Caosmose - Felix Guattari

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Caosmose - um Novo Paradigma Estetico - Guattari, Felix

Citation preview

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    1/107

    CA S M OUM NOVO PARADIGMA ESTETICO

    F e I ix G uattariTraducao Ana Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leao

    editorall34

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    2/107

    Analista, Felix Guattari comeca, no ini-cio da decada de 70, a interrogar 0 caratercient ifico - ou estrutural- dos operadorespsicanaliticos. Esta tarefa se realiza com 0desenvolvimento de uma abordagem constru-tivista do Inconsciente, determinada, em pri-meira instancia - e born lembrar - pela des-coberta freudiana dos processos de singula-rizacao semi6tica que comp6em 0 celebre"processo prima rio ".

    Sendo 0 inconsciente menos teatro (anti-go) do que usina (ada modernidade), e neces-sario experimentar Agenciarnentos e disposi-tivos ineditos de enunciacao analitica. Talopcao processual levara Guattari a elaboraruma modelizacao transfonnacional que opoeit prograrnacao psicanalitica do Outro umapragmatica ontologica das multiplicidades,implantada no Dando - e nao rnaisno sem-pre ja-dado, ocultado, velado, esquecido ...Foi essa a grande licao do Anti-Edipo, cscri-to com 0 fil6sofo Gilles De!euze: uma revo-lucao copernicana, que procura considerar asubjetividade sob 0 angulo de sua producao.

    E se a morte de Deus nao tivesse efeitoscnao com a morte de Edipo, enquanto repre-sentante da subjetividade capitalistica enalte-cida pela psicanalise (a representacao subje-tiva infinita), enquanto efeito de uma redu-cao significante que estrutura 0 Inconscientecomo a linguagem do recalcado, que rebatea Libido - essa materia abstrata do possivel- sobre 0 "pequeno segredo sujo" estendi-do a todos (ainteriorizacao extrema da divi-da infinita)?

    Segue-se 0programa rigoroso de urn pos-freudismo que se dedica a conceber 0 traba-lho analitico como uma verdadeira "hetero-genese", iniciando urn procedimento auto-enunciativo, produtor de novas" sintescs".No cruzamento dos fatos de sent ido, mate-riais e sociais, no rastro da invencao de no-vos universos de referencias, sua funcao e a

    [6 3 2 135 10 11 8_._---9 6 7 124 15114 1 1

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    3/107

    colecao TRANS

    Felix GuattariCAOSMOSE

    Ur n Novo Paradigrna Estetico

    TraducaoAna Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Ledo

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    4/107

    EDITORA 34Edi tor a 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000Sao Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

    Copyright Edi tor a 34 Ltda., (cdicao brasi le ira), 1992Caosmose Colegio Internacional de Estudos Filos6f icosTransd isc ip linares, Rio de Janeiro , 1992

    CAOSMOSEUrn Novo Paradigma Estetico

    A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA OESTE LIVRO Ii ILEGAL, E CONFIGURA UMAAPROPRJAC;Ao INIlEVIDA DOS DIREITOS INTELECTlJAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. 11

    HeterogeneseCapa, projeto gr. if ico e editoracao elctronica:Bracher &Malta Producao GraficaTranscr icao das f itas:Ceraldo Ramos Ponte Jr.

    99A Caosmose Esquizo

    Revisao tecnica:Suely Rolnik

    113Oralidade Maquinica e Ecologia do Virtual

    Revisao:Maira Parula de Assis

    1" Edicao - 1992 (4" Reimpressao - 2006)

    127o Novo Paradigm a Estetico153

    Espaco e Corporeidade

    92()319 CDD - 194

    169Restauracao da Cidade Subjetiva

    ClP - Brasil. Cataloga\ao-na-Fonte(Sind icato Nacional dos Edi tor es de Livros, RJ, Brasi l)

    Guattari, Felix, 1930-1992G9S3c Caosmose: urn novo paradigm e stct ic o I

    Fel ix Guat tar i; t raduca o de Ana Luci a d e Ol iv ei rae Lucia Claudia Lcao. - Sao Paulo: Ed. 34, 1992.208 p . ( Co leca o TRANS )ISBN 85-85490-01-2

    183Praticas Anali ticas e Praticas Sociais

    1. Erica - D is cursos , c onfe renc ia s e tc .2 . Estct ic a - D is cursos , c onfe renc ia s e tc . 3 . Psicana li se- F ilosof ia . 4 . F ilosof ia f ra uc esa I.Oliveira, AnaLuci a d e. I I. L ea o, L uci a Ci a udi a. I II . Ti tu lo .IV. Serie.

    http://www.editora34.com.br/
  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    5/107

    Sobre asripas da ponte, sobre osadros do barco, sobre 0mar, como percurso do sol no ceu e com 0do barco, se esboca, se esboca e se des-troi, com a mesma lentidao, uma escritura, ilegivcl e dilacerante de som-bras, de arestas, de traces de luz entrecor tada e refratada nos angulos,nos trianguios de uma geometria fugaz que seescoa ao sabor da sornbradas vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, COI1-tinuar a existir.

    Marguerite Duras (L'amant de fa Chine du Nord, Gallimard,Paris, 1991, pp. 218-219)

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    6/107

    Heterogenese

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    7/107

    1. DA PRODU

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    8/107

    momento em que foram assumidos pelos mass midia de al-cance mundial. Apresentaremos aqui sumariamente apenasdois exemplos. 0 imenso movimento desencadeado pelos es-tudantes chineses tinha, evidentemente, como objetivo pa-lavras de ordem de dernocratizacao politica. Mas pareceigualmente indubitavel que as cargas afetivas contagiosasque trazia ultrapassavam as simples reivindicacoes ideolo-gicas. E todo urn estilo de vida, toda uma concepcao das re-lacoes sociais (a partir das imagens veiculadas pelo Oeste),uma etica coletiva, que ai e posta em questao. E, afinal, ostanques nao poderao fazer nada contra isso! Como na Hun-gria ou na Polonia, e a mutacao existencial coletiva que teda ultima palavra! Porern os grandes movimentos de subjeti-vacao nao tendem necessariamente para urn senti do eman-cipador. A imensa revolucao subjet iva que atravessa 0povoiraniano ha mais de dez anos se focalizou sobre arcaismosreligiosos e atitudes sociais globalmente conservadoras -em particular, a respeito da condicao feminina (questaosensivel na Franca, devido aos acontecimentos no Maghrebe as repercussoes dessas atitudes repressoras em relacao asmulheres nos meios de imigrantes na Franca).

    No Leste, a queda da cortina de ferro nao ocorreu pelapressao de insurreicoes armadas, mas pela cristalizacao deurn imenso desejo coletivo aniquilando 0 substrato mentaldo sistema totalitario pos-stalinista. Fenorneno de uma ex-trema complexidade, ja que mistura aspiracoes emancipa-doras e pulsoes retrogradas, conservadoras, ate mesmo fas-cistas, de ordem nacionalista, etnica e religiosa. Como, nessatormenta, as populacoes da Europa Central e dos paises doLeste superarao a amarga decepcao que 0Oeste capitalistalhes reservou ate 0presente? A Historia nos did; uma His-toria portadora talvez de surpresas ruins e posteriormente,por que nao, de uma renovacao das lutas sociais! Quao as-sassina, em cornparacao, ted sido a guerra do Golfo! Qua-

    ilI II

    se se poderia falar, a seu respeito, de genocidio, ja que le-YOU ao exterminio muito mais iraquianos do que as vitirnasdas duas bombas de Hiroshima e de Nagasaki, em 1945.Mas com 0distanciamento ficou ainda mais claro que 0queestava em questao era essencialmente uma tentativa de do-mesticar a opiniao arabe e de retomar as redeas da opiniaomundial: era preciso demonstrar que a via yankee de subje-tivacao podia ser imposta pela potencia da midia combina-da a das armas.

    De urn modo geral, pode-se dizer que a historia con-ternporanea esta cada vez mais dominada pelo aumento dereivindicacoes de singularidade subjet iva - querelas l ingii is-ticas, reivindicacoes autonomistas, questoes nacionalisticas,nacionais que, em uma ambigii idade total , exprimem por urnlado uma reivindicacao de tipo liberacao nacional, mas que,por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterri-torializacoes conservadoras da subjetividade. Deve-se admi-tir que uma certa representacao universalista da subjetivi-dade, tal como pede ser encarnada pelo colonialismo capi-talistico do Oeste e do Leste, faliu, sem que ainda se possaplena mente medir a amplidao das conseqiiencias de urn talfracasso. Atualmente ve-se que a escalada do integrismo nospaises arabes e rnuculmanos pode ter conseqiiencias incal-culaveis nao apenas sobre as relacoes internacionais , mas so-bre a economia subjetiva de centenas de milhoes de indivi-duos. E toda a problernatica do desamparo, mas tam bern daescalada de reivindicacoes do Terceiro Mundo, dos paisesdo SuI, que se acha assim marcada por urn ponto de inter-rogacao angustiante.

    A sociologia, as ciencias econornicas, politicas e juri-dicas parecem, no atual estado de coisas, insuficientementearmadas para dar conta de uma tal mistura de apego arcai-zante as tradicoes culturais e entretanto de aspiracao a 1110-dernidade tecnologica e cientifica, mistura que caractcriza

    I' Caosmose Heterogenese 13

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    9/107

    o coquetel subjetivo contemporaneo. A psicanalise tradicio-nal, por sua vez, nao esta nem urn pouco melhor situadapara enfrentar esses problemas, devido a sua maneira dereduzir os fatos sociais a mecanismos psicol6gicos. Nessascondicoes, parece indica do forjar uma concepcao mais trans-versalista da subjetividade, que permita responder ao mes-mo tempo a suas amarracoes territorializadas idiossincra-ticas (Territ6rios existenciais) e a suas aberturas para siste-mas de valor (Universos incorporais) com implicacoes so-ciais e culturais.

    Devem-se tomar as producoes semi6ticas dos mass rni-dia, da informatica, da telematica, da rob6tica etc ... fora dasubjetividade psicol6gica? Penso que nao. Do mesmo modoque as maquinas sociais que podem ser classificadas na ru-brica geral de Equipamentos Coletivos, as maquinas tecno-16gicas de inforrnacao e de cornunicacao ope ram no nucleoda subjetividade humana, nao apenas no seio das suas me-m6rias, da sua inteligencia, mas tambem da sua sensibili-dade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. Aconsideracao dessas dimensoes maquinicas de subjetivacaonos leva a insistir, em nossa tentativa de redefinicao, na he-terogeneidade dos componentes que concorrem para a pro-ducao de subjetividade, ja que encontramos at: 1. cornpo-nentes semiol6gicos significantes que se manifestam atra-yes da familia, da educacao, do meio ambiente, da religiao,da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela industriados rnidia, do cinema, etc. 3. dimensoes semiol6gicas a-signif icantes colocando em jogo rnaquinas informacionaisde signos, funcionando paralelamente ou independente-mente, pelo fato de produzirem e veicularem significacoese denotacoes que escapam entao as axiornaticas propria-mente linguisticas.

    As correntes estrutural is tas nao deram sua autonomia,:;11;1 ( 'spccificidade, a esse regime semi6tico a-significante,

    ainda que certos autores como Julia Kristeva ou JacquesDerrida tenham esclarecido urn pouco essa relat iva autono-mia desse tipo de componentes. Mas, em geral, as corren-tes estruturalistas rebateram a economia a-significante dalinguagem - 0que chamo de rnaquinas de sign o s - sobrea economia linguist ica, significacional , da l ingua. Isso e par-ticularmente sensivel em Roland Barthes, que relaciona to-dos os elementos da linguagem, os segmentos da narrativi-dade, as figuras de Expressao e confere a semiologia l ingiiis-tica urn prima do sobre todas as semi6ticas. Foi urn graveerro, por parte da corrente estruturalista, pretender reunirtudo 0 que concerne a psi que sob 0 unico baluarte do sig-nificante lingufstico!

