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Crônicas dos Iluminados Felipe Oliveira

Crônicas Dos Iluminados Pt 1

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The first part of my book, for degustation. In Portuguese.

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Page 1: Crônicas Dos Iluminados Pt 1

Crônicas dos Iluminados

Felipe Oliveira

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Dedico este livro às melhores pessoas que um dia pude conhecer: minha mãe, Lúcia; meu grande amigo “Karmo”; e Itiara, minha futura esposa, que me inspirou em muitos momentos durante esta obra. Obrigado pelo apoio e por estarem ao meu lado desde o

começo. Amo vocês.

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Kain

Um rastro de fogo cortou o céu. Uma estrela cadente, um cometa, passava próximo à atmosfera da Terra. Brilhava de forma singular, chamando a atenção dos cidadãos que estavam nas ruas naquela noite. Muitas das pessoas, acostumadas a ver o céu sempre acinzentado e com estrelas tão murchas, ficaram admiradas com a beleza daquele astro, que não se comparava a nenhum outro já visto. Alenna, que acabava de sair do mercado, também

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parou para ver a enorme estrela que ardia nos céus. Mas, em oposto ao vislumbre das outras pessoas, ela sentiu um aperto no peito, como um mau presságio. Sem entender o que sentira, Alenna desviou sua atenção para suas tarefas, e se dirigiu até sua casa.

Do alto, a situação era diferente. A estrela, na realidade uma enorme bola de fogo, rasgava os céus a toda velocidade em direção ao solo terrestre. Por algum motivo estranho, não era possível ver que ela se aproximava, e nenhuma tecnologia fora capaz de detectar a presença daquele corpo invadindo a atmosfera da Terra. Levou apenas alguns instantes, e o impacto ocorreu. O meteoro atingiu a cobertura de um prédio. Foi silencioso, e não causou nenhum dano ao concreto, por incrível que pareça. E mais estranho ainda, as chamas, que chacoalhavam frenéticas durante a queda, agora estavam inertes. Formavam uma espécie de campo de força, que cobria um raio considerável. Pareciam estar protegendo algo que se encontrava em seu interior. De fato, era verdade.

Um minuto depois, o campo de fogo começou a reduzir seu diâmetro, concentrando as chamas em um espaço menor. Agora, com menos amplitude, já se era possível detectar algo em seu interior. Havia uma forma humanóide, de estatura mediana, parada exatamente no centro da abóbada flamejante. Parecia inerte, e não temia o fogo ou o calor a sua volta. Quando as chamas reduziram ao máximo possível, concentrando apenas em um ponto, a figura mostrou-se. Um homem, de cabelos negros e olhos distantes, segurava uma centelha do que seria uma chama em sua mão esquerda. Tinha uma aparência nobre e uma aura hostil. Mas, o que mais chamava atenção nele, era uma cicatriz em forma de círculo, que ficava no centro de sua testa. Parecia ter sido feita com um ferrete, e pelo aspecto era bem antiga. O homem olhou em volta, contemplando o local aonde chegara. A pequena chama ainda ardia na palma da sua mão.

- Terra. Ainda cheira a sangue e sofrimento.

Ele fechou seu punho, extinguindo a pequena chama. Depois, andou um pouco por cima do prédio, como se procurasse alguma coisa.

- Onde você está? – suas palavras tinham um tom frio, inexpressivo.

Ao terminar aquela pergunta, ele se aproximou da borda do telhado, e saltou para o prédio ao lado. Apesar da distância, o homem pareceu não temer a queda, simplesmente lançando-se contra o ar. De uma forma natural, ele aterrissou do outro lado, como se aquela façanha fosse corriqueira em sua vida.

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Depois de alguns minutos caminhando, Alenna chegou em casa, as mãos carregadas de sacolas. Apressada, subiu as escadas em direção ao seu apartamento, e em seguida percorreu um pequeno corredor, parando em frente ao número 107. Com um pequeno esforço, fez um malabarismo para retirar as chaves da bolsa e as girou na tranca. Lá estava, seu “lar aconchegante”. Um pequeno apartamento, mas que era grande demais para uma mulher viver sozinha.

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- Finalmente, em casa. – ela ofegou, cansada.

Largando as sacolas no chão, ela retirou os sapatos e jogou-se sobre o sofá, as mãos cobrindo a testa.

- Que dia chato. E pra terminar bem, uma dor de cabeça.

Devagar, ela esfregou os olhos, retirou as roupas e as jogou no chão, ficando apenas com as peças íntimas. Afundando ainda mais no estofado, ela esticou as pernas. Quando deu por si, já estava deitava, embaraçando e acariciando os cabelos com a mão esquerda. Entre seus dedos, ela separava as mechas negras, mania de criança. E a cada carícia, seus olhos ficavam mais pesados. Então um vibrar seguido de alguns bips fez com que ela despertasse. Era seu celular, que tocava próximo a si. A garota prontamente o pegou, olhando no identificador de chamadas quem incomodava seu sono. Um nome familiar, Charlotte, aparecia no visor, seguido da foto de uma garota de cabelos desgrenhados.

- Oi Charlie! Acabei de chegar em casa.

- Fala garota! Tudo certo pra amanhã?

Alenna pensou por um segundo, procurando lembrar-se do compromisso que havia marcado.

- Ah sim! Claro que eu vou encontrar vocês amanhã. Quem é que vai além da gente? – ela logo respondeu.

- Olha. Você, eu, Jessica e o namorado dela.

- O namorado da Jessica também vai? – indagou a garota.

- Sim, mas ele não vai demorar muito.

- Ah. Porque você sabe que a tarde tem que ser das garotas. – Alenna adorava estes momentos entre amigas.

- Com certeza! Amanhã às quinze na praça do shopping, ok?

- Okay!

E a ligação foi encerrada. A garota pôs o celular de lado e começou a divagar sobre o dia seguinte, quando veria suas amigas de faculdade, fora do ambiente acadêmico. Novamente, ela se colocou a acariciar os próprios cabelos, perdendo-se mais uma vez no devaneio do sono. Em poucos instantes, Alenna já caminhava pelo verde, nas miríades do Sonhar.

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O homem corria por cima dos edifícios, saltando de telhado em telhado, até chegar a um prédio mais alto, de onde era possível se ter uma vista de boa parte da cidade. Como se procurasse algo, ele caminhou até mais ou menos o centro daquela cobertura, atento ao que

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estava ao seu redor. Então algo lhe chamou a atenção. Um pequeno pássaro de coloração azulada, que estava bicando uma antena de TV.

Ao ver a ave, ele esticou um dos braços na direção dela.

- Ei você! Venha até aqui. – sua voz soava imperativa.

Como se entendesse a ordem dada, o pequeno animal obedeceu, alçando vôo e pousando na ponta dos dedos dele. Em um rápido reflexo, o homem cerrou o punho, prendendo o pássaro dentro de sua mão fechada. O animal piava em desespero.

- Aquiete-se e me escute. – disse isso, colocando a outra mão sobre a cabeça da ave.

- Diga-me se conhece este coração.

Por uma fração de segundo, uma onda de choque pulsou de seus dedos, como o batido de um coração latente. O pequeno pássaro, ao sentir aquela vibração, pareceu se enfurecer, bicando com força a mão de seu captor. Este, por reflexo ou dor, abriu o punho, libertando a pequena ave. Vendo-se livre, ela voou o mais rápido que pôde, em direção ao céu escuro.

- Maldição. – ele praguejou, sentindo vontade de matar aquele bicho infame. Porém, ele sabia das Leis, e sabia que seria um desperdício.

Determinado a encontrar sua resposta, ele tomou uma postura diferente, afastando um pouco as pernas e apontando a mão esquerda para o alto. Fechou os olhos e se concentrou por um instante. Em seguida, abriu os olhos e, num movimento rápido, desceu o braço erguido, socando violentamente o chão abaixo de si. O impacto fora enorme, causando uma onda sonora que se propagou por um raio extenso e em uma freqüência estranha. E na mesma velocidade que se expandiu, a onda retornou, trazendo consigo um pequeno batido pulsante. O homem ouviu atentamente.

- Achei você. – um pequeno sorriso surgiu em seu rosto.

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Alenna acordou subitamente, soltando um grito abafado. Seu peito doía, como se algo tentasse esmagar seu coração. Num salto, ela se pôs em pé, com uma das mãos sobre o peito dolorido. Parecia que ela estava tendo um ataque cardíaco. Imediatamente, ela pegou seu telefone, e começou a discar o número da emergência. Mas antes que pudesse terminar, a dor ficou mais forte, e uma enorme ânsia de vômito lhe surgiu. Aflita e desorientada, a garota foi em direção ao banheiro, vomitando assim que chegou a pia. Seu coração acelerou ainda mais, quando ela percebeu o que havia vomitado. Sangue. A pequena poça vermelha escorria viscosa pelo ralo, o gosto ferroso ardia em sua boca e travava seus dentes.

- Meu Deus! – o pânico a tomava.

Um outro aperto ainda mais forte, e ela sentiu sua consciência fugir por um instante, tempo suficiente para que perdesse as forças e caísse ajoelhada no chão. Quando voltou a si, sua visão estava turva e sua cabeça pesada.

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- O que está acontecendo? – sua voz fraquejava, enquanto o medo da morte lhe surgia.

