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A territorialidade e a dimenso participativa na
CIBERDEMOCRACIA
Edies
VNI MRCIA CARVALHAL
O CASO DO FRUM SOCIAL MUNDIAL
UCSALUNIVERSIDADE
CATLICA DO
SALVADOR
OBRA DE LIVRE ACESSO E DISTRIBUIO PROMOVIDA POR:
ISBN: 978-85-60936-08-3
A territorialidade e a dimenso participativa na ciberdemocracia - o caso do frum
social mundial / Marcia Carvalhal. -- Salvador, BA: Edies VNI / UCSAL, 2011.
Bibliografia.
ISBN 978-85-60936-08-3
1.Territrio, 2.Dimenso Participativa, 3. Ciberdemocracia I. Carvalhal, Marcia II.
UCSAL.
60936 CDD-600
Edies
VNI
PPROGRAMA DE
PS-GRADUAO EM
PLANEJAMENTO
TERRITORIAL E
DESENVOLVIMENTO
SOCIAL
UCSALUNIVERSIDADE
CATLICA DO
SALVADOR
- Agradeo a meu grande amor Marcello Chamusca, por ter me escolhido como
esposa e por todo carinho, dedicao, amizade e amor que tem por mim. Marcello
alm de ser meu marido tambm o meu grande amigo e parceiro;
- A minha me Maria Yvonne Carvalhal (in memorian), por tudo que me ensinou e
pela me maravilhosa e carinhosa que foi para mim. Tenho orgulho de ter sido
escolhida por Deus para ser filha dela;
- Ao professor Peter Jos Schweizer, por ter sido um grande amigo e me apoiado
dentro do Programa de Ps-graduao em Planejamento Territorial e
Desenvolvimento Social, da Universidade Catlica de Salvador. Peter acreditou em
mim e me deu oportunidade de ingressar no curso;
- professora Maria Helena Flexor, pelo carinho, amizade, dedicao durante todo o
perodo que estive na UCSal. A professora uma pessoa justa e tica alm de ser uma
excelente profissional;
- Ao professor Sylvio Bandeira, por ter me indicado livros valiosos para o meu
trabalho e pelo apoio dado no curso;
AGRADECIMENTOS
- Agradeo minha famlia, em especial a meus irmos Euvaldo Carvalhal e Ivomar
Carvalhal, minha cunhada Eliete Britto, minhas sobrinhas Milena Britto, Ana Paula
Britto e Paloma Britto. No posso esquecer das minhas tias queridas Diva Carvalhal e
Iraci Carvalhal;
- A minha sogra Solange Chamusca e meu sogro Everaldo Novaes agradeo pelo
incentivo aos estudos;
- Agradeo todos que responderam as minhas entrevistas para concretizao deste
trabalho;
- Agradeo Deus pela fora para continuar em frente.
SUMRIO
PREFCIO ........................................................................................................... 7
INTRODUO .................................................................................................... 9
MARCOS HISTRICO-CONCEITUAIS ....................................................... 22
DEMOCRACIA ............................................................................................... 23
OPINIO PBLICA ....................................................................................... 37
TERRITRIO .................................................................................................. 42
CONSTRUO DA PARTICIPAO DEMOCRTICA ............................ 45
DIMENSO NA IDADE MODERNA ........................................................... 46
Revolues burguesas e o resgate da participao democrtica ....... 47
DIMENSO PARTICIPATIVA DA DEMOCRACIA NA PS-
MODERNIDADE ............................................................................................ 63
NOVAS PERSPECTIVAS TERRITORIAIS E A DEMOCRACIA NA
CONTEMPORANEIDADE .............................................................................. 70
DA COMUNICAO DE MASSA COMUNICAO PS-MASSIVA .. 72
DO ESPAO AO CIBERESPAO: DEMOCRACIA NOS ESPAOS
VIRTUAIS ....................................................................................................... 78
DO TERRITRIO AO CIBERTERRITRIO: A GORA D LUGAR
INTERNET ....................................................................................................... 82
CIBERTERRITRIO, A INTERATIVIDADE E AS INTERFACES DIGITAIS
.......................................................................................................................... 87
DA DEMOCRACIA CIBERDEMOCRACIA ............................................. 92
FRUM SOCIAL MUNDIAL E A APROPRIAO DO CIBERESPAO
............................................................................................................................... 96
INTERNET COMO ESPAO DE LUTAS E CONQUISTAS POLTICAS . 104
CIBERESPAO COMO ESFERA PBLICA .............................................. 120
TECNOLOGIAS INFORMACIONAIS DIGITAIS POTENCIALIZANDO A
EXPRESSO DAS MINORIAS ................................................................... 131
Grupos minoritrios e o espao na Internet como campo de luta ....... 148
BELM EXPANDIDA: A BUSCA DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL
POR MEIO DO EXERCCIO DA CIBERDEMOCRACIA ........................ 157
REDES SOCIAIS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS .................................... 164
CIBERTERRITRIO DE BELM EXPANDIDA ........................................ 167
CONCLUSES ................................................................................................ 182
REFERNCIAS ............................................................................................... 189
A AUTORA ....................................................................................................... 216
7PREFCIO
Profa. Dra. Maria Helena Ochi Flexor
Professora da Universidade Catlica do Salvador
O prazer intelectual pode se concretizar de diversas formas. Apresentar o livro
de Mrcia Carvalhal est me propiciando essa oportunidade. Em primeiro lugar por
testemunhar a execuo de sua dissertao, que muitos reputaram inadequada a um
Mestrado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Em segundo lugar
por me permitir um autoconhecimento, principalmente na minha idade fsica, por
verificar no ser to analgica, como estaria fadada a ser avaliada socialmente. Em
terceiro lugar, e mais importante, pelos resultados apostos neste livro, sob o ttulo A
territorialidade e a dimenso participativa na ciberdemocracia.
Um trabalho deste gnero traz mais esclarecimentos sobre a evoluo da
humanidade, especialmente, quanto s descobertas tcnicas, meios de comunicao e
relaes humanas, que quebraram o j velho paradigma contemporneo. A partir da
miniaturizao dos componentes eletrnicos, da vulgarizao dos circuitos
integrados, do auxlio dos satlites, da criao da www, - world wide web -, a grande
teia que abrange o mundo, atravs da rede da internet, - sem ser redundante -, e das
redes sociais, as comunicaes, o mundo, ou pelo menos grande parte deste planeta,
se modificou radicalmente. No sei exatamente como batizar a nova era, mas o certo
que j se ultrapassou o paradigma do ps-modernismo.
A autora mostra que grande parte das sociedades mundiais faz parte da era
digital, cujo territrio no est mais s sob seus ps, mas acima de todos, no
ciberespao. Neste novo territrio ou ambiente virtual ou, ainda, ciberterritrio,
possvel, atravs de equipamentos cada vez menores, se entrar em contato com
diferentes pessoas, em qualquer parte da terra, devidamente equipada. Pode-se
estabelecer trocas de idias e informaes com indivduos, com os mais variados
saberes e formaes, com interesses diversos, idades indefinidas, sem mesmo
conhecer pessoalmente esses personagens envolvidos, de maneira democrtica.
Mrcia Carvalhal tomou como base para estudo o Forum Social Mundial que,
oportunamente aconteceu em Belem do Par (2009) e em Salvador (2010), quando se
tornaram possveis relaes pessoais e reais. Registrou, nesses eventos, depoimentos
de vrias autoridades, permitindo verificar como milhares de pessoas, presencial ou
virtualmente, atraves das tecnologias informacionais, podem, contnua e
demomocraticamente, discutir e buscar solues para os problemas sociais que
afligem os humanos.
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INTRODUO
Edies
VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
PLANEJAMENTO TERRITORIAL E
DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL
UNIVERSIDADE
CATLICA DO
SALVADOR
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Historicamente a participao democrtica sempre esteve diretamente
vinculada perspectiva territorial, ainda que as literaturas especficas sobre
democracia e territrio no tenham se apropriado desta constatao para o
desenvolvimento de uma teoria sobre essa relao. Os espaos territoriais, em
principio, desde os primrdios da democracia, do base a toda e qualquer forma de
participao do cidado no seu processo, nas discusses polticas e na formao da
opinio pblica, de um modo geral.
Tomando-se o exemplo da Grcia, na sua origem no sculo V A.C.,
especialmente em Atenas, a participao democrtica se dava a partir da gora , lcus
fsico, territorial, onde os gregos se encontravam para se relacionar e discutir temas
voltados ao bem estar da populao, bem como temas macropolticos e sociais de
interesse daquela sociedade . Era o espao territorial da gora que possibilitava as
discusses acontecerem e, portanto, a dimenso participativa da democracia de se
concretizar. O territrio demarcado da gora, portanto, era o espao fsico que dava
base existncia de todo o processo democrtico. Neste sentido, a compreenso da
dimenso territorial pressuposto para que se possa comear a pensar o processo
democrtico nas suas outras diversas dimenses.
1 gora era a praa principal na constituio da polis, a cidade grega da Antiguidade clssica. Normalmente
era um espao livre, configurada pela presena de mercados e feiras nos seus limites, envolvido por edifcios
de carter pblico (GORA, 2007).
2 Na democracia grega apenas os gregos machos e adultos tinham poder de voz e de voto, excluindo as
mulheres, os escravos e estrangeiros do processo de deciso poltica. Apesar disso, os empoderados chegavam
a cerca de 10% da populao. Em comparao com o Brasil atual, por exemplo, como se dos 190 milhes de
brasileiros, 20 milhes pudessem ter vez e voz no processo de deciso do governo, ou seja, algo
absolutamente significativo e inquestionvel, em termos de participao democrtica.
1
2
Entender como se dava a relao direta da participao democrtica com o
territrio, na origem da democracia na Grcia, passa pela constatao de que sem a
gora, ou qualquer outro espao fsico de referncia, no haveria a participao dos
gregos no processo democrtico, pois era ela que garantia a presena do homem para
o estabelecimento das discusses em torno dos temas centrais da sociedade grega
ateniense. A utilizao da gora, como espao de discusso, ou como chamaria
Habermas (1987), como esfera pblica , representava, em ltima anlise, o uso do
territrio para o exerccio poltico democrtico, ou seja, da apropriao por parte das
pessoas de um determinado pedao de terra para uso especfico que, neste caso, servia
de delimitao geogrfica para um espao institudo de poder e participao dos
homens gregos nas discusses democrticas.
