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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
http://portalanda.org.br/index.php/anais 1
CONEXÕES CONTEMPORÂNEAS: REPENSANDO A DANÇA DO
VENTRE
ANDRÉA CRISTIANE MORAES SOARES (UFRGS) MÔNICA FAGUNDES DANTAS (UFRGS)
RESUMO
Este artigo apresenta um estudo em prática coreográfica para refletir sobre a utilização da hibridação e da antropofagia como processos de composição do espetáculo de dança do ventre "Awalin: as estrelas do mundo árabe". A obra teve como objetivo a reprodução de coreografias de musicais do cinema egípcio das décadas de 40 à 70. A distância temporal, cultural e geográfica entre o vídeo e execução das bailarinas em "Awalin" efetivou-se como uma "recriação" devido as diferenças que o corpo brasileiro encontrou para reproduzir os movimentos das artistas árabes do passado.Proposições de Mônica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard e Nestor Garcia Canclini elucidam as questões. O artigo espera contribuir refletindo a dança do ventre enquanto matriz técnica em obras contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: Hibridação, Antropofagia, Composição Coreográfica, Dança do Ventre.
CONTEMPORARY CONNECTIONS: RETHINKING THE BELLY
DANCE
ABSTRACT This article presents a study in choreographic practice to reflect on the use of hybridization and anthropophagy as processes of composition of belly dance show "Awalin: the stars of the Arab world." The work aimed to the reproduction of musical choreography of Egyptian movie from the 40s to the 70s. The temporal, geographical and cultural distance between the video and execution of the dancers in "Awalin" was accomplished as a "recriation" because the differences that the Brazilian body found to reproduce the movements of arabian artists of the past. Propositions Monica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard and Nestor Garcia Canclini elucidate the issues. The article hopes to contribute reflecting belly dancing while technique matrix in contemporary works. KEYWORDS: Hybridization, Anthropophagy, Choreographic Composition, Belly Dance.
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Conexões Contemporâneas: Repensando a Dança do Ventre
Este trabalho propõe refletir sobre os processos de composição
coreográfica do espetáculo de dança do ventre Awalin - as estrelas do mundo
árabe, encenado em Porto Alegre em 2010, sob uma perspectiva
contemporânea. O espetáculo apresentou-se como um grande desafio, para
nós intérpretes, por buscar reproduzir coreografias encenadas por atrizes
bailarinas do cinema egípcio, das décadas de 40 a 70. Seria possível a
reprodução de uma obra coreográfica concebida em um dado corpo, em uma
cultura e sociedade diferente e longe do tempo de sua primeira atualização?
Para abordar esta experiência utilizou-se dados etnográficos tais como
fotos, vídeos de ensaios, anotações referentes à composição do espetáculo,
roteiro, programa, release e projeto do evento. Como este trabalho partiu de
uma experiência que vivi como intérprete e diretora, situo o artigo como um
estudo em prática coreográfica (FORTIN,2009; DANTAS, 2007).
A pesquisa em arte/dança tem crescido no país e intensificado o
interesse de artistas - pesquisadores nos estudos auto-etnográficos. Sylvie
Fortin propõe que a pesquisa de prática artística tem como lócus do problema o
ateliê, a sala de ensaio e demais espaços de interação entre artistas (FORTIN,
2009). A pesquisa de prática artística pode ser realizada por um outro artista
que não o realizador da obra e mesmo nesta situação, segundo Fortin, a
pesquisa ainda seria em arte por se tratar do olhar de um artista sobre uma
obra artística.
Em seu artigo Contribuições possíveis da Etnografia e da autoetnografia
para pesquisa na prática artística, Fortin defende a utilização da abordagem
etnográfica para estes estudos de prática artística em dança:
A auto-etnografia (próxima da autobiografia, dos relatórios de si, das historias de vida, dos relatos anedóticos) se caracteriza por uma escrita do eu que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. (FORTIN, 2009: 83)
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Desta forma a autoetnografia foi uma ferramenta importante de reflexão
entre as descobertas teóricas e práticas que compõe a epistemologia deste
estudo.
