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38 z FEVEREIRO DE 2015 Estudo mostra que diminuiu o número de artigos publicados por único autor em algumas áreas da biologia Q uando o zoólogo Célio Haddad, da Universidade Estadual Pau- lista (Unesp) de Rio Claro, co- meçou sua jornada na ciência no início dos anos 1980, a maioria dos pes- quisadores de sua área preferia publicar artigos sozinhos. Trabalhos de taxonomia e de botânica exigiam pouco diálogo com outros campos da biologia e eram reali- zados quase solitariamente. “A tarefa de identificar e classificar espécies podia ser feita de forma individualizada, com pouca interação entre pesquisadores”, conta Haddad. A situação começou a mu- dar a partir da década seguinte, quando as técnicas de descrição das características externas dos animais e plantas não eram mais suficientes para distinguir novas espécies e métodos de outras subáreas da biologia, como a análise molecular, precisaram ser incorporadas. Agora, um estudo publicado por pesquisadores da Universidade Estadual de Goiás (UEG) na edição de janeiro da revista Scientometrics apresenta dados sobre as alterações no padrão de publicação em quatro subáreas da biologia – genética, ecologia, zoologia e botânica – nos últimos 40 anos. CIENTOMETRIA y Bruno de Pierro Solitários em extinção A pesquisa sugere que de fato houve diminuição do número de artigos publi- cados por apenas um autor em todas es- sas especialidades. No entanto, o critério de publicação com vários autores é mais pronunciado em áreas interdisciplinares, como genética e ecologia. Em zoologia e botânica, que não têm tanto caráter interdisciplinar e nas quais artigos des- crevendo espécies são mais comuns, o número de papers de autor único é ainda significativo e diminui mais lentamente (ver quadro). Segundo João Carlos Na- bout, biólogo da UEG e autor principal do estudo, isso acontece porque essas duas áreas têm o que ele chama de problema de origem. “A classificação científica mo- derna, proposta pelo sueco Carl Lineu, no século XVIII, começou com estudos independentes. Esse método foi seguido por centenas de anos”, explica Nabout. Já a genética e a ecologia têm natureza multidisciplinar, pois nasceram do tra- balho colaborativo de diversas áreas, en- tre elas bioquímica, matemática e física. Para chegar a essas conclusões, o estudo selecionou artigos científicos publicados entre 1966 e 2012 em periódicos anexados

Cientometria - Publicação de Artigos Em Debate (2015)

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  • 38 z fevereiro De 2015

    Estudo mostra que diminuiu o nmero

    de artigos publicados por nico

    autor em algumas reas da biologia

    Quando o zologo Clio Haddad, da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) de Rio Claro, co-meou sua jornada na cincia

    no incio dos anos 1980, a maioria dos pes-quisadores de sua rea preferia publicar artigos sozinhos. Trabalhos de taxonomia e de botnica exigiam pouco dilogo com outros campos da biologia e eram reali-zados quase solitariamente. A tarefa de identificar e classificar espcies podia ser feita de forma individualizada, com pouca interao entre pesquisadores, conta Haddad. A situao comeou a mu-dar a partir da dcada seguinte, quando as tcnicas de descrio das caractersticas externas dos animais e plantas no eram mais suficientes para distinguir novas espcies e mtodos de outras subreas da biologia, como a anlise molecular, precisaram ser incorporadas. Agora, um estudo publicado por pesquisadores da Universidade Estadual de Gois (UEG) na edio de janeiro da revista Scientometrics apresenta dados sobre as alteraes no padro de publicao em quatro subreas da biologia gentica, ecologia, zoologia e botnica nos ltimos 40 anos.

    CiEntomEtria y

    Bruno de Pierro

    Solitrios em extino

    A pesquisa sugere que de fato houve diminuio do nmero de artigos publi-cados por apenas um autor em todas es-sas especialidades. No entanto, o critrio de publicao com vrios autores mais pronunciado em reas interdisciplinares, como gentica e ecologia. Em zoologia e botnica, que no tm tanto carter interdisciplinar e nas quais artigos des-crevendo espcies so mais comuns, o nmero de papers de autor nico ainda significativo e diminui mais lentamente (ver quadro). Segundo Joo Carlos Na-bout, bilogo da UEG e autor principal do estudo, isso acontece porque essas duas reas tm o que ele chama de problema de origem. A classificao cientfica mo-derna, proposta pelo sueco Carl Lineu, no sculo XVIII, comeou com estudos independentes. Esse mtodo foi seguido por centenas de anos, explica Nabout. J a gentica e a ecologia tm natureza multidisciplinar, pois nasceram do tra-balho colaborativo de diversas reas, en-tre elas bioqumica, matemtica e fsica.