A democracia ateniense, na medida em que exigia no seu processo de afirmao
um determinado local, pessoas, suas idias, discusses sobre essas idias, e a busca de
consenso em torno delas, estava completamente envolta da noo de territorialidade,
uma vez que, independentemente do aspecto que se busque analisar, seja fsico,
poltico, simblico, cultural ou econmico, em todos eles estavam as relaes de
pertencimento das pessoas com os seus espaos de convivncia, suas ambincias e
suas apropriaes do territrio, para o estabelecimento de relaes sociais.
importante observar que a prpria concepo de governo do povo, que vem
da origem da palavra democracia, no podia se estabelecer se no houvesse uma
relao direta das pessoas (povo) com um determinado territrio a ser governado,
3 Conceito de Habermas (1987), relacionado ao espao de participao genuna do cidado no processo
democrtico, para a formao da opinio pblica.
3
11
pois a base de toda a natureza de um governo est estruturada nas noes de
delimitao territorial e fronteiras espaciais, que determinam exatamente a sua rea
de atuao geogrfica e o seu legado de atuao poltica que, por sua vez, tambm
podem ser determinados pelo que Musso (2001, p.19) entende como territrios
histricos, territrios vividos e territrios projetados por um povo, uma sociedade.
O significado de governo e povo para os atenienses, entretanto, so
completamente distintos da concepo das democracias modernas e
contemporneas. Em Atenas no se entendia por governo um grupo poltico formado
por representantes eleitos para governar, e o povo como todos os cidados de uma
nao, mas governo como sendo a assemblia ekklesia - que tomava decises
diretamente, sem intermediao de representantes, e o povo como os homens
atenienses maiores de idade (WIKIPEDIA, 2010) .
A democracia, desde a Grcia Antiga, vem se transformando, mudando suas
caractersticas, se modernizando, no s pelas variveis relacionadas ao tempo, como
4 Apesar de boa parte da comunidade cientfica ainda possuir restries a respeito da Wikipedia, pelo fato
desta ser uma enciclopdia colaborativa, a mesma j se configura como a maior do mundo na atualidade. Vale
observar que a Wikipedia possui um processo de validao das informaes que so inseridas ou atualizadas
para garantir a qualidade da informao que disponibiliza. Quando um verbete no est devidamente
validado, ou no se encontra dentro dos critrios enciclopdicos, aceito e disponibilizado, para garantir o
ambiente de livre expresso e colaborao, mas esse assinalado com uma observao na parte superior da
pgina, indicando que aquelas informaes no se encontram dentro dos critrios enciclopdicos. Alm disso,
quando ocorre de serem inseridas informaes polmicas, em que dois ou mais editores autorizados
discordam entre si, o verbete tambm assinalado com a indicao de que no se encontram dentro do
princpio da imparcialidade enciclopdica. Nenhuma informao utilizada nesta dissertao se encontra com
qualquer indicao de falta de valor enciclopdico.
4
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tambm pelas relacionadas com o espao, ou seja, ganha novos conceitos e
aplicaes em momentos histricos e locais diferentes do mundo. Foi concebida
originalmente para ser participativa, mas a sua forma mais difundida a
representativa. Saiu da gora grega e se instituiu nos espaos das cmaras,
assemblias e congressos nacionais. Saiu da esfera pblica, na qual, segundo
Habermas (1987), formava a opinio pblica genuna pela discusso de questes
controversas, e passou, na modernidade, a ser encenada, forjada pelas mdias
existentes.
Toda a transformao do processo democrtico e os seus mltiplos conceitos,
entretanto, se deu paulatinamente, ao longo de cerca de vinte e cinco sculos de
histria e a partir de adequaes a grupos sociais e a sociedades com caractersticas
diferenciadas. Nos ltimos 20 anos, em que muitos autores tratam de um novo
processo de ruptura de paradigmas histricos e se fala em um tambm novo perodo
histrico, a ps-modernidade , retoma-se algumas caractersticas da democracia
original, que apesar de ser questionvel em diversos pontos, mantinha uma
arquitetura de participao direta dos cidados atenienses, sem eleio e
representao nos espaos de poder institudos.
Neste sentido, partiu-se do pressuposto de que o contexto atual destaca a
retomada gradativa da dimenso participativa da democracia e de que possvel que
5Alguns autores renomados e referenciados em todo o mundo, como Anthony Giddens (1991), ainda
contestam a existncia de uma ruptura e a conseqente inaugurao de um novo perodo histrico na
humanidade. Esses autores observam que os fenmenos indicados como ps-modernos podem no ser
exatamente elementos de ruptura, mas a radicalizao da modernidade, que cria descontinuidades e fragmenta
o processo histrico, dando a falsa sensao de ruptura.
5
13
se esteja criando novamente uma espcie de esfera pblica para a discusso e
formao de uma opinio pblica genuna, a partir da participao direta dos
cidados, influenciando no poder decisrio dos governos. A diferena da dimenso
participativa do processo democrtico original para a que se esboa nesta hipottica
nova esfera pblica que agora o espao no mais a gora, onde as caractersticas
territoriais fsicas so quem do base aos agentes sociais, mas a Internet, que
possibilita o surgimento de um espao territorial hibrido, caracterizado e
concretizado pela interseco do ciberespao e do espao fsico, que potencializa a
interao social, que aqui ser chamado de ciberterritrio.
importante observar que o momento contemporneo da democracia
potencializado pela comunicao mais acessvel, que se traduz em um processo
tecnolgico que envolve vrias etapas de desenvolvimento, que podem ser
subdivididas em, pelo menos, quatro momentos bsicos.
O primeiro o mais longo e se inicia com a inveno da prensa grfica de
Johannes Gutenberg (1398-1468), em 1450, que apesar de s ter se popularizado
alguns sculos depois de ter sido inventada, revolucionou a comunicao entre as
pessoas, na medida em que possibilitava a impresso de informaes e a sua
reproduo em larga escala. O invento de Gutenberg, de certa forma, reduziu o poder
da Igreja Catlica e alterou a natureza do conhecimento que se baseava no controle
poltico e religioso (AMARAL, 2007). Em termos de comunicao interpessoal, essa
a Era da correspondncia e da comunicao face-a-face.
O segundo momento pode ser demarcado entre a chegada do rdio, no final do
sculo XIX e a sua difuso comercial no incio do sculo XX, que inaugurou os meios
eletrnicos de comunicao e impulsionou o desenvolvimento da comunicao de
14
massa em todo o mundo. Segundo Vargas (1994, p. 323), a primeira transmisso
comercial de rdio ocorreu em Pittsburgh, EUA, em 1920, utilizando o que seria
chamado de transmissor heterdino na faixa mdia de freqncias. Do ponto de
vista da comunicao entre as pessoas, esta a fase em que a inveno de Graham
Bell (1847-1922), o telefone, tornou-se a grande atrao, pois possibilitava, pela
primeira vez na histria, a conversao, em tempo real, entre pessoas que esto
espacialmente distantes. Graham Bell patenteou a inveno em 1876 nos EUA
(VARGAS, 1994, p. 317).
O advento da eletrnica, na metade do sculo XX, depois da Segunda Guerra
Mundial, pode ser o marco temporal do terceiro momento, pois, foi a partir dele, que
equipamentos de comunicao mais sofisticados comearam a surgir. Do ponto de
vista comercial, um bom exemplo foi a televiso, que iniciou com vlvulas e depois
passou para os transistores. Segundo Vargas (1994, p. 325), as primeiras
transmisses regulares pblicas de TV ocorreram nos EUA, em 1941, mas o esforo
de guerra obrigou as indstrias eletrnicas a produzir outros itens, e s em 1946 a
televiso vingou inaugurando um tremendo mercado de consumo at ento
inexplorado. J do ponto de vista da comunicao interpessoal, o fax representou
bem esta fase da comunicao.
O quarto e ltimo momento inaugurado com a micro-informtica e reforado
com o advento da Internet. A Internet , na prtica, uma rede mundial de
computadores, que ao se conectarem em escala planetria, permitem aos seus
usurios comunicao sem fronteiras, potencializando a discusso poltica, em todas
as escalas territoriais, na medida em que encurtam distncias e tornam, conforme
Friedman (2005), o mundo plano.
15
Esta fase, alm da reconfigurao social que todo novo meio de comunicao
traz naturalmente, representa uma ruptura no processo de evoluo histrica dos
meios de comunicao, pois, os meios digitais, modificaram os modelos de fluxos
informacionais de forma significativa, ao liberar o plo de emisso. Se, at a fase
anterior, os meios de comunicao seguiam o fluxo do modelo paradigmtico de um
para todos, em que apenas os veculos tradicionais de comunicao emitiam
informao de forma massiva, na fase atual, os meios so socializados e a produo e
distribuio de informaes podem ser realizados por qualquer pessoa que tenha
acesso a eles. Do ponto de vista da comunicao interpessoal, hoje, no s possvel
a relao entre pessoas, em tempo real, por voz, mas tambm com recursos de
imagem bastante desenvolvidos que, em algumas situaes, transcendem s meras
videoconferncias e os videochats e podem at simular um encontro real, como nos
ambientes de realidade virtual.
Nesse admirvel mundo novo do sculo XXI, idealizado por Huxley (2007),
em 1932, quando ningum nunca poderia imaginar que um chip seria inventado,
que as discusses e articulaes polticas comeam a se fortalecer entre pessoas que
esto geograficamente distantes e as organizaes que lutam por justia social e
direitos para as minorias comeam a se apropriar desses novos meios, que permitem
uma maior participao do cidado comum e das instituies menos favorecidas
economicamente.