Mônica Dantas (2007) explica que disciplinas como a História,
Neurociências, entre outras que não a Dança, quando a estudam, formulam
questões referentes à sua área de atuação tendo a dança como objeto de
estudo. Por outro lado,
a pesquisa de prática coreográfica explicita os saberes operacionais que são implícitos ao fazer coreográfico. Associa, num mesmo processo, a produção de uma obra coreográfica a uma forma de saber sobre esta produção que interage com a obra. (DANTAS, 2007: 3)
A pesquisa em prática coreográfica pode ser vista como um estudo de
dança sobre a área de dança realizada por um bailarino.
A dança do Ventre no Contexto Contemporâneo de Porto Alegre
A dança do ventre é uma forma híbrida que surgiu a partir da dança
egípcia e hoje é praticada mundialmente como uma dança que privilegia os
solos de improvisação, executada principalmente por mulheres. Este estilo,
amplamente disseminado como uma dança típica dos países árabes, combina
elementos da dança moderna americana e dos musicais de Hollywood:
A dança do ventre pode ser considerada como um estilo de dança que
subdivide-se em subestilos como o Raks Sharki (dança oriental clássica) e o
tribal, por exemplo.
A inserção da dança do ventre em Porto Alegre, já não se limita mais a
restaurantes e festas particulares. A criação da categoria "Destaque dança do
ventre" no Prêmio Açorianos de 2012 pela Coordenação de dança da
Prefeitura de Porto Alegre, comprova o grande número de produções de
espetáculos deste estilo nos teatros da cidade (SOARES, 2012). A maioria
destas produções são de mostras de dança de escolas e pequenos festivais.
Porém, também podem ser vistos espetáculos onde a dança do ventre
apresenta-se em meio a uma proposta artística elaborada.
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Concepção do Espetáculo Awalin
Ainda que a dança do ventre esteja conquistando lentamente o espaço
das produções de espetáculos de dança em teatro, ela ainda é normalmente
associada a uma dança não espetacular, no sentido de comportar grandes
produções cênicas, e com a utilidade prática de entretenimento. O trabalho que
desenvolvo desde 2001 com o Grupo Harem de Porto Alegre, busca inseri-la
como matriz técnica que pode produzir obras cênicas contemporâneas.
O espetáculo Awalin: as estrelas do mundo árabe uniu o vídeo e a
dança para reproduzir coreografias de grandes estrelas do cinema egípcio das
décadas de 40 à 70. O Egito foi um grande produtor de musicais românticos no
período da segunda guerra Mundial, ao estilo dos filmes produzidos em
Hollywood. Ao invés de consumi-los, os egípcios produziam seus musicais,
reproduzindo os conflitos, músicas e danças que condiziam com a sua cultura.
O cinema foi um grande disseminador da dança do ventre pelo mundo,
mostrando na tela, suas grandes intérpretes e seus movimentos peculiares.
Hibridação e Antropofagia no Espetáculo Awalin
A construção de Awalin: as estrelas do mundo árabe foi uma
experiência importante para mim e traz um elemento novo para esta reflexão.
Foi um espetáculo desafiador, tanto em sua proposta quanto em sua execução.
A começar pelo elenco: um grupo de bailarinas selecionado para participar de
um curso que ministrei em minha escola com título "Formação de Bailarinas".
Os encontros eram mensais, o que invalidaria qualquer possibilidade de uma
homogeneização da técnica das alunas. Assumi, então, o papel de orientadora
na construção do espetáculo.
Awalin tinha como objetivo contar a história de grandes bailarinas
árabes da época do cinema romântico egípcio através do vídeo e da dança, e
foi um instrumento importante para o desenvolvimento teórico e prático
daquelas alunas. Antes de cada dança, um pequeno vídeo relatava fatos
importantes da vida e obra de cada artista. A imagem seguia expandida ao
fundo do palco com uma coreografia interpretada pela atriz-bailarina, e a aluna
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deveria interpretar em frente da imagem, a coreografia "idêntica" àquela que
era projetada.