Mais uma pressão em seu peito, e ela teve a sensação de que seus ossos se comprimiam contra seu coração. Na dor, ela cuspiu mais um pouco de sangue, sujando as poucas vestes que trajava. Sua respiração começava a falhar, e a garota já podia sentir o fim iminente. Uma lágrima percorreu seu rosto, solitária.

- Morrer... sozinha... não...

Sua cabeça bateu contra a privada, e ela ali ficou, inerte.

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Novamente, o homem voltou a correr por cima dos prédios, atravessando ruas em saltos visivelmente impossíveis para um ser humano. Sua agilidade era superior a de um felino selvagem, e sua força incomparável. Ele seguia em direção ao pulsar que havia escutado, concentrando-se para não perder aquela vibração. Mas, por algum motivo, o batido rítmico simplesmente parou, e ele se viu perdido, sem saber para onde seguir. Havia uma direção, mas não havia um limite, uma distância aproximada. Ele podia passar o resto da vida seguindo para Oeste, sem nunca alcançar o objetivo.

- Mas que inferno. – ele disse, cessando sua corrida.

Ele tentou se concentrar novamente, para tentar recobrar o elo que havia se quebrado. Mas era inútil. Parecia que o que ele procurava, simplesmente deixara de existir. Sem ter opção, ele sentou-se, e esperou o dia amanhecer.

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Alenna abriu os olhos. Sua visão estava embaçada, e ela sentia uma dor latente na cabeça. Ao seu redor, o cheiro de sangue ressecado permeava o ar, aumentado sua náusea. Como bastante esforço, ela conseguiu se levantar, cuspindo a saliva avermelhada que havia em sua boca.

- Eu, estou viva? – sua voz demonstrava a dúvida.

Apoiando-se na pia, ela mirou-se no espelho. Seus olhos castanhos, ligeiramente amarelados, estavam pesados e sem vida. A maquiagem que usou na noite anterior estava borrada e manchada. Sua pele estava pálida e seus belos cabelos negros estavam desarrumados. Seus lábios estavam rubros e ressecados pelo sangue. Ela se sentia vinte anos mais velha e mal cuidada.

- O que houve comigo? Eu me sinto um lixo.

Movendo-se com cansaço, ela tirou suas roupas íntimas e entrou debaixo do chuveiro. A água quente batia em sua cabeça e escorria pelo resto do corpo, enquanto ela se mantinha escorada na parede, olhando para baixo. Passaram-se cerca de cinco minutos, e Alenna permanecia imóvel. Sua cabeça girava em um turbilhão de pensamentos, a maioria envolvendo o medo da morte e a falta de sentido em sua vida.

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- Meu Deus. Será que vou morrer tão jovem assim, e com uma vida tão incompleta? – ela finalmente quebrou o silêncio.

A garota então se entregou finalmente ao banho, de uma forma tão ritualística quanto poderia ser. A espuma delineava as curvas de seu corpo, enquanto ela tentava esvaziar sua mente. A água formava uma pequena camada de vapor, deixando apenas sua silhueta visível. Era de fato uma mulher a ser considerada, e uma visão maravilhosa, não fosse o sangue e toda aquela situação tenebrosa. Depois de terminar, ela enrolou-se numa toalha e andou até seu quarto, onde deixou a toalha cair. Vestiu-se com roupas leves e curtas, penteou os cabelos e perfumou-se. Uma pequena olhada no espelho. Parecia outra mulher, mas os olhos ainda não tinham vida. Ela estava, naturalmente, apavorada.

- Faz um sorriso, Alenna. – ela disse a si mesma.

Mas o sorriso não veio, Em vez disso, o despertador tocou, chamando sua atenção. 7:30, a hora de se arrumar para ir à faculdade. Ela havia apagado durante uma noite inteira, e não estava em condições para sequer por o pé para fora. Então ela se deu conta que era sábado. Não havia aula nos sábados.

- Ufa.

Alenna saiu de seu quarto, levando a toalha para estender num varal. Em seguida, dirigiu-se para a cozinha, onde fez um lanche rápido, assistindo de longe a TV. No noticiário, o cometa que passou próximo a Terra era manchete. Ela suspirou ao lembrar-se do que sentiu quando viu aquela estrela.

- É melhor deixar a TV para depois. – ela disse, desligando o aparelho.

Levantou-se, lavou a louça e se sentou no sofá. As sacolas de compras ainda estavam jogadas na entrada, e ela não estava com nenhuma disposição para arrumá-las. Em vez disso, ficou divagando sobre sua vida. Morar sozinha era realmente um saco, mas não havia escolha. Seus pais eram falecidos, e não restava ninguém com quem ela pudesse contar. Às vezes, ela pensava em jogar sua vida para o alto, entregar-se a vícios ou à própria depravação. Esquecer a história de garota certinha. Talvez, se ela saísse bastante, ficasse louca na pista de dança e dormisse com vários homens diferentes, sua existência tivesse um pouco mais de vida. Em total oposto a isso, levava apenas uma vida monótona, sem pessoas de verdade ao seu redor ou sem motivos importantes para seguir em frente, a não ser a necessidade de sobrevivência. Não sabia ela, o quanto sua existência era importante.

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Os primeiros raios de sol apareceram, e os olhos do homem se dirigiram a eles rapidamente. Ele não havia dormido, apenas permaneceu sentado, em meditação. O tempo todo, sua mente imaginava como estaria a situação de seus companheiros, que lutavam incessantemente naquela terrível guerra. Durante toda a noite, ele meditou, reunindo as forças que havia utilizado em sua chegada. Fora uma jornada difícil, que exigiu dele um dispêndio enorme de energia.

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Não demorou muito tempo, e o sol começou a subir. Enquanto isso, os sentidos daquele homem permaneciam em alerta, procurando pelo ressurgimento de uma vaga vibração. Ele sabia que aquela alma ainda estaria viva, e não desistiria enquanto não a encontrasse. Ele estava certo. Tão logo o dia raiou para toda a cidade, o bater distante daquele coração voltou a aparecer. De imediato, a sua mente limpou-se de tudo o que mais pudesse existir, e concentrou-se naquele pulsar. Ele sentiu atentamente sua freqüência, intensidade e distância. E assim que conseguiu uma breve conexão, pôs-se de pé e voltou a correr. Desta vez, percorria o caminho de forma mais rápida, sem se preocupar em parecer “realístico”. Sua única intenção era recuperar o que havia perdido, e ele estava disposto a lutar sem controlar suas forças.

Alguns instantes após ter partido, o homem teve uma sensação estranha. Parecia que estava sendo observado. Enquanto percorria o caminho, ele observava em volta, mas seu foco naquele coração pulsante impedia que ele entendesse o que o rodeava. Um erro que poderia ter sido fatal.

O homem continuou a correr por mais uns dois minutos, quando uma rajada de vento cortou seu caminho, vindo pelas suas costas. Num reflexo extraordinário, ele conseguiu desviar, a tempo de ver o que era. Uma lâmina, uma espécie de espada longa trabalhada, havia sido arremessada em sua direção. O aço frio brilhou contra o sol ao cruzar com ele, caindo logo mais a frente, encravado na cobertura de um edifício próximo. O homem espantou-se com a situação, mas por algum motivo parecia não sentir medo da arma. Usando seus sentidos aguçados, ele olhou em volta, procurando o agressor. Não foi necessário muito esforço, pois o mesmo anunciou-se em seguida.

- Olá, Assassino. – disse uma voz feminina.

O homem, o Assassino, olhou em direção a voz. Alguns metros a sua frente, estava uma mulher, uma mulher bem peculiar. Tinha os cabelos negros e os olhos bem azuis. Usava um traje semelhante a uma armadura medieval, com adornos bem desenhados sobre o metal escuro. Em sua mão esquerda, uma espécie de rosário estava pendurado. Mas seu maior detalhe, estava em suas costas. Um par de asas enegrecidas, que eram duras e afiadas como diamante, estava aberto e tilintava contra o ar. Tais asas faziam com que ela levitasse alguns centímetros do chão, lhe dando certo ar de imponência.

O Assassino, como ela o havia chamado, pareceu perplexo ao ver a figura que flutuava em sua frente, pois não esperava despertar nenhuma força vivente naquele planeta. Mas manteve seu olhar sério e sua expressão firme.

- Quem é você? – ele perguntou.

Ela, em resposta, esboçou um leve sorriso.

- Eu perguntei quem é você. – ele disse novamente, de uma forma mais imperativa.

- Você não imaginou que passaria pelo plano terrestre sem ser notado, não é? – ela respondeu.

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O homem tomou uma postura mais agressiva.

- Fiz uma pergunta. Não estou interessado em ladainhas. – ele insultou.

A mulher apertou os olhos. Em seguida, cessou sua levitação, fechando suas asas.

- Eu sou Tahlu-aht, um dos Quatro Pilares desta terra. E você, pela marca na testa, com certeza é Kain, o Primeiro Assassino.

O Assassino, Kain, fez uma expressão pensativa. Os Quatro Pilares, ele logo lembrara. Quatro guerreiros antigos responsáveis pela defesa da Terra contra qualquer ameaça “não terrena”. Eram poderosos e sábios, e acima de tudo perigosos. Kain então controlou seus instintos, pois aquela mulher representava um grande problema.