Com base nesse contexto, buscou-se o recorte especfico para um estudo sobre a
relao do territrio com a participao democrtica, interfaceada pelas tecnologias
informacionais digitais. Como principal objetivo, esta dissertao busca desenvolver
argumentos a respeito da relao direta da noo de territrio com a dimenso
16
participativa da democracia, baseando-se no pressuposto de que o advento das
tecnologias digitais no a desvincula do territrio, ao contrrio, cria ainda mais
vnculos, na medida em que potencializa a participao cidad, que exercida por
pessoas e essas so indissociveis do territrio.
Para tanto, procura sistematizar os conceitos necessrios ao entendimento das
argumentaes desenvolvidas, como os conceitos de democracia, opinio pblica e
territrio, para o primeiro momento contextual. importante tambm caracterizar,
mesmo que superficialmente, o processo histrico da dimenso participativa da
democracia, desde a sua origem na Antiguidade, passando pela perda da participao
direta no perodo Moderno, at chegar ao momento contemporneo, quando se
pressupe um aumento da participao, proporcionado pela nova conjuntura
tecnolgica digital, que encurta distncias e permite que pessoas que se encontram
em diversas partes do mundo possam se agrupar para debater temas de interesse
comum.
Na sua construo, uma srie de novos conceitos, vinculados a essa
ambincia tecnolgica digital, surgiro e precisaro ser caracterizados, tais como
ciberespao, ciberdemocracia e ciberterritrio. Este ltimo, pelo fato de ser de
autoria prpria, sistematizado com mais critrio. Para o conceito de ciberterritrio
buscou-se um vis mais social, estabelecendo-o como um possvel espao de luta por
transformaes e desenvolvimento social dentro do contexto contemporneo.
Optou-se pela metodologia de um estudo de caso, porque se vislumbrou no
Frum Social Mundial (FSM) um excelente exemplo da relao discutida pelo objeto
central do estudo, pois esse movimento poderia trazer discusses fecundas sobre o
processo de participao democrtica na ciberdemocracia, visto que organizado em
17
redes sociais, estruturadas a partir de interfaces digitais, e que mantm um encontro
presencial por ano, ou mesmo vrios encontros descentralizados em um determinado
perodo do ano, e todo o resto do tempo as articulaes para a construo de uma
agenda reivindicativa para o desenvolvimento social em todo o mundo, sobretudo,
nos pases pobres, so realizadas atravs das redes estabelecidas em territrios
hbridos, que aqui se chamar de ciberterritrios.
Uma extensa reviso bibliogrfica necessria para se chegar ao estado da arte
do objeto de estudo, pois o termo democracia muito utilizado dentro e fora do
ambiente acadmico e tem sido relacionado com temticas distintas. As maiores
contribuies para o recorte escolhido so de Habermas (1987), Ratzel (1990),
Raffestin (1993), Santos (2001, 2005), Silva e Silva (2003; 2006) e Albagli (2004), na
construo contextual, e Levy (1993, 1999), Haesbaert (1994, 2002), Souza (1995),
Lemos (1995, 1999, 2002, 2005), Castells (1999) e Friedman (2005), para anlise do
objeto de pesquisa at o perodo contemporneo.
O mtodo de abordagem utilizado complementar entre qualitativo,
comparativo e histrico. Com a abordagem qualitativa se analisa os objetivos do
Frum Social Mundial e sua efetiva consecuo, frente aos marcos tericos. Com o
mtodo comparativo, se confronta as caractersticas da dimenso participativa da
democracia original e a sua relao com o territrio fsico, bem como a relao entre
ciberdemocracia contempornea com o territrio hibrido fsico e virtual , buscando a
compreenso da importncia da noo de territrio, seja ele fsico ou hibrido, na
dimenso participativa da democracia.
J a abordagem histrica necessria para abranger as instncias democrticas,
desde a Grcia Antiga, passando pelo perodo Moderno, chegando at o Ps-moderno
18
e contemporneo, subsidiando as anlises qualitativas da dimenso participativa da
democracia, com dados histricos e no caso do Frum Social Mundial.
A partir das premissas at aqui expostas, busca-se confrontar dados de
pesquisa, obtidos em campo, com diversas lideranas de movimentos sociais de
vrias partes do mundo, durante a realizao do evento presencial anual de 2009, que
se deu no ms de janeiro, na cidade de Belm/PA; das entrevistas realizadas ao longo
do ano de 2009 com autoridades polticas, religiosas, acadmicas e profissionais de
vrias reas do saber, setores da sociedade e segmentos polticos, ideolgicos e
religiosos, bem como representantes de organizaes privadas, governamentais e do
Terceiro Setor; alm das entrevistas realizadas no evento temtico descentralizado
que aconteceu em Salvador/BA, em janeiro de 2010.
Um total de 113 entrevistas (vide lista no anexo I) serve para analisar a
importncia das mediaes das tecnologias informacionais digitais no processo de
articulao de um movimento de mbito planetrio de luta por justia social. Como
forma de mensurar essa importncia, busca-se observar na amostra da sociedade,
representada por pessoas de todos os grupos e segmentos j citados, se entendem a
Internet como campo de luta e conquistas polticas; se o ciberespao pode se
constituir em uma espcie de esfera pblica, no sentido habermasiano, de lugar para a
construo de uma opinio pblica genuna; sobre o potencial das mdias sociais para
a expresso dos movimentos sociais e minorias; sobre o nvel de importncia das
dimenses fsica e virtual para o movimento dos movimentos ; alm de questes
que buscam sintetizar constataes de participantes e catalizar percepes diversas
6
6 Como o FSM se autodenomina
19
sobre a relao da dimenso participativa da democracia com a territorialidade, tema
central da dissertao.
Duas hipteses centrais so previamente levantadas. A primeira a de que os
ciberterritrios, utilizados pelo Frum Social Mundial como campo de luta e de
mobilizao popular, potencializam a participao dos cidados comuns nas
discusses que esto em pauta e permitem, inclusive, que eles agendem as suas
prprias discusses. Neste sentido, o advento do ciberterritrio pode estar
contribuindo para a formao de um novo espao pblico, de participao direta do
cidado, alargando assim a dimenso participativa da democracia na
contemporaneidade. A segunda hiptese de que se o alargamento da dimenso
participativa da democracia, potencializado pelos ciberterritrios, no proporcionar
efetivamente o que se pode entender como uma nova esfera pblica para a formao
de uma opinio pblica genuna, pelo menos, pode favorecer o desenvolvimento
social, na medida em que d oportunidade aos atores sociais reivindicativos um
espao fidedigno para publicizar idias e mobilizar pessoas e instituies em torno da
luta por mais desenvolvimento e justia social.
Tambm se toma como premissa que o ciberterritrio constitui-se em uma
ferramenta imprescindvel para o alargamento da dimenso participativa da
democracia, visto que, na construo do seu entendimento, constata-se o seu
potencial como instrumento de transformao social, pois tem sido percebido pelos
analistas do contexto contemporneo como um espao alternativo de discusso e
participao, em que o cidado volta a ter voz e poder de deciso no processo
democrtico.
Este livro dividido em cinco partes. A primeira contextual e sistematiza
20
alguns dos principais conceitos utilizados ao longo do trabalho, como os conceitos de
democracia, opinio pblica e territrio. A segunda traz uma base histrica que
subsidia anlises sobre a relao da dimenso participativa da democracia com o
territrio fsico e espacial.
Na terceira parte, aprofunda-se na ambincia tecnolgica digital, mostrando
como ela tem potencializado o alargamento da dimenso participativa da democracia,
a partir da formao dos ciberterritrios. A quarta parte se volta para o estudo do
Frum Social Mundial, tentando entender como os participantes do movimento veem
a sua insero no atual contexto das tecnologias digitais de comunicao e
informao e a sua participao no ambiente da ciberdemocracia. Esta parte traz
opinies de diversos entrevistados, dentre eles vrios participantes do FSM, que
revelam suas impresses sobre a Internet como campo de luta e conquistas polticas, e
sobre o ciberespao como espao de debate pblico e de ampliao das articulaes
dos grupos minoritrios por direitos sociais.
Na quinta e ltima parte, se analisa o uso efetivo das tecnologias digitais pelo
FSM, atravs do ciberterritrio da Belm Expandida, ambincia hibrida fsica e
virtual de proposio e realizao de aes e eventos a partir de qualquer lugar do
planeta, para se discutir a possibilidade de um mundo melhor para todos. A iniciativa
da Belm Expandida dimensiona o movimento e amplia significativamente as
aes e discusses do FSM, em 2009.
21
MARCOS
HISTRICOS-CONCEITUAIS
Edies
VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
PLANEJAMENTO TERRITORIAL E
DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL
UNIVERSIDADE
CATLICA DO
SALVADOR
Discorrer a respeito do territrio na construo da participao democrtica
uma tarefa que exige a articulao de alguns conceitos essenciais. Numa primeira
instncia, a articulao necessria a que diz respeito relao da democracia com a
opinio pblica, visto que, nesta relao, podem estar intrnsecos os principais
aspectos de outra relao que mais interessa: o territrio e a dimenso participativa da
democracia.
Coloca-se, inicialmente, o conceito de democracia, buscando
propositadamente dar nfase questo da sua dimenso participativa, uma vez que
foi este o vis de reflexes que se pretende definir para, em seguida, se trabalhar o
conceito de opinio pblica, buscando as relaes entre os dois conceitos e o de
territrio, para o completo entendimento que se buscar dos sucessivos focos.
DEMOCRACIA
A democracia desde que foi criada e difundida na cidade de Atenas, na Grcia
Antiga, sempre esteve diretamente relacionada noo de participao dos cidados
na vida poltica da sua cidade-estado. A prpria etimologia da palavra no deixa
dvidas: demos, em grego, significa povo, e, cracia que vem de kratus, significa
autoridade ou governo, ou seja, em uma traduo simples, democracia significa
governo do povo (BETTO, 2006).
Tratava-se de um sistema de organizao poltica que garante aos cidados o
direito de participar dos rumos da sociedade em que estavam inseridos, influenciando
diretamente nas decises relativas gesto de assuntos pblicos. Em tese, em um
23
sistema democrtico, as pessoas possuem liberdade para se expressar e manifestar
suas opinies. Do contexto original aos dias atuais, entretanto, o conceito de
democracia passou por uma srie de transformaes, acrscimos e releituras de
pensadores dos mais diversos, que buscaram, cada um a seu modo, adequar o
conceito realidade e ao contexto em que viviam.