Flávia Reckziegel interpretando Nayma Akef
O objetivo era ingerir a coreografia da atriz-bailarina assistindo
detalhadamente ao vídeo, digerir seus passos, e encarnar a obra da forma
mais próxima possível a que estaria projetada por trás da aluna, conceitos
próprios da proposição de antropofagia na dança de Mônica Dantas (2008).
Mônica Dantas utilizou-se do Manifesto Antropófago de Oswald de
Andrade (1928) para pensar sobre a dança em sua tese de doutorado
defendida no Quebéc em 2008. Em seu estudo, a antropofagia na dança
refere-se ao modo com que o corpo assimila movimentos, técnicas e digere-
os, revelando-os por meio de sua corporeidade. Segundo Dantas (2011) os
corpos antropofágicos são guiados pelo desejo de apropriar-se seletivamente
de repertórios os mais diversos, de misturá-los com prazer para sintetizar
novos produtos artísticos, considerando as implicações políticas e utópicas
dessas ações. A autora explica que "o corpo vibrátil - corpo antropofágico -
reconfigura o mundo tal como ele se apresenta ao corpo.Trata-se então de um
conhecimento por vibração e contaminação, diferente de um conhecimento por
representação e imitação." O estudo aponta entre os processos de criação
analisados, processos de ingestão, digestão e encarnação da obra próprios da
noção antropofágica.
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Mônica Dantas utilizou a antropofagia para explicar a formação dos
corpos dançantes na obra Marché aux puces de Sheila Ribeiro que, segundo
ela, seguiu uma lógica de assimilação de diferentes técnicas:
A exemplo da antropofagia, que sugere a assimilação da substância do objeto devorado para realizar novas sínteses, a coreógrafa e os intérpretes de March aux puces assimilam os princípios (ou as substâncias), de diferentes práticas coreográficas para configurar seus corpos dançantes. [...] Esses corpos dançantes parecem bons exemplos de corpos antropofágicos, pois ingerem, digerem e incorporam seletivamente uma variedade de experiências para se reorganizarem e engendrarem novas criações. (DANTAS, 2011: 15)
Em Awalin, a antropofagia se deu na busca pela assimilação do
movimento e da gestualidade de cada atriz bailarina egípcia. O espetáculo
buscava reproduzir a mesma emoção por meio dos movimentos das
coreografias, figurinos e a presença das artistas egípcias mais conhecidas no
Brasil como Taheya Karioka, Samia Gamal, Nadia Gamal, Suhair Zaki, Nagwa
Fouad, Fifi Abdo e Nayma Akef. A ideia era ingerir não só a coreografia mas a
forma com que cada bailarina egípcia dava vida àqueles movimentos,
buscando reconstruir a mesma intensidade.
Para alcançar tais objetivos marquei aulas individuais com as alunas a
fim de decuparmos os movimentos do vídeo. Cada aluna deveria decorar a
sequência e eu a orientaria detalhando cada movimento.
Por muitos anos estudei por vídeos, aprendi a desvendar um
movimento por meio da imagem, observando onde a bailarina concentrava o
peso do corpo, como isolava uma parte para movimentar a outra. As primeiras
vezes que assistimos uma dança no vídeo, nos deslumbramos com o figurino,
o cenário, com o geral ao invés do específico. Só olhando muitas e muitas
vezes é que começa-se a entender como o movimento tomou forma naquela
imagem.
Nos vídeos que estudamos para o espetáculo Awalin, nos planos em
close, não era possível perceber a construção do movimento. Neste caso, uma
pesquisa em outros vídeos da artista em questão era necessária, a fim de
encontrar o mesmo movimento em um plano mais aberto de imagem. Nesta
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etapa encontramos nosso primeiro grande desafio: por mais que
entendêssemos o que a bailarina executava, por maior a técnica que a aluna
intérprete tivesse, o movimento que reproduzíamos não era o mesmo. A
corporeidade da bailarina egípcia da década de 40 e da aluna brasileira dos
dias de hoje, revelou diferenças sutis aos olhos de quem vê, mas imensas para
nós que a executávamos. Um pequeno exemplo é a forma com que as egípcias
produziam os acentos de quadril: por meio de contrações musculares muito
potentes, enquanto nós, para reproduzirmos a mesma potência precisávamos
realizar flexões curtas nos joelhos. Muitos foram os movimentos que tivemos
que reformular em nós para tornar nosso corpo receptivo àquela nova-velha
forma de dançar. Mesmo ao o reformularmos, o movimento tomava outra
forma. Quanto mais interno o movimento, mais dentro da kinesfera do corpo,
mais ele dependia da anatomia do corpo que lhe dava vida.