    As transforrnacoes tecno16gicas nos obrigam a consi-derar simultaneamente uma tendencia a hornogeneizacaouniversalizante e reducionista da subjetividade e uma ten-dencia heterogenetica, quer dizer, urn reforco da heteroge-neidade e da singularizacao de seus componentes. E assimque 0 "trabalho com 0computador" conduz a producao deimagens abrindo para Universos plasticos insuspeitados -penso, por exemplo, no trabalho de Matta com a palhetagrafica - ou a resolucao de problemas maternaticos que te-ria sido propriamente inimaginavel ate algumas decadasarras. Mas, ainda ai, e preciso evitar qualquer ilusao pro-gressista ou qualquer visao sistematicamente pessimista. Aprodeicao maquinica de subjetividade pode trabalhar tantopara 0 melhor como para 0 pior. jExiste uma atitude anti-modernista que consiste em rejeitar macicarnente as inova-coes tecnol6gicas, em particular as que estao ligadas a re-volucao informatica. Entretanto, tal evolucao maquinicanao pode ser julgada nem positiva nem negativamente; tudodepende de como for sua articulacao com os agenciamen-tos coletivos de enunciacao. 0 melhor e a criacao, a inven-cao de novos Universos de referencia; 0 pior e a mass-rni-

    I I Caosmose Heterogenese 15

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    10/107

    I I). Sinn, The Impersonal World of the Infant, Basic Book Inc.Publislwr-. Nov;] York, 1985.

    rna de atividade e de responsabilidade, nao apenas com 0objetivo de desenvolver urn ambiente de comunicacao, mastambern para criar instancias locais de subjetivacao coleti-va. Nao se trata simples mente, portanto, de uma rernode-lagem da subjet ividade dos pacientes, tal como preexistia acrise psicotica, mas de uma producao sui generis. Por exern-plo, certos doentes psicoticos de origem agricola, de meiopobre, serao levados a praticar artes plast icas, teatro, video,rmisica, etc., quando esses eram antes Universos que lhes es-capavam completamente.

    Em contrapart ida, burocratas e intelectuais se sentiraoatraidos por urn trabalho material, na cozinha, no jardim,em ceramica, no clube hipico. 0 que importa aqui nao e uni-camente 0 confronto com uma nova materia de expressao,e a constituicao de complexos de subjetivacao: individuo-grupo-maquina-trocas rnultiplas, que oferecern a pessoa pos-sibi lidades diversificadas de recompor uma corporeidadeexistencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de algu-rna forma, de se re-singularizar.

    Assim se operam transplantes de transferencia que naoprocedem a partir de dirnensoes "ja existentes" da subjeti-vidade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que pro-cedem de uma criacao e que, por esse motivo, seriam antesda alcada de uma especie de paradigma estetico. Criam-senovas modalidades de subjetivacao do mesmo modo que urnartista plastico cria novas formas a partir da palheta de quedispoe. Em urn tal contexto, percebe-se que os componen-tes os mais heterogeneos podem concorrer para a evolucaopositiva de urn doente: as relacoes com 0espa

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    11/107

    cao de uma relacao autentica com 0outro. A cada urn des-ses componentes da insti tuicao de tratamento correspondeuma pratica necessaria. Em outros termos, nao se esta maisdiante de uma subjetividade dada como urn em si, mas facea pracessos de autonomizacao, ou de autopoiese, em urn sen-tido urn pouco desviado do que Francisco Varela da a esseterrno-.Consideremos agora urn exemplo de exploracao dos re-cursos etol6gicos e ecol6gicos da psique no dorninio daspsicoterapias familiares, muito particularmente no ambitoda corrente que, em torno de Mony Elkaim, tenta se liber-tar da dorninacao das teorias sistemistas em curso nos pai-ses anglo-saxonios e na Italia ',

    A inventividade das curas de terapia familiar, tais co-mo sao aqui concebidas, tam bern nos distancia de paradig-mas cientificistas para nos aproximar de urn paradigma eti-co-estetico. 0 terapeuta se engaja, corre riscos, nao hesitaem considerar seus pr6prios fantasmas e em criar urn eli-rna paradoxal de autenticidade existencial , acrescido entre-tanto de uma liberdade de jogo e de simulacra. Ressalte-mos, a esse respeito, que a terapia familiar e levada a pro-duzir subjetividade da mane ira mais artificial possivel, emparticular durante a formacao, quando os terapeutas sereunern para improvisar cenas psicodrarnaticas. A cena,aqui, implica uma rnultipla superposicao da enunciacao:uma visao de si mesmo, enquanto encarnacao concreta; urnsujei to da enunciacao que duplica 0sujeito do enunciado ea distribuicao dos papeis; uma gestae coletiva do jogo; umainterlocucao com os comentadores dos acontecimentos; e,

    enfim, urn olhar-video que restitui em feedback 0 conjun-to desses niveis superpostos.

    Esse tipo de performance favorece 0abandono da ati-tude realista, que consistiria em apreender as cenas vividascomo correspondentes a sistemas realmente encarnados nasestruturas familiares. Atraves desse aspecto teatral de mul-tiplas facetas, apreende-se 0carater artificial cr iacionista daproducao de subjetividade. E particularmente notavel quea instancia do olhar-video habite a visao dos terapeutas.Mesmo se estes nao manipulem efetivamente uma camera,adquirem 0habito de observar certas manifestacoes sernio-ticas que escapam ao olhar comum. 0 face a face hidico comos pacientes, a acolhida imediata das singularidades desen-volvida por esse tipo de terapia, se diferencia da atitude dopsicanalista que esconde 0rasto, ou mesmo da performancepsicodrarnatica classica,

    Quer nos voltemos para 0 lado da hist6ria contempo-ranea, para 0 lado das producoes semi6ticas maquinicas oupara 0 lado da etologia da infancia, da ecologia social e daecologia mental, encontraremos 0mesmo questionamentoda individuacao subjetiva que subsiste certamente mas quee trabalhada por Agenciamentos coletivos de enunciacdo,No ponto em que nos encontramos, a definicao provis6riamais englobante que eu proporia da subjetividade e: "0conjunto das condicoes que torn a possivel que instanciasindividuais e/ou coletivas estejam em posicao de emergircomo territ6rio existencial auto-referencial, em adjacenciaou em relacao de delimitacao com uma alteridade ela rnes-rna subjetiva".

    Assim, em certos contextos socia is e semiol6gicos, asubjetividade se individua: uma pessoa, tida como respon-save] por si mesma, se posiciona em meio a relacoes de al-teridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis ju-ridicas ... Em outras condicoes, a subjet ividade se faz coleti-

    2 F. Varela, Autonomie et connaissance, Le Seuil, Paris, 1989..1 M. Elkaim, Si tu m'aimes, ne m'airne pas, Le Seuil, Paris, 1989.

    Fdi,:;jo hrasileira: Se voce me ama, ndo me ame. Abordagem sistemica, ' / 1 ' /,si{()/I'rapia familiar e conjugal, Papirus, Campinas, 1990.

    Caosmose Heterogenese 19

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    12/107

    va, 0 que nao significa que ela se torne por isso exclusiva-mente social. Com efeito, 0 termo "coletivo" deve ser en-tendido aqui no senti do de uma multiplicidade que se de-senvolve para alern do individuo, junto ao socius, assimcomo aquern da pessoa, junto a intensidades pre-verbais , de-rivando de uma logica dos afetos mais do que de uma logi-ca de conjuntos bern circunscritos.As condicoes de producao evocadas nesse esboco deredefini~ao implicam, entao, conjuntamente, instancias hu-manas inter-subjetivas manifestadas pel a linguagem e ins-tancias sugestivas ou identi ticatorias concernentes a etolo-gia, interacoes insti tucionais de diferentes naturezas, dispo-sitivos maquinicos, tais como aqueles que recorrem ao tra-balho com computador, Universos de referencia incorporais,tais como aqueles relativos a musica e as artes plasticas ...Essa parte nao-humana pre-pessoal da subjet ividade e essen-cial, ja que e a partir dela que pode se desenvolver sua hete-rogenese. Deleuze e Foucault foram condenados pelo fatode enfatizarem uma parte nao-humana da subjetividade,como se assumissem posicoes anti-humanistas! A questaonao e essa, mas a da apreensao da existencia de maquinasde subjetivacao que nao trabalham apenas no seio de "facul-dades da alma", de relacoes interpessoais ou nos complexosintra-familiares. A subjetividade nao e fahricada apenas atra-yes das fases psicogeneticas da psicanalise ou dos "matemasdo Inconsciente" , mas tambern nas grandes maquinas sociais,mass-mediat icas, l inguist icas, que nao podem ser qualifica-das de humanas. Assim, urn certo equilibrio deve ser encon-trado entre as descobertas estruturalistas, que certamentenao sao negligenciaveis, e sua gest io pragmatica, de maneiraa nao naufragar no abandonismo social pos-moderno.

    Com seu conceito de consciente, Freud postulou a exis-tencia de urn continente escondido da psique, no interior doqual se representaria 0 essencial das opcoes pulsionais, afe-

    'II Caosmosc

    t ivas e cognit ivas. Atualmente nao se podem dissociar as teo-r ias do inconsciente das prat icas psicanalit icas, psicotera-peuticas, inst itucionais , Ii terarias etc., que a elas se referem.o inconsciente se tornou uma instituicao, urn "equipamentocoletivo" compreendido em urn sentido mais amplo. En-contrarno-nos trajados de urn inconsciente quando sonha-mos, quando deliramos, quando fazemos urn ato falho, urnlapso ... Incontestavelmente as descobertas freudianas - queprefiro qualificar de invencoes - enriqueceram os angulossob os quais se pode atualmente abordar a psique. Portan-to, nao e absolutamente em urn sentido pejorativo que faloaqui de invencao! Assim como os cristaos inventaram umanova formula de subjetivacao, a caval aria cortes, e 0roman-tismo, urn novo amor, uma nova natureza, 0 bolchevismo,urn novo sentimento de dasse, as diversas sei tas freudianassecretaram uma nova maneira de ressentir e mesmo de pro-duzir a histeria, a neurose infantil, a psicose, a conflituali-dade familiar, a leitura dos mitos, etc ... 0 proprio incons-ciente freudiano evoluiu ao longo de sua historia, perdeu ariqueza efervescente e 0 inquietante ateismo de suas origense se recentrou na analise do eu, na adaptacao a sociedadeou na conformidade a uma ordem significante, em sua ver-sao estruturalista.

    Na perspectiva que e a minha e que consiste em fazertransitar as ciencias humanas e as ciencias sociais de para-digmas cientificistas para paradigmas etico-esteticos, a ques-tao nao e mais a de saber se 0 inconsciente freudiano ou 0inconsciente lacaniano fornecem uma resposta cientif ica aosproblemas da psique. Esses modelos so serao consideradosa titulo de producao de subjetividade entre outros, insepa-raveis dos dispositivos tecnicos e institucionais que os pro-movem e de seu imp acto sobre a psiquiatria, 0 ensino uni-versitario , os mass midia .. . De uma maneira mais geral, de-ver-se-a admitir que cada individuo, cada grupo social vc i

    Heterogenese 21

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    13/107

    cula seu proprio sistema de modelizacao da subjetividade,quer dizer, uma certa cartografia feita de dernarcacoes cog-nitivas, mas tam bern miticas, rituais, sintomatologicas, apartir da qual ele se posiciona em relacao aos seus afetos,suas angustias e tenta gerir suas inibicoes e suas pulsoes.