    Para chegar a essas concluses, o estudo selecionou artigos cientficos publicados entre 1966 e 2012 em peridicos anexados

  • PESQUISA FAPESP 228 z 39

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  • 40 z fevereiro De 2015

    aceito para publicao e de tambm re-ceber mais citaes aumentam quando o pesquisador est associado a redes inter-nacionais de pesquisa, que podem reunir centenas de autores num projeto, diz Rogrio Meneghini, coordenador cien-tfico da biblioteca virtual SciELO Brasil.

    Um exemplo de projeto dessa magni-tude o Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partculas do planeta, instalado no Centro Europeu de Pesqui-sas Nucleares (Cern), nos arredores de Genebra, que envolve quase 10 mil pes-quisadores de vrios pases. Segundo Me-neghini, a participao de brasileiros em artigos multiautorais mais frequente nas reas de fsica de partculas e de clnica mdica. Nesta ltima, comum a diviso de procedimentos para testar novos me-dicamentos em vrias partes do mundo.

    Para Jacqueline Leta, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRJ), a tendncia que todas as subreas da biologia dialoguem mais entre si e tambm com outros campos do conhecimento. A cincia nas reas experimentais cada vez mais tcnica, diz ela. cada vez mais difcil, portanto, fazer pesquisa sem equipamentos mo-dernos. Uma pessoa no d conta de dominar sozinha tcnicas, por exemplo, de gentica, qumica e informtica, diz Jacqueline, biloga de formao com atuao em cincias da informao. Bus-cam-se parcerias, portanto, no apenas para preencher lacunas da pesquisa que dependem do conhecimento de outras reas, mas tambm para reduzir custos, por meio do compartilhamento de equi-pamentos e laboratrios as chamadas facilities, que renem mltiplos usurios e podem ajudar a fecundar parcerias pro-missoras (ver Pesquisa FAPESP n 221).

    O impacto dessas mudanas tambm observado em escala reduzida. Roberto Lovon, aluno de Jacqueline no Programa de Ps-graduao em Cincias da Infor-mao (Ibict/UFRJ), realiza um trabalho em que a figura do autor nico parece se enfraquecer. Dados preliminares do es-tudo mostram que no trinio 2001-2003 a proporo de artigos de autoria nica publicados pela totalidade dos pesquisa-dores da UFRJ foi de 36%. J entre 2010 e 2013, o ndice havia cado para 28%. A prxima etapa da pesquisa ir fazer uma distino por rea do conhecimento, mas de acordo com Jacqueline, tudo leva a crer que o fenmeno acontece em todas

    base de dados do Institute for Scientific Information (ISI), da Thomson Reuters. Os pesquisadores consultaram 16 revistas cientficas (quatro para cada especialida-de) com alto fator de impacto, entre elas Nature Genetics, Botanical Journal of the Linnean Society e Zootaxa, criada em 2004 e responsvel pelo aumento de publicaes em zoologia a partir daquele ano. Diante dos dados coletados, uma das questes levantadas por Nabout e sua equipe foi tentar prever quando o padro de autoria nica entraria em extino em cada uma das subreas. Com base em clculos mate-mticos, o grupo estimou as datas em que as especialidades atingiriam o ndice de apenas 0,1% de artigos publicados por uma pessoa. Em gentica, isso aconteceria em 2036; na ecologia, em 2054; na botnica, em 2063; e em zoologia, por volta de 2090. Trata-se de uma estimativa, mas que refle-te o quanto essas especialidades so cada vez menos autnomas, afirma Nabout.

    FErrAmEntA IntErdIScIPlInArSegundo o pesquisador, um dos fatores que tm levado a zoologia e a botnica a interagirem um pouco mais com outras especialidades da biologia mas num ritmo mais lento do que gentica e eco-logia o fato de elas serem, hoje, mais utilizadas como ferramentas que forne-cem abordagens tericas para outras ca-tegorias da biologia. Um exemplo uma pesquisa comandada recentemente pe-lo bilogo Carlos Guilherme Becker, da Unesp de Rio Claro. O estudo mostra que

    o maior nmero de espcies de anfbios numa regio ajuda a deter a transmisso de uma doena fatal causada por fungos (ver Pesquisa FAPESP n 226). A pesquisa, cujas etapas envolveram conhecimentos de taxonomia, estatstica e anlise mole-cular, contou com a participao de Clio Haddad, cuja principal responsabilidade no estudo foi identificar espcies de anf-bios adequadas aos experimentos.

