme a citao acima, por exemplo, estavam claramente se referindo ao conceito

    de opinio pblica. A expresso, entretanto, s foi empregada pela primeira vez no

    sculo XVIII, por Rousseau (1712-1778), que a utilizou dentro do contexto poltico-

    filosfico e a definiu como o poder do povo contra a monarquia, com base nos

    princpios iluministas que comeam a habitar as reflexes dos pensadores deste

    perodo. Tambm poltico o conceito do iluminista Kant (1724-1804) que, apesar de

    no ter utilizado, em nenhum momento, a expresso opinio pblica literalmente em

    sua obra, elaborou o conceito de uso pblico da razo, conceito esse, que remete

    claramente o leitor ao conceito de opinio pblica, faltando-lhe apenas o termo

    idntico e/ou semelhante.

    Em contraponto a Kant, que atribua racionalidade opinio pblica e a

    enxergava como algo positivo, Hegel (1770-1831), na obra Princpios da filosofia

    do direito (1821), formulou uma teoria, precursora do fascismo, em que colocava

    que a opinio pblica s devia ser respeitada quando nela estivessem contidos os

    37

  • princpios essenciais da sociedade e que cabia ao dirigente descobrir quais os

    princpios essenciais deveriam nortear o seu povo. Para ele, a opinio pblica era algo

    imediatista, superficial, sem fundamentao cientfica e sem base na razo, portanto,

    algo que deveria ser desprezado. Vale observar que Hegel fala tudo isso, em um

    perodo ps-revolues burguesas, ocorridas no sculo XVIII na Frana e Inglaterra

    e, portanto, no auge do conceito de cidadania e cidado.

    Marx (1818-1883) tambm possua uma viso negativa da opinio pblica, pois

    acreditava que esse conceito era apenas mais uma ferramenta ideolgica burguesa de

    manipulao e alienao das massas. Bobbio (1987), com base nos ideais marxistas,

    enxerga a opinio pblica como falsa conscincia e como mais um imbrglio da

    ideologia dominante, visto que para ele:

    numa sociedade dividida em classes, ela mascara o interesse da classe

    burguesa: o pblico no o povo, a sociedade burguesa no a sociedade

    geral, o bourgeois no o citoyen, o pblico dos particulares no a razo. A

    opinio pblica , portanto, apenas a ideologia do Estado de direito burgus

    (BOBBIO et al, 1987, p.844).

    Tambm, fundamentado nesta linha de raciocnio marxista, o mais controverso,

    e por que no dizer, o mais convincente dos conceitos de opinio pblica vem do

    frankfurtiano Habermas (1987). Ele disse que a opinio pblica no existe enquanto

    fenmeno popular, pelo menos, no em uma sociedade miditica. Segundo o autor

    (1987), o que de fato existe uma opinio geral, induzida pelos meios de

    comunicao de massa.

    38

  • Para complementar a compreenso sobre a construo habermasiana a respeito

    do tema, a hiptese da agenda setting, de McCombs & Shaw (1972), pode ser uma

    boa aliada. Esta hiptese consiste na possibilidade de que a opinio seja induzida

    pelos meios de comunicao de massa e acontece, a partir dos conceitos de

    agendamento, que est relacionado com a seleo do que ser noticiado pelos meios

    de comunicao, e o de enquadramento que, em resumo, significa o ponto de vista

    particular, de como as notcias so transmitidas populao, sempre de acordo com

    os interesses dominantes das elites poltica e econmica do mundo globalizado.

    Esse processo de manipulao para a formao da opinio pblica, pelos meios

    de comunicao de massa, pode-se fazer vnculo com o que Habermas (1987)

    chamou de opinio pblica encenada, visto que nele se perde o que para o autor

    essencial para a existncia da opinio pblica verdadeira, que o componente do

    dilogo, da controvrsia e da sntese desse processo, constituindo no uma

    unanimidade, mas um consenso em torno do tema em questo.

    Habermas (1987) acreditava que para a opinio pblica ser genuna, portanto,

    era necessria a existncia de uma esfera pblica, ou seja, era preciso que houvesse

    um espao para acontecer o debate pblico. aqui que a tese de que a participao

    democrtica e a noo de territrio sempre andaram juntas comea a se corporificar.