    Durante uma cura psicanaHtica, somos confrontadoscom uma multiplicidade de cartografias: a do analista e ado analisando, mas tambern a cartografia familiar ambien-te, a da vizinhanca, etc. E a interacao dessas cartografiasque dara aos Agenciamentos de subjetivacao seu regime.Mas nao se podera dizer de nenhuma dessas cartografias -fantasmaticas, delirantes ou teoricas - que exprima urnconhecimento cientifico da psique. Todas tern importanciana medida em que escoram urn certo contexto, urn certoquadro, uma armadura existencial da situacao subjetiva.Assim nos sa questao, hoje em dia, nao e apenas de ordemespeculativa, mas se coloca sob angulos muito praticos:sera que os conceitos de inconsciente, que nos sao propos-tos no "mercado" da psicanalise, convem as condicoes a-tuais de producao de subjetividade? Seria preciso trans-forma-los, inventar outros? Logo, 0 problema da mode-l izacao, rnais exatamente da rnetamode lizacao psicologica,e 0 de saber 0 que fazer com esses instrumentos de carto-grafia, com esses conceitos psicanaliticos, sistemistas etc.Sera que sao utilizados como grade de leitura global exclu-siva com pretensao cientifica ou enquanto instrumentosparciais, em composicao com outros, sendo 0 criterio ulti-mo 0 de ordem funcional?Que processos se desenrolam em uma consciencia como choque do inusitado? Como se operam as modificacoesde urn modo de pensamento, de uma aptidao para apreen-der 0mundo circundante em plena mutacao? Como mudar:lS represenracoes desse mundo exterior, ele mesmo em pro-t ( '' ;so dl' mudanca? 0 inconsciente freudiano e inseparavel

    de uma sociedade presa ao seu passado, as suas tradicoesfalocrat icas, as suas invariantes subjet ivas. As convulsoesconternporaneas exigem, sem duvida, uma modelizacaomais voltada para 0 futuro e a ernergencia de novas prati-cas sociais e esteticas em todos os dominios. A desvaloriza-cao do sentido da vida provoca 0esfacelamento da imagemdo eu: suas representacoes tornam-se confusas, contradito-rias. Face a essas convulsoes, a melhor atitude consiste emvisar ao trabalho de cartografia e de rnodelizacao psicolo-gica em uma relacao dialetica com os interessados, os indi-viduos e os grupos concernidos, quer dizer, indo no senti-do de uma co-gestao da producao de subjetividade, renun-ciando as atitudes de autoridade, de sugestao, que ocupamurn lugar tao destacado na psicanalise, a despeito de elapretender ter escapado disto.

    Ha muito tempo recusei 0dualismo Consciente-Incons-ciente das topicas freudianas e todas as oposicoes maniqueis-tas correlativas a triangulacao edipiana, ao complexo de cas-tracao etc . .. Optei por urn inconsciente que superpoe rmil-tiplos estratos de subjetivacoes, estratos heterogeneos, deextensao e de consistencia maiores ou menores. Inconscien-te, entao, mais "esquizo ", liberado dos grilhoes familialistas,mais volta do para praxis atuais do que para fixa

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    14/107

    multicomponencial coexistir corn 0 processo de subjetiva-cao e de ser assim torn ada possivel uma reapropriacao, umaautopoiese, dos meios de producao da subjet ividade.

    Que fique bern claro que nao assimilo a psicose a umaobra de arte e 0psicanalista, a urn art is ta! Afirmo apenas queos registros existenciais aqui concernidos envolvem uma di-mensao de autonomia de ordem estetica. Estamos diante deuma escolha etica crucial : ou se objetiva, se reif ica, se "cien-tificiza" a subjetividade ou, ao contrario, tenta-se apreende-la em sua dimensao de criatividade processual. Kant enfati-zara que 0julgamento de gosto envolve a subjetividade e sua. d d "d . "5relacao com outrem em uma certa atitu e e esinteresse .Mas nao basta designar essas categorias de liberdade e de de-sinteresse como dimensoes essenciais da estetica inconscien-teoconvem ainda considerar seu modo de insercao ativo na,psique. Como certos segmentos semioticos adquirem sua au-tonomia comecam a trabalhar por sua propria conta e a se-, , 1cretar novos campos de referencia? E a partir de uma ta rup-tura que uma singularizac,;ao existencial corre1ativa a genesede novos coeficientes de liberdade tornar-se-a possivel , Umatal separacao de urn "objeto parcial" etico-estet ico do campodas signif icacoes dominantes corresponde ao mesmo tempoa prornocao de urn desejo mutante e a finalizacao de um.certodesinteresse. Gostaria de fazer uma ponte entre 0concerto deobjeto parcial ou de objeto "a", tal como foi teorizado porLacan, que representa a autonomizacao de componel:tes dasubjetividade inconsciente, e a autonomizac,;ao subjctiva en-gendrada pelo objeto estetico. ..'Encontramos aqui a prohlematica de Mikhail Bakhtme

    5 "Pode-se dizer que, entre as t re s fontes de sa ti sfnc .io (p. ir .: 0 ;11',1"

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    15/107

    engendra urn certo modo de enunciacao estetica. Na rmisi-ca, por exemplo, onde - repete-nos Bakhtine - 0isolamen-to e a invencao nao podem ser relacionados axiologicamentecom 0material : "Nao e 0 som da acustica que se isola nemo mirnero maternatico intervindo na cornposicao que se in-venta. E 0acontecimento da aspiracao e a tensao valorizanteque sao isolados e tornados irreversiveis pela invencao e,gracas a isso, se eliminam por eles mesmos sem obstaculo eencontram urn repouso em sua finalizacaov",

    Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar,se autonomizar , se finalizar, apossar-se-a, de preferencia:

    1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical;2) de suas significacoes materia is com suas nuancas e

    variantes;3) de seus aspectos de ligacao verbal;4) de seus aspectos entonativos emocionais e voli tivos;5) do sentimento da atividade verbal do engendramento

    ativo de urn som significante que comporta elementos mo-tores de articulacao, de gesto, de mimica, sentimento de urnmovimento no qual sao arrastados 0 organisrno inteiro, aatividade e a alma da palavra em sua unidade concreta.

    E, evidentemente, declara Bakhtine, e esse ultimo as-pecto que engloba os outros",

    Essas analises penetrantes podem conduzir a uma am-pliacao de nossa abordagem da subjetivacao parcial . Encon-tramos igualmente em Bakhtine a ideia de irreversibi lidadedo objeto estet ico e implici tamente de autopoiese, nocoes taonecessarias no campo da analise das formacoes do Inconscien-te, da pedagogia, da psiquiatria, e mais geralmente no cam-po social devastado pela subjetividade capitalistica. Nao eentao apenas no quadro da music a e da poesia que vemos

    8 Idem, p. 74.9 Ibidem.

    ,',f) ( :;lOSI110Se

    funcionarem tais fragment os destacados do contei ido que, deurn modo geral, incluo na categoria dos ritornelos existen-ciais. A polifonia dos modos de subjetivacao corresponde, defato, a uma multipl icidade de maneiras de "marcar 0tempo".Outros ritmos sao assim levados a fazer cristalizar Agencia-mentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.

    Os casos mais simples de ritornelos de delimitacao deTerritorios existenciais podem ser encontrados na etologiade numerosas especies de passaros cujas seqiiencias especi-ficas de canto servem para a seducao de seu parceiro sexual,para 0 afastamento de intrusos, 0 aviso da chegada de pre-dadores . .. JOTrata -se, a cada vez, de definir urn espaco fun-cional bem-definido. Nas sociedades arcaicas, e a partir deritmos, de cantos, de dancas, de mascaras, de marcas nocorpo, no solo, nos Totens, por ocasiao de rituais e atravesde referencias rniticas que sao circunscritos outros tipos deTerritorios existenciais coletivos 11. Encontramos esses tiposde ritornelos na Antigiiidade grega com os "nomos", queconsti tuiarn, de alguma forma, "indicativos sonoros", estan-dartes e selos para as corporacoes profissionais .

    Mas cada urn de nos conhece tais transposicoes de li-miar subjetivo pela atuacao de urn modulo temporal cata-lisador que nos mergulhara na tristeza ou, entao, em urnclima de alegria e de anirnacao. Com esse conceito de ritor-nelo, visamos nao somente a tais afetos massivos, mas a ri-tornelos hipercomplexos, catalisando a entrada de Univer-sos incorporais tais como 0 da musica ou 0 das matemati-cas e cristalizando Territories existenciais muito mais des-

    10 F. Guattari, L'inconscient machinique, Editions Recherches, Pa-ris, 1979.11Ver 0 papel dos sonhos nas cartografias miticas entre os abori-

    gines da Australia, d. B. Glowczewski, Les reueurs du desert, Pion, Pa-ris, 1989.

    Heterogenese

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    16/107

    territorializados. E nao se trata, com isso, de universos dereferencia "em geral", mas de universos singulares, histori-camente marcados no cruzamento de divers as linhas devirtualidade. Urn ritornelo complexo - aquem dos da poe-sia e da musica - marca 0 cruzamento de modos hetero-geneos de subjetivacao. Por urn longo periodo, 0tempo foiconsiderado uma categoria universal e univoca, ao passoque, na realidade, sempre lidamos apenas com apreensoesparticulares e multivocas. 0 tempo universal e apenas umaprojecao hipotetica dos modos de ternporalizacao concer-nentes a modules de intensidade - os ritornelos - queoperam ao mesmo tempo em registros biologicos, socio-culturais, maquinicos, cosmicos etc...

    Para ilustrar esse modo de producao de subjetividadepolifonica em que urn ritornelo complexo representa urnpapel preponderante, consideremos 0 exemplo da consu-macae televisiva. Quando olho para 0 aparelho de televi-sao, existo no cruzamento: 1. de uma fascinacao percepti-va pelo foco luminoso do aparelho que confina ao hip-notismol=; 2. de uma relacao de captura com 0 conteudonarrativo da ernissao, associada a uma vigiliincia lateralacerca dos acontecimentos circundantes (a agua que ferveno fogo, urn grito de crianca, 0 telefone .. . ); 3. de urn mun-do de fantasmas que habitam meu devaneio ... meu senti-mento de identidade e assim assediado por diferentes dire-coes. 0 que faz com que, apesar da diversidade dos com-ponentes de subjetivacao que me atravessam, eu conserveurn sentimento relativo de unicidade? Isso se deve a essaritornelizacao que me fix a diante da tela, constituida, as-sim, como no existencial projetivo. Sou 0 que esta diante

    l2 Sobre 0 tema do "retorno" it hipnose e it sugestao, d.L. Chertoke 1. Stengers, Le coeur et fa ra ison . L'hypnose en question de Lavo isier IILacan, Payot, Pa ri s, 1989.

    Caosmose

    de mim. Minha identidade se tornou 0speaker, 0persona-gem que fala na televisao, Como Bakhtine, diria que 0 ri-tornelo nao se apoia nos elementos de formas, de materia,de significacao comum, mas no destaque de urn "motivo"(ou de leitmotiv) existencial se instaurando como "atrator"no seio do caos sensivel e signif icacional .

    Os diferentes componentes rnantem sua heterogeneida-de, mas sao entretanto captados por urn ritornelo, que ga-nha 0 territorio existencial do eu. Com a identidade neuro-t ica, acontece que 0 ritornelo se encarna em uma represen-tacao "endurecida", por exemplo, urn ritual obsessivo. Se,por urn motivo qualquer, essa rnaquina de subjetivacao earneacada, e entao toda a personalidade que pode implodir:e 0 caso na psicose, em que os componentes parciais par-tern em linhas delirantes, alucinatorias etc.