O conceito atual de democracia comeou a ser elaborado no sculo XVII, com
as primeiras formulaes tericas do filsofo britnico e idelogo do liberalismo
John Locke (1632 - 1704), o primeiro a afirmar que o poder dos governos nascia de
um acordo, livre e recproco, e, assim, preconizar a estrutura do estado democrtico
moderno, pela separao dos poderes legislativo e judicirio. Mas, foi Montesquieu
( - ) que conseguiu organizar as idias que estavam no inconsciente
coletivo, traduzidas na obra O esprito das leis . Nesse livro, ao tratar dos trs
diferentes tipos de governo: o desptico, fundamentado no temor; republicano, na
virtude; e, monrquico, na honra, esse pensador acreditava que a forma de governo
mais prudente e sbia seria a monarquia constitucional, pois era baseada, no apenas
na honra do rei, mas tambm na liberdade poltica garantida pela independncia dos
poderes legislativo, executivo e judicirio. Essa proposta viria a ser o principal
fundamento das democracias modernas e sua essncia enquanto sistema poltico que
permitia o exerccio do poder, em nome do povo, por meio das instituies que dele
emanam (TRE-RO, 2009).
A primeira nao a assumir o moderno sistema democrtico foram os Estados
Unidos da Amrica, mas sem seguir rigorosamente a proposta de Montesquieu, uma
1689 1755
7
7 Obra lanada originalmente em 1748.
24
vez que o fez atravs de uma repblica constitucional e no de uma monarquia, como
propunha o autor. O sistema democrtico republicano estadunidense se consolidou
em virtude da derrota imposta monarquia britnica, na guerra pela sua
independncia. Existem alguns estudos que tentam, a partir de critrios especficos,
mensurar o processo democrtico em todo o mundo. Um deles o ndice de
Democracia, compilado pela revista The Economist (2008). Foram ao todo 167 pases
investigados e analisados, a partir de cinco variveis: o processo eleitoral e
pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, participao poltica e
cultura poltica. Os pases foram classificados em quatro categorias: democracias
plenas, democracias imperfeitas, regimes hbridos, e regimes autoritrios (ver quadro
1 abaixo). O Brasil ficou em 41 lugar e foi classificado como um pas de democracia
imperfeita (WIKIPEDIA, 2009).
Quadro 1. Classificao do ndice de democracia por pas
Fonte: , acessado em novembro de 2009. http://pt.wikipedia.org/wiki/ndice_de_Democracia8
8 As informaes da revista The Economist que se encontram na Wikipedia so inseridos por pessoas
autorizadas pela prpria revista e disponibilizadas atravs desta enciclopdia colaborativa, que j se configura
como a maior do mundo na atualidade.
25
Mapa 1. Indice de democracia dos pases
Fonte: , acessado em novembro de 2009.http://pt.wikipedia.org/wiki/ndice_de_Democracia
No Mapa 1, que foi atualizado em 2009, os pases representados pelas cores
mais claras foram avaliados como os mais democrticos. A Sucia foi considerado o
pas mais democrtico, obtendo o ndice de 9.88, numa escala de 0 a 10. J os pases
representados pelos azuis mais escuros apresentaram os ndices mais baixos. A
Coria do Norte foi considerado pelo estudo como o pas menos democrtico, com
1.03 de ndice.
26
A democracia , entretanto, desejada pela maioria dos pases do mundo. O
Mapa 2 comprova essa afirmao. Ele representa a auto-identificao dos pases com
relao democracia. Percebe-se que quase todos os pases do mundo, inclusive, os
comunistas, que o resto do mundo identifica como ditaduras, se identificam como
democrticos.
Mapa 2. Auto-identificao dos pases em relao a democracia
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Democracy_claims.svg
27
Uma outra tentativa de mensurao da democracia no mundo foi realizada pela
organizao americana Freedom House , em 2007 e 2008, com a inteno de
identificar as democracias eleitorais. Os resultados deste estudo pode ser visualizado
no Mapa 3, que mostra os pases considerados democracias eleitorais (em azul),
identificando os pases em que so realizadas eleies diretas para os representantes
de governo. Neste Mapa, diferente do Mapa 2, j no se encontra um nvel de
identificao to alto, o que equivale a dizer que existem pases que se consideram
democrticos, mas sequer realizam eleies diretas para os seus representantes nas
instncias de poder e deciso polticas.
9
9 Freedom House uma organizao sediada em que realiza pesquisas
em defesa da , e . Ela publica um da avaliao
do grau de percepo das liberdades democrticas em cada pas, que usado em por cursos de
em todo o mundo.
no-governamental Washington, EUA,
democracia liberdade poltica direitos humanos relatrio anual
cincia poltica
28
Mapa 3. Pases que possuem democracias eleitorais
Fonte: , acessado em novembro de 2009.http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Electoral_democracies.png
As formas mais difundidas de democracia desde a sua origem at o momento
contemporneo so a direta e representativa. Em uma democracia direta, em tese,
todos os cidados podem participar diretamente do processo de tomada de decises
sobre as questes de ordem pblica. J na democracia representativa os cidados no
participam diretamente do processo decisrio, visto que a sua participao se resume
a eleger uma pessoa ou um grupo para decidir por eles nas instncias de poder
estabelecidas, sejam elas municipais, estaduais ou federais, em senados, cmaras ou
assemblias.
29
Se na sua origem, a democracia, apesar de permitir a participao qualitativa do
cidado grego, limitava essa participao a apenas alguns membros da sociedade, na
democracia moderna, representativa, a participao atribuida a todos os cidados,
indiscriminadamente. Vale ressaltar, entretanto, que essa participao mesmo sendo
ampliada para todos os cidados, no representa alargamento no processo de
participao democrtica, visto que nessa forma de democracia, o cidado no se
encontra entre os que decidem. A sua participao est to somente limitada
indicao de algum que o representar nas instncias de deciso e que, em ltima
anlise, decidir por ele sobre os rumos da sua vida. Ex.: a participao democrtica
da populao da cidade de Salvador/BA se resume em ir as urnas no dia da eleio
para indicar quem so os seus cadidatos preferidos para vereador e prefeito da cidade.
Depois disso, ela no tem mais nenhuma participao direta nas decises que os
vereadores e prefeito eleitos vo tomar durante quatro anos de mandato.
A estrutura da democracia representativa estabelece a separao entre os que
decidem e os que devem acatar as decises tomadas pelos que decidem, pois os que
decidem tm status de dirigentes e o povo, que na democracia original, direta e
participativa, era quem decidia, passa inesplicvel condio de dirigido, o que pode
suscitar as seguintes questes: se a prpria palavra democracia significa governo do
povo, como o povo em algum momento desse processo pode ter sido relegado a
simples condio de governado ou dirigido? Neste caso, o real sentido da palavra
democracia teria se esvaziado ao longo dos tempos? Onde afinal ficou o governo do
povo?
Uma grande objeo a respeito da prtica da democracia direta, para aqueles
que no acreditam que esta possvel de se estabelecer na prtica, o fato de que a
30
maioria das pessoas que compem uma cidade cidados no teria conhecimentos
tcnicos e, consequentemente, argumentos plausveis e sustentveis para balizar as
decises mais acertadas de governo, visto que os cidados comuns tm as suas
prprias atribuies dirias e no podem se dedicar ao aprofundamento dos
acontecimentos polticos, econmicos e sociais. Isso faria com que acontecesse
constantemente tomada de decises incoerentes como votar por reduo radical de
impostos e aumento significativo de oramento para as reas de Sade, Educao,
Habitao, etc., sem a verdadeira conscincia de que a queda de impostos interfere
diretamente na capacidade do governo investir nas reas indicadas.
A democracia direta no contexto atual enfrenta um outro grande problema: o
alto custo e a lentido do processo decisrio, visto que, diante do contingente das
grandes cidades, a nica forma encontrada foi a de referendos e plebiscitos, que se
constituem numa espcie de votao geral, nos moldes de uma eleio, que tem o
objetivo de consultar a opinio da populao sobre um determinado tema. A diferena
bsica entre referendo e plebiscito que este ltimo uma consulta feita antes do
estabelecimento da lei ou norma e o referendo aplicado para conhecer a opinio da
populao em relao a algo que j est em andamento.
Os argumentos contra a democracia direta esto quase todos eles ligados ideia
de que esse tipo de sistema no funciona bem nas cidades com grandes contingentes
populacionais. Estas possuem um nvel de complexidade muito grande, o que
compromete a eficincia do sistema que, por sua vez, baseado na opinio da maioria
e que, por isso mesmo, pode suprimir direitos das minorias. Alm disso, os plebiscitos
31
e referendos podem ser utilizados para sancionar regimes totalitrios, como o de
Salazar , entre 1932 e 1968, em Portugal.
Por outro lado, pensando especificamente o caso brasileiro, o desgaste que o
modelo representativo sofreu nas ltimas duas dcadas tem comprometido
sobremaneira a sua eficcia. Percebe-se no discurso popular que h uma idia quase
consensual de que neste modelo de democracia representativa, o povo s
importante s vsperas de uma eleio, pois s consultado uma vez a cada quatro
anos, para legitimar os mandatos dos polticos profissionais. E que estes, aps serem
eleitos, agem como bem entendem e no se preocupam com a opinio dos seus
eleitores para tomar as decises, at que chegue novamente a hora de uma nova
eleio.
A separao entre quem dirige e quem dirigido pode fazer com que os
dirigentes se atenham muito mais s suas prprias vontades e se distanciem da
vontade dos dirigidos, quando a postura deveria ser contrria a essa, visto que o poder
que o dirigente possui no lhe pertence de fato, mas apenas de direito, pois foi
delegado pelo eleitor, que deveria ser o balizador das suas decises e no apenas o
meio de conseguir renovar o seu mandato, no caso do Brasil, de quatro em quatro
anos.