- Você parece me conhecer mais do que a conheço. Contudo, meus assuntos aqui não são com você.

Ela deu um passo à frente. Ele, em contraparte, permaneceu imóvel.

- Não há nada que se ponha em seus assuntos aqui, Assassino. Vá embora. – a voz dela soou ríspida.

O olhar de Kain demonstrava sua discordância.

- Você está numa terra que não lhe pertence. Sua presença aqui trará o Caos. Vá embora, antes que tenhamos que expulsá-lo. – ela falou em um tom firme, que estremeceria qualquer ser humano.

Kain cerrou os punhos, que por instinto começaram a concentrar energia. Tahlu-aht percebeu a força que se reunia ao seu redor. Porém, os dois sabiam que não haveria confronto naquele momento. Eram hostis, mas sábios o suficiente para não provocarem destruição desnecessária.

- Não vim até a Terra por vontade própria, Tahlu-aht. Neste exato momento, meus companheiros travam uma grande batalha contra um inimigo mortal, e é de extrema necessidade que eu encontre aquilo que vim buscar. Não sairei deste plano enquanto não recuperar o que perdi. – ele respondeu, irredutível.

A mulher esticou o indicador em direção ao Assassino.

- Vá embora, ou faremos com que vá. O aviso foi dado.

Desta vez, Kain respondeu a altura.

- Não irei. Sairei daqui apenas quando cumprir meu objetivo, e ninguém ficará no caminho. Estou aqui em nome da Criação, e não há força terrena que se oponha à minha vontade. Se quiser, pode tentar me fazer ir. Mas esteja pronta para sofrer as conseqüências. – ele ameaçou.

Tahlu-aht abaixou o dedo e sorriu.

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- Em nome da Criação? Diga-me: O Criador ainda pune você pelo crime imperdoável que cometeu?

Kain pareceu surpreso pela pergunta. Mas logo sua surpresa foi ofuscada pela raiva. Ele permaneceu quieto, tentando controlar sua ira. Ela o estava provocando para ter um motivo pelo qual enfrentá-lo.

- O aviso está dado, Assassino. – ela fez questão de frisar o termo.

Tahlu-aht deu as costas e partiu, sendo envolvida por uma camada espessa de sombras, que saíram de lugar nenhum. As trevas circundaram-na por um instante e evanesceram, levando-a consigo. Kain pôs-se a pensar sobre o que havia acontecido. Ele despertara a ciência dos Quatro Pilares, estando agora exposto às suas investidas. Tahlu-aht provavelmente ficaria em seu encalço, observando de longe suas atitudes. E a cada “passo em falso” que ele desse, ela poderia se valer da situação. Os guerreiros que protegiam a Terra eram juízes ferozes, e não deixariam nenhum deslize passar em branco, Aquele com certeza fora o primeiro de vários encontros que ele teria com um deles.

Depois de alguns instantes, Kain focou-se novamente em sua missão. Desta vez, custou-lhe um pouco mais para recuperar a conexão com aquela alma, devido ao estresse e distração em relação ao seu encontro com Tahlu-aht. E mais uma vez, ele se pôs a correr.

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Alenna organizou as compras que havia feito, guardando tudo com cuidado. Depois, passou a manhã toda cuidado de sua casa. Ela estava fazendo tudo o que era possível para manter a mente tranqüila, para afastar as lembranças da noite anterior. Mas era inútil. O gosto do sangue ainda estava fresco em sua boca, e as palpitações estranhas, embora já terminadas, ainda lhe incomodavam. Alenna tinha certeza que algo de ruim aconteceria. E como num presságio estranho, o seu celular tocou. A garota, desnorteada, atendeu às pressas.

- Alô?

- Alenna? – a voz feminina do outro lado da linha parecia ter estranhado a forma como a garota atendeu.

- Ah! Oi Charlie.

- O que você tem? – respondeu a amiga.

Alenna ficou em silêncio por um segundo.

- Nada. – ela enfim respondeu.

A outra, entendendo o que acontecia, calou-se por um instante.

- Ok. E aí, tudo certo pra hoje à tarde?

A garota lembrou-se então do compromisso que tinha marcado com as amigas. Ela havia esquecido completamente, aturdida com seu “quase-ataque-cardíaco”.

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- Eu não sei...

- Eu não sei? Você só pode estar louca. – Charlie retrucou.

- Mas...

- Mas nada. Quinze horas, praça do shopping. Beijão.

Alenna não respondeu, e simplesmente encerrou a ligação. Charlie estava mesmo empolgada em vê-la, apesar das duas se encontrarem costumeiramente na faculdade. “A gente tem que se ver fora desse buraco”, dizia ela. Talvez fosse porque no ambiente acadêmico, elas não ficassem realmente à vontade para conversar em paz. Além disso, era provável que Charlie estivesse mesmo era querendo beber e fazer besteira por aí, e o apoio das amigas era essencial. Mas Alenna não estava se sentindo muito bem para isso. Não depois da noite que teve. Mesmo assim, ela decidiu ir se arrumar. Charlie e Jessica não a deixariam ficar em casa, de qualquer forma.

Depois de um almoço rápido, Alenna tomou um banho e se vestiu para sair. Enquanto se banhava, ela cogitava sobre o que lhe aconteceu. Ela cuspiu sangue, enquanto sentia dores terríveis no peito. Seria alguma coisa como um infarto? Ou pior. O pensamento lhe assustou por um tempo, e ela decidiu que iria ao médico assim que possível. Quando terminou de se vestir, ela deu uma rápida olhada no espelho, a vaidade lhe surgindo devagar. Estava bem, pra quem ia ver as amigas. Ela então olhou o relógio. 14:20. Estava na hora de ir.

Demorou cerca de meia hora para que Alenna chegasse ao shopping. Era um lugar agradável, que embora fosse movimentado, não era entupido de pessoas. Ela caminhou por alguns minutos em direção a praça, observando as lojas sem muito interesse. Subiu um lance de escadas rolantes e chegou então à enorme praça de alimentação. Esta, em contraposto ao próprio local, estava cheia, com grupos de todas as idades se reunindo para se divertir, mais até do que para comer. A garota fez uma breve varredura no lugar, procurando suas amigas, mas nada encontrou. Então ela decidiu sentar-se em uma mesa e ficou a esperar. Menos de cinco minutos depois, as ditas-cujas apareceram, subindo pela mesma escada em que Alenna veio. Primeiro, Jessica , uma típica patricinha, de cabelos castanho-alourados, pele branca e olhos esverdeados. Ela estava abraçada com Ethan, seu namorado. Este, por sinal, era o líder do movimento estudantil na faculdade, e sua popularidade transcendia o espaço que seus óculos conseguiam lhe mostrar. Logo atrás dos dois, veio Charlie, a esquisitinha da sala. Tinha um ar despojado sob seus cabelos repicados e sua longa franja que lhe cobria o olho direito. Mas o seu detalhe mais marcante eram os olhos azuis, ressaltados pelo lápis escuro que ela passava ao seu redor. Era, decididamente, um trio incomum.

Assim que os três apareceram, Alenna levantou-se e acenou, para que eles viessem até ela. Estes, acenaram de volta e foram ao seu encontro.

- Menina! Que cara é essa? – disse Jessica, abraçando a amiga.

- Não dormi muito bem. – mentiu Alenna.

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Em seguida, foi Charlie quem a abraçou. Esta, porém, não disse nada. Ethan, contudo, pronunciou-se.

- Olá Alenna. Como vai?

- Vou bem, obrigado.

Depois das formalidades, eles se sentaram e pediram algo para comer. Charlie, contudo, pediu também uma cerveja.

- Vê se não fica bêbada, rockeirinha. – ironizou Jessica.

Charlie sorriu. Ela estava muito preocupada para manter-se sóbria.

- E então gente, o que vamos fazer hoje? – Alenna indagou.

Foi Jessica quem respondeu.

- Eu pensei em ficarmos aqui algum tempo e depois irmos para o fliperama.

- Ótimo. Estou mesmo precisando esmagar algumas toupeiras com aquele martelo do “Whack!” – respondeu Charlie.

Alenna sorriu. “Whack!” era uma das maneiras que Charlie usava para aliviar o estresse.

Antes que a comida chegasse, Ethan foi ao banheiro. Charlie aproveitou a deixa para colocar as cartas na mesa.

- O que você tem, Alenna? Você estava animada ontem, e agora está com essa cara.

Alenna abaixou a cabeça, sem muito a dizer.

- É verdade, Alenna. Desde que chegamos que eu notei que você está com um ar estranho.

A garota manteve-se em silêncio. Charlie segurou sua mão, sacudindo-a.

- Alenna, acorda! Fala o que você tem. A gente não tem bola de cristal.

Alenna então levantou os olhos, meio entristecida.

- Eu quase morri ontem. – ela então se pronunciou.

As duas amigas quase caíram para trás com a frase.

- Como assim? – as duas perguntaram em conjunto.

- Eu não entendi muito bem. Do nada, eu acordei no meio da noite com dores no peito, depois vomitei sangue e desmaiei. Só voltei a si hoje pela manhã.

Charlie e Jessica ficaram aturdidas.

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- E porque você não chamou uma ambulância? – perguntou Jessica.

- E porque você não nos avisou nada?! – retrucou Charlie.