    Com esse conceito dif icil e paradoxal de ri tornelo com-plexo, poder-se-a referir urn acontecimento interpretativo,em uma cur a psicanalitica, nao a universais ou a matemas,a estruturas preestabelecidas da subjetividade, mas ao queeu denominaria uma constelacao de Universos de referen-cia. Nao se trata, entao, de Universos de referencia em ge-ral, mas de dorninios de entidades incorporais que se detec-tam ao mesmo tempo em que sao produzidos, e que se en-contram todo 0 tempo presentes, desde 0 instante em queos produzimos. Eis ai 0 paradoxo proprio a esses Univer-sos: eles sao dados no instante criador, como hecceidade eescapam ao tempo discursivo; sao como os focos de eterni-dade aninhados entre os instantes. Alem disso, implicam aconsideracao nao somente dos elementos em situacao (fa-miliar, sexual, conflitiva), mas tambern a projecao de todasas linhas de virtualidade, que se abrem a partir do aconte-cimento de seu surgimento.

    Tomemos um exemplo simples: um paciente, no pro-cesso de cura, permanece bloqueado em seus problemas, em

    Hcterogenese 29

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    17/107

    urn impasse. Essa pessoa, urn dia, faz a seguinte afirrnacao,sem the dar irnportancia: "tenho vontade de retomar minhasaulas de direcao, pois nao dirijo ha anos"; ou entao, "tenhovontade de aprender a processar textos". Trata-se de aeon-tecimentos menores que poderiam passar despercebidos emuma concepcao tradicional da analise. Mas nao e de todoinconcebivel que 0que denomino uma tal singularidade setorne uma chave, desencadeando urn ritornelo complexo,que nao apenas modificara 0 comportamento imediato dopaciente, mas the abrira novos campos de virtualidade. Asaber, a retomada de contato com pessoas que perdera devista, a possibilidade de restabelecer a ligacao com antigaspaisagens, de reconquistar uma seguranca neuro16gica. Aquiuma neutralidade rigida demais, uma nao-intervencao doterapeuta se tornaria negativa; po de ser necessario, em taiscasos, agarrar as oportunidades, aquiescer, correr 0risco dese enganar, de tentar a sorte, de dizer "sim, com efeito, essaexperiencia talvez seja importante". Fazer funcionar 0aeon-tecimento como portador eventual de uma nova constela-cao de Universos de referencia: e 0que viso quando falo deuma intervencao pragmatic a voltada para a construcao dasubjetividade, para a producao de campos de virtualidadese nao apenas polarizada por uma hermeneutic a simbolicadirigida para a infancia.

    Nessa concepcao de analise, 0tempo deixa de ser vivi-do passivamente; ele e agido, orientado, objeto de mutacoesquali tativas. A analise nao e mais interpretacao transferen-cia1de sintomas em funcao de urn conteudo latente preexis-tente, mas invencao de novos focos catal iticos suscetiveis defazer bifurcar a existencia, Uma singularidade, uma ruptu-ra de sentido, urn corte, uma fragrnentacao, a separacao deurn conteudo semiotico - por exemplo, a moda dadaistaou surrealista - podem originar focos mutantes de subje-Iiv.icao. Da mesma forma que a quimica teve que cornecar

    Caosmose

    a depurar misturas complexas para delas extrair materiasatornicas e moleculares hornogeneas e, a partir delas, com-~or uma gama infinita de entidades quimicas que nao exis-~la~. anteriormente, a "extracao" e a "separacao" de sub-Jetlvl~~des esteticas ou de objetos parciais, no sentido psi-can~h~l~o, tornam possiveis uma imensa complexificacao dasubjetividade, harmonias, polifonias, contrapontos, r itmose orquestracoes existenciais ineditos e inusitados.

    Cornplexificar jr, desterritorializante essencialmenteprecaria , porque con stante mente ameacada de enfraqueci-n : ento reterritorializante, sobretudo no contexto contempo-raneo onde 0prima do dos fluxos informativos engendradosma.quinicamente arneaca conduzir a uma dissolucao gene-rah.zada das antigas terri turial idades existenciais. Nas pri-meiras fases das sociedades industriais, 0 "demoniaco" ain-da continuava a aflorar por toda parte, mas doravante 0mis-terio se t~rnou uma mercadoria cada vez mais rara. Quebaste aqui evocar a busca desesperada de urn Witkiewiz paraapreender uma ultima "estranheza do ser" que parecia lite-ralmente escapar-lhe por entre os dedos.

    Nessas condicoes, cabe especialmente a funcao poeti-ca recompor universos de subjetivacao artificialmente rare-feitos e re-singularizados. Nao se trata, para ela de trans-. . ,rnmr mensa gens, de investir imagens como suporte de iden-t if icacao ou padroes formais como esteio de procedimentode modelizacao, mas de catalisar operadores existenciais sus-cetiveis de adquirir consistencia e persistencia,

    Essa catalise poetico-existencinl, que encontraremos emoperacao no seio de discursividades escriturais vocais mu-. . , ,sicais ou plasticas, engaja quase sincronicamente a recris-taljzacao enunciativa do criador, do interprete e do aprecia-dor da obra de arte. Sua eficacia reside essencialmente em~uacapacidade de prom over rupturas ativas, processuais, nomterror de tecidos signif icacionais e denotat ivos semiotic a-

    l Icterogenese .)1

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    18/107

    mente estruturados, a partir dos quais ela colocara em fun-cionamento uma subjetividade da ernergencia, no sentido deDaniel Stern.Quando ela se lanca efetivamente em uma zona enun-ciativa dada - quer dizer, situada a partir de urn ponto devista hist6rico e geopolltico -, uma tal funcao analitico-poetica se instaura entao como foco mutante de auto-refe-renciacao e de auto-valoriza

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    19/107

    forrnacoes sociais podem proceder em grande escala, porrnutacao de subjetividade, como se ve atualmente com asrevolucoes subjetivas que se passam no leste de urn modomoderadamente conservador, ou nos paises do Oriente Me-dio, infelizmente de urn modo largamente reacionario, atemesmo neofascista. Mas elas podem tam bern se produzir emuma escala molecular - microfisica, no sentido de Foucault_, em uma atividade politica, em uma cura analitica, na ins-talacao de urn dispositivo para mudar a vida da vizinhan-ca, para mudar 0modo de funcionamento de uma escola,de uma instituicao psiquiatrica,

    Tentei mostrar, ao longo dessa prime ira parte, que asaida do reducionismo estrutural is ta pede uma refundacaoda problernatica da subjetividade. Subjetividade parcial, pre-pessoal, polifonica, coletiva e maquinica. Fundamentalmen-te, a questao da enunciacao se encontra ai descentrada emrelacao a da individuacao humana. Ela se torna correlativanao somente a emergencia de uma logica de intensidadesnao-discursivas, mas igualmente a uma incorporacao-aglo-meracao patica, desses vetores de subjetividade parcial .

    Convern assim renunciar as pretensoes habitualmenteuniversalistas das modelizacoes psicol6gicas. Os conteudosditos cientificos das teorias psicanal i ticus ou sistemistas, as-sim como as modelizacoes mitologicns ou rcligiosas, ou ain-da as modelizacoes do delirio sistcm;lt ico, valent essencial-mente por sua funcao existencializantc, qucr dizer , de pro-ducao de subjetividade. Nessas condicocs, a nrividade te6ricase reorientara para uma metamodelizacao capa/: de abarcara divers ida de dos sistemas de modelizaciio. A (SS( rcspeito,convern, particularmente, situar a incidcn.ia concreta dasubjetividade capitalistica atualmente, subjr-rivid.ulc do equi-

    34 Caosmose

    valer generalizado, no contexto de desenvolvimento conti-nuo dos mass rnidia, dos Equipamentos Coletivos, da revo-lucao informatica que parece chamada a recobrir com suacinzenta monotonia os minirnos gestos, os ult imos recantosde rnister io do planeta.

    Proporemos entao operar urn descentramento da ques-tao do sujeito para a da subjetividade. 0 sujeito, tradicio-nalmente, foi concebido como essencia ultima da indivi-duacao, como pura apreensao pre-reflexiva, vazia, do rnun-do, como foco da sensibilidade, da expressividade, unifica-dor dos estados de consciencia. Com a subjetividade, seradada, antes, enfase a instancia fundadora da intencionali-dade. Trata-se de tomar a relacao entre 0 sujei to e 0 objetopelo meio, e de fazer passar ao primeiro plano a instanciaque se exprime (ou 0 Interpretante da tria de de Pierce). Apartir dai se recolocara a questao do Conteudo. Este parti-cipa da subjetividade, dando consistencia a qualidade on-tol6gica da Expressao, E nessa reversibi lidade do Conteu-do e da Expressao que reside 0 que chamo de funcao exis-tencial izante. Partiremos, entao, de urn primado da substan-cia enunciadora sobre 0par Expressao e Conteudo.

    Acreditei perceber uma alternativa valida aos estrutu-ralismos inspirados em Saussure, apoiando-me na oposicaoExpressao/Conteudo, tal como a concebeu Hjelmslevl ' , querdizer, fundada precisamente em uma reversibilidade possi-vel entre a Expressao e 0Conteudo. Para alern de Hjelmslev,proponho considerar uma multiplicidade de instancias quese exprimem, quer sejam da ordem da Expressao ou do Con-teudo. Ao inves de tirar partido da oposicao Expressao/Con-teudo, que em Hjelmslev duplica 0par significante/signica-

    13 L.Hjelmslev, Prolegomenes a une teorie du langage, Minuit, Pa-ris, 1968; Le langage, Minuit, Paris, 1969; Essais linguistiques, Minuit,Paris, 1971; Nouveaux essais, Paris, PUF, 1985.

    lIererogenese 35

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    20/107

    do de Saussure, tratar-se-ia de colocar em polifonia, em pa-ralelo, uma multiplicidade de sistemas de expressao, ou doque chamaria agora de substancias de expressao.

    Minha dificuldade metodologica deve-se ao fato de queo proprio Hjelmslev empregava a categoria de substancia emuma triparticao entre materia, substancia e forma de Expres-sao e de Conteudo. Nele, a juncao entre a Expressao e 0Conteudo ocorria ao nivel da forma de expressao e da for-ma do conteudo que identificava. Essa forma comum ou co-mutante e urn pouco misteriosa, mas se apresenta, em rni-nha opiniao, como uma intuicao genial que levanta a ques-tao da existencia de uma rnaquina formal, transversal a todamodalidade de Expressao como de Conteudo. Haveria en-tao uma ponte, uma transversalidade entre a rnaquina de dis-cursividade fonernatica e sintagmatica da Expressao, propriaa linguagem, e 0 recorte das unidades sernanticas do Con-tendo, por exemplo a maneira pela qual serao classificadasas cores, as categorias animais. Denomino essa forma comumde rnaquina desterritorializada, rnaquina abstrata. Essa no-cao de maquina semiotic a nao foi inventada por mim: en-contrei-a em Chomsky, que fala de rnaquina abstrata na raizda linguagem. So que esse conceito, essa oposicao Expres-sao/Conteudo, ou esse conceito chomskiano de maquina abs-trata, ainda permanecem muito rebatidos sobre a linguagem.o objetivo seria re-si tuar a semiologia e as sernioticas no qua-dro de uma concepcao maquinica ampliada da forma, quenos afastaria de uma simples oposicao lingiiistica Expressao/Conteudo enos permitiria integrar aos Agenciamentos enun-ciativos urn numero indefinido de substancias de Expressaocomo as codificacoes biologicas ou as formas de organiza-cao proprias ao socius.