Neste sentido, a democracia direta e participativa tornaria o processo poltico
muito mais intenso e poderia trazer discusses bastante produtivas, que pudessem
verdadeiramente mobilizar a sociedade em torno de questes de interesse geral. No
10
10 Poltico portugus e professor catedrtico da Universidade de Coimbra, que governou Portugal de 1932 e
1968 de forma autoritria e ditatorial.
32
Brasil existem algumas iniciativas que buscam a participao popular, num modelo
que se pode chamar de democracia semi-direta, a exemplo da Comisso de
Legislao Participativa (CLP), da Cmara dos Deputados, que foi criada em 2001
com o objetivo de facilitar a participao da sociedade no processo de elaborao das
Leis.
Atravs da CLP, a sociedade, por meio de qualquer entidade civil
organizada, ONGs, sindicatos, associaes, rgos de classe, apresenta
Cmara dos Deputados suas sugestes legislativas. Essas sugestes vo
desde propostas de leis complementares e ordinrias, at sugestes de
emendas ao Plano Plurianual (PPA) e Lei de Diretrizes Oramentrias
(LDO). Para ampliar o acesso da populao ao Poder Legislativo, a CLP
tambm disponibiliza um Banco de Idias, formado por sugestes
apresentadas ao Parlamento pelos cidados e cidads brasileiros
individualmente (CMARA, 2009).
Alm de iniciativas como a CLP da Cmara dos Deputados, no Brasil, a
Constituio Federal de 1988 prev uma forma de participao direta do cidado no
processo decisrio, em seu Art. 14, que diz: "a soberania popular ser exercida pelo
sufrgio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos
termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular". Este
artigo permite a qualquer cidado brasileiro o exerccio da democracia no seu sentido
pleno, pois, lhe assegura a iniciativa de um projeto de lei de autoria prpria, bastando
apenas que este consiga o apoio expresso, atravs de assinaturas, de 1% do eleitorado
33
nacional, que hoje representa em torno de 2 milhes de pessoas, em, pelo menos,
cinco estados da Federao, o que certamente no tarefa fcil de ser alcanada por
um cidado comum, dada a grandeza do Pas. A Cmara dos Deputados poder
aceitar ou recusar o projeto, assim como acontece com o projeto de qualquer
parlamentar eleito.
Os estados brasileiros tambm incorporam o direito de iniciativa do cidado
atravs de projetos de lei, garantido em nvel federal pela Constituio. Vale ressaltar
que em alguns deles a iniciativa pode ser inclusive de propostas de emendas
Constituio. Mas o poder de participao cidad realmente ampliado no mbito
municipal, visto que vrias cidades do Brasil adotaram o oramento participativo, um
instrumento que possibilita ao cidado o exerccio da democracia participativa.
Trata-se de um mecanismo que d direito ao cidado de opinar sobre os destinos dos
recursos financeiros municipais. Neste processo o poder absoluto, potencialmente,
pode ser retirado da elite poltica e econmica e repassado diretamente para a
sociedade civil.
Para Genro (2001), o oramento participativo capaz de desenhar um novo
espao pblico, pois um instrumento que pode promover uma distribuio mais
adequada dos investimentos que, por sua vez, pode promover um ambiente muito
mais favorvel ao desenvolvimento social. Ao estimular a democracia direta, o
oramento participativo contribui para redemocratizar a prpria democracia,
observa o autor.
Em outubro de 2007 foi criada a Rede Brasileira de Oramento Participativo
(RBOP), que congrega municpios de todo o Brasil, interessados na ampliao e no
alargamento da dimenso participativa do cidado na gesto dos recursos pblicos. A
34
RBOP mantm uma estrutura horizontal e um ambiente colaborativo, como o
objetivo de intercambiar conhecimento, bem como superar desafios, alm de mapear
as experincias brasileiras com este mecanismo de participao popular. Em 2009,
participavam da RBOP 57 municpios de quatro regies brasileiras, e outros 17
estavam em processo de adeso. um total de 74 municpios inseridos ou se
inserindo nesse processo. Apesar de representarem apenas cerca de 1,4% das 5.565
cidades existentes, agrega seis grandes metrpoles, capitais dos seus estados (RBPO,
2009).
Na regio Sudeste participavam municpios dos estados de Minas Gerais, So
Paulo e Esprito Santo. So Paulo lidera com 13 municpios, mas a capital no
estava includa entre as 13. J Minas Gerais , que ficou em segundo lugar, com sete
cidades, tinha a sua capital entre elas. O Estado do Esprito Santo contava com seis
municpios na Rede, dentre eles, a capital Vitria. Apenas um municpio do Rio de
Janeiro adotou o oramento participativo.
A Regio Nordeste contava com 14 cidades na RBOP. So elas: Anadia
(Alagoas), Caapora, Cajazeiras, Campina Grande, D. Ins, Joo Pessoa, Patos, Picu
e Pombal (Paraba), ,
. O Estado da Paraba o mais engajado, com oito municpios
na Rede.
Crateus e Fortaleza (Cear) Lauro de Freitas (Bahia) e Paudalho
e Recife (Pernambuco)
11
12
13
11 Guarulhos, Osasco, Santo Andr, So Bernardo, So Vicente, Suzano, Vrzea Paulista, Monte Alto,
Diadema, Embu, Francisco Morato, So Carlos e Araraquara.
12 Belo Horizonte, Betim, Congonhas, Contagem, Montes Claros, Nova Lima e Botelhos.
13 Vitria, Aracruz, Cachoeira do Itapemirim, Serra, Viana e Cariacica.
14 Marica.
14
35
No Norte do Brasil apenas a capital do estado de Amazonas, Manaus,
participava da Rede. No Sul, apenas os estados do Rio Grande do Sul, Paran e Santa
Catarina participam da Rede, com 15 municpios, dentre eles, a capital do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre (RBPO, 2009).
O oramento participativo e outros instrumentos de participao democrtica
do cidado fazem com que o exerccio da cidadania no se resuma ao voto, mas faa
com que a democracia possa se constituir em um efetivo mecanismo de controle da
sociedade civil sob a administrao pblica.
Quando se d vez e voz ao cidado no processo de deciso dos assuntos
pblicos, se estabelece o debate pblico, entre cidados livres e em condies iguais
de participao. Esse debate d lugar ao que se chama opinio pblica, conceito que
se tratar a seguir.
15
15 Bag, Bento Gonalves, Canoas, Caxias do Sul, Esteio, Garibaldi, Gravata, Nova Hartz, Porto Alegre,
Santa Maria, Santa Rosa, So Leopoldo, Sapucaia do Sul, (Rio Grande do Sul), Campo Largo (Paran) e
Joinville (Santa Catarina).
36
OPINIO PBLICA
O conceito de opinio pblica algo que vem sendo difundido desde a
Antiguidade e, ao longo da histria, foi ganhando conotaes diferenciadas. Na
literatura da Grcia e Roma antigas, bem como ao longo da Idade Mdia, os filsofos
tinham inteira conscincia da importncia da opinio das massas. A frase 'voz populi,
vox Dei' data da ltima parte da Idade Mdia (CHILDS, 1967, p. 44) e no deixa
dvida de que o conceito j estava entranhado nas sociedades ocidentais, desde a Alta
Idade Mdia.
Quando os gregos conclamavam que a voz do povo a voz de Deus,
conforme a citao acima, por exemplo, estavam claramente se referindo ao conceito
de opinio pblica. A expresso, entretanto, s foi empregada pela primeira vez no
sculo XVIII, por Rousseau (1712-1778), que a utilizou dentro do contexto poltico-
filosfico e a definiu como o poder do povo contra a monarquia, com base nos
princpios iluministas que comeam a habitar as reflexes dos pensadores deste
perodo. Tambm poltico o conceito do iluminista Kant (1724-1804) que, apesar de
no ter utilizado, em nenhum momento, a expresso opinio pblica literalmente em
sua obra, elaborou o conceito de uso pblico da razo, conceito esse, que remete
claramente o leitor ao conceito de opinio pblica, faltando-lhe apenas o termo
idntico e/ou semelhante.
Em contraponto a Kant, que atribua racionalidade opinio pblica e a
enxergava como algo positivo, Hegel (1770-1831), na obra Princpios da filosofia
do direito (1821), formulou uma teoria, precursora do fascismo, em que colocava
que a opinio pblica s devia ser respeitada quando nela estivessem contidos os
37
princpios essenciais da sociedade e que cabia ao dirigente descobrir quais os
princpios essenciais deveriam nortear o seu povo. Para ele, a opinio pblica era algo
imediatista, superficial, sem fundamentao cientfica e sem base na razo, portanto,
algo que deveria ser desprezado. Vale observar que Hegel fala tudo isso, em um
perodo ps-revolues burguesas, ocorridas no sculo XVIII na Frana e Inglaterra
e, portanto, no auge do conceito de cidadania e cidado.
Marx (1818-1883) tambm possua uma viso negativa da opinio pblica, pois
acreditava que esse conceito era apenas mais uma ferramenta ideolgica burguesa de
manipulao e alienao das massas. Bobbio (1987), com base nos ideais marxistas,
enxerga a opinio pblica como falsa conscincia e como mais um imbrglio da
ideologia dominante, visto que para ele:
numa sociedade dividida em classes, ela mascara o interesse da classe
burguesa: o pblico no o povo, a sociedade burguesa no a sociedade
geral, o bourgeois no o citoyen, o pblico dos particulares no a razo. A
opinio pblica , portanto, apenas a ideologia do Estado de direito burgus
(BOBBIO et al, 1987, p.844).
Tambm, fundamentado nesta linha de raciocnio marxista, o mais controverso,
e por que no dizer, o mais convincente dos conceitos de opinio pblica vem do
frankfurtiano Habermas (1987). Ele disse que a opinio pblica no existe enquanto
fenmeno popular, pelo menos, no em uma sociedade miditica. Segundo o autor
(1987), o que de fato existe uma opinio geral, induzida pelos meios de
comunicao de massa.