    16 Em portugus significa agendamento.

    17 Segundo Habermas (apud Gomes, 1998), esfera pblica o mbito da vida social em que interesses,

    vontades e pretenses que comportam conseqncias concernentes a uma coletividade apresentam-se

    discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. Nesse sentido, chama-se esfera pblica o

    mbito da vida social em que se realiza em vrias arenas, por vrios instrumentos e em torno de variados

    objetos de interesse especfico a discusso permanente entre pessoas privadas reunidas num pblico.

    16

    39

  • Na sua construo lgica, Habermas (1987) afirmava que opinio pblica

    pressupunha discusso pblica e, portanto, necessitava de um espao pblico

    territrio onde, a partir de um ambiente discursivo e argumentativo, se pudesse

    chegar coletivamente a um consenso ou concordncia a respeito de um determinado

    tema, independentemente dos interesses pessoais conflitantes (GOMES, 2004).

    importante perceber que, conforme observa Gomes (1998, p. 3), na ideia de

    discusso est includo o fato de que os argumentos se dispem em posies e

    contraposies voltadas para a obteno de um possvel consenso. Para Rigitano

    (2002, p. 3), idia de esfera pblica est relacionada ao conceito de opinio

    pblica, como sendo o resultado do debate fundado na razo. Neste caso, a esfera

    pblica , ao mesmo tempo, o lcus e a condio onde se gera a opinio pblica e a

    opinio pblica, em ltima anlise, seria ... a opinio nascida da fora do melhor

    argumento (GOMES, 1998, p. 4), que exatamente pela sua fora consegue, se no a

    unanimidade, pelo menos o consenso, mas tambm nasce do processo social

    produzido a partir do territrio.

    Esse conceito de esfera pblica se baseia na democracia original, como ela

    surgiu na Atenas, pois a democracia quando foi difundida tinha o carter participativo

    e as suas caractersticas, apesar de serem questionveis em diversos pontos,

    mantinham uma arquitetura de participao direta dos cidados gregos, sem eleio e

    representao nos espaos de poder institudos. As discusses pblicas para a

    18

    18 Na democracia grega apenas os gregos machos e adultos tinham poder de voz e de voto, excluindo as

    mulheres, os escravos e estrangeiros do processo de deciso poltica. Estima-se que apenas 1/10 da populao

    tinha poder de voto e podia participar das discusses polticas.

    40

  • tentativa de estabelecer opinies consensuais a respeito dos temas discutidos opinio

    pblica se davam na gora, uma espcie de praa pblica onde aconteciam os

    debates pblicos a respeito das questes da ordem poltica do dia. Este era no apenas

    o espao de poder popular institudo a to propalada esfera pblica de Habermas,

    local onde se formava, segundo esse autor, a opinio pblica genuna , mas tambm

    um espao territorial, em que as relaes sociais e as suas mais complexas

    contradies eram confrontadas, ou seja, um local em que as noes de territrio e

    territorialidade podiam ser concretizadas na sua mais criteriosa lgica.

    Para um melhor entendimento da noo de territrio, aqui utilizada, e da sua

    relao com a dimenso participativa da democracia, que se traduz num dos objetivos

    deste trabalho, se faz necessrio uma abordagem conceitual sobre o tema, que se

    passa a fazer a seguir.

    TERRITRIO

    O conceito de territrio, ainda que tangencie vrias dimenses , conforme

    sugere Albagli (2004, p.25), sempre esteve relacionado aos espaos fsicos e terra,

    desde que Ratzel (1990), a partir da noo de espao vital, espao fundamental para a

    existncia dos povos e suas culturas , observou que as relaes sociais so

    19

    19 Albagli em Territrio e territorialidade (2004) observa que o territrio e a territorialidade podem ser

    vistos a partir de, pelo menos, quatro pontos de vista distintos e interrelacionados: fsico,

    poltico/organizacional, simblico/cultural e econmico. Segundo a autora, a dinmica territorial resulta das

    interaes entre essas vrias dimenses.

    41

  • determinadas pelo espao geogrfico e, portanto, conforme Haesbaert (2002), a

    existncia humana indissocivel do territrio. A prpria etimologia da palavra

    territrio no deixa dvida. Segundo Albagli (2004, p.26), o termo territrio vem do

    latim, territorium, que, por sua vez, deriva de terra e significa pedao de terra

    apropriado.