A segunda etapa dos ensaios consistiu de encontros onde a aluna
deveria apresentar-se para as demais. O vídeo da coreografia que interpretaria
era projetado por trás de si. Neste momento percebi a necessidade de colocar
alguns deslocamentos. Tivemos a preocupação de desenvolver a coreografia
ocupando espacialmente o palco de forma a transformar cenicamente a
movimentação dada no vídeo. Isto porque percebemos que algumas
coreografias com a de Taheya Karioka no filme Hamido (1952), não
apresentavam grandes deslocamentos e privilegiavam a movimentação de
quadril.
Muna Zaki interpretando Taheya Karioka
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Já Nadia Gamal no filme Prem Pujari (1970) utilizou-se de plano baixo,
alto, médio, giros e amplos deslocamentos no espaço, evidenciando maior
conhecimento em técnicas ocidentais de dança e composição coreográfica. Os
movimentos de quadril de Taheya apresentaram um alto grau de dificuldade no
processo de ingestão de sua técnica, mesmo sendo as intérpretes bailarinas
experientes na técnica da dança do ventre. Um dos motivos fora porque a
performance de Taheya foi uma interpretação de improviso, e não uma
composição coreográfica previamente planejada. Dançar de improviso é uma
prática comum na dança do ventre que demonstra a experiência da bailarina e
o conhecimento da música árabe e sua correta interpretação.
Desta forma, mesmo os movimentos de Nadia Gamal, com alto grau de
virtuosismo como a "queda turca"(caída de costas e joelhos abrupta ao chão)
ou o giro de tronco em cambré, foram mais fáceis de reproduzir por termos
conseguido decifrá-los mais facilmente. Por outro lado, a composição de
Taheya, sem o mesmo virtuosismo atlético, apresentou-se como um obstáculo.
Taheya Karioka, (assim chamada por interpretar Carmem Miranda em seus
shows), privilegiara em sua movimentação a melodia ao invés da contagem
rítmica, sua composição não preocupou-se em utilizar igualmente os dois lados
do corpo, favorecendo acentos com rotação da crista ilíaca esquerda.
O vídeo fora imprescindível para a execução da performance de
Taheya, no qual os movimentos próprios da dança do ventre, mais próxima à
sua raiz étnica, privilegia a movimentação de quadril onde predominam
movimentos internos, pequenos acentos e círculos. A anatomia própria de
cada corpo valoriza e dá forma de modo singular a cada movimento. A
possibilidade de ver os movimentos em close na imagem expandida,
proporcionou à plateia visualizar os belos micromovimentos de Taheya ao
mesmo tempo que desenhava-se no corpo da aluna em frente ao vídeo. Um
encontro de culturas e de épocas diferentes no mesmo espetáculo.
Helena Katz também reflete sobre semelhante proposta quando avalia
em seu artigo Visto de Entrada e Controle de Passaporte de Dança Brasileira,
o samba e sua passagem pelo tempo:
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Um corpo que samba hoje requebra diferente do samba dançado há 40 anos, quando as relações entre carnaval e televisão não eram como agora, tampouco o contrato entre morro e cidade. Com isso, a própria noção de como era o samba e o corpo que sambava há 40 anos também se modifica, uma vez que é com o olhar de hoje que os lembramos. As informações vão encostando e transformando, tanto a si mesmas (o passado do samba, no caso) quanto o ambiente (o corpo que dança esse passo), quanto a própria ideia de samba, tanto a de hoje quanto a do passado e a do futuro (KATZ, 2004: 123).