    Nessa perspectiva, a questao da substancia enunciado-ra sairia da triparticao tal como a concebia Hjelmslev, entreIll;ltcria/substancialforma, a forma se lancando como uma

    ',j, Caosmose

    rede sobre a materia para engendrar a substancia tanto deExpressao quanta de Conteudo, Tratar-se-ia de fazer estilhacarde modo pluralista 0conceito de substancia, de forma a pro-mover a categoria de substancia de expressao, nao apenas nosdorninios semiologicos e semiotic os mas tam bern nos dominiosextralingulsticos, nao-humanos, biologicos, tecnologicos, es-teticos etc. Deste modo, 0problema do Agenciamento de enun-ciacao nao seria rna isespecifico de urn registro serniotico, masatravessaria urn conjunto de rnaterias expressivas heteroge-neas. Transversalidade, entao, entre substancias enunciadorasque podem ser, por urn lado, de ordem expressiva [ingiifsti-ca, mas, por outro lado, de ordem maquinica, se desenvol-vendo a partir de "rnaterias nao-semioticamente formadas" ,para retomar uma outra expressao de Hjelmslev.

    A subjetividade maquinica, 0 agenciamento maquini-co de subjetivacao, aglomera essas diferentes enunciacoesparciais e se instal a de algum modo antes e ao lado da rela-cao sujeito-objeto. Ela tern, alern disso, urn carater coleti-vo, e multicomponencial, uma multiplicidade maquinica, E,terceiro aspecto, comporta dimensoes incorporais - 0queconstitui talvez 0 lado mais problematico da questao e queso e abordado lateralmente por Noam Chomsky com suatentativa de retomada do conceito medieval de Universais.Retomemos esses tres pontos. As substancias expressivas l in-guisticas e nao-Iingiiisticas se instauram no cruzamento decadeias discursivas pertencentes a urn mundo fini to pre-for-mado (0 mundo do grande Outro lacaniano) e de registrosincorporais com virtualidades criacionistas infinitas (ja es-tas nao tern nada a ver com os "matemas" lacanianos). Enessa zona de intersecao que 0 sujeito e 0 objeto se fundeme encontram seu fundamento. Trata-se de urn dado com 0qual os fenornenologos estiveram as voltas, ao mostrar quea intencionalidade e inseparavel de seu objeto e depende en-tao e da ordem de urn aquern da relacao discursiva sujeito-

    I lcrerogenese 37

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    21/107

    objeto. Psicologos enfatizaram as relacoes de empatia e detransitivismo na infancia e na psicose. Mesmo Lacan, quan-do ainda influenciado pela fenomenologia, em suas primei-ras obras, evocou a importancia desse tipo de fenomeno. Deurn modo geral, pode-se dizer que a psicanalise nasceu indoao encontro dessa fusao objeto-sujeito que vemos operan-do na sugestao, na hipnose, na histeria. 0 que originou apratica e a teoria freudiana foi uma tentativa de leitura dotransi tivismo subjet ivo da histeria.

    Os antropologos, alias, desde a epoca de Levy-Bruhl,Priezluski etc. , mostraram que existia , nas sociedades arcai-cas, 0que denominavam uma "participacao ", uma subjeti-vidade coletiva, investindo urn certo tipo de objeto e se colo-cando em posicao de foco existencial do grupo. Mas nas pes-quisas sobre as novas formas de arte, como as de Deleuzesobre 0cinema, veremos, por exemplo, imagens-movimentoou imagens-tempo se constituirem igualmente em germes deproducao de subjetividade. Nao se trata de uma imagem pas-sivamente representativa, mas de urn vet or de subjet ivacao.E eis-nos entao confrontados com urn conhecimento patico,nao-discursivo, que se da como uma subjetividade em dire-cao a qual se vai, subjetividade absorvedora, dada de ime-diato em sua complexidade. Poder-se-ia atribuir a intuicaodisso a Bergson, que esclareceu essa experiencia nao-dis-cursiva da duracao em oposicao a urn tempo recortado empresente, passado e futuro, segundo esquemas espaciais.

    Essa subjetividade patica, aquern da relacao sujeito-ob-jeto, continua, com efeito, se atualizando atraves de coor-denadas energetico-espacio-temporais, no mundo da lingua-gem e de rmiltiplas mediacoes; mas 0 que importa, paracaptar 0movel da producao de subjet ividade, e apreender,atraves dela, a pseudodiscursividade, 0 desvio de discursi-vidade, que se instaura no fundamento da relacao sujeito-objeto, digamos numa pseudornediacao subjet iva.

    38 Caosmose

    Na raiz de todos os modos de subjetivacao, essa sub-jetividade patica e ocultada na subjet ividade racionalista ca-pitalist ica, que tende a contorna-Ia sistematicamente. A cien-cia e construida sobre uma tal colocacao entre parentesesdesses fatores de subjet ivacao que so encontram 0meio devir a expressao colocando fora de signif icacao certas cadeiasdiscursivas.o freudismo, embora impregnado de cientificismo, po-de ser caracterizado, em suas primeiras etapas, como umarebeliao contra 0 reducionismo positivista, que tendia adeixar de lado essas dimensoes paticas, 0 sintoma, 0 lap-so, 0chiste, sao concebidos ai como objetos destacados quepermitem que urn modo de subjetividade que perdeu suaconsistencia encontre a via de uma "passagem a existencia".o sin tom a funciona como ritornelo existencial a partir desua propria repetitividade. 0 paradoxo consiste no fato deque a subjetividade patica tende a ser constantemente eva-cuada das relacoes de discursividade, mas e esencialmentena subjetividade patica que os operadores de discursivida-de se fundam. A funcao existencial dos agenciamentos deenunciacao consiste na utilizacao de cadeias de discursivi-dade para estabelecer urn sistema de repeticao, de insisten-cia intensiva, polarizado entre urn Territorio existencial ter-r itorial izado e Universos incorporais desterri torializados -duas funcoes metapsicologicas que podemos qualificar deontogeneticas,

    Os Universos de valor referencial dao sua consistenciapropria as rnaquinas de Expressao, articuladas em Phylumrnaquinicos. Os ritornelos complexos, para alern dos sim-ples ritornelos de terr itorial izacao, declinam a consistenciasingular desses Universos. (Par exemplo, a apreensao paticadas ressonancias harmonicas, fundadas na gama diatonica,configura 0 "fundo" de consistencia da rmisica polifonica,ou ainda a apreensao da concatenacao possivel dos nume-

    Heterogenese 39

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    22/107

    ros e dos algoritmos configura 0 "fundo" das idealidadesmatematicas.)

    A consistencia maquinica abstrata que se encontra des-sa forma conferida aos Agenciamentos de enunciacao resi-de no escalonamento e na ordenacao dos niveis parciais deterritorializacao existencial. 0 ritornelo complexo funcio-na alern disso como interface entre registrosatualizados de,discursividade e Universos de vir tualidade nao discursivos.Eo aspecto mais desterri torial izado do ri tornelo, sua dimen-sao de Universo de valor incorporal que assume 0controledos aspectos mais territorializados atraves de urn movimentode desterri torial izacao, desenvolvendo campos de possivel,tensoes de valor, relacoes de heterogeneidade, de alterida-de, de devir outro. A diferenca entre esses Universos de va-lor e as Ideias platonicas e que eles nao tern carater de fixi-dez. Trata-se de constelacoes de Universos, no interior dasquais urn componente pode se afirmar sobre os outros emodificar a configuracao referencial inicial e 0 modo devalorizacao dominante. (Por exemplo, veremos afirrnar-se,ao longo da Antigiiidade, 0primado de uma maquina rnili-tar baseada nas armas de ferro sobre a rna q uina de Estadodespotica, a rnaquina de escritura, a rnaquina religiosa etc. )A cristal izacao de uma tal constelacao podera ser "ultrapas-sada" ao longo da discursividade historica, mas jamais apa-gada enquanto ruptura irreversivel da memoria incorporalda subjetividade coletiva.

    Colocamo-nos, entao, aqui totalmente fora da visao deurn Ser que atravessaria, imutavel, a historia universal dascornposicoes ontologicas. Existem constelacocs incorporaissingulares que pertencem ao mesmo tempo a historia natu-ral e a historia human a e simultaneamente lhcs cscapam pormilhares de linhas de fuga. A partir do memento l'1ll que hasurgimento de Universos matematicos, nao sc podl' mais fa-zer com que essas maquinas abstratas que os suporr.un nao

    Caosmose

    tenham ja existido em toda parte e desde sempre e nao seprojetem nos possiveis por vir. Nao se po de mais fazer comque a rnusica polifonica nao tenha sido inventada pela se-quencia dos tempos passados e futuros. Essa e a primeirabase de consistencia ontologica dessa funcao de subjetiva-cao existencial que se situa na perspectiva de um certo cria-cionismo axiologico.

    A segunda e a da encarnacao desses val ores na irrever-sibilidade do ser ai dos Territories existenciais, que confe-rem seu selo de autopoiese, de singularizacao, aos focos desubjetivacao. Na logica dos conjuntos discursivos que regemos dominios dos Fluxos e dos Phylum maqufnicos ha sem-pre separacao entre os palos do sujeito e do objeto, ha 0quePierre Levy denomina 0estabelecimento de uma "cortina deferro" onto logic a 14. A verda de de uma proposicao respon-de ao princfpio do terceiro excluido; cada objeto se apresentaem uma relacao de oposicao binaria com urn "fundo", aopasso que na logic a patica nao ha mais referencia global ex-trfnseca que se possa circunscrever. A relacao objetal seencontra precarizada, assim como se encontram novarnen-te quest ionadas as funcoes de subjet ivacao.o Universo incorporal nao se apoia em coordenadasbern-arrimadas no mundo, mas em ordenadas, em uma or-denacao intensiva mais ou menos engatada nesses Territo-r ios existenciais . Terri tories que pretendem englobar em urnmesmo movimento 0 conjunto da mundaneidade e que socontam, na verdade, com ritornelos derrisorios, indexandosenao sua vacuidade, ao menos 0grau zero de sua intensi-dade ontologica. Territories, entao, jamais dados como ob-jeto mas sempre como repeticao intensiva, lancinante afir-macao existencial. E, repito, essa operacao se efetua atra-

    14 P. Levy, Les technologies de l 'inteligence, Decouverte, Paris,1990. Ed. bras.: As tecnologias da inteligencia, Ed. 34, Sao Paulo, 1993.

    l lctcrogenese 41

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    23/107

    yes do ernprestimo de cadeias semi6ticas destacadas e des-viadas de sua vocacao significacional ou de codificacao.Aqui uma instancia expressiva se funda sobre uma relacaomateria-forma, que extrai formas complexas a partir de umamateria ca6tica.