    Para Ratzel (1990) territrio uma determinada poro da superfcie terrestre

    apropriada por um grupo humano. Em consonncia com esse mesmo autor, Santos

    (2005) entende territrio como a extenso apropriada e usada, que deve ser pensada,

    dentre outras possibilidades, como sinnimo de espao geogrfico. Haesbaert (2002,

    p. 131) observou ainda que o territrio visto antes de tudo como um espao

    concreto em que se produzem ou se fixam os processos sociais. Nesta linha, Musso

    (2001, p.19) atribuiu ao territrio uma construo coletiva, um espao de

    representaes que agrega, ao mesmo tempo, processos histricos, vivenciais e

    projetos de concepo desse espao pelos seus habitantes.

    O territrio, portanto, vem sendo abordado pelas perspectivas espaciais,

    regionais, relacionadas ao lugar, cidade, ao campo ou nao, mas, conforme j

    pontuado, sempre vinculada ao espao fsico e terra, ainda que essas abordagens se

    deem em diferentes escalas, sejam elas local, regional, nacional, supranacional ou

    global. Raffestin (1993), entretanto, deu indcios de possibilidades de uma ampliao

    significativa do conceito de territrio quando afirmava que este no se reduzia a sua

    dimenso material ou concreta, mas se constitua em um campo de foras, onde se

    do as relaes sociais.

    Segundo Silva e Silva (2006), os territrios expressam um conjunto complexo e

    dinmico de relaes humanas em diversos aspectos e escalas, que envolvem

    42

  • questes complexas das relaes sociais, como o sentimento de pertencimento que

    leva a noo de territorialidade , alm de relaes conflituosas de interesse,

    perpassando pela construo de laos de coeso, de identidade que, por sua vez, esto

    vinculados com as relaes competitivas de interesse e poder, em que esto inseridos

    o capital, os grupos, o trabalho, dentre outros aspectos.

    Os mesmos autores (2003), por causa da diversidade de modos que as relaes

    espao-temporais acima se engendram, entendem que o territrio termina por

    apresentar caractersticas identitrias independente da escala territorial analisada.

    Quando Albagli (2004) distinguiu conceitualmente espao e territrio, ela

    observou, em primeira instncia, a noo de espao de Agler (1995), que atribuiu ao

    espao um nvel elevado de abstrao; e, em segunda instncia, a idia de Raffestin

    (1993) de que o territrio o espao apropriado por atores sociais que se define e

    delimita por, e a partir, das relaes de poder em mltiplas dimenses.

    Offner e Pumain (1996, p.155) entendem que o territrio um momento de

    negociao, endgeno e exgeno populao concernente, que produz e reproduz a

    identidade coletiva atravs de manifestaes diferentes do lugar e da sua

    conscincia. Observam tambm uma caracterstica complexificadora dos estudos

    do territrio, quando afirmam que a partir de um mesmo espao pode-se constituir

    territrios mltiplos, disjuntos ou superpostos, conflituais ou no, de uns em relao

    aos outros.

    Aqui se percebe que se abrem novas possibilidades para pensar as questes

    territoriais, visto que, nesta ltima perspectiva, o territrio j passa a ser cogitado

    como algo que transcende a noo da relao direta com a delimitao fsica,

    observada na concepo tradicional do territrio. Quando se imagina que em um s

    43

  • espao pode haver vrios territrios, porque se acredita que o territrio no est

    apenas na apropriao de uma determinada poro da superfcie terrestre, como

    afirmava Ratzel (1990), mas tambm nas complexas relaes que so estabelecidas

    pelas pessoas nesse espao.

    A apropriao do territrio pelos atores sociais, sobretudo do ponto de vista das

    suas manifestaes polticas, sempre uma constante nas reflexes de todos os

    autores da literatura especfica sobre territrio. Neste trabalho busca-se apenas, ao

    vincular a participao do cidado no processo democrtico perspectiva territorial,

    relacionar a dimenso participativa da democracia ao territrio e territorialidade,

    conforme segue.

    44

  • CONSTRUO DA

    PARTICIPAO DEMOCRTICA

    Edies

    VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    PLANEJAMENTO TERRITORIAL E

    DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL

    UNIVERSIDADE

    CATLICA DO

    SALVADOR

  • DIMENSO NA IDADE MODERNA

    Pretende-se realizar um breve histrico do processo democrtico do perodo

    moderno, inaugurado no sculo XV, aos dias atuais, observando sempre como foco

    principal a questo da participao das pessoas comuns nas discusses e decises

    polticas, para caracterizar a dimenso participativa da democracia nesses perodos.