Desta forma, olhamos com nossos olhos de hoje a interpretação da
obra de 60 a 40 anos atrás e a reinventamos, a partir da minha leitura (a
decupagem do movimento do filme) e a atualização da obra na execução da
aluna. A assimilação da obra foi alcançada apenas de maneira global,
delineando contornos.
Helena Katz no texto Um, dois, três: a Dança é o Pensamento do
Corpo Dança e Pensamento do Corpo (1994), afirma que a coreografia carrega
em si mesma algo de seu autor, uma espécie de impressão digital. Sendo o
coreógrafo mais receptivo às "impressões prévias que cada corpo porta" a obra
será a fusão de ambas impressões resultando em uma construção conjunta, o
que a autora denomina caligrafia de corpos. No caso do espetáculo Awalin, eu
participei como dinamizadora da comunicação entre coreografia e aluna
intérprete quando decupei para elas as sequências de movimentos da obra que
havíamos escolhido. Além da impressão digital da autora da coreografia, a
bailarina atriz egípcia, a obra sofreu a degradação a partir de minha
decupagem, uma brasileira do ano de 2010, passando pelo corpo da aluna a
partir de seu processo antropofágico de assimilação dos movimentos.
A antropofagia na dança é vista por Helena Katz como uma ação
política de não exclusão, pois ao tentarmos distinguir uma dança como nossa,
a dissociamos das demais, vendo estas como outras. A antropofagia seria a
resposta para esta exclusão, pois por meio dela a deglutição do exógeno
aproxima socialmente as culturas, potencializando um processo criativo lúdico
e, ou artístico em uma nova forma híbrida. (KATZ, 2004) Por outro lado, Dantas
explica que a atitude política da antropofagia busca apoderar-se do outro para
renovar-se:
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Como bem sabemos, o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade em 1928, difundiu os princípios da antropofagia. Ele retoma a ideia de canibalismo ritual praticado pelos índios da tribo Tupinambá e propõe a ação antropofágica: devorar a cultura estrangeira, digeri-la e assimilá-la seletivamente para restaurar seu próprio patrimônio cultural (DANTAS, 2011: 15).
Uma Nova Obra em Awalin
Buscando cumprir com a meta inicial, de aproximar nosso espetáculo
de sua primeira versão, selecionei as coreografias de acordo com o perfil
técnico da aluna. Por exemplo, para Nayma Akef, em sua performance no filme
Ahibbak ya Hasan (1958) que combinava grand écart, giros com flexão de
tronco, e movimentos de quadril de alto nível, escolhi uma aluna formada
também na técnica de balé clássico. Para Suhair Zaki, era preciso ter
movimentos de quadril muito precisos, então uma aluna com uma excelente
técnica de quadril assumiu a obra da artista. A adequação da obra ao corpo e
técnica da aluna facilitou o processo de assimilação coreográfica, mas não
evitou que uma transformação acontecesse tanto no meu processo de
decupagem do vídeo, quanto no resultado que tomou forma no novo corpo que
a obra abrigara.
Apesar da assimilação acontecer no mesmo estilo de dança, no caso a
dança do ventre, esta degradação resultou em uma nova obra que teve a
primeira como inspiração poética. A nova obra seria então, uma hibridação da
obra assimilada por meio do processo antropofágico.
Nestor Garcia Canclini, autor de Culturas Híbridas (2011) aborda
em seu estudo as questões das mesclas interculturais na América Latina. Ele
defende que a anteposição do tradicional e o moderno, culto, popular e
massivo não é possível de uma forma homogênea, pois entre cada
classificação há a hibridação. Canclini explica que estas categorias interpõem-
se e convivem confluindo no tempo e espaço, o que ele chama de uma
"heterogeneidade multitemporal". Para ele o mundo moderno e as rápidas
trocas de informações contribuem para contaminação entre culturas:
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[...] entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras (grifo do autor) (CANCLINI, 2011.p XIX).