    Mas voltemos a l6gica dos conjuntos discursivos: e a doCapital, do Significante, do Ser com urn Smaiusculo. 0 Ca-pital e 0 referente da equivalencia generalizada do trabalhoe dos bens; 0Significante, 0referente capitalistico das expres-soes semio16gicas, 0grande redutor da polivocidade expres-siva; e 0Ser, 0equivalente onto16gico, 0fruto da reducao dapolivocidade onto16gica. 0 verdadeiro, 0 born, 0 belo saocategorias de "norrnatizacao " dos processos que escapam al6gica dos conjuntos circunscritos. Sao referentes vazios, quecriam 0 vazio, que instauram a transcendencia nas relacoesde representacao. A escolha do Capital, do Significante, doSer, participa de uma mesma opcao erico-politica. 0 Capitalesmaga sob sua bota todos os outros modos de valorizacao.o Significante faz calar as vir tualidades infini tas das l inguasmenores e das expressoes parciais. 0 Ser e como urn aprisio-namento que nos torna cegos e insensiveis a riqueza e a mul-t ivalencia dos Universos de valor que, entretanto, proliferamsob nossos olhos. Existe uma escolha etica em favor da riquezado possivel, uma etica e uma politica do virtual que descor-porifica, desterritorializa a contingencia, a causalidade linear,o peso dos estados de coisas e das significacoes que nos asse-diam. Uma escolha da processualidade, da irreversibil idadee da re-singularizacao. Esse redesdobramento pode se ope-rar em pequena escala, de modo completamente cerceado, po-bre ate mesmo catastrofico, na neurose. Pode tomar de em-prestimo referencias rel igiosas reat ivas; pode se anular no al-cool, na droga, na televisao, na cotidianeidade sem horizonte.Mas pode tambern tomar de ernprestimo outros proccdirnen-tos, rnais colet ivos, rnais sociais , mais polit icos ...

    42 Caosmose

    Para questionar as oposicoes de tipo dualista seriente,sujeitolobjeto, os sistemas de valorizacao bipolar maniqueis-tas, propus 0conceito de intensidade onto16gica, que implicaurn engajamento etico-estetico do agenciamento enunciativo,tanto nos registros atuais quanta nos virtuais. Mas urn ou-tro elemento da metamodelizacao que proponho aqui resi-de no carater coletivo das multiplicidades maquinicas. Naoexiste totalizacao persono16gica dos diferentes componen-tes de Expressao, totalizacao fechada em si mesma dos Uni-versos de referencia, nem nas ciencias, nas artes e tarnpou-co na sociedade. Ha aglorneracao de fatores heterogeneosde subjetivacao. Os segmentos rnaquinicos remetem a umamecanosfera destotal izada, desterri torial izada, a urn jogo in-finito de interface, segundo a expressao de Pierre Levy.

    Nao existe, insisto, urn Ser ja ai, instalado atraves datemporalidade. Esse questionamento de relacoes duais, bi-narias, do tipo Seriente, consciente/ inconsciente, implica 0questionamento do carater de linearidade semiotica que pa-rece sempre evidente. A expressao patica nao se instauraem uma relacao de sucessividade discursiva, para colocaro objeto sob 0 fundo de urn referente bern circunscrito. Es-tamos aqui em urn registro de coexistencia, de cristal izacaode intensidade. 0 tempo nao existe como continente vazio(concepcao que permanece na base do pensamento einstei-niano). As relacoes de ternporalizacao sao essencialmentede sincronia maquinica. Ha desdobramento de ordenadasaxiol6gicas, sem que haja constituicao de urn referente ex-terior a esse desdobramento. Estamos aqui aquern da rela-cao de linearidade "extensionalizante" entre urn objeto esua mediacao representativa no interior de uma compleicaomaquinica abstrata.

    Insisti, em terceiro lugar, no carater incorporal e vir-tual de uma parte essencial do "meio ambiente" dos agen-ciamentos de enunciacao. Dir-se-ia que os universos de re-

    Heterogenese 43

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    24/107

    ferencia incorporais sao in voce, segundo uma terrninolo-gia "terminista", nominalista, tornando as entidades sernio-ticas tributarias de uma pura subjetividade, ou que eles saoin res, no quadro de uma concepcao realista do mundo,sendo a subjetividade apenas urn artefato ilusorio? Talvezseja necessario afirmar sincronicamente essas duas posicoes,instaurando-se 0dorninio das intensidades virtuais antes dasdistincoes entre a maquina semiotica, 0 objeto referido e 0sujeito enunciador.

    Por nao se ter visto que os segmentos maquinicos eramautopoieticos e ontogeneticos, procedeu-se ininterruptarnen-te a reducoes universalistas quanta ao Significante e quan-to a racionalidade cientifica. As interfaces rnaquinicas saoheterogenetic as; elas interpelam a alteridade dos pontos devista que se pode ter sobre elas e, conseqiienternente, sobreos sistemas de metamodelizacao que permitem considerar,de urn modo ou de outro, 0 carater fundamentalmente ina-cessivel de seus focos autopoieticos. E preciso se afastar deuma referencia unica as rnaquinas tecnologicas, ampliar 0conceito de rnaquina, para posicionar essa adjacencia da rna-quina aos Universos de referencia incorporais (rnaquina mu-sical, maquina maternatica .. . ). As categorias de rnetamode-lizacao propostas aqui - os Fluxos, os Phylum maquinicos,os Territories existenciais, os Universos incorporais - sotern interesse porque estao em grupo de quarro e permitemque nos afastemos das descricoes tcrn.irias que scmpre saorebatidas sobre urn dualismo. 0 quarto rcrmo vale por urnenesirno termo, quer dizer, a abertura p a r a ;1 mul t ip l ic ida-de. 0 que distingue uma metamodelizacao de 11l11a rnodeli-zacao e, assim, 0fato de ela dispor de um tcrmo org;lIl izadordas aberturas possiveis para 0 virtual c paLl ;1proccssua-lidade criativa.

    44 Caosmose

    2. MAQUINAS SEMIOTICAS E HETEROGENESE OUA HETEROGENESE MAQUINICA

    Embora seja comum tratar a rnaquina como um sub-conjunto da tecnica, penso ha muito tempo que e a proble-matica das tecnicas que esta na dependencia das questoescolocadas pelas rnaquinas e nao 0 inverso. A rna quina tor-nar-se-ia previa it tecnica ao inves de ser a expressao desta.o maquinismo e objeto de fascinacao, as vezes de delirio.Sobre ele existe todo um "bestiario " historico. Desde a ori-gem da filosofia, a relacao do homem com a rnaquina e fontede indagacoes. Aristoteles considera que a techne tern comornissao criar 0que a natureza nao pode realizar. Da ordemdo "saber" e nao do "fazer", ela interp6e, entre a naturezae a humanidade, uma especie de rnediacao criativa cujo es-tatuto de "intersecao " e fonte de perpetua ambigiiidade.

    Enquanto as concepcoes "mecanicistas" da maquina es-vaziarn-na de tudo 0 que possa faze-la escapar a uma sim-ples construcao partes extra partes, as concepcoes vitalistasassimilarn-na aos seres vivos, a nao ser que sejam os seresvivos os assimilados a maquina, A perspectiva ciberneticaaberta por Norbert Wiener i Cibernetica e sociedade) con-sidera os sistemas vivos como maquinas particulares dota-das do principio de retroacao. Por sua vez, concepcoes "sis-temistas" mais recentes (Humberto Maturana e FranciscoVarela) desenvolvem 0 conceito de autopoiese (autopro-ducao), reservando-o as maquinas vivas. Uma moda filoso-fica, na trilha de Heidegger, atribui a techne - em sua opo-sicao a tecnica moderna - uma missao de "desvelamentoda verdade" que vai "buscar 0 verdadeiro atraves do exa-to". Assim ela fixa a techne a uma base ontologica - a urn" d" d / drun , - comprometen 0 seu carater e abertura pro-cessual . Atraves dessas posicoes tentaremos discernir l imia-

    Heterogencse 45

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    25/107

    res de intensidade ontologica que nos permitem apreendero maquinismo como urn todo em seus avatares tecnicos, so-ciais, sernioticos, axiologicos. Isso implica reconstruir urnconceito de maquina que se desenvolve muito alern da rna-quina tecnica. Para cada tipo de maquina, colocaremos aquestao, nao de sua autonomia vital- nao e urn animal-mas de seu poder singular de enunciacao: 0 que denominosua consistencia enunciativa espedfica.o primeiro tipo de rnaquina em que pensamos e 0dosdispositivos materiais. Sao fabricados pela mao do homem_ ela mesma substituida por outras rnaquinas - e isso se-gundo concepcoes e pianos que respondem a objetivos de pro-ducao. Denomino essas diferentes etapas de esquemas dia-gramaticos finalizados. Atraves dessa montagem e dessa fina-lizacao, se coloca de saida a necessidade de ampliar a deli-mitacao da rna quina stricto sensu ao conjunto funcional quea associa ao homem atraves de multiples componentes:

    - componentes materiais e energeticos;_ componentes semioticos diagramaticos e algoritmi-cos (pianos, formulas, equacoes, calculos que participam dafabricacao da maquina);

    _ componentes sociais, relat ivos a pesquisa, a forma-cao, a organizacao do trabalho, a ergonomia, a circulacaoe a distribuicao de bens e services produzidos . ..

    _ componentes de orgao , de influxo, de humor docorpo humano;

    - inforrnacoes e representacoes mentais individuais ecoletivas;

    - investimentos de "rnaquinas desejantes" produzin-do uma subjet ividade adjacente a esses componentes;

    - maquinas abstratas se instaurando transversalmen-te aos niveis maquinicos materia is, cognitivos, afet ivos, so-ciais, anteriormente considerados.

    Quando falamos de maquinas abstratas, por "abstra-

    Caosmose

    to" podemos igualmente entender "extrato", no sentido deextrair. Sao montagens suscetiveis de por em relacao todosos niveis heterogeneos que atravessam e que acabamos deenumerar. A rnaquina abstrata lhes e transversal . E ela quelhes dara ou nao uma existencia, uma eficiencia, uma po-tencia de auto-afirrnacao ontologica. Os diferentes cornpo-nentes sao levados, remanejados por uma especie de dina-mismo. Urn tal conjunto funcional sera doravante qualifi-cado de Agenciamento maquinico. 0termo Agenciamentonao comporta nenhuma nocao de ligacao, de passagem, deanastomose entre seus componentes. E urn Agenciamento decampo de possiveis, de virtuais tanto quanta de elementosconstituidos sem nocao de relacao generic a ou de especie.Dentro desse quadro, os utensilios, os instrumentos, as fer-ramentas mais simples, as menores pecas estruturadas deuma maquinaria adquirirao 0estatuto de protornaquina.

    Tomemos urn exemplo. Se desconstruirmos urn rnarte-10 , retirando-lhe seu cabo: e sempre urn martelo, mas em es-tado "mutilado". A "cabeca" do martelo - outra metafo-ra zoomorfica - pode ser reduzida por fusao. Ela transpo-ra entao urn limiar de consistencia formal onde perdera suaforma; esta gestalt maquinica opera, alias, tanto em urn pla-no tecnologico quanta em urn nivel imaginario (quando seevoca, por exemplo, a lernbranca obsoleta da foice e do mar-telo). Consequenternente, estamos apenas diante de umamass a rnetalica devolvida ao alisamento, a desterritoria-lizacao, que precede sua entrada numa forma maquinica,Para ultrapassar esse tipo de experiencia, similar aquela dopedaco de cera cartesiano, tentemos, inversamente, associaro martelo e 0brace, 0prego e a bigorna. Eles mantern entresi relacoes de encadeamento sintagmaticas. Sua "danca co-letiva" podera mesmo ressuscitar a defunta corporacao dosferreiros, a sinistra epoca das antigas minas de ferro, os usosancestrais das rodas de ferro .. .

    Heterogenese 47

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    26/107

    Como enfatizou Leroi-Gourhan, 0objeto tecnico nao enada fora do conjunto tecnico a que pertence. E acontece 0mesmo com as maquinas sofisticadas, tais como esses robesque em breve serao engendrados por outros robes. 0 gestohumano permanece adjacente a sua gestacao, a espera da fa-lha que requeira sua intervencao: esse residuo de urn ato di-reto. Mas tudo isso nao diz respeito a uma visao parcial, aurn certo gosto por uma epoca datada da ficcao cientffica?E curioso observar que, para adquirir cada vez rna i s vida, asmaquinas exigem, em troca, no percurso de seus phylum e-volutivos, cada vez mais vitali dade humana abstrata. Assima concepcao por computador, os sistemas experts e a inteli-gencia artificial dao, pelo menos, tanto a pensar quanta sub-traem do pensamento 0 que constitui no fundo apenas es-quemas inerciais. As formas de pensamento que trabalhamcom computador sao de faro mutantes, concernem a outrasmusicas, a outros Universos de referencia 15.