    Antes, entretanto, importante entender porque a democracia foi ignorada pela

    maioria das sociedades antigas, que preferiram manter os regimes ditatoriais das

    monarquias do perodo e s voltou a ser novamente cogitada a partir das revolues

    burguesas , francesa e inglesa, no sculo XVIII, conforme segue.

    O modelo de sistema democrtico criado na Grcia Antiga no se difundiu para

    outros povos e naes num primeiro momento. O modelo de Estado que continuou

    prevalecendo durante sculos foi o da monarquia absolutista, em que todos os direitos

    e poder de deciso estavam concentrados nas mos de uma nica famlia, a famlia

    real, composta pelo rei, o mandatrio de Deus na terra, da sua esposa a rainha, e dos

    seus filhos, os prncipes e princesas.

    A democracia ateniense, muito provavelmente, deveria ser vista pelas grandes

    monarquias do perodo como excentricidade dos gregos, que era um povo muito

    voltado para as questes artsticas e culturais, que formava uma sociedade

    completamente fora dos padres da antiguidade, que complexificava as relaes de

    20

    20 O termo burgs na poca em que as revolues francesa e inglesa aconteceram, no possua a conotao

    pejorativa que possui hoje, visto que originrio de burgos, como eram chamados os moradores das cidades

    deste perodo. Com o passar dos tempos, com o enriquecimento de parte dos burgueses, passando a posio de

    donos de indstrias, os marxistas comeam a tratar do termo de forma pejorativa, mudando o sentido original.

    46

  • poder, atribuindo aos membros da sociedade papis de interlocutores nas instncias

    decisrias e com isso subvertendo a noo de subdiviso de poder, que at ento era

    muito simples: de um lado os nobres, com o seu legado divino de privilgios, luxo e

    riquezas e, de outro, os sditos, miserveis que nasceram com a misso primordial de

    servir aos nobres.

    Somente na modernidade os conceitos de democracia comearam a ser

    resgatados, quando serviram aos interesses dos burgos, como instrumento de

    enfrentamento do poder absoluto dos monarcas. O discurso dos burgueses, para

    realizarem as suas revolues se baseava no valor individual das pessoas e na

    importncia da liberdade e autonomia delas, o que vai culminar no conceito de

    cidado/cidadania, que se aproximou muito da noo de participao na democracia

    ateniense.

    As revolues burguesas e o resgate da participao democrtica

    A passagem do absolutismo para um ambiente de direitos dos cidados se d em

    concomitncia com o projeto da modernidade, que foi todo construdo sobre a idia

    de que o homem deveria ser autnomo, bem como a partir da emancipao dos seres

    humanos, que estariam evoluindo linearmente para um estgio em que chegaria ao

    ideal de homem perfeito. At hoje moderno nos recorda o sentido de emancipao

    da humanidade e dos indivduos utilizando a ao reflexiva dirigida pela razo e

    associadas a ideais de liberdade, igualdade, justia e progresso (DUPAS, 2003,

    p.25).

    47

  • Para assegurar este processo, a modernidade fez cair o estado absolutista,

    destituindo o poder hegemnico do rei e a condio de escravido dos seus sditos,

    instaurando o estado de direito segundo Marx, o estado burgus que, em tese,

    garantiria liberdade aos cidados atravs de instncias que se autofiscalizariam e se

    autoregulariam: os poderes executivo, legislativo e o judicirio, conforme proposta

    de Montesquieu, j vista no captulo anterior. Esse estado deveria ser pautado em

    uma lei magna, a constituio, cujos direitos de cada cidado seriam fixados e, em

    nenhuma hiptese, desrespeitados, sob pena de punio aos que assim o fizessem.

    O estado de direito instituiu, portanto, a noo moderna de liberdade, traduzida

    por Montesquieu, quando observava que a liberdade o direito de fazer tudo aquilo

    que as leis permitem, e Rousseau, que afirmava ser liberdade a obedincia s leis

    que ns mesmos prescrevemos (apud DUPAS, 2003, p. 26). Em contraponto a

    Montesquieu e Rousseau, Marx achava que a liberdade advinda dos direitos formais

    do estado moderno no passava de reflexos ideolgicos da burguesia ligados

    propriedade e relao de troca capitalistas.