Com esta experiência de tempos, corporeidades e culturas diferentes,
percebe-se que nenhum corpo é igual a outro e nem o tempo e o momento é
igual ao outro. Cada execução da obra é uma aproximação semelhante à sua
primeira execução. De uma cultura para outra, a corporeidade carrega consigo
diferentes impressões que enformam os movimentos, dando-lhes
especificidades, ainda que sutis. A obra é, portanto, única no tempo, no espaço
e no corpo em que se realiza.
A teoria de hibridação de Canclini e Katz concordam que manter uma
cultura estagnada e protegida da modernidade em uma sociedade com acesso
a modernização não é possível. Helena Katz aprofunda-se nesta ideia quando
propõe a modificação e atravessamento da cultura pelo corpo. Para ela, o
corpo é também agente deste fenômeno. Ela apoia-se em Homi Bhabha para
sustentar sua tese de que o lugar, ou entrelugar, da cultura é o corpo. Para ela,
"a própria noção de cultura nacional como a de um recipiente que contém um
conjunto de tradições históricas e étnicas apoiadas na transmissão deixa de ser
sustentável por fazer parte do trânsito sempre aberto que caracteriza os
sistemas sociais". (KATZ, 2004)
Não significa, no entanto, que o que reproduzimos hoje em Porto
Alegre ou em outro lugar que não o Oriente Médio, não seja dança do ventre,
mas uma dança do ventre revestida pelas referências individuais e
socioculturais de um certo corpo do sul do Brasil que a reproduz, no caso de
Porto Alegre. A mesma música, as mesmas regras, os mesmos passos
carregados de uma especificidade que nos é comum. Diz Helena Katz que não
existe uma nacionalidade da dança, no sentido de não existir uma
característica única e comum à todo o brasileiro. Eu, porém, arrisco lançar a
ideia de que existe sim, uma tendência comum. Algo como um traço que
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influencie a percepção e por fim, a execução da odalisca porto-alegrense.
Hubert Godard em seu texto Gesto e Percepção serve como apoio à esta ideia:
A organização gravitacional de um indivíduo é determinada por uma mistura complexa de parâmetros filogenéticos, culturais e individuais.(...) Qualquer modificação do meio levará a uma modificação da organização gravitacional do indivíduo ou do grupo em questão. A mitologia do corpo que circula em um grupo social se inscreve no sistema postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos serve de veículo para esta mitologia. Determinadas representações do corpo que surgem em todas as telas de televisão e de cinema participam na constituição dessa mitologia. A arquitetura, o urbanismo, as visões de espaço e o ambiente no qual o indivíduo evolui exercerão influências determinantes em seu comportamento gestual (GODARD, 1995).
Para Godard, mitologias do corpo são formadas por ideais de si e do
outro a partir de quadros de referência que servem como modelo para o sujeito.
No Egito, as mulheres bonitas são aquelas que tem um corpo grande, largo e
forte, não roliço, mas exuberante. O padrão de beleza ocidental, com o corpo
magro e longilíneo não encontra no Egito, a mesma aceitação. Se no ocidente
o auge da beleza da mulher encontra-se em seus 20 ou 30 anos, no Egito as
bailarinas só alcançam reconhecimento depois dos 30 anos. Isto porque é
depois dos 30 que a mulher domina sua feminilidade de mulher, mais do que
de menina. Prova disso é que as bailarinas de maior renome no Egito como
Randa e Dina tem mais de 30 anos. Outros padrões, outras mitologias, outros
corpos, outra forma de dançar.
Considerações Finais
Comparando as afirmações de Katz quanto a autenticidade do samba,
considerando que cada corpo é único no tempo e espaço e a experiência vivida
no espetáculo Awalin, concordo com a autora quando ela afirma que não existe
uma expressão de autenticidade nacional, aqui referindo-se a autora a uma
dança típica brasileira. Porém, apesar de cada corpo ser único, a formação
cultural de indivíduos de mesma nacionalidade constroem mitologias de corpo
comum entre eles, facilitando uma construção corporal semelhante. Levando
estas considerações para meu estudo, também seria impossível acreditar em
uma autenticidade de qualquer dança étnica, seja ela oriental ou ocidental.