    Impossivel, entao, recusar ao pensamento humano suaparte na essencia do maquinismo. Mas ate que ponto estepode ainda ser qualificado de humano? 0 pensamento tee-nico-cientifico nao e da ordem de urn certo tipo de maqui-nismo mental e semi6tico? Impoe-se aqui estabelecer umadistincao entre as semiologias produtoras de significacoes -moeda corrente dos grupos sociais -, como a enunciacao"humana" de gente que trabalha em torno da maquina, e,por outro lado, as semi6ticas a-significantes, que, indepen-dentemente da quantidade de significacoes que veiculam,manipulam figuras de expressao que se poderia qualificar de"nao-humanas"; sao equacoes e planes que enunciam a rna-quina e fazem-na agir de forma diagramatica sobre os dis-

    15 P. Levy, Plisse fractal. Jdeographie dynamique (mcmoin: d'habili-tation a diriger des recherches en sciences de l'informati(JJI c! dl' 1

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    27/107

    troi, mas ela propria esta em uma relacao de alteridade comoutras rnaquinas, atuais ou virtuais, enunciacao "riao-hu-mana", diagram a proto-subjetivo.

    Essa reconversao ontologies rompe 0alcance totalizantedo conceito de Significante. Pois nao sao as mesmas entida-des signif icantes que operam as diversas mutacoes de referen-te ontologico que nos fazem passar do Universo da quimicamolecular ao da quirnica biologica, ou do mundo da acusti-ca ao das music as polifonicas e harmonicas. Certamente, asl inhas de decifracao significante, compostas por figuras dis-cretas, binarizaveis, sintagmatizaveis e paradigrnatizaveis, po-dem coincidir de urn universo ao outro e dar a ilusao de queuma mesma trama significante habita todos esses dominies.Mas 0mesmo nao ocorre com a textura desses uriiversos dereferencia, que sao marcados, a cada vez, com 0selo da sin-gularidade. Da acustica a rnusica polifonica, as constelacoesde intensidades expressivas divergem. Elas dizem respeito auma certa relacao patica, l iberando consistencias ontologi-cas irredutivelmente heterogeneas, Descobrern-se assim tan-tos tipos de desterritorializacao quantos traces de materia deexpressao. A articulacao significante que os sobrepuja - emsua indiferente neutralidade - e incapaz de se impor comorelacao de imanencia com as intensidades rnaquinicas - querdizer, com 0 que constitui 0micleo nao-discursivo e auto-enunciador da maquina.

    As diversas modalidades da autopoiese rnaquinica es-capam essencialmente a mediacao significante e nao se sub-metem a nenhuma sintaxe geral dos procedimentos de des-terri torializacao. Nenhum par seriente, ser/nada, serioutro,podera ocupar 0 lugar de binary digit ontologico. As pro-posicoes maquinicas escapam aos jogos comuns da discur-sividade, as coordenadas estruturais de energia, de tempo ede espaco.

    Entretanto, tampouco existe uma "transversal idade"

    ',II Caosmose

    ontologica, 0 que acontece em urn nivel part icular-cosrni-co nao deixa de estar relacionado ao que acontece com 0socius ou com a alma humana. Mas nao segundo harmoni-cas universais de natureza platonica (0 Sofista). A cornpo-sicao das intensidades desterritorializantes se encarna emrnaquinas abstratas. E preciso considerar que existe umaessencia maquinica que ira se encarnar em uma maquinatecnica, mas igualmente no meio social, cognitivo, ligado aessa maquina - os conjuntos sociais sao tam bern maqui-nas, 0 corpo e uma maquina, ha rnaquinas cientificas, teo-ricas, informacionais. A maquina abstrata atravessa todosesses componentes heterogeneos, mas sobretudo ela os he-terogenefza fora de qualquer traco unificador e segundo urnprincipio de irreversibilidade, de singularidade e de neces-sidade. A esse respeito, 0 significante lacaniano e fustigadopor uma dupla carencia: e abstrato demais, pelo fato detraduzibilizar sem 0 menor esforco as materias de expres-sao heterogeneas; ele perde a heterogenese ontologica, uni-formiza e sintaxiza gratuitamente as diversas regioes do sere, ao mesmo tempo, nao e suficientemente abstrato porquee inca paz de dar conta da especificidade desses nucleos rna-quinicos autopoieticos aos quais e necessario voltar agora.

    Francisco Varela caracteriza uma maquina como "0conjunto das inter-relacoes de seus componentes indepen-dentemente de seus proprios componentes'tl", A organiza-c,;aode uma maquina nao tern, pois, nada a ver com a suamaterial idade. Ele dist ingue dois t ipos de rnaquinas: as "alo-poieticas", que produzem algo diferente delas mesmas, e as"autopoieticas", que engendram e especificam continuamen-te sua propria organizacao e seus proprios limites. Estasultimas realizam urn processo incessante de substituicao deseus componentes porque estao submetidas a perturbacoes

    16 Op. cit.

    Heterogenese 51

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    28/107

    externas que devem constantemente compensar. De fato, aqualificacao de autopoietica e reservada por Varela ao do-rninio biologico; dela sao excluidos os sistemas sociais, asmaquinas tecnicas, os sistemas cristalinos etc. - tal e0sen-tido de sua distincao entre alopoiese e autopoiese. Mas a au-topoiese, que define unicamente entidades autonornas, in-dividualizadas, unitarias e escapando as relacoes de input eoutput, carece das caracteristicas essenciais aos organismosvivos, como 0 fato de que nascem, morrem e sobrevivematraves de phylum geneticos.

    Parece-rne, entretanto, que a autopoiese mereceria serrepensada em funcao de entidades evolutivas, coletivas eque mantern divers os tipos de relacoes de alteridade, ao in-yes de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas.Assim as instituicoes como as rnaquinas tecnicas que, apa-rentemente, derivam da alopoiese, consideradas no quadrodos Agenciamentos maquinicos que elas constituem com osseres humanos, tornarn-se autopoieticas ipso facto. Consi-derar-se-a, entao, a autopoiese sob 0 angulo da ontogene-se e da filogenese proprias a uma mecanosfera que se su-perpoe a biosfera.

    A evolucao filogenetica do maquinismo se traduz, emurn primeiro nivel, pelo fato de que as rnaquinas se apre-sentam por "geracoes", recalcando umas as outras, a me-dida que se tornam obsoletas. A filia

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    29/107

    A questao da reprodutibilidade da maquina em um pla-no ontogenetico e mais complexa. A manutencao do estadode funcionamento de uma rnaquina nunca ocorre sem falhasdurante seu periodo de vida presumido, sua identidade fun-cional nunc a e absolutamente garantida. 0 desgaste, a pre-cariedade, as panes, a entropia, assim como seu funciona-mento normal, the impoern uma certa renovacao de seuscomponentes materiais, energeticos e informacionais , essesultimos podendo dissipar-se no "ruido ". Paralelamente, amanutencao da consistencia do agenciamento maquinicoexige que seja tarnbem renovada a parte de gesto e de inte-ligencia humana que entra em sua cornposicao.

    A alteridade hornem/maquina esta entao inextr icavel-mente ligada a uma alteridade maquina/maquina que ocorreem relacoes de complementaridade ou relacoes agonicas (entremaquinas de guerra) ou ainda em relacoes de pecas ou dedispositivos. De fato, 0desgaste, 0acidente, a morte e a res-surreicao de uma maquina em um novo "exemplar" ou emum novo modelo fazem parte de seu destino e podem passarao primeiro plano de sua essencia em certas maquinas esteti-cas (as "cornpressoes" de Cesar, as "rnetamecanicas", as rna-quinas happening, as maquinas delirantes de Jean Tinguely).

    A reprodutibilidade da rnaquina nao e entao uma purarepeticao programada. Suas escansoes de ruptura e de indi-ferenciacao, que separam um modelo de qualquer suporte,introduzem sua parte de diferencas tanto ontogeneticas quan-to filogeneticas. E durante essas fases de passagem ao esta-do de diagrama, de maquina abstrata desencarnada, que os"suplementos de alma" do nucleo maquinico tern sua dife-renca atestada em relacao a simples aglomerados materiais ,Um amontoado de pedras nao e uma maquina.uo passo queuma pare de ja e uma protomaquina estatica , manifestandopolaridades virtuais, um dentro e um fora, 1I1ll alto e um bai-xo, uma direita e uma esquerda ...

    Caosmose

    Essas virtualidades diagrarnaticas fazem-nos sair da ca-racterizacao da autopoiese maquinica por Varela em termosde individuacao unitaria, sem input nem output, enos le-yam a enfatizar um maquinismo mais coletivo, sem unidadedelimitada e cuja autonomia se adapta a divers os suportesde alteridade. A reprodutibilidade da maquina tecnica, di-ferentemente da dos seres vivos, nao repousa em sequenciasde codificacao perfeitamente circunscritas em um genomaterri torializado. Cada rnaquina tecnologica tem seus planosde concepcao e de montagem mas, por um lado, estes man-tern sua distancia em relacao a ela e, por outro lado, sao re-metidos de uma rnaquina a outra de modo a constituir urnrizoma diagrarnatico que tende a cobrir globalmente a me-canosfera. As relacoes das maquinas tecnol6gicas entre si eos ajustes de suas pecas respectivas pressupoern uma se-rializacao formal e uma certa dirninuicao de sua singulari-dade - mais forte do que a das rnaquinas vivas - cor-relativas a uma distancia tomada entre a maquina rnanifes-tada nas coordenadas energetico-espacio-temporais e a rna-quina diagrarnatica que se desenvolve em coordenadas maisnumerosas e mais desterritorializadas.

    Essa distancia desterritorializante e essa perda de sin-gularidade devem ser relacionadas a um alisamento cornple-to das materias consti tutivas da maquina tecnica. Certamen-te as asperezas singulares proprias a essas rnaterias nao po-dem nunca ser completamente abolidas, mas elas so deveminterferir no "jogo" da rnaquina se ai forem requisitadas porseu funcionamento diagrarnatico. Examinemos, a partir deum dispositivo maquinico aparentemente simples - 0parformado por uma fechadura e sua chave -, esses dois as-pectos de desvio maquinico e de alisamento. Dois tipos deforma, com texturas ontol6gicas heterogeneas, se encontramaqui colocados em funcionamento:

    - formas materializadas, contingentes, concretas, dis-

    l Ieterogenese 55

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    30/107

    cretas, cuja singularidade esta encerrada nela mesma, encar-nadas respectivamente no perfi l Ff da fechadura e no perfilpc da chave. Ff e pc nunca coincidem totalmente. Elas evo-luem ao longo do tempo devido ao desgaste e a oxidacao.Mas ambas sao obrigadas a permanecer no quadro de urndesvio padrao, para alern do qual a chave deixaria de seroperacional;

    - formas "formais", diagrarnaticas, subsumidas poresse desvio padrao, que se apresentam como urn continuumincluindo toda a gama dos perfis PC,Ff cornpativeis com 0acionar efetivo da fechadura.