    O fato que desde ento coube ao estado o papel de guardio do bem-estar

    social e de defensor do interesse pblico. O estado, portanto, deve sempre privilegiar

    as questes coletivas, em detrimento das questes privadas; as questes sociais, em

    detrimento das questes de mercado; as relaes de troca simblica, em detrimento

    das relaes de troca comercial, enfim, o estado nasceu para ser forte na interveno

    das questes sociais e eximir-se das questes que envolvam o mercado que, por sua

    vez, deve ser autnomo e auto-suficiente, no depender do estado para se manter,

    mas apenas ser regulado, quando necessrio, para a garantia do bem estar social e do

    interesse da maioria dos cidados.

    48

  • Esse o legado do liberalismo, uma forma de ver o mundo, surgida e muito

    difundida nos sculos XVIII e XIX e que transformou toda a dinmica social no

    perodo, a partir das propaladas revolues burguesas, sobretudo, da francesa, que

    teve maior repercusso. O liberalismo surgiu na sociedade europia, com o

    desenvolvimento do capitalismo e a consolidao da burguesia. Neste perodo foi,

    certamente, um modo progressista de pensar o mundo, pois pretendia a queda do

    poder absoluto do prncipe, do rei ou da rainha, e investia na criao de outras

    instncias de poder, como forma de regulao do poder executivo, neste momento

    representado pelo monarca. A inteno dos liberais, portanto, era a de instituir o

    estado de direto, o cidado e o resgate da democracia, na sua forma representativa.

    A dinmica territorial nesse perodo intensa, visto que em todo esse processo

    de transformaes polticas, econmicas e sociais, as relaes de poder e a

    organizao do territrio tambm foram completamente transformados. Nos Reinos,

    a organizao e a ocupao dos solos eram significativamente diferenciados da nova

    organizao e ocupao das cidades burguesas. A ocupao dos espaos pelo cidado

    passa a ser um direito e o sistema o privilegiava.

    A idia era defender o indivduo, pois se acreditava que ele era a clula principal

    de constituio da sociedade, e, portanto, deveria ter liberdade total, em todas as suas

    dimenses, fosse poltica, econmica e/ou social. A lgica burguesa contrariava a

    idia de que o cidado no poderia ser dono de nada e somente o rei podia tudo. A

    partir das revolues burguesas, o cidado passou a ser livre para, em tese, produzir o

    que quisesse.

    A partir de ento, no era mais o estado que regulava tudo. O mercado teria a

    capacidade de se autoregular e Adam Smith surge com o discurso da mo invisvel,

    49

  • para fortalecer a noo de que o mercado no precisa que nada e nem ningum

    interfira. Ele o seu prprio regulador. Para que esse sistema possa funcionar

    necessrio que haja a livre concorrncia, sem padres, nem preos definidos. Quem

    vai dar os parmetros a concorrncia, o mercado, e no o estado (FILGUEIRAS,

    1997).

    No plano internacional, as naes teriam liberdade de negociar livremente com

    o pas que quisessem, dentro das suas prprias normas. O liberalismo surgido no

    Ocidente, entretanto, no significou o fim da interveno econmica do estado, nem

    a sua neutralidade, mas to somente o fim do estado absolutista.

    Os princpios do liberalismo so de que o indivduo a referncia maior e a

    sociedade vista como a soma desses indivduos. Uma das caractersticas

    preponderantes do capitalismo e dos ideais liberais a crena de que a desigualdade

    um valor positivo, pois, na construo de uma sociedade democrtica, no se pode

    prescindir da liberdade e da vitalidade da concorrncia. O discurso liberal o de que

    se todos fossem iguais, no haveria motivao para crescer e o indivduo se

    acomodaria. Essa noo, se pensada atravs de uma perspectiva mais crtica, pode

    indicar uma proposio subliminar de que o estado no precisa desenvolver polticas

    que procurem diminuir as desigualdades sociais, pois isso desestimularia as pessoas a

    crescerem por si mesmas.

    Cabe observar que nos ideais liberais, os princpios democrticos so

    defendidos, mas descaracterizados. Qualquer tipo de ao coletiva vista como

    corporativa e contrria ao interesse geral, o que desvirtua as premissas democrticas

    de poder atribudo ao povo. A lgica liberal buscava extinguir qualquer fora que una

    indivduos, organize-os em classe e os incentive a reivindicar seus direitos, visto que

    50

  • a idia que se difunde a da grande complexidade que o mundo moderno est imerso,

    e, portanto, no cabem mais pensamentos macros, que pretendam dar conta do todo,

    mas vrios pensamentos, cada um ao seu tempo e espao, para dar conta das partes

    que lhes so atribudas.