- Gente, eu tentei! Mas a dor estava forte. Eu mal conseguia pensar! Eu estou tão assustada! – os olhos de Alenna se enchiam de lágrimas.

Prontamente, Jessica levantou-se e abraçou a amiga, que já começava a chorar. Charlie, contudo, ficou imóvel.

- Você devia ter ido ao médico hoje. – disse Charlie.

Alenna nada disse, apenas chorou por alguns instantes, abraçada com Jessica. Depois, enxugou as lágrimas e se recompôs.

- Eu vou ao médico segunda feira. Hoje, eu quero pelo menos descansar um pouco.

As duas amigas assentiram, e Jessica tornou a se sentar.

- Você vai ficar bem, amiga. E qualquer coisa, estamos com você. – falou Jessica.

- Isso. – Charlie respondeu.

Alenna então sorriu. Para ela, ter o apoio das amigas era essencial.

- Mas, vamos mudar de assunto um pouco. – ela disse, olhando por cima do ombro de Alenna.

- Advinha quem vem aí? – falou Charlie, em tom de charada.

-Olá garotas. – uma voz masculina falou.

Alenna olhou para trás automaticamente. Seu coração acelerou quando percebeu que era Taylor, sua grande paixão dos últimos dois anos. Este, apesar de não ser o mais bonito dentre os homens da faculdade, era bastante sagaz, e essa argúcia a atraia de uma forma única. Taylor, segundo diziam os outros, também sentia o mesmo por ela, porém os dois nunca se pronunciaram um ao outro.

- Taylor! Que surpresa você aparecer. – falou Jessica.

O rapaz, sem muitas formalidades, sentou-se.

- É. – ele deu um sorriso. – Vim encontrar o Ethan. A gente vai fazer umas coisas.

- Ele foi ao banheiro. Acho que não demora. – respondeu Charlie.

Alenna sorriu.

- E então. Como vocês estão? – ele perguntou.

- Estamos bem. – Alenna disse.

- Sério? Você parece não ter tido uma noite muito boa. – ele falou.

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A garota apenas assentiu com a cabeça, concordando com desânimo.

- E como vai o namoro, Taylor? – Charlie então disse.

O rapaz sorriu.

- Namoro? Acho que sou muito chato pras garotas me olharem. – ele sorriu novamente.

- Não é o que a Alenna pensa. – disse Jessica.

Alenna sorriu, sem graça. As amigas tinham a mania de empurrá-los um ao outro, por saberem do que ambos sentiam.

A comida então chegou, no mesmo momento em que Ethan apareceu. Os dois rapazes se cumprimentaram, e Ethan pediu que o outro ficasse para comer. Taylor aceitou depois de relutar, e todos comeram. Em meio a garfadas e conversas, Charlie bebericava um ou outro gole de cerveja, enquanto Jessica puxava assuntos e fazia com que Taylor e Alenna interagissem. Estes, meio envergonhados, conversavam e sorriam, seus sentimentos surgindo vez ou outra.

Depois que todos terminaram de comer, os dois rapazes se despediram e foram embora. Taylor, por capricho romântico, despediu-se de Alenna beijando sua mão. Ela, ficando vermelha, sorriu carinhosamente. Assim que os rapazes partiram, as amigas se entreolharam.

- Ele é louco por você, Alenna. – Charlie falou.

Alenna nada respondeu.

- É. Eu não sei por que vocês ainda não estão casados. Já vão dois anos nessa mesmice. – disse Jessica.

- Casados? – Alenna perguntou.

Jessica sorriu.

- É sério Alenna. Vocês se gostam. Porque não ficam juntos? – Jessica respondeu.

- Eu acho que a Lenna tem vergonha dele, porque ele não é um gatão. – Charlie disse.

- Não é isso. Eu só acho que não daria certo. – ela retrucou.

- Nunca vai dar, se você não tentar. – Charlie retrucou de volta.

A amiga se calou. Ela, de fato, gostava muito de Taylor, e ele sentia o mesmo por ela. Mas, por algum motivo, eles simplesmente nunca tiveram nada. Talvez, fosse vergonha ou mesmo medo de não dar certo e destruir a amizade que tinham.

Assim que a conversa terminou, as três amigas foram para o fliperama, onde jogaram durante o resto da tarde. Charlie, agora não tão sóbria assim, batia com força nas toupeiras, usando aquele martelo de pelúcia. As outras duas sorriam e tentavam jogar, fracassando

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vergonhosamente. E em meio aos sorrisos, vez ou outra as lembranças da noite anterior apareciam na mente de Alenna. Mas os momentos que estava tendo conseguiam afastar aquela sensação maligna que acompanhava o gosto negro do sangue.

Do outro lado do shopping, um rapaz apaixonado conversava com o amigo, arrumando coragem para pedir a amada em namoro.

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Kain manteve sua corrida incansável durante algumas horas. A cidade parecia bem maior do que ele imaginava, e quanto mais caminho ele percorria, mais havia para seguir. Ao longe, ele ouvia o pulsar daquele coração. Era tímido e ressoante, porém escondia uma força poderosa e ardente. O sol começava a desaparecer do céu quando o batido daquele coração ficou mais forte e presente. Ao sentir isso, Kain acelerou o passo, ficando rápido como o vento. Demorou apenas um minuto, para que aquela vibração se tornasse tão forte que parecesse estar dentro dele. O homem foi até a beira de um telhado, e concentrou-se no que ouvia. E no meio da rua lá embaixo, ele pôde sentir, finalmente, o seu objetivo à vista. Lá estava ela, a dona daquele coração. De longe, parecia engenhosamente linda, uma pequena luz em meio ao mundo de trevas ao seu redor. Kain sentiu-se diferente, como se sua vida tivesse finalmente encontrado um significado. Era o natural, para aqueles que reencontravam sua contraparte espiritual.

O homem permaneceu imóvel por um instante, maravilhado com o que via. Mas, seu vislumbre logo que desfez, quando ele percebeu que havia algo errado.

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Era quase sete da noite quando Alenna deixou o shopping. Ela saiu apressada, carregando sua bolsa pesada. Por algum motivo estranho, havia poucas pessoas na rua, e o caminho estava mais escuro do que o normal. Foi motivo o suficiente para que ela ficasse nervosa. Mesmo assim, continuou sua caminhada em direção ao ponto de ônibus. Cinco minutos depois, ela chegou ao local. A parada estava vazia, não fosse por um homem que estava deitado num dos assentos. Alenna ficou em pé, esperando o ônibus passar. Enquanto isso, ela pensava sobre ir ao médico, e sobre o dia que teve ao lado das amigas. Foi bem divertido, e ainda teve a presença de Taylor. Estava bom, para quem quase morreu.

A garota continuou a esperar o seu ônibus, quando uma voz lhe atraiu a atenção.

- E aí minha queridinha? – uma voz masculina falou.

A garota quase caiu de susto ao ver que havia um rapaz do seu lado. Ele saiu Deus sabe de onde, e estava parado há poucos centímetros dela.

- E aí minha queridinha? – ele repetiu.

Alenna estranhou a forma com que ele falava, e ficou instantaneamente mais nervosa.

- Oi. – ela respondeu, monossilábica.

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- Tá esperando o ônibus? Você mora aonde? – ele instigou, tentando puxar uma conversa.

A garota não respondeu.

- Porque você tá me ignorando?

Alenna deu um passo para o lado, tentando se afastar do foco da conversa. De repente, algo a puxou pela cintura, e ela sentiu um fio metálico encostar-se a seu pescoço. A garota gritou no susto, e percebeu no instante seguinte o que acontecera. O homem que dormia nos bancos da parada havia se levantado, e agora estava atrás dela, segurando-a pela cintura. No pescoço da moça, uma faca deslizava lentamente. Era uma armadilha. O rapaz que conversava com ela provavelmente a distraia até a oportunidade do ataque aparecer.

A garota tremeu ao entender a situação em que se encontrava. Estava sozinha contra dois homens, e um deles estava armado. Ela rezava que fosse apenas um assalto. O rapaz chegou mais perto dela, olhando-a nos olhos.

- Agora você vai falar comigo? – ele insultou.

Ela apertou os olhos de medo.

- Tenho pouco dinheiro.... mas pode levar minha bolsa.... se quiser. – ela disse, a voz lhe falhava a cada frase dita.

O rapaz olhou para a bolsa dela. Em seguida virou-se para o homem que segurava a faca.

- E aí Joe? O que achou da bolsa, e da garota? – disse o rapaz.

O homem atrás dela encostou-se mais na garota, fazendo uma pequena pressão abaixo de sua cintura. Alenna sentiu-o assediá-la, e ficou mais nervosa ainda. Não era um simples assalto.

- Eu gostei da bundinha dela. – o homem respondeu, pressionando sua genitália contra o corpo da moça.

- Por favor, não me machuquem. – ela disse, quase chorando.

O rapaz riu, de uma forma sádica.

- Machucar? Não vamos machucar você. Vamos apenas usá-la um pouquinho. Você só vai se machucar se não gostar. – ele respondeu, com ironia.

Alenna gelou. Ela estava prestes a ser violentada, e ainda ferida ou morta! E parecia que eles não se importavam se ela vivia ou não.

- Por favor, não! – ela suplicou.