    Logo se constata que 0efeito, a passagem ao ato pos-sivel, deve ser inteiramente assinalado do lado do segundotipo de forma. Embora se escalonando em urn desvio padraoo rnais restr ito possivel, essas formas diagramaticas se apre-sentam em numero infinito. De fato, trata-se de uma inte-gral das formas PC,Ff.

    Essa forma integral infinitar ia duplica e alisa as formascontingentes F f e Fe, que so valem maquinicamente na me-dida em que elas lhes pertencam, Urn ponto e assim estabe-lecido "por cima" das formas concretas autorizadas. E essaoperacao que qualifico de alisamento desterritorializado eque concerne tanto a norrnalizacao das rnaterias constituti-vas da rna quina quanta a sua qualificacao "digital" e fun-cional. Urn rninerio de ferro que nao houvesse sido suficien-temente laminado, desterr itorial izado, apresentaria rugosi-dades de trituracao dos minerais de origem que falseariamos perfis ideais da chave e da fechadura. 0 alisarnento domaterial deve ret irar-lhe os aspectos de singularidadc exces-sivos e fazer com que ele se comporte de forma a moldar fiel-mente as impressoes formais que the sao extrinsccas. Acres-centemos que essa modelagem, nisso compar.ivcl a fotogra-fia, nao deve ser evanescente demais, e dcve conservar umaconsistencia propria suficiente. Ai tarnbcm Sl' cncontra urn

    Caosmose

    fenorneno de desvio padrao, pondo em jogo uma consisten-cia diagrarnatica teorica. Uma chave de chumbo ou de ourocorreria 0 risco de se entortar dentro de uma fechadura deaco. Uma chave levada ao estado liquido ou ao estado ga-soso perde logo sua eficiencia pragmatic a e sai do campo darna quina tecnica.

    Esse fenorneno de fronteira formal sera encontrado emtodos os niveis das relacoes intrarnaquinas e das relacoesinterrnaquinas, particularmente com a existencia de pecassobressalentes. Os componentes da maquina tecnica sao as-sim como as pecas de uma moeda formal, 0que e reveladode modo ainda mais evidente desde sua concepcao e sua con-feccao auxiliadas por computador.

    Essas formas maquinicas, esses alisamentos de materia ,de desvio padrao entre as pe

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    31/107

    rnatica, por exemplo, uma subjetividade "aninhada" nas ca-deias significantes em razao do celebre principio lacaniano:"urn significante representa 0 sujeito para urn outro signi-ficante". Nao existe, para os diversos registros de rnaqui-na, uma subjet ividade univoca a base de cisao, de falta e desutura, mas modos ontologicamente heterogeneos de sub-jet ividade, constelacoes de universos de referencia incorpo-rais que assumem uma posicao de enunciadores parciais emdorninios de alteridade multi pios, que seriam melhor deno-minados dominios de alterificacao.

    Ja encontramos alguns desses registros de alteridadernaquinica:

    - a alteridade de proximidade entre maquinas diferen-tes e entre pecas da mesma maquina;

    - a alteridade de consistencia material interna;- a alteridade de consistencia formal diagrarnatica;- a alteridade de phylum evolutivo;- a alteridade agemica entre maquinas de guerra, em

    cujo prolongamento poder-se-ia associar a alter idade "auto-agonica" das rnaquinas desejantes que tendem a seu pr6priocolapso, sua pr6pria abolicao.

    Uma outra forma de alteridade s6 foi abordada muitoindiretamente; poder-se-ia chama-la de alteridade de esca-la, ou alteridade fractal, que estabelece urn jogo de corres-pondencia sisternica entre maquinas de diferentes niveis!".

    Entretanto, nao estamos preparando lim quadro uni-versal das formas de alteridade maquinic.is pois, na verda-de, suas modalidades ontol6gicas sao infiniras. Elas se or-

    17 Leibniz, em sua prcocupacao de torna r hOIIl()g'~Ill '()S 0 infini-tamente grande e 0 infinitamente pequeno, csruu.i 'lIlt' ;1m.iquina viva,que ele assimila a uma rnaquina divina, continua ;1 sn m.iquina em suasmenores partes, ate 0 infinito (0que nao seria 0 CISO ,L J m.iquina feitapela arte do homem). Cf. G.W. Leibniz, La JlI()II

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    32/107

    construidos, atraves da pratica fetichista, nao apenas demodo simbolico mas tambern de modo ontol6gico aberto.

    Ainda mais do que a subjetividade das sociedades ar-caicas, os Agenciamentos maquinicos conternporaneos naotern referente padrao univoco. Todavia estamos muito me-nos habituados a irredutivel heterogeneidade - e mesmo aocarater de heterogenese - de seus componentes referenciais .o Capital, a Energia, a Inforrnacao, 0 Signif icante sao al-gumas das categorias que nos fazem acreditar na hornoge-neidade ontologica dos referentes biologic os, etologicos, eco-nornicos, fonologicos, escriturais, musicais etc . ..

    No contexto de uma modernidade reducionista, cabe-nos redescobrir que a cada prornocao de urn cruzamentornaquinico corresponde uma constelacao especif ica de Uni-versos de referencia a partir da qual uma enunciacao par-cial nao-humana se insti tui . As maquinas biologicas promo-vern os universos do vivo que se diferenciam em devires ve-getais, devires animais. As maquinas musicais se instauramsobre universos sonoros constantemente remanejados des-de a grande mutacao polifonica, As maquinas tecnicas se ins-tituem no cruzamento dos componentes enunciativos osrna is complexos e os mais heterogeneos.

    Heidegger!", que fazia do mundo da tecnica urn tipo dedestino malefico resultante de urn movimento de distancia-mento do ser , tomava 0exemplo de urn aviao comercial pou-sado em uma pista: 0 objeto visivel esconde "0 que ele e e aforma pela qual ele e". Ele so desvela seu "fundo a medidaque e designado para assegurar a possibi lidade de urn trans-porte" e, para esse fim, "e preciso que ele seja designavel,quer dizer pronto para voar e que ele 0 seja em toda suaconstrucao ". Essa interpelacao, essa "designacao ", que re-

    19 M. Heidegger, Essais et Conferences, Gallimard, Paris, I ':!XX,pp.9-48.

    Caosmose

    vela 0 real como "fundo", e essencialmente operada pelohomem e se traduz em termos de operacao universal, des-locar-se, voar. .. Mas esse "fundo" da rnaquina reside ver-dadeiramente em urn "ja ai", sob a especie de verdades eter-nas, reveladas ao ser do homem? De fato, a rnaquina falacom a maquina antes de falar com 0homem e os dominiesontologicos que ela revel a e secreta sao, em cada caso, sin-gulares e precarios.Retomemos esse exemplo de urn aviao comercial, des-sa vez nao mais de forma generica, mas atraves do modelotecnologicamente data do que foi batizado "0Concorde". Aconsistencia onto16gica desse objeto e essencialmente com-posita; ela esta no cruzamento, no ponto de constelacao ede aglomeracao patica de universos que tern, cada urn, suapropria consistencia ontologica, seus traces de intensidade,suas ordenadas e coordenadas proprias, seus maquinismosespecificos, Concorde concerne ao mesmo tempo a:

    - urn universo diagrarnatico com os pianos de sua"exeqiiibilidade " teorica;

    - universos tecnologicos que transpoern essa "exeqii i-bil idade" em termos de materiais;

    - universos industriais capazes de produzi-lo efetiva-mente;

    - universos imaginaries coletivos correspondendo aurn desejo suficiente de fazer com que ele exista;

    - universos politicos e econornicos que permitem, en-tre outros, liberar os creditos para sua execucao.

    Mas 0conjunto dessas causas finais , materiais, forma ise eficientes, no final das contas, nao da conta do recado! 0objeto Concorde circula efetivamente entre Paris e NovaTorque, mas permanece colado ao solo econornico. Essa fal tade consistencia de urn de seus componentes fragilizou deci-sivamente sua consistencia onto16gica global . 0 Concordeso existe no limite de uma reprodutibilidade de doze exern-

    I lcrerogenese 61

  • 5/11/2018 Caosmose - Felix Guattari

    33/107

    plares e na raiz do phylum possibil is ta dos supersonicos porvir. 0 que ja nao e negligenciavell

    Por que insistimos tanto na impossibilidade de fundaruma traduzibilidade geral dos divers os componentes de re-ferencia e de enunciacao parcial de agenciamento? Por queessa falta de reverencia acerca da concepcao lacaniana dosignificante? E que precisamente essa teorizacao oriunda doestruturalismo linguistico nao nos faz sair da estrutura enosimpede de entrar no mundo real da rnaquina. 0 significan-te estrutural is ta e sempre sinonirno de discursividade linear .De um simbolo a outro, 0efei to subjetivo advern sem outragarantia ontol6gica. Contrariamente, as maquinas hetero-geneas, tais como as considera nossa perspectiva esquizoa-nalitica, nao fornecem urn ser padrao, ao sabor de uma tern-poral izacao universal . Para esclarecer esse ponto, dever-se-ao estabelecer dist incoes entre as diferentes formas de linea-r idade semiol6gica, semi6tica e de encodizacao:

    - as codificacoes do mundo "natural", que operam emvarias dimensoes espaciais (por exemplo, as da cristalogra-fia) e que nao implicam a extracao de operadores de ccdifi-cacao autonomizados;

    - a l inearidade relat iva das codif icacoes biol6gicas, porexemplo a dupla he lice do DNA, que, a partir de quatro ra-dicais quimicos de base, se desenvolve igualmente em tresdimensoes;

    - a linear ida de das semiologias pre-significantes quese desenvolve em linhas paralelas relativamente autonomas,mesmo se as cadeias fonol6gicas da lingua falada parecemsempre sobrecodificar todas as outras;- a linearidade semiol6gica do significanre estruturalque se impoe de modo despotico a todos os outros modosde serniotizacao, que os expropria e tende lllCSIl10 a faze-losdesaparecer no quadro de uma economia comunicacionaldominada pela informatica (precisemos: a informatica em

    Caosmose

    seu estagio atual, pois esse estado de coisas nao e absoluta-mente definitivo);

    - a sobrelinearidade de substancias de expressao a-sig-nificantes, onde 0significante perde seu despotismo, poden-do as linhas informacionais recuperar urn determinado pa-ralelismo e trabalhar em contato direto com universos refe-rentes que nao sao absolutamente lineares e que tendem a es-capar, alern disso, a uma logica de conjuntos espacial izados.Os signos das rnaquinas semi6ticas a-significantes sao,por urn lado, "pontos-signos", de ordem serniotica; por outrolado, intervern diretamente em uma serie de processos rna-quinicos materiais. (Exemplo: 0numero do cartao de credi-to que opera 0 funcionamento do distribuidor de notas).

    As figuras semi6ticas a-significantes nao secretam ape-nas significacoes, Elas proferem ordens de movimento e pa-rada e, sobretudo, acionam a "passagem ao ser" de univer-sos ontol6gicos. Consideremos, agora, 0exemplo do ritor-nelo musical pentatonico que, ao fim de algumas notas, ca-tal isa a constelacao debussiana de mult iplos universos:

    - 0universo wagneriano em torno de Parsifal, que seliga ao territ6rio existencial consti tuido por Bayreuth;

    - 0 universo do canto gregoriano;- 0 da rmisica francesa com a revalorizacao atual de

    Rameau e Couperin;- 0 de Chopin em razao de uma transposicao nacio-

    nalista (Ravel tendo por sua vez se apropriado de Liszt);- a rmisica javanesa, que Debussy descobriu na Expo-

    sicao Universal de 1889;- 0mundo de Manet e de Mallarrne que se liga a es-tada do musico na Vila Medicis,E a essas influencias presentes e passadas conviria acres-

    centar as ressonancias prospectivas que constituem a re