    Neste nterim, a democracia volta a surgir como um regime interessante, pois

    pressupe a participao da sociedade, exatamente o que propunham as revolues

    burguesas. O modelo adotado pelas sociedades ocidentais contemporneas,

    entretanto, no foi o mesmo de Atenas. Adequou-se o sistema aos interesses do

    projeto da modernidade e se criou a democracia representativa, em que, como se viu

    anteriormente, a dimenso participativa diminuda, mas, ao menos, se garante

    alguma participao dos cidados, alis, o termo cidado ganha fora exatamente

    neste perodo da histria, em que as revolues burguesas trazem tona a noo de

    participao cidad e exerccio da cidadania. Por isso mesmo, conforme afirmou

    Souza (2001, p. 13), desde 1789 at a primeira dcada do sculo XX, o capitalismo

    burgus se implantou praticamente sem que nenhuma fora social mais importante a

    ele se opusesse.

    A modernidade, portanto, ao mesmo tempo em que instaura o estado burgus e

    destitui algumas grandes monarquias absolutistas do ocidente, garante a difuso do

    conceito da democracia e retoma a dimenso participativa nos processos decisrios

    do estado, mesmo que em um nvel inicial muito baixo. Ao instituir a democracia

    como modelo paradigmtico de sistema de governo, abriu-se um espao para futuras

    conquistas da sociedade ocidental, no que tange a sua participao mais ampla nas

    instncias de interlocuo e, consequentemente, de deciso do estado.

    51

  • certo que a espacialidade e os aspectos territoriais dos ambientes

    representativos de poder no estado burgus continuaram por se estabelecer nessa

    nova configurao, uma vez que, conforme j pontuado, as aes do homem so

    indissociveis do territrio. No h como separar a ao humana da relao direta ou

    indireta do tempo e do espao em que ela executada. Mesmo que a tecnologia possa

    reproduzir esta ao indiscriminadamente, ela foi pensada e elaborada pelo homem

    influenciado por todos os aspectos que envolvem o seu ambiente de convivncia

    social que, por sua vez, est baseado em um espao territorial.

    Entender a relao entre territrio e instncia de poder no estado burgus,

    portanto, torna-se essencial para a compreenso da temtica central desse trabalho,

    visto que a partir dessa relao poder-se- provar que a dimenso participativa da

    democracia nunca se desassociou da questo territorial, ou seja, a participao

    democrtica, desde a sua origem, passando pelas suas diversas variaes histricas,

    at o momento contemporneo, sempre necessitou do territrio para acontecer,

    conforme segue.

    a) Relao entre territrios e representao de poder no estado burgus

    As instncias de poder no estado abrangem trs nveis, que aqui se chamar de

    mbitos tcnicos: o poder executivo, legislativo e o judicirio. E tambm trs escalas

    administrativas, que esto relacionadas com as escalas territoriais: a municipal, a

    estadual e a federal. Cada escala territorial possui no seu sistema os trs mbitos

    tcnicos citados. Os trs mbitos tcnicos, por sua vez, se relacionam

    52

  • constantemente, entre si e com os trs nveis da escala territorial, individualmente ou

    em conjunto, formando uma teia altamente complexa e com diferentes nveis de

    relaes, conforme pode ser visto na Fig. 1.

    Fig. 1. Representao grfica das relaes estabelecidas pelas

    dimenses tcnicas institudas pelos poderes executivo, legislativo e judicirio,

    com as escalas territoriais municipal, estadual e federal do Estado.

    Fonte: Mrcia Carvalhal, 2009.

    53

  • Em uma primeira reflexo possvel constatar que a atuao do estado, em

    qualquer um dos trs mbitos tcnicos, seja no executivo, legislativo ou judicirio,

    necessariamente, se dar em um dos nveis da escala territorial, seja municipal,

    estadual ou federal, no podendo esta sequer existir se no estiver diretamente

    relacionada com o territrio, independentemente do seu nvel na escala territorial.

    Isso corresponde afirmao de que toda a representao de poder estabelecida

    nos poderes executivo, legislativo e judicirio est, de certo modo, inserida no

    contexto territorial e por isso mesmo sujeito as suas dinmicas e influncias direta ou

    indireta. Corresponde tambm ao entendimento de que o exerccio autnomo dos trs

    poderes deve se dar em cada uma das escalas territoriais individualmente, visto que

    ao mudar a escala territorial muda-se tambm as relaes dos envolvidos com o

    territrio.