E foram as únicas palavras que ela conseguiu proferir, pois os dois taparam sua boca em seguida. No segundo seguinte, eles começaram a abusar da garota, passando suas mãos

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em todas as partes de seu corpo. O homem enfiou uma mão por dentro da parte de trás da calça dela, enquanto o rapaz apalpava seus seios. Alenna gemia em agonia e medo, e se sacudia inutilmente. Não demorou muito, e ela já estava praticamente nua, suas vestes rasgando-se perante as investidas dos dois molestadores. A intenção deles era realmente esta, visto que não deram nenhuma atenção para os pertences dela. Eles gargalhavam em resposta às tentativas da garota de se soltar, enquanto suas mãos, partes íntimas e línguas deslizavam pelo corpo dela.

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Kain notara que algo estava errado, e não demorou muito para entender. A mulher, que ele procurava, estava sendo atacada por dois homens. Ela poderia morrer, e todo o seu esforço em chegar até ali teria sido em vão. Por instinto, ele lançou-se contra os agressores, mas foi impedido. Uma lâmina afiada forçou seu pescoço para trás, obrigando-o a cessar sua investida.

- Aonde pensa que vai? – a voz de Tahlu-aht soou ríspida e seca.

Kain fez uma cara raivosa.

- Ela está sendo atacada. Não posso deixar que isso aconteça.

- E o que isso tem haver com você, Assassino? – ela insultou.

- Eu viajei até aqui para buscá-la, e não permitirei que a machuquem. – ele respondeu, sua raiva natural lhe subia o tom de voz.

Tahlu-aht forçou ainda mais sua espada. Kain recuou.

- Escute, Assassino. Você está dentro do plano terreno, e não tem direito de influenciar nada que acontece aqui. Ela está naquela situação por quis, e você jamais poderá intervir. – explicou ela.

Kain calou-se, contendo sua implacável ira. Ela estava certa. A garota podia ter evitado aquela situação. Porém, ele não podia simplesmente permitir que ela sofresse algum dano ou algo pior.

- Mas olhe só. Você não é mais necessário. – disse Tahlu-aht, apontando para a cena.

O Assassino lançou novamente os olhos para o acontecido, e viu que alguém havia chegado ao local.

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Alenna chorava desesperada, enquanto a violência açoitava sua alma. Parecia que, quanto mais ela chorava, mais eles gostavam. A faca em seu pescoço machucava vez ou outra, e os homens a bulinavam com força, marcando seu corpo. Ela rezava para que eles não a ferissem mais do que estavam fazendo. O tempo todo, ela ouvia os gemidos e os barulhos estranhos que eles faziam, enquanto usavam e abusavam do seu corpo, que agora estava

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completamente desnudo. E quando a situação parecia que ia ficar pior, um grito ecoou pela rua, atraindo a atenção de todos.

- Soltem ela!

Era Taylor, o rapaz por quem Alenna era apaixonada. Ele surgiu do nada, correndo em direção à cena. Um dos bandidos assustou-se, e o outro a segurou com ainda mais força. Alenna, por sua vez, ficou surpresa. Alguém havia aparecido para lhe salvar!

- Deixem a garota, ou eu juro que acabo com os dois! – ele parecia decidido, como Alenna jamais havia visto.

- Saia daqui, ou vamos matá-la! – o rapaz devolveu.

Taylor então pôde entender por completo no que havia se metido. Ele havia aparecido repentinamente ao notar que Alenna estava sendo atacada. Mas não havia notado a faca que um deles segurava. Mesmo assim, não era mais momento para hesitar.

- Joe, segura essa vadia! Não deixa ela fugir! – gritou o rapaz.

Taylor investiu violentamente contra o primeiro bandido, trocando socos com ele. Seus golpes zuniam contra o ar, rápidos, porém não tão certeiros. O bandido esquivava quando podia e revidava com igual presteza. Eles digladiaram-se por mais ou menos um minuto, enquanto Alenna observava impotente a briga sangrenta que envolvia seu amado. E talvez por falta de costume ou por diferença física, Taylor viu-se em desvantagem, com a maré virando rapidamente em favor do estuprador.

- Você vai ver, seu merdinha! – gritara o rapaz, socando Taylor bem no queixo.

O garoto caiu para trás, o impacto do punho deixando-lhe quase inconsciente. Alenna, ainda mantida refém, soltou um grito de terror, ao ver o corpo de Taylor bater no chão.

- Filho da mãe. Ainda conseguiu ferir meu supercílio. – falou o bandido, com a sobrancelha a sangrar.

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Kain continuou observando a cena terrível lá embaixo. Agora havia chegado um suposto herói, que lançou-se contra os molestadores. Eles brigaram por alguns instantes, mas logo o herói fora demolido e dominado. O Assassino então olhou para Tahlu-aht, esperando que ela o libertasse.

- Afaste-se daqui, e vá embora. – falou a mulher, prevendo que ele não desistiria.

Ele permaneceu quieto. Se reagisse, estaria quebrando as leis terrenas. Mas, afinal, quem liga para elas?

- Afaste-se! – ela disse, imperativa.

Kain olhou mais uma vez em direção ao ataque lá embaixo. Era uma situação desesperadora, e sua raiva não o permitiria ficar parado.

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- Não. – Kain enfim respondeu, decididamente.

Num impulso rápido, ele golpeou Tahlu-aht pelos flancos. Usou apenas a força de seus punhos para empurrá-la para longe. Ela, por não esperar, foi atingida pelas mãos cerradas e violentas do Assassino, caindo a dois metros de onde estava. Na mesma velocidade que a atacou, ele saltou do prédio em direção a rua. Kain sabia naquele momento que havia assinado sua condenação. Mas, se ficasse parado e a mulher viesse a morrer, ele estaria condenado de qualquer forma.

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Os bandidos voltaram então a abusar de Alenna, que agora chorava ainda mais, por ver que Taylor jazia inconsciente no chão. Não bastava atacá-la, tinham que ferir o seu amado também. Mas seu sofrimento durou pouco, pois algo de estranho aconteceu. Um barulho estrondoso, seguido por uma enorme nuvem de poeira, abalou a todos ali. O rapaz a largou, mas o homem continuou segurando-a, para que não fugisse. Alenna fechou os olhos em resposta à poeira, abrindo-os alguns instantes depois. A garota não acreditou no que viu. Um buraco enorme havia sido aberto no chão, e um homem estava em pé no centro dele. Tinha os cabelos negros e compridos, e uma expressão de cólera.

- Larguem a mulher, vermes. – disse o tal homem, sua voz aliava-se à sua expressão.

- De novo não. – disse o bandido, já ficando entediado.

O homem começou a andar até eles, saindo de dentro da cratera que se formava no asfalto.

- Vá embora, desgraçado! Ou vai acabar igual ao outro ali! – o rapaz berrou, não tão certo do que dizia.

Mas parecia que ele não havia escutado, pois manteve sua marcha. Mostrava-se determinado e provavelmente não cederia a chantagens ou ameaças.

- Eu disse pra você ir embora, infeliz! – gritou o rapaz.

Joe, nervoso, apertava ainda mais a faca contra Alenna, sangue brotava em meio ao brilho da lâmina. A garota chorava e gemia, sentindo o ferimento que nascia em seu pescoço. O homem, em contraparte, caminhava lentamente, como se apreciasse a situação ou o que estava por vir.

- Farei com que sofram bastante antes da morte. – disse o homem, um sorriso surgia em sua seriedade agressiva.

Os estupradores tremeram nas bases ao ouvirem aquilo, porém mostraram-se confiantes. Estavam armados, e aquele homem estava de mãos nuas. Mas, e aquele buraco no chão?

- Quem vai morrer é você, desgraçado! – o rapaz berrou, indo de encontro a ele.

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Eles avançaram um contra o outro, chegando rapidamente ao limite de um combate corporal. O rapaz valeu-se de vários socos e chutes comuns, que foram desviados um a um com extrema facilidade. O homem sorria a cada golpe desviado, divertindo-se com a situação. Até que um fato inusitado aconteceu, mais uma vez. O homem balançou um dos braços contra o rapaz, e rapidamente, uma pedra voou em direção a cabeça daquele bandido, acertando-o em cheio. Ele cambaleou, sangue escorria por seus cabelos. Tão logo isso aconteceu, aquele homem estranho iniciou uma série de ataques violentos, socando-o com tanta velocidade que ele mal podia ver de onde vinham os golpes. Uns vinte ou trinta socos depois, e o rapaz balançava para trás, cheio de hematomas e quase inconsciente.

- A agonia está apenas começando. – falou o homem, virando-se agora para Joe.

O bandido, furioso e nervoso, largou a racionalidade, usando a faca parar ferir profundamente a garota. Foi um golpe terrível, que acertou sua barriga nua. Alenna gritou de dor, enquanto o sangue rubro fluía como um rio. A garota ficou praticamente desmaiada, enquanto suas forças se esvaíam. O bandido, jogou-a ao chão e investiu contra aquele homem. Mas não foi necessário, pois ele já estava em sua frente.

- Fique quieto, senão eu te enfio essa faca, nojento! – gritou Joe, apontando-lhe a faca.