38
Para complementar a compreenso sobre a construo habermasiana a respeito
do tema, a hiptese da agenda setting, de McCombs & Shaw (1972), pode ser uma
boa aliada. Esta hiptese consiste na possibilidade de que a opinio seja induzida
pelos meios de comunicao de massa e acontece, a partir dos conceitos de
agendamento, que est relacionado com a seleo do que ser noticiado pelos meios
de comunicao, e o de enquadramento que, em resumo, significa o ponto de vista
particular, de como as notcias so transmitidas populao, sempre de acordo com
os interesses dominantes das elites poltica e econmica do mundo globalizado.
Esse processo de manipulao para a formao da opinio pblica, pelos meios
de comunicao de massa, pode-se fazer vnculo com o que Habermas (1987)
chamou de opinio pblica encenada, visto que nele se perde o que para o autor
essencial para a existncia da opinio pblica verdadeira, que o componente do
dilogo, da controvrsia e da sntese desse processo, constituindo no uma
unanimidade, mas um consenso em torno do tema em questo.
Habermas (1987) acreditava que para a opinio pblica ser genuna, portanto,
era necessria a existncia de uma esfera pblica, ou seja, era preciso que houvesse
um espao para acontecer o debate pblico. aqui que a tese de que a participao
democrtica e a noo de territrio sempre andaram juntas comea a se corporificar.
16 Em portugus significa agendamento.
17 Segundo Habermas (apud Gomes, 1998), esfera pblica o mbito da vida social em que interesses,
vontades e pretenses que comportam conseqncias concernentes a uma coletividade apresentam-se
discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. Nesse sentido, chama-se esfera pblica o
mbito da vida social em que se realiza em vrias arenas, por vrios instrumentos e em torno de variados
objetos de interesse especfico a discusso permanente entre pessoas privadas reunidas num pblico.
16
39
Na sua construo lgica, Habermas (1987) afirmava que opinio pblica
pressupunha discusso pblica e, portanto, necessitava de um espao pblico
territrio onde, a partir de um ambiente discursivo e argumentativo, se pudesse
chegar coletivamente a um consenso ou concordncia a respeito de um determinado
tema, independentemente dos interesses pessoais conflitantes (GOMES, 2004).
importante perceber que, conforme observa Gomes (1998, p. 3), na ideia de
discusso est includo o fato de que os argumentos se dispem em posies e
contraposies voltadas para a obteno de um possvel consenso. Para Rigitano
(2002, p. 3), idia de esfera pblica est relacionada ao conceito de opinio
pblica, como sendo o resultado do debate fundado na razo. Neste caso, a esfera
pblica , ao mesmo tempo, o lcus e a condio onde se gera a opinio pblica e a
opinio pblica, em ltima anlise, seria ... a opinio nascida da fora do melhor
argumento (GOMES, 1998, p. 4), que exatamente pela sua fora consegue, se no a
unanimidade, pelo menos o consenso, mas tambm nasce do processo social
produzido a partir do territrio.
Esse conceito de esfera pblica se baseia na democracia original, como ela
surgiu na Atenas, pois a democracia quando foi difundida tinha o carter participativo
e as suas caractersticas, apesar de serem questionveis em diversos pontos,
mantinham uma arquitetura de participao direta dos cidados gregos, sem eleio e
representao nos espaos de poder institudos. As discusses pblicas para a
18
18 Na democracia grega apenas os gregos machos e adultos tinham poder de voz e de voto, excluindo as
mulheres, os escravos e estrangeiros do processo de deciso poltica. Estima-se que apenas 1/10 da populao
tinha poder de voto e podia participar das discusses polticas.
40
tentativa de estabelecer opinies consensuais a respeito dos temas discutidos opinio
pblica se davam na gora, uma espcie de praa pblica onde aconteciam os
debates pblicos a respeito das questes da ordem poltica do dia. Este era no apenas
o espao de poder popular institudo a to propalada esfera pblica de Habermas,
local onde se formava, segundo esse autor, a opinio pblica genuna , mas tambm
um espao territorial, em que as relaes sociais e as suas mais complexas
contradies eram confrontadas, ou seja, um local em que as noes de territrio e
territorialidade podiam ser concretizadas na sua mais criteriosa lgica.
Para um melhor entendimento da noo de territrio, aqui utilizada, e da sua
relao com a dimenso participativa da democracia, que se traduz num dos objetivos
deste trabalho, se faz necessrio uma abordagem conceitual sobre o tema, que se
passa a fazer a seguir.
TERRITRIO
O conceito de territrio, ainda que tangencie vrias dimenses , conforme
sugere Albagli (2004, p.25), sempre esteve relacionado aos espaos fsicos e terra,
desde que Ratzel (1990), a partir da noo de espao vital, espao fundamental para a
existncia dos povos e suas culturas , observou que as relaes sociais so
19
19 Albagli em Territrio e territorialidade (2004) observa que o territrio e a territorialidade podem ser
vistos a partir de, pelo menos, quatro pontos de vista distintos e interrelacionados: fsico,
poltico/organizacional, simblico/cultural e econmico. Segundo a autora, a dinmica territorial resulta das
interaes entre essas vrias dimenses.
41
determinadas pelo espao geogrfico e, portanto, conforme Haesbaert (2002), a
existncia humana indissocivel do territrio. A prpria etimologia da palavra
territrio no deixa dvida. Segundo Albagli (2004, p.26), o termo territrio vem do
latim, territorium, que, por sua vez, deriva de terra e significa pedao de terra
apropriado.
Para Ratzel (1990) territrio uma determinada poro da superfcie terrestre
apropriada por um grupo humano. Em consonncia com esse mesmo autor, Santos
(2005) entende territrio como a extenso apropriada e usada, que deve ser pensada,
dentre outras possibilidades, como sinnimo de espao geogrfico. Haesbaert (2002,
p. 131) observou ainda que o territrio visto antes de tudo como um espao
concreto em que se produzem ou se fixam os processos sociais. Nesta linha, Musso
(2001, p.19) atribuiu ao territrio uma construo coletiva, um espao de
representaes que agrega, ao mesmo tempo, processos histricos, vivenciais e
projetos de concepo desse espao pelos seus habitantes.
O territrio, portanto, vem sendo abordado pelas perspectivas espaciais,
regionais, relacionadas ao lugar, cidade, ao campo ou nao, mas, conforme j
pontuado, sempre vinculada ao espao fsico e terra, ainda que essas abordagens se
deem em diferentes escalas, sejam elas local, regional, nacional, supranacional ou
global. Raffestin (1993), entretanto, deu indcios de possibilidades de uma ampliao
significativa do conceito de territrio quando afirmava que este no se reduzia a sua
dimenso material ou concreta, mas se constitua em um campo de foras, onde se
do as relaes sociais.
Segundo Silva e Silva (2006), os territrios expressam um conjunto complexo e
dinmico de relaes humanas em diversos aspectos e escalas, que envolvem
42
questes complexas das relaes sociais, como o sentimento de pertencimento que
leva a noo de territorialidade , alm de relaes conflituosas de interesse,
perpassando pela construo de laos de coeso, de identidade que, por sua vez, esto
vinculados com as relaes competitivas de interesse e poder, em que esto inseridos
o capital, os grupos, o trabalho, dentre outros aspectos.
Os mesmos autores (2003), por causa da diversidade de modos que as relaes
espao-temporais acima se engendram, entendem que o territrio termina por
apresentar caractersticas identitrias independente da escala territorial analisada.
Quando Albagli (2004) distinguiu conceitualmente espao e territrio, ela
observou, em primeira instncia, a noo de espao de Agler (1995), que atribuiu ao
espao um nvel elevado de abstrao; e, em segunda instncia, a idia de Raffestin
(1993) de que o territrio o espao apropriado por atores sociais que se define e
delimita por, e a partir, das relaes de poder em mltiplas dimenses.
Offner e Pumain (1996, p.155) entendem que o territrio um momento de
negociao, endgeno e exgeno populao concernente, que produz e reproduz a
identidade coletiva atravs de manifestaes diferentes do lugar e da sua
conscincia. Observam tambm uma caracterstica complexificadora dos estudos
do territrio, quando afirmam que a partir de um mesmo espao pode-se constituir
territrios mltiplos, disjuntos ou superpostos, conflituais ou no, de uns em relao
aos outros.
Aqui se percebe que se abrem novas possibilidades para pensar as questes
territoriais, visto que, nesta ltima perspectiva, o territrio j passa a ser cogitado
como algo que transcende a noo da relao direta com a delimitao fsica,
observada na concepo tradicional do territrio. Quando se imagina que em um s
43
espao pode haver vrios territrios, porque se acredita que o territrio no est
apenas na apropriao de uma determinada poro da superfcie terrestre, como
afirmava Ratzel (1990), mas tambm nas complexas relaes que so estabelecidas
pelas pessoas nesse espao.
A apropriao do territrio pelos atores sociais, sobretudo do ponto de vista das
suas manifestaes polticas, sempre uma constante nas reflexes de todos os
autores da literatura especfica sobre territrio. Neste trabalho busca-se apenas, ao
vincular a participao do cidado no processo democrtico perspectiva territorial,
relacionar a dimenso participativa da democracia ao territrio e territorialidade,
conforme segue.
44
CONSTRUO DA
PARTICIPAO DEMOCRTICA
Edies
VNIPPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
PLANEJAMENTO TERRITORIAL E
DESENVOLVIMENTO SOCIALUCSAL
UNIVERSIDADE
CATLICA DO
SALVADOR
DIMENSO NA IDADE MODERNA
Pretende-se realizar um breve histrico do processo democrtico do perodo
moderno, inaugurado no sculo XV, aos dias atuais, observando sempre como foco
principal a questo da participao das pessoas comuns nas discusses e decises
polticas, para caracterizar a dimenso participativa da democracia nesses perodos.
Antes, entretanto, importante entender porque a democracia foi ignorada pela
maioria das sociedades antigas, que preferiram manter os regimes ditatoriais das
monarquias do perodo e s voltou a ser novamente cogitada a partir das revolues
burguesas , francesa e inglesa, no sculo XVIII, conforme segue.
O modelo de sistema democrtico criado na Grcia Antiga no se difundiu para
outros povos e naes num primeiro momento. O modelo de Estado que continuou
prevalecendo durante sculos foi o da monarquia absolutista, em que todos os direitos
e poder de deciso estavam concentrados nas mos de uma nica famlia, a famlia
real, composta pelo rei, o mandatrio de Deus na terra, da sua esposa a rainha, e dos
seus filhos, os prncipes e princesas.