    A participao democrtica se efetiva na escala territorial mais prxima da ao

    cidad, que seria a escala municipal que, por sua vez, a que possui menos autonomia

    na escala de poder. Neste sentido, as representaes de poder e a participao cidad

    nessa forma de governo, so inversamente proporcionais, pois na medida em que se

    sobe na escala territorial, se perde em participao e, consequentemente, em

    autonomia do cidado. Por outro lado, na escala territorial que o cidado possui mais

    autonomia exatamente a escala de menor representao de poder.

    O mesmo processo de desproporcionalidade acontece quando se pensa a

    relao da participao democrtica nos trs poderes. Numa escala de representao

    de poder ascendente os mbitos tcnicos ficariam: legislativo, executivo e judicirio,

    respectivamente. Exatamente no mbito que se tem o maior acesso a participao

    democrtica, o legislativo, que se encontra a menor representao de poder. E no

    54

  • que no se tem praticamente nenhum nvel de participao, que o judicirio,

    tambm o que possui maior representao de poder, pois se caracteriza como

    instncia mxima de deciso neste modelo de estado tripartite, que geralmente

    modelo das repblicas democrticas.

    Neste sentido, o modelo de governo democrtico baseado no estado burgus,

    em nada favorece a participao democrtica efetiva que pode influenciar nas

    decises dos representantes, conforme se pode constatar na Fig. 2. Nota-se que o

    mbito tcnico e a escala territorial que, em tese, proporcionariam a maior

    participao democrtica, que seria o poder legislativo do municpio, o que tem

    menos representao de poder. Da mesma forma que o mbito tcnico e escala

    territorial que proporcionam menor participao democrtica, que o judicirio

    federal, o que mais tem representao de poder.

    Quadro 1. Relao entre representao de poder e participao democrtica no estado burgus.

    Fonte: Mrcia Carvalhal, 2009.

    55

  • Se por um lado, o modelo no favorece a participao democrtica, por outro,

    centraliza as decises nas mos dos representantes em ambientes restritos, o que se

    entendem como mais adequados realidade dos grandes centros urbanos que

    comeam a surgir no perodo moderno. No ambiente das urbis, o espao pblico de

    debates se torna invivel de se estabelecer, sobretudo, pelos limites fsico-espaciais.

    Por isso, estes passam a se limitar aos espaos restritos das cmaras, assemblias e

    congressos nacionais e somente para aqueles que possuam a investidura do poder de

    representar os demais.

    b) Democracia representativa: soluo para os limites fsicos impostos pelos

    espaos de participao

    O contexto de criao da democracia ateniense, que deu sentido palavra, o da

    Antiguidade, em que o nmero de pessoas nas urbis era bastante limitado e o seu nvel

    de complexidade, se comparado ao das cidades modernas, insignificante. J no

    contexto das cidades contemporneas, um espao pblico que pressuponha dar conta

    de uma participao direta da populao nas decises do estado, parece muito difcil

    de acontecer, por uma srie de razes complexas, mas tambm por uma fundamental

    e muito simples: o limite fsico-espacial.

    A soluo encontrada dos centros urbanos para adaptar o modelo de democracia

    participativa s novas necessidades modernas foi criar uma variao do sistema,

    desenvolvendo o conceito de democracia representativa que, apesar de dar conta das

    demandas espaciais e de representao de poder que surgem no perodo, diminuem,

    56

  • em muito, a dimenso participativa da democracia, uma vez que reduz

    significativamente o poder de influncia do cidado nas instncias de deciso.

    O novo modelo de democracia representativa fundada na Europa no perodo

    moderno permitiu a participao de um nmero muito maior de pessoas j no

    primeiro momento, e, ao chegar ao perodo contemporneo, extendeu a praticamente

    todos os cidados.

    Esse ganho quantitativo, entretanto, no significou ampliao efetiva do

    processo de participao democrtica, pois, nessa forma de democracia, o cidado

    tem a sua participao limitada indicao de algum que o representar nos

    parlamentos, cmaras ou assemblias. Em resumo, a participao popular se

    restringe a eleger uma pessoa ou um grupo como seus representantes, que sero

    capazes de decidir por ele, de forma legtima, nas instncias de poder estabelecidas.