O homem sorriu e colocou uma das mãos para trás. Num instante depois, um brilho reluziu rapidamente em suas costas. No mesmo instante, aquele homem puxou o braço escondido para frente, atacando Joe. Em sua mão, uma espada afiada, que decepou metade do braço do inimigo. O punho do bandido caiu ao chão, segurando a faca. Este, gritou como um louco diante do membro arrancado, abismado com o que aconteceu. De onde raios surgiu aquela espada ninja?

O desespero de Joe só tendeu a piorar, pois a violência daquele homem não parava por aí. Ele o agarrou pelo pescoço e o arremessou contra o rapaz, que caiu ao chão. Os dois bandidos estavam agora amontoados como lixo. O estranho guerreiro aproximou-se, levantando a espada.

- Seu desgraçado! – Joe gritou, em agonia.

Foi um único golpe monstruoso. O homem desceu a espada com tamanha velocidade, que perfurou a barriga de Joe, atravessando-a e penetrando no peito direito do rapaz. Os dois gritaram em coro, mas não morreram. A maldade caprichosa daquele homem infernal parecia não ter fim, pois ele deliberadamente os permitiu viver, para que sofressem um pouco mais antes da morrer.

- Agora, sentirão a verdadeira dor. – disse o homem, o assassínio brilhava em seus olhos negros.

O guerreiro abriu sua mão direita, a palma virada para cima. Ele fechou os olhos por um instante, e um brilho estranho surgiu sobre sua mão. Uma pequena luz emanava de seu punho. No segundo que se seguiu, a luz se transformou numa esfera esverdeada, quente como o fogo. O homem a contemplou por um instante, curioso.

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- Interessante, como é bela esta pequena chama. Interessante ainda mais, é o seu poder de aniquilação. Esta pequena bola de fogo provém de uma das fissuras de Marte, o planeta vermelho. Dizem que naquele lugar existe um portal para os oito infernos, e que esta chama está intimamente ligada a estes portais. Chamam este tipo de fogo de “O Ardor de Marte” – disse o homem.

Alenna observava aquela cena, sua consciência se esvaindo lentamente.

- Esta chama sempre me intrigou. Ela é capaz de matar qualquer coisa viva, mas não destrói nada. Dizem que ela foi criada para que aquele que nela caísse, sofresse eternamente, pois de alguma forma o corpo que nela morre fica com a alma presa dentro da carne mortal. O espírito, por conseqüência, não consegue se desligar da dor terrena, e permanece sofrendo até que as chamas se dissipem. Uma pena, no entanto, é que elas nunca se apagam. – ele riu ao dizer a última frase.

Os olhos dos bandidos, que se contorciam de dor, agora começavam a temer a fúria do sofrimento eterno.

- Outra coisa engraçada. O Ardor de Marte possui uma espécie de magnetismo para catástrofes. Aqueles que são atingidos pelas chamas verdes, acabam sofrendo outros ferimentos além dos causados pelo próprio fogo. E em algum momento, não exatamente definido, este magnetismo arrasta o Ardor em direção aos portais, levando consigo tudo o que por ele foi engolido. – ele fez uma pausa - Bem, chega de explicações não é?

Ao terminar o que dizia, o homem atirou o Ardor contra aqueles dois infames. A chama os tocou delicadamente, e então a monstruosidade teve início. O fogo simplesmente desapareceu, mas os gritos desesperados ecoaram pelas ruas da cidade. A dor da pior tortura conhecida pelo ser humano não expressava o mínimo do que aqueles homens sentiam. O Ardor de Marte foi feito pela própria Criação, como forma de punir os vivos por sua incredulidade. Era uma singela mistura de várias dores existentes, que iam desde o queimar do próprio fogo, ao rasgo de garras venenosas. O sofrimento deveria ter um nome mais forte, para definir a sensação eterna do encontro com aquela dor. Demorou apenas um pouco, e os gritos pararam. Os corpos estavam mortos, mas o suplício ainda continuava a acontecer, agora em um plano mais etéreo.

- Está feito. – disse o homem, satisfeito.

Alenna olhou assustada para toda aquela cena demoníaca, e então desmaiou.

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Kain estava eufórico. Invocar o Ardor de Marte não era um trabalho muito fácil, e era feito apenas em casos de punições severas. Mas, ele havia julgado que tais homens mereciam uma morte extremamente dolorosa, e o que está feito, está feito. Levou alguns instantes para seu corpo se acalmar, e alguns mais para que sua sede de sangue se aplacasse. Não era a toa que possuía a alcunha de Assassino. Um suspiro e tudo estava em sua normalidade. Finalmente, então, ele poderia se concentrar no que realmente importava. Foi aí que ele virou-

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se para a mulher, que a esta altura jazia inerte no chão. Dois passos pesados, e ele estava de frente para ela.

- Venha. Preciso de você. – ele disse, sua voz soando estranhamente térnua.

- Solte-a!

O Assassino virou-se, e viu que o rapaz, Taylor, estava novamente de pé. O garoto estava ferido e fraco, mas parecia determinado a proteger Alenna.

- Deixe ela em paz! – berrou Taylor, avançando contra seu suposto inimigo.

Mas antes que o garoto sequer chegasse perto, Kain esticou uma das mãos em sua direção. Em seguida, cerrou o punho bruscamente. Taylor, em contraparte, parou sua investida, levando as mãos à cabeça. Seu crânio começou a doer, como se uma força incrível o espremesse. Era um desconforto terrível, uma pressão quase insuportável. O Assassino apertava cada vez mais a mão, enquanto a dor na cabeça de Taylor aumentava gradativamente. A força exercida era tamanha, que Taylor sentia que seu cérebro ia explodir. Quanto mais ele forçava o punho, mais o crânio se espremia, até o ponto em que o garoto caiu de joelhos no chão, não suportando a dor.

- Pare! Por favor! – ele suplicou.

Então, como se voltasse a si, o Assassino abriu novamente o punho, terminando sua tortura. Taylor caiu ao chão, desmaiado.

- Você tem garra, garoto. Mas está fazendo a coisa errada. – disse o Assassino, voltando-se mais uma vez para a garota.

Não foi necessário esforço para que Kain a suspendesse pelo tronco e a colocasse nos braços. Ela era mais leve do que aparentava, e mais bonita vista de perto. O Assassino deixou aquele lugar, levando a mulher consigo, ainda desacordada. Passaram-se alguns instantes, e o céu começou a escurecer, trovões anunciando a chegada de uma tempestade. Kain continuou a andar, quando uma sensação estranha lhe acometeu. Ele estava sendo observado.

- Apareça, anjo. Sei que está aí. – ele disse, olhando em direção ao nada.

E do nada, Uma forma se materializou. Era Tahlu-aht, o anjo de aço. Ela mexia lentamente no rosário em sua mão, dedilhando conta por conta. Seu olhar demonstrava grande decepção.

- Ainda não cansou de me seguir? – ele continuou.

Ela manteve-se quieta por um tempo, até finalmente responder.

- Você desobedeceu minha ordem prévia sobre não interferir nos assuntos humanos. Você me atacou. Você tirou a vida de duas pessoas. Crimes imperdoáveis.

Kain apertou os olhos.

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- Eu tentei ser o mais diplomática e pacífica que pude, e você falhou em seguir o que lhe foi dito. Não haverá mais bondade de minha parte. – ela abriu suas asas.

Um vento forte e gélido soprou contra Kain e a mulher que ele carregava. Era frio o suficiente para criar pequenas camadas de gelo nas superfícies ao redor. O poder que aquele anjo exalava era realmente enorme.

- Observe toda a destruição e o Caos que você causou, seu demônio. Esta tempestade é resultado de sua maneira monstruosa de distorcer a realidade, e vai trazer problemas para todos da cidade. Estou extremamente arrependida de não ter lhe dado um fim na primeira vez que lhe vi! – disse ela.

Kain manteve-se quieto. De fato, ela estava certa. Mas, há coisas que simplesmente tem que ser feitas.

- Haverá retaliação agressiva em resposta aos seus atos! Deixo-lhe vivo por esta noite apenas porque preciso reportar-me ao Conselho Terreno antes de arrancar sua cabeça fora e beber o sangue de suas vísceras. Sua ousadia será paga com sua vida! – a voz dela ardia em raiva, em sentimentos que às vezes ela não conseguia controlar.

- Você se parece mais com uma mulher mortal do que pensa, Tahlu-aht. Sua humanidade lhe impede de enxergar a trama maior que a envolve. – ele disse, em resposta a cólera que ela demonstrava.

Desta vez, fora o anjo que se espantara com as palavras dele. Ela havia sido comparada com a fragilidade emocional de uma mulher comum. Havia sido rebaixada. Os olhos de Tahlu-aht cintilaram em uma fúria viva, e ela se imaginou destroçando aquele desgraçado.

- Vai pagar por essa piada, Kain. – sua rispidez feria como lixa.

- Aproveite esta noite, porque será a sua última. Irei pessoalmente em sua busca, e não me darei por satisfeita enquanto seu coração continuar a bater. – as palavras escorriam por entre os dentes cerrados do anjo enfurecido.

E antes que Kain se pronunciasse, ela partiu, deixando apenas as trevas para trás. Ele estava destinado a enfrentar aquela mulher rancorosa, e as conseqüências dessa batalha seriam desastrosas. Kain não estava certo se conseguiria vencê-la. Não aqui, na Terra. Mas, ele tinha o trunfo de não obedecer ordens, ao contrário dela. E o Assassino voltou a caminhar, debaixo da chuva que agora caía. Desta vez, ele sabia para onde ir.