A democracia ateniense, muito provavelmente, deveria ser vista pelas grandes
monarquias do perodo como excentricidade dos gregos, que era um povo muito
voltado para as questes artsticas e culturais, que formava uma sociedade
completamente fora dos padres da antiguidade, que complexificava as relaes de
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20 O termo burgs na poca em que as revolues francesa e inglesa aconteceram, no possua a conotao
pejorativa que possui hoje, visto que originrio de burgos, como eram chamados os moradores das cidades
deste perodo. Com o passar dos tempos, com o enriquecimento de parte dos burgueses, passando a posio de
donos de indstrias, os marxistas comeam a tratar do termo de forma pejorativa, mudando o sentido original.
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poder, atribuindo aos membros da sociedade papis de interlocutores nas instncias
decisrias e com isso subvertendo a noo de subdiviso de poder, que at ento era
muito simples: de um lado os nobres, com o seu legado divino de privilgios, luxo e
riquezas e, de outro, os sditos, miserveis que nasceram com a misso primordial de
servir aos nobres.
Somente na modernidade os conceitos de democracia comearam a ser
resgatados, quando serviram aos interesses dos burgos, como instrumento de
enfrentamento do poder absoluto dos monarcas. O discurso dos burgueses, para
realizarem as suas revolues se baseava no valor individual das pessoas e na
importncia da liberdade e autonomia delas, o que vai culminar no conceito de
cidado/cidadania, que se aproximou muito da noo de participao na democracia
ateniense.
As revolues burguesas e o resgate da participao democrtica
A passagem do absolutismo para um ambiente de direitos dos cidados se d em
concomitncia com o projeto da modernidade, que foi todo construdo sobre a idia
de que o homem deveria ser autnomo, bem como a partir da emancipao dos seres
humanos, que estariam evoluindo linearmente para um estgio em que chegaria ao
ideal de homem perfeito. At hoje moderno nos recorda o sentido de emancipao
da humanidade e dos indivduos utilizando a ao reflexiva dirigida pela razo e
associadas a ideais de liberdade, igualdade, justia e progresso (DUPAS, 2003,
p.25).
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Para assegurar este processo, a modernidade fez cair o estado absolutista,
destituindo o poder hegemnico do rei e a condio de escravido dos seus sditos,
instaurando o estado de direito segundo Marx, o estado burgus que, em tese,
garantiria liberdade aos cidados atravs de instncias que se autofiscalizariam e se
autoregulariam: os poderes executivo, legislativo e o judicirio, conforme proposta
de Montesquieu, j vista no captulo anterior. Esse estado deveria ser pautado em
uma lei magna, a constituio, cujos direitos de cada cidado seriam fixados e, em
nenhuma hiptese, desrespeitados, sob pena de punio aos que assim o fizessem.
O estado de direito instituiu, portanto, a noo moderna de liberdade, traduzida
por Montesquieu, quando observava que a liberdade o direito de fazer tudo aquilo
que as leis permitem, e Rousseau, que afirmava ser liberdade a obedincia s leis
que ns mesmos prescrevemos (apud DUPAS, 2003, p. 26). Em contraponto a
Montesquieu e Rousseau, Marx achava que a liberdade advinda dos direitos formais
do estado moderno no passava de reflexos ideolgicos da burguesia ligados
propriedade e relao de troca capitalistas.
O fato que desde ento coube ao estado o papel de guardio do bem-estar
social e de defensor do interesse pblico. O estado, portanto, deve sempre privilegiar
as questes coletivas, em detrimento das questes privadas; as questes sociais, em
detrimento das questes de mercado; as relaes de troca simblica, em detrimento
das relaes de troca comercial, enfim, o estado nasceu para ser forte na interveno
das questes sociais e eximir-se das questes que envolvam o mercado que, por sua
vez, deve ser autnomo e auto-suficiente, no depender do estado para se manter,
mas apenas ser regulado, quando necessrio, para a garantia do bem estar social e do
interesse da maioria dos cidados.
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Esse o legado do liberalismo, uma forma de ver o mundo, surgida e muito
difundida nos sculos XVIII e XIX e que transformou toda a dinmica social no
perodo, a partir das propaladas revolues burguesas, sobretudo, da francesa, que
teve maior repercusso. O liberalismo surgiu na sociedade europia, com o
desenvolvimento do capitalismo e a consolidao da burguesia. Neste perodo foi,
certamente, um modo progressista de pensar o mundo, pois pretendia a queda do
poder absoluto do prncipe, do rei ou da rainha, e investia na criao de outras
instncias de poder, como forma de regulao do poder executivo, neste momento
representado pelo monarca. A inteno dos liberais, portanto, era a de instituir o
estado de direto, o cidado e o resgate da democracia, na sua forma representativa.
A dinmica territorial nesse perodo intensa, visto que em todo esse processo
de transformaes polticas, econmicas e sociais, as relaes de poder e a
organizao do territrio tambm foram completamente transformados. Nos Reinos,
a organizao e a ocupao dos solos eram significativamente diferenciados da nova
organizao e ocupao das cidades burguesas. A ocupao dos espaos pelo cidado
passa a ser um direito e o sistema o privilegiava.
A idia era defender o indivduo, pois se acreditava que ele era a clula principal
de constituio da sociedade, e, portanto, deveria ter liberdade total, em todas as suas
dimenses, fosse poltica, econmica e/ou social. A lgica burguesa contrariava a
idia de que o cidado no poderia ser dono de nada e somente o rei podia tudo. A
partir das revolues burguesas, o cidado passou a ser livre para, em tese, produzir o
que quisesse.
A partir de ento, no era mais o estado que regulava tudo. O mercado teria a
capacidade de se autoregular e Adam Smith surge com o discurso da mo invisvel,
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para fortalecer a noo de que o mercado no precisa que nada e nem ningum
interfira. Ele o seu prprio regulador. Para que esse sistema possa funcionar
necessrio que haja a livre concorrncia, sem padres, nem preos definidos. Quem
vai dar os parmetros a concorrncia, o mercado, e no o estado (FILGUEIRAS,
1997).
No plano internacional, as naes teriam liberdade de negociar livremente com
o pas que quisessem, dentro das suas prprias normas. O liberalismo surgido no
Ocidente, entretanto, no significou o fim da interveno econmica do estado, nem
a sua neutralidade, mas to somente o fim do estado absolutista.
Os princpios do liberalismo so de que o indivduo a referncia maior e a
sociedade vista como a soma desses indivduos. Uma das caractersticas
preponderantes do capitalismo e dos ideais liberais a crena de que a desigualdade
um valor positivo, pois, na construo de uma sociedade democrtica, no se pode
prescindir da liberdade e da vitalidade da concorrncia. O discurso liberal o de que
se todos fossem iguais, no haveria motivao para crescer e o indivduo se
acomodaria. Essa noo, se pensada atravs de uma perspectiva mais crtica, pode
indicar uma proposio subliminar de que o estado no precisa desenvolver polticas
que procurem diminuir as desigualdades sociais, pois isso desestimularia as pessoas a
crescerem por si mesmas.
Cabe observar que nos ideais liberais, os princpios democrticos so
defendidos, mas descaracterizados. Qualquer tipo de ao coletiva vista como
corporativa e contrria ao interesse geral, o que desvirtua as premissas democrticas
de poder atribudo ao povo. A lgica liberal buscava extinguir qualquer fora que una
indivduos, organize-os em classe e os incentive a reivindicar seus direitos, visto que
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a idia que se difunde a da grande complexidade que o mundo moderno est imerso,
e, portanto, no cabem mais pensamentos macros, que pretendam dar conta do todo,
mas vrios pensamentos, cada um ao seu tempo e espao, para dar conta das partes
que lhes so atribudas.
Neste nterim, a democracia volta a surgir como um regime interessante, pois
pressupe a participao da sociedade, exatamente o que propunham as revolues
burguesas. O modelo adotado pelas sociedades ocidentais contemporneas,
entretanto, no foi o mesmo de Atenas. Adequou-se o sistema aos interesses do
projeto da modernidade e se criou a democracia representativa, em que, como se viu
anteriormente, a dimenso participativa diminuda, mas, ao menos, se garante
alguma participao dos cidados, alis, o termo cidado ganha fora exatamente
neste perodo da histria, em que as revolues burguesas trazem tona a noo de
participao cidad e exerccio da cidadania. Por isso mesmo, conforme afirmou
Souza (2001, p. 13), desde 1789 at a primeira dcada do sculo XX, o capitalismo
burgus se implantou praticamente sem que nenhuma fora social mais importante a
ele se opusesse.
A modernidade, portanto, ao mesmo tempo em que instaura o estado burgus e
destitui algumas grandes monarquias absolutistas do ocidente, garante a difuso do
conceito da democracia e retoma a dimenso participativa nos processos decisrios
do estado, mesmo que em um nvel inicial muito baixo. Ao instituir a democracia
como modelo paradigmtico de sistema de governo, abriu-se um espao para futuras
conquistas da sociedade ocidental, no que tange a sua participao mais ampla nas
instncias de interlocuo e, consequentemente, de deciso do estado.
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certo que a espacialidade e os aspectos territoriais dos ambientes
representativos de poder no estado burgus continuaram por se estabelecer nessa
nova configurao, uma vez que, conforme j pontuado, as aes do homem so
indissociveis do territrio. No h como separar a ao humana da relao direta ou
indireta do tempo e do espao em que ela executada. Mesmo que a tecnologia possa
reproduzir esta ao indiscriminadamente, ela foi pensada e elaborada pelo homem
influenciado por todos os aspectos que envolvem o seu ambiente de convivncia
social que, por sua vez, est baseado em um espao territorial.