    Mas a componente que traria as maiores implicaes participao

    democrtica ainda no se tratou at aqui. No final do sculo XIX, com o surgimento

    das grandes cidades, o advento da imprensa e posteriormente a tecnologia militar de

    radiofrequncia, possibilitou o surgimento e o crescimento do que hoje se conhece

    como meios de comunicao de massa que, segundo vrios estudiosos do perodo,

    sobretudo, os membros da Escola de Chicago, surgem para o controle e organizao

    social das cidades, local onde pessoas de culturas e idiossincrasias diversas tinham

    que conviver e dividir pacificamente o mesmo espao.

    c) Surgimento do quarto poder e as suas implicaes na dimenso participativa da

    democracia

    56

  • Essa funo social atribuda aos meios de comunicao de massa pelos

    estudiosos da Escola de Chicago , no foi o que se constatou como sua funo

    principal ao longo da histria. Desde o final do sculo XIX e por quase todo o sculo

    XX, os meios de comunicao de massa exerceram um forte poder sobre o cidado e

    neste perodo teve como verdadeira funo dar visibilidade e/ou silenciar discursos e

    pessoas. Sobre isso Cohn (1987, p. 242) observa que:

    uma vez que os meios de comunicao so financiados pelos grandes interesses

    econmicos, gerados no sistema econmico-social vigente, eles contribuem para a

    manuteno desse sistema. [...] Na medida em que os meios de comunicao tm

    exercido uma influncia sobre os seus pblicos, este fato deve-se no apenas ao que

    expresso, mas sobretudo ao que no expresso nem dito de forma explcita.

    Essa funo de dar visibilidade e/ou silenciar setores da sociedade sempre

    fez parte do modelo industrial massivo dos meios de comunicao, duramente

    criticado pelos autores da Escola de Frankfurt , desde a sua popularizao no final

    do sculo XIX. O principal deles, Adorno (1987), desenvolveu o conceito de

    indstria cultural, em que insinuava que os meios de comunicao de massa, ao

    21

    21 A Escola de Chicago surgiu nos Estados Unidos, na dcada de 1910, por membros do corpo docente do

    Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Entre 1915 e 1940, a Escola de Chicago produziu

    um vasto e variado conjunto de pesquisas sobre os fenmenos sociais que ocorriam no meio urbano da grande

    metrpole norte-americana. Com o seu surgimento inaugura-se um novo campo de pesquisa que levaria

    constituio da chamada Sociologia Urbana como ramo de estudos especializados.

    22 A Escola de Frankfurt nome dado a um grupo de e de tendncias

    que se encontram no final da . A Escola de Frankfurt se associa diretamente chamada

    . Deve-se Escola de Frankfurt a criao de conceitos como e

    .

    filsofos cientistas sociais marxistas

    dcada de 1920 Teoria

    Crtica da Sociedade indstria cultural cultura

    de massa

    22

    58

  • estandardizarem os seus produtos, submetem a audincia completa idiotizao,

    alienando-a e controlando-a a partir de mecanismos especficos de controle e

    dominao, como o caso da criao dos gneros televisivos.

    Neste sentido, para os autores da escola crtica como ficou conhecida a Escola

    de Frankfurt , os meios de comunicao de massa, sobretudo o rdio e a televiso, por

    serem na contemporaneidade os maiores transmissores de informao, transformam-

    se no centro das atenes e das investidas da classe dominante: as elites polticas e

    econmicas. Essas elites, atravs da ideologia, no sentido marxista do termo, buscam

    a alienao das massas, ou seja, o desconhecimento do seu verdadeiro poder

    enquanto maioria quantitativa e a sua capacidade de mobilizao para

    transformaes sociais, artsticas e culturais.

    Por essa tica, constata-se que os meios de comunicao de massa esto,

    estrategicamente, a servio do capitalismo. E, com isso, pressupe-se que estes

    meios no estaro disponveis, por exemplo, para as manifestaes sociais e

    reivindicativas realizadas pelos movimentos sociais ou grupos de mobilizao por

    causas sociais.

    Ao contrrio disso, conforme Wolf (1987, p.68), a mdia contribui para a

    alienao e o conformismo social. E para ilustrar o autor e cita uma questo trazida

    por Lazarsfeld e Merton:Desde o momento em que so sustentados pelas grandes empresas inseridas no atual

    sistema econmico e social, os meios de comunicao de massa contribuem para a

    manuteno desse sistema [...]; De fato, no s continuam a apoiar o status quo como

    tambm, e na mesma medida,