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Tahlu-aht cessou seu vôo, pousando na sacada de seu castelo celeste. Quase que instantaneamente, suas asas de aço evanesceram, desaparecendo no ar. E o mesmo fez a sua armadura. Quando ela finalmente entrou em seu quarto, havia apenas o manto branco cobrindo seu corpo. Lá estava, o seu recanto celestial, de onde por muitas vezes ela questionou as verdades do universo. Por um instante, a mulher ficou imóvel, lapsos de seu dia passando na cabeça. Um ou dois minutos depois, ela voltou a si e deixou o aposento, entrando em um local um tanto mais exótico. Uma sala com uma lagoa no centro, onde

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exatamente em cima existia uma abertura no teto. A lagoa era suntuosa, com pequenas plantas aquáticas flutuando em suas águas. Ao seu redor, colunas de pedra estavam dispostas em círculo, transformando aquela lagoa em algo quase místico. Tahlu-aht despiu-se lentamente, a pele clara se destacando aos poucos em meio ao tecido fino. Assim que ficou completamente desnuda, ela fez uma pequena reverência e entrou devagar nas águas daquele local. Ela caminhou devagar até o meio exato da lagoa, agitando a água com seus passos delicados. Quando chegou lá, girou em torno de si mesma, levantando uma das mãos para o céu noturno. E como se em resposta ao seu chamado, a Lua cheia surgiu em meio às nuvens, brilhando de uma forma enigmática. Tahlu-aht deixou que seus longos cabelos se espalhassem na superfície aquosa, coisa que eles rapidamente fizeram. E lentamente, o anjo banhou-se nas águas daquela lagoa encantada, tal qual uma ninfa delicada faz em um riacho perdido no meio de uma floresta. A cada vez que a água jorrava, a lagoa adquiria um brilho peculiar, como se um desenho bem característico se formasse em sua superfície. Tão logo o tempo passou, a imagem formou-se por completo. A Lua cheia havia se desenhado na lagoa, um verdadeiro espelho d’água. E nesse momento Tahlu-aht tomou uma postura mais serena e concentrada, e começou a literalmente dançar. Ela girava e balançava-se, como uma cigana ao seduzir sua pobre vítima. Seus braços moviam-se ritmicamente, passeando em torno de seu corpo. Era simplesmente uma cena mágica e extraordinariamente bela. Quanto mais impetuosa era sua dança, mais o espelho d’água brilhava. E no ápice da resplandecência, toda a luminosidade das águas se transferiu para a mulher, revigorando seu corpo e trazendo-lhe força. A dança cessou logo em seguida, e a lagoa retornou a sua calmaria costumeira.

Tahlu-aht envolveu-se mais uma vez em seu manto, e seguiu para seu quarto. Por um breve momento, a afronta feita pelo Assassino lhe veio à mente. Como ele poderia tê-la rebaixado daquela forma? Porém, não houve tempo para divagações, pois logo seu pensamento foi cortado por uma presença inesperada.

- Boa noite, Tahlu-aht. – disse uma voz feminina.

Tahlu-aht assentiu com a cabeça, um pouco surpresa. Na porta da sacada, por onde ela havia entrado, estava agora uma outra mulher. Esta, porém, tinha feições mais impetuosas e uma aparência mais jovem. Trajava um manto levemente azulado, com um par de braceletes e ombreiras lhe protegendo os membros superiores. Sobre seus cabelos loiros unidos em forma de uma longa trança, havia um elmo prateado. Em seu rosto impecável, um olhar bravio. Era Lisandir, a Valquíria. Um dos Quatro Pilares que protegiam o plano terreno.

- A que devo sua visita, Lisandir?

A Valquíria deu um passo à frente.

- Como estão as coisas na sua camada de proteção? – indagou a guerreira.

“Camada de proteção” referia-se literalmente a dimensão terrena a qual a defesa estava designada para um dos Pilares. Tahlu-aht estava responsável pela terra, assim como outro estaria pelo céu, o mar, etc.

Tahlu-aht pareceu não entender a pergunta. Ou talvez tenha entendido até demais.

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- Está tudo bem. Tudo sobre controle. – ela respondeu, falsamente.

Lisandir esboçou um sorriso, naturalmente percebendo a resposta desconfiada da companheira.

- Desde quando o Ardor de Marte é algo que está dentro do seu “controle”?

As palavras da Valquíria foram incisivas. Lisandir não era do tipo que gostava de delongas, geralmente colocando logo as cartas na mesa. Tahlu-aht pareceu não se surpreender, a guardiã dos céus costumava observar a terra, das alturas.

- Eu não pude evitar. Ele é um monstro enlouquecido. Aquele maldito.

A Valquíria fez um olhar pensativo, enquanto caminhava pelo aposento.

- Kain é um guerreiro milenar. Muito sábio, mas um verdadeiro trem desgovernado.

O anjo também sabia disso.

- Ele tem que ser parado. Eu queria poder torturá-lo até a morte e jogá-lo para as feras. Mas...

- Mas o quê? – Lisandir era visivelmente impaciente.

Tahlu-aht pareceu procurar as palavras. Então, sua fúria rancorosa transformou-se em algo mais sutil e delicado.

- Me intriga o fato dele estar aqui. Desde o primeiro momento que o vi, ele mostrou-se determinado a cumprir uma missão neste plano. Uma missão muito importante. Chegou a enfrentar a minha autoridade em algumas ocasiões, mesmo sabendo que meu poder aqui é maior que o dele.

A explicação pareceu não satisfazer as ânsias de Tahlu-aht, que sentia algo mais profundo do que as palavras puderam dizer. Era uma inquietação estranha, uma preocupação com algo maior, que ela não compreendia.

- E o que você pretende fazer sobre isso? O Assassino já está causando bastante Caos e destruição. Em breve tudo isso irá se tornará um desastre desenfreado. – a Valquíria tinha sempre um tom desafiador.

Tahlu-aht abaixou a cabeça.

- Eu sei disso. Não posso simplesmente permitir que ele mude o curso original da vida na Terra e saia impune. – ela fez uma pausa, suspirando – Terei que ir de encontro aos Antigos. Pedirei a concessão da batalha. Afinal, as conseqüências de uma peleja assim podem ser catastróficas. – respondeu o anjo, inseguro de suas palavras.

Lisandir assentiu.

- Mas talvez estas conseqüências sejam menores do que o mal que ele está causando.

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O anjo não se pronunciou, deixando espaço para que a Valquíria tirasse suas próprias conclusões. Lisandir deu as costas e caminhou em direção a saída.

- Bem, é melhor que ele não cruze o meu caminho, pois não hesitarei em atacá-lo. – a Valquíria olhou para trás – E você, acabe com estes pensamentos tolos. Sua adolescência já passou. – disse isso e partiu.

Tahlu-aht fez uma cara feia. Ela se sentia inferior por, durante certas oportunidades, expressar emoções de uma forma um tanto infantil. Parecia realmente que ela vivia uma adolescência inacabável. O anjo tentava compensar essa falha com disciplina. Mesmo assim, ainda era possível ver os seus “traços de mocinha”, como Kain e Lisandir fizeram.

Tahlu-aht deu um suspiro, e sentou-se sobre sua cama suntuosa. Um mero luxo, visto que ela não dormia. As situações que viriam em breve lhe intrigavam. Kain, o Assassino. Havia algo errado com ele. Mais especificamente, com todo o paradoxo que o rodeava. Tahlu-aht enfurecia-se em pensar que ele havia questionado sua autoridade. Seu sangue fervia ao lembrar-se de cada palavra e ameaça, e ainda mais, ao se recordar do empurrão que recebeu. Aquele maldito merecia ter sua alma destroçada, e ela faria isso sem hesitar quando tivesse a oportunidade. Mas, em meio a toda essa cólera, havia uma sensação que lhe deixava aflita. Uma espécie de mau presságio.

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Kain caminhou por muito tempo, carregando aquela mulher desnuda em seus braços. Seus passos se guiavam apenas por seus sentidos etéreos, e de alguma forma ele sabia que estava indo para o caminho certo. A chuva castigava o chão, e os trovões iluminavam a noite escura. A todo o momento, ele se preocupava com o estado dela, que se aproximava da morte cada vez mais. Depois de algumas centenas de metros, ele parou em frente a um prédio. Aproximou-se e entrou, de uma bem forma natural. Da recepção, o porteiro o olhou com estranheza, mas o ar mortífero de Kain fez com que ele nada dissesse. O Assassino subiu as escadas, parando em frente à porta 107. Por algum motivo, ele sabia que aquela era a casa dela. Com apenas o encostar de sua mão, a tranca se abriu. E logo ele adentrou o apartamento, seu corpo encharcado molhando o assoalho. Observou o ambiente por alguns instantes, e então foi até um quarto, colocando a mulher em sua cama.

- Resista. Logo estará acabado.

Em seguida, ele abriu a janela do quarto, permitindo que o ar circulasse no recinto. Voltou-se outra vez para a mulher, que mantinha-se em torpor. Kain sabia que não havia muito tempo. Um ou dois passos e ele posicionou-se de frente a ela, no lado oposto a cabeceira da cama.