    Uma das evidncias do aumento da interdisciplinaridade o crescimento do nmero de revistas cientficas que agregam subreas da biologia, como o Journal of Animal Ecology e o Molecular Ecology. As chances de ter um trabalho

    A tendncia de o autor nico desaparecer nas cincias biolgicas um dado da realidade, diz Joo nabout

  • PESQUISA FAPESP 228 z 41

    Prtica em desvantagemPorcentagem de artigos com autor nico publicados em 1966 e 2011 em quatro subreas da biologia

    FOntE Joo Carlos nabout (univErsidadE Estadual dE gois)

    as reas do conhecimento. Meneghini chama a ateno tambm para as cincias sociais e humanidades. Nessas reas, a autoria nica ainda forte, assim como a preferncia de publicao das pesquisas em livros, diz ele.

    rESSAlvASEmbora o estudo da UEG indique o avano das colaboraes em subreas da biologia, preciso cautela na hora de considerar as concluses da pesquisa. Uma ressalva feita por Meneghini que a coautoria apenas um dos critrios para avaliar os nveis de colaborao cientfica. E ainda assim pode no ser uma mtrica muito confivel. cada vez mais difcil saber qual a respon-sabilidade que cada autor teve num arti-go assinado por vrias pessoas, diz ele. Um pesquisador pode ter contribudo emprestando um equipamento, mas isso no configura uma colaborao cientfica efetiva, explica Meneghini. Escrever em conjunto nem sempre significa uma cooperao, concorda Jacqueline. O pesquisador pode acrescentar o nome de um colega por amizade, para retribuir um favor ou at para facilitar a aceitao do artigo em uma revista, diz ela.

    Essa ideia ficou ainda mais clara entre os estudiosos da cientometria, depois que J. Sylvan Katz e Ben Martin, pes-quisadores da Universidade de Sussex, na Inglaterra, publicaram um artigo em 1995 mostrando que a coautoria apenas um indicador parcial da colaborao. Com base em dados bibliomtricos de 1981 a 1990, extrados do Science Cita-tion Index, da Thomson Reuters, e na reviso da literatura da poca, os pes-quisadores afirmam que a colaborao convencionalmente medida pela mul-tiautoria de papers, mas a abordagem no muito eficiente, uma vez que h vrios casos de colaborao no consumada. Diante do pressuposto de que mltipla autoria e colaborao so sinnimos, preciso reconhecer que, em alguns casos, nem todos os citados so responsveis pelo trabalho. Estudos de caso mostram que alguns autores so citados por ra-zes puramente sociais. Recentemente, a investigao de vrios casos de fraude cientfica revelou ser comum essa prti-ca, diz o estudo.

    J outro trabalho mais recente, publi-cado por pesquisadores do Journal of the American Medical Association em 2011,

    avaliou a prevalncia dos chamados au-tores honorrios e autores fantasmas em seis peridicos da rea mdica com alto fator de impacto em 1996 e 2008. Os au-tores honorrios so aqueles nomeados no artigo sem ter contribudo substancial-mente para poder assumir a responsabili-dade pblica pelo trabalho; os fantasmas so os que contriburam bastante para a pesquisa e no aparecem como autores, mas apenas, por exemplo, nos agradeci-mentos finais. Os resultados do estudo mostraram que 21% dos artigos publica-dos em 2008 nas seis revistas mdicas analisadas apresentaram esses dois tipos de autoria. Em 1996, o ndice de artigos com autoria inapropriada era de 29%.

    Joo Carlos Nabout reconhece essas limitaes. Claro que existem aqueles que contribuem menos numa pesquisa. O que o estudo mostra que a tendncia de o autor nico desaparecer nas cincias biolgicas um dado da realidade, diz. n

    total em nmeros absolutos

    autor nico

    1966

    2011

    67 77

    178249

    1.162

    825

    1.688

    37 61108 132

    2744

    294

    56%

    5,1%

    79%

    17,4%

    61%

    5,4%

    53%

    25

    490

    1966 1966 1966 1966 2011201120112011

    BOtnIcA ZOOlOgIA EcOlOgIA gEntIcA

    2,3%

    artigo cientficonabout, J. C. et al. Publish (in a group) or perish (alone): the trend from single to multi-authorship in biological papers. Scientometrics. v. 102, issue 1, p. 357-64, 2015.