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Todos os corpos e etnias modernas estão sujeitas a hibridações e
contaminações. O corpomídia está em constante troca de informações, tanto
no Oriente quanto no Ocidente. Mesmo se a coreografia for elaborada com
alguma preocupação com a autenticidade, o corpo que a atualiza é moderno,
contaminado por transmissões constantes de informações. Nem mesmo no
Oriente, portanto, seria possível encontrar uma expressão de autenticidade da
dança árabe em relação a ela mesma há anos atrás.
A experiência com o espetáculo Awalin exemplifica a forma com que
corpos diferentes e distantes no tempo, cultura e espaço percebem, recebem e
enformam um movimento. O que é relatado em teorias foi percebido por nós
corporalmente a medida que tentávamos reproduzir os gestos daquelas
imagens que movia nossos corpos e espíritos. Nós, dançarinas brasileiras do
século XXI portamos em nosso corpo todos os atravessamentos de
hibridações, modernizações e com estes olhos de hoje que buscávamos
reviver aqueles corpos. O espetáculo atingiu seu objetivo de formar as alunas e
de informar o público, mas nós jamais poderíamos reviver com exatidão
aqueles movimentos.
Em Awalin: as estrelas do mundo árabe, a escolha pela reprodução do
repertório destas grandes artistas inspirou a nós praticantes de dança do
ventre, a compreender a dança egípcia. Vimos sua crescente
ocidentalização/hibridação ao longo das décadas, onde as coreografias mais
distantes de nosso tempo utilizaram-se mais de improvisações e poucos
deslocamentos, enquanto as performances mais próximas utilizaram passos de
danças ocidentais, como dança moderna e balé para os deslocamentos, e
modernizaram-se até em figurinos. Ainda que com a intenção inicial de
preservar a obra reproduzida, o resultado demonstrara a transformação por
meio da hibridação resultante do processo antropofágico em movimento, tempo
e espaço. São as conexões contemporâneas que submetem-nos, cada vez
mais, ao aumento do fluxo de comunicação e informação favorecendo as
mesclas culturais.
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Referências
CANCLINI, Nestor G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2011.
DANTAS, Mônica. Corpos em Trânsito/Corpos Antropofágicos: Criação Coreográfica e Construção de Corpos Dançantes em Marché aux Puces. In: NORA, Sigrid. (org). Húmus 4. Caxias do Sul: Lorigraf, 2011.p.13-21.
DANTAS, Mônica. Escolhas Metodológicas no Âmbito da Pesquisa em Dança. In: Anais do V Congresso da ABRACE, 2010. Disponível em: <http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/pesquisadanca/Monica%20Fagundes%20Dantas%20-%20Escolhas%20metodologicas%20no%20ambito%20da%20pesquisa%20em%20danca.pdf > Acesso em: 27 de junho de 2012
DANTAS, Mônica. Ce dont sont faits les corps anthropophages: la participation des danseurs à la mise en œuvre chorégraphique comme facteur de construction de corps dansants chez deux chorégraphes brésiliennes. Tese (Doutorado em estudos e práticas artísticas). 434 fls. Université du Québec à Montréal. Montreal, 2008
FORTIN, Sylvie. Contribuições Possíveis da Etnografia e da Autoetnografia para a Pesquisa em Prática Artística. in: Revista Cena. n.7, 2009. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961> Acesso em: 11 de junho de 2012.
GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, R. SOTER, S. Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: Editora da UniverCidade, 1995, p. 11-35.
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Andréa Cristiane Moraes Soares Formada em Comunicação Social (PUCRS), Especialista em Dança (PUCRS) Estudante de mestrado em Artes Cênicas (UFRGS). E-mail: [email protected]
Mônica Fagundes Dantas Professora Doutora Coordenadora do Curso de Graduação em Dança (UFRGS). Orientadora do curso de Pós Graduação em Artes Cênicas (UFRGS). E-mail: [email protected]