Entender a relao entre territrio e instncia de poder no estado burgus,
portanto, torna-se essencial para a compreenso da temtica central desse trabalho,
visto que a partir dessa relao poder-se- provar que a dimenso participativa da
democracia nunca se desassociou da questo territorial, ou seja, a participao
democrtica, desde a sua origem, passando pelas suas diversas variaes histricas,
at o momento contemporneo, sempre necessitou do territrio para acontecer,
conforme segue.
a) Relao entre territrios e representao de poder no estado burgus
As instncias de poder no estado abrangem trs nveis, que aqui se chamar de
mbitos tcnicos: o poder executivo, legislativo e o judicirio. E tambm trs escalas
administrativas, que esto relacionadas com as escalas territoriais: a municipal, a
estadual e a federal. Cada escala territorial possui no seu sistema os trs mbitos
tcnicos citados. Os trs mbitos tcnicos, por sua vez, se relacionam
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constantemente, entre si e com os trs nveis da escala territorial, individualmente ou
em conjunto, formando uma teia altamente complexa e com diferentes nveis de
relaes, conforme pode ser visto na Fig. 1.
Fig. 1. Representao grfica das relaes estabelecidas pelas
dimenses tcnicas institudas pelos poderes executivo, legislativo e judicirio,
com as escalas territoriais municipal, estadual e federal do Estado.
Fonte: Mrcia Carvalhal, 2009.
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Em uma primeira reflexo possvel constatar que a atuao do estado, em
qualquer um dos trs mbitos tcnicos, seja no executivo, legislativo ou judicirio,
necessariamente, se dar em um dos nveis da escala territorial, seja municipal,
estadual ou federal, no podendo esta sequer existir se no estiver diretamente
relacionada com o territrio, independentemente do seu nvel na escala territorial.
Isso corresponde afirmao de que toda a representao de poder estabelecida
nos poderes executivo, legislativo e judicirio est, de certo modo, inserida no
contexto territorial e por isso mesmo sujeito as suas dinmicas e influncias direta ou
indireta. Corresponde tambm ao entendimento de que o exerccio autnomo dos trs
poderes deve se dar em cada uma das escalas territoriais individualmente, visto que
ao mudar a escala territorial muda-se tambm as relaes dos envolvidos com o
territrio.
A participao democrtica se efetiva na escala territorial mais prxima da ao
cidad, que seria a escala municipal que, por sua vez, a que possui menos autonomia
na escala de poder. Neste sentido, as representaes de poder e a participao cidad
nessa forma de governo, so inversamente proporcionais, pois na medida em que se
sobe na escala territorial, se perde em participao e, consequentemente, em
autonomia do cidado. Por outro lado, na escala territorial que o cidado possui mais
autonomia exatamente a escala de menor representao de poder.
O mesmo processo de desproporcionalidade acontece quando se pensa a
relao da participao democrtica nos trs poderes. Numa escala de representao
de poder ascendente os mbitos tcnicos ficariam: legislativo, executivo e judicirio,
respectivamente. Exatamente no mbito que se tem o maior acesso a participao
democrtica, o legislativo, que se encontra a menor representao de poder. E no
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que no se tem praticamente nenhum nvel de participao, que o judicirio,
tambm o que possui maior representao de poder, pois se caracteriza como
instncia mxima de deciso neste modelo de estado tripartite, que geralmente
modelo das repblicas democrticas.
Neste sentido, o modelo de governo democrtico baseado no estado burgus,
em nada favorece a participao democrtica efetiva que pode influenciar nas
decises dos representantes, conforme se pode constatar na Fig. 2. Nota-se que o
mbito tcnico e a escala territorial que, em tese, proporcionariam a maior
participao democrtica, que seria o poder legislativo do municpio, o que tem
menos representao de poder. Da mesma forma que o mbito tcnico e escala
territorial que proporcionam menor participao democrtica, que o judicirio
federal, o que mais tem representao de poder.
Quadro 1. Relao entre representao de poder e participao democrtica no estado burgus.
Fonte: Mrcia Carvalhal, 2009.
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Se por um lado, o modelo no favorece a participao democrtica, por outro,
centraliza as decises nas mos dos representantes em ambientes restritos, o que se
entendem como mais adequados realidade dos grandes centros urbanos que
comeam a surgir no perodo moderno. No ambiente das urbis, o espao pblico de
debates se torna invivel de se estabelecer, sobretudo, pelos limites fsico-espaciais.
Por isso, estes passam a se limitar aos espaos restritos das cmaras, assemblias e
congressos nacionais e somente para aqueles que possuam a investidura do poder de
representar os demais.
b) Democracia representativa: soluo para os limites fsicos impostos pelos
espaos de participao
O contexto de criao da democracia ateniense, que deu sentido palavra, o da
Antiguidade, em que o nmero de pessoas nas urbis era bastante limitado e o seu nvel
de complexidade, se comparado ao das cidades modernas, insignificante. J no
contexto das cidades contemporneas, um espao pblico que pressuponha dar conta
de uma participao direta da populao nas decises do estado, parece muito difcil
de acontecer, por uma srie de razes complexas, mas tambm por uma fundamental
e muito simples: o limite fsico-espacial.
A soluo encontrada dos centros urbanos para adaptar o modelo de democracia
participativa s novas necessidades modernas foi criar uma variao do sistema,
desenvolvendo o conceito de democracia representativa que, apesar de dar conta das
demandas espaciais e de representao de poder que surgem no perodo, diminuem,
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em muito, a dimenso participativa da democracia, uma vez que reduz
significativamente o poder de influncia do cidado nas instncias de deciso.
O novo modelo de democracia representativa fundada na Europa no perodo
moderno permitiu a participao de um nmero muito maior de pessoas j no
primeiro momento, e, ao chegar ao perodo contemporneo, extendeu a praticamente
todos os cidados.
Esse ganho quantitativo, entretanto, no significou ampliao efetiva do
processo de participao democrtica, pois, nessa forma de democracia, o cidado
tem a sua participao limitada indicao de algum que o representar nos
parlamentos, cmaras ou assemblias. Em resumo, a participao popular se
restringe a eleger uma pessoa ou um grupo como seus representantes, que sero
capazes de decidir por ele, de forma legtima, nas instncias de poder estabelecidas.
Mas a componente que traria as maiores implicaes participao
democrtica ainda no se tratou at aqui. No final do sculo XIX, com o surgimento
das grandes cidades, o advento da imprensa e posteriormente a tecnologia militar de
radiofrequncia, possibilitou o surgimento e o crescimento do que hoje se conhece
como meios de comunicao de massa que, segundo vrios estudiosos do perodo,
sobretudo, os membros da Escola de Chicago, surgem para o controle e organizao
social das cidades, local onde pessoas de culturas e idiossincrasias diversas tinham
que conviver e dividir pacificamente o mesmo espao.
c) Surgimento do quarto poder e as suas implicaes na dimenso participativa da
democracia
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Essa funo social atribuda aos meios de comunicao de massa pelos
estudiosos da Escola de Chicago , no foi o que se constatou como sua funo
principal ao longo da histria. Desde o final do sculo XIX e por quase todo o sculo
XX, os meios de comunicao de massa exerceram um forte poder sobre o cidado e
neste perodo teve como verdadeira funo dar visibilidade e/ou silenciar discursos e
pessoas. Sobre isso Cohn (1987, p. 242) observa que:
uma vez que os meios de comunicao so financiados pelos grandes interesses
econmicos, gerados no sistema econmico-social vigente, eles contribuem para a
manuteno desse sistema. [...] Na medida em que os meios de comunicao tm
exercido uma influncia sobre os seus pblicos, este fato deve-se no apenas ao que
expresso, mas sobretudo ao que no expresso nem dito de forma explcita.
Essa funo de dar visibilidade e/ou silenciar setores da sociedade sempre
fez parte do modelo industrial massivo dos meios de comunicao, duramente
criticado pelos autores da Escola de Frankfurt , desde a sua popularizao no final
do sculo XIX. O principal deles, Adorno (1987), desenvolveu o conceito de
indstria cultural, em que insinuava que os meios de comunicao de massa, ao
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21 A Escola de Chicago surgiu nos Estados Unidos, na dcada de 1910, por membros do corpo docente do
Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Entre 1915 e 1940, a Escola de Chicago produziu
um vasto e variado conjunto de pesquisas sobre os fenmenos sociais que ocorriam no meio urbano da grande
metrpole norte-americana. Com o seu surgimento inaugura-se um novo campo de pesquisa que levaria
constituio da chamada Sociologia Urbana como ramo de estudos especializados.
22 A Escola de Frankfurt nome dado a um grupo de e de tendncias
que se encontram no final da . A Escola de Frankfurt se associa diretamente chamada
. Deve-se Escola de Frankfurt a criao de conceitos como e
.
filsofos cientistas sociais marxistas
dcada de 1920 Teoria
Crtica da Sociedade indstria cultural cultura
de massa
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estandardizarem os seus produtos, submetem a audincia completa idiotizao,
alienando-a e controlando-a a partir de mecanismos especficos de controle e
dominao, como o caso da criao dos gneros televisivos.
Neste sentido, para os autores da escola crtica como ficou conhecida a Escola
de Frankfurt , os meios de comunicao de massa, sobretudo o rdio e a televiso, por
serem na contemporaneidade os maiores transmissores de informao, transformam-
se no centro das atenes e das investidas da classe dominante: as elites polticas e
econmicas. Essas elites, atravs da ideologia, no sentido marxista do termo, buscam
a alienao das massas, ou seja, o desconhecimento do seu verdadeiro poder
enquanto maioria quantitativa e a sua capacidade de mobilizao para
transformaes sociais, artsticas e culturais.
Por essa tica, constata-se que os meios de comunicao de massa esto,
estrategicamente, a servio do capitalismo. E, com isso, pressupe-se que estes
meios no estaro disponveis, por exemplo, para as manifestaes sociais e
reivindicativas realizadas pelos movimentos sociais ou grupos de mobilizao por
causas sociais.
Ao contrrio disso, conforme Wolf (1987, p.68), a mdia contribui para a
alienao e o conformismo social. E para ilustrar o autor e cita uma questo trazida
por Lazarsfeld e Merton:Desde o momento em que so sustentados pelas grandes empresas inseridas no atual
sistema econmico e social, os meios de comunicao de massa contribuem para a
manuteno desse sistema [...]; De fato, no s continuam a apoiar o status quo como
tambm, e na mesma medida,