- Vamos torcer para que dê certo. – sua voz saiu quase como um sussurro.

O Assassino iniciou um movimento circular com seus braços, desenhando uma circunferência em sua frente. O movimento se repetia, enquanto suas mãos abriam-se lentamente. Era um desenho lento, e que exigia extrema concentração. Cinco minutos depois, seus olhos começaram a se fechar, enquanto o movimento quase padronizado persistia. Então

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a estranheza de seus atos transpassou a realidade. As luzes, que estavam apagadas, acenderam-se intensamente, piscando sem parar logo em seguida. Da janela, uma corrente de ar gélido penetrou o quarto, esfriando todo o ambiente. Era possível ver o ar que se respirava. A sensação do sobrenatural era quase palpável, como se mundos estivessem colidindo naquele lugar. E Kain manteve seu ritual, que durou quase dez minutos em movimentos giratórios e olhos fechados. De repente, seus olhos se abriram bem rápido. Eles estavam totalmente brancos, como os de um cego. Em seguida, o Assassino recolheu suas mãos frente ao peito, as palmas abertas e viradas uma contra a outra. Ele sentia como se uma camada de ar fizesse pressão no meio de suas mãos, tentando afastá-las. Era a força da existência em sua forma selvagem, que tentava irradiar-se por todo o local, sendo mantida concentrada apenas pela vontade e esforço de Kain. E ele permaneceu parado por alguns segundos, quando começou então a entoar uma espécie de cântico antigo. Ao ressoar de cada palavra, aquela energia pulsava com uma intensidade diferente, até o momento em que quase não era mais possível segurá-la. Então o Assassino a comprimiu com toda a força que possuía e saltou em direção àquela mulher, atacando-a com seus punhos. No impacto, toda aquela força que havia sido mantida reclusa foi dispersa num ponto específico do corpo da moça. Um golpe certeiro contra o coração. O choque fora tamanho, que a cama quebrou-se e o vidro da janela se estilhaçou. Provocou uma luminosidade esbranquiçada, que tomou conta de todo o quarto, como um flash de uma câmera fotográfica. E assim que aquela luminescência se desfez, todo o apartamento retornou à escuridão. Mas as coisas não estavam mais do mesmo jeito. Não havia mais ferimento algum na mulher, que antes estava praticamente morta. Na realidade, parecia que ela nunca havia se ferido. Estava impecável, como se tivesse sido recriada, nascido de novo. E demorou apenas um segundo, para que ela abrisse os olhos.

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Os olhos da mulher se abriram lentamente, enquanto ela retomava sua consciência. Sentia-se estranha, como se tivesse despertado de um longo coma. O quarto estava escuro, e apenas algumas silhuetas podiam ser discernidas em meio às trevas.

- Onde eu estou?

Logo as lembranças do atentado lhe vieram à mente, e ela prontamente procurou o ferimento em seu abdome. Não havia nada, nenhum vestígio de sangue sequer. Como se aquilo tudo tivesse sido um sonho.

- O que aconteceu comigo? – ela disse, enquanto percebia o ambiente ao redor.

Mas sua confusão foi deixada de lado, quando um susto maior lhe acometeu. Uma sombra peculiar se mexeu no recinto. Ela não estava sozinha. Quase que automaticamente, a mulher gritou, e foi instantaneamente silenciada.

- Fique quieta. – disse uma voz masculina, enquanto uma mão tapava sua boca.

A mulher entrou em desespero, mas não gritou. Sabia que se não obedecesse, poderia morrer ali mesmo.

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- Vou destapar sua boca e ligarei a lâmpada. Não ouse gritar enquanto isso. – a voz tinha uma calmaria ameaçadora.

Ela seguiu a ordem prontamente, mantendo-se quieta enquanto o misterioso homem acendia a luz. Mas quando o quarto finalmente estava iluminado, ela não estava mais no mesmo lugar. Desta vez, estava decidida e não morreria sem resistência, pondo-se de pé segurando um abajur. O homem, que agora era visível, esboçou um sorriso.

- O que você pensa que vai fazer com isso? – ele perguntou, incrédulo.

E ela não hesitou em dar-lhe uma resposta prática, arremessando o objeto contra ele. Propositalmente, o Assassino não desviou, permitindo que o abajur o atingisse apenas para mostrar que não surtiria efeito algum.

- Saia daqui seu desgraçado! – ela gritava.

A mulher estava tão em polvorosa, que não sentia vergonha pelo fato de estar sem roupas na frente dele. E ela partiu para cima do guerreiro, golpeando-o de todas as maneiras que podia. Era lutar ou morrer. Kain, em contraparte, apenas defletia os ataques, achando graça da situação. Ele acabara de salvar sua vida, e ela já estava enlouquecida.

- Aquiete-se. – ele disse, finalmente.

Mas as investidas não cessaram enquanto Kain não perdeu sua paciência. Porém, criatura extremamente agressiva como sempre foi, não houve demora em seu pavio queimar até o fim. E no meio de uma tapa direcionada ao seu rosto, o Assassino segurou o braço da mulher com uma mão e o pescoço com a outra, empurrando-a contra a parede. A força bruta da qual ele se valeu assustou-a automaticamente, fazendo com que ela parasse.

- Não vou pedir que se aquiete novamente. – ele apertava os olhos enquanto falava.

Kain não tinha a intenção de machucá-la em nenhum aspecto. Contudo, seu eu comportava-se naturalmente com violência, e este tipo de atitude era vista com normalidade por ele. Sua agressividade era aplacada apenas quando lidava com situações envolvendo entidades universais, pois atitudes desmedidas poderiam levar a conseqüências de cunho apocalíptico.

- O que você quer comigo? – ela perguntou, nervosa e com medo.

- Quero que me ouça. Tenho assuntos a tratar com você. – ele respondeu.

A mulher pareceu não entender.

- Não tenho assuntos com você. Me deixe em paz. – ela retrucou, as palavras saíam sem pensar.

O Assassino apertou mais os olhos.

- Eu não estou pedindo.

Mas a adrenalina impedia a lógica de funcionar dentro dela.

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- Me deixe em paz, seu maldito. – e elevou o tom de voz. – Socorro!

Não foi uma atitude das mais inteligentes. E a resposta de Kain foi instantânea. Usando a agilidade e força que lhe competia, ele arremessou a mulher desnuda para trás. Ela, impotente, rodopiou no ar e caiu sobre a cama quebrada de forma estrondosa. No instante seguinte, ele estava de pé ao lado dela, um olhar carnívoro marcando seu rosto.

- Eu não estou pedindo para que me ouça. Você VAI sentar e ouvir. E se houver alguma reação contra isso, tenha certeza que meus próximos passos serão mais radicais. – suas palavras eram perigosas como navalha.

Ela, agora ciente do potencial destrutivo daquele estranho homem, ficou inerte, seu corpo esboçando o desespero que lhe acometia.

Kain aplacou sua fúria mediante certo esforço, Aquela humana não causaria mais problemas. A mulher, nervosa, manteve-se gélida.

- Agora, podemos conversar. – ele disse.

Em meio a gaguejos, ela conseguiu falar.

- Quem é você?

Demorou um instante para que ele respondesse.

- Eu sou Kain, o terceiro mortal.

A frase pareceu não fazer sentido para ela.

- Sou aquele me matou Abel. Aquele que cometeu o primeiro assassinato e foi condenado ao exílio pelo Criador. – ele acrescentou.

Ela pareceu ficar mais confusa. Porém, tal confusão fez com que seu medo se perdesse ante a inquietação da curiosidade.

- Quem você disse que era? – ela finalmente perguntou.

O Assassino suspirou, traços de sua vida mortal aflorando de forma sinuosa.

- Vista-se, e então conversaremos melhor. Estarei na sala lá fora. Não ouse fugir ou fazer nenhuma bobagem. Sou mais rápido do que imagina. – ele disse, saindo do aposento.

Kain caminhou até a sala e sentou-se no sofá, silencioso como a morte. Estava aliviado em perceber que ela havia ficado curiosa. A sede de entendimento dos mortais superava o medo e a auto-preservação.

Demorou pouco mais de dez minutos, e então a mulher finalmente resolveu aparecer. Como ele esperava, ela não tentou fugir. Típico, visto que as atitudes do Assassino demonstravam que ele não era de brincadeiras.

- Estou aqui. – ela disse, hesitante.

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O Assassino levantou-se, os olhos negros cruzando o doce olhar da moça.

- Você me disse que era Kain, o homem que matou Abel, segundo a bíblia. – ela comentou.

Kain assentiu.

- Eu estive pensando. Como isso pode ser possível? E porque alguém como você estaria aqui, na minha casa? – ela continuou.

- Longas histórias, difíceis de explicar. Mas farei o possível para que você compreenda.

Ela meneou a cabeça.

- Antes de mais nada, preciso saber o seu nome. – disse o Assassino.

- Alenna.

Aquele nome pareceu fazer total sentido para Kain, como se ele o reconhecesse de eras longínquas. Como se cada sílaba estivesse escrita profundamente em sua alma, arranhadas em uma parede perdida dentro de seu cosmo interior.

- Bem, Alenna. Eu não estou aqui para machucá-la. Na realidade, preciso de você. Preciso muito de você. – as palavras de Kain soaram dóceis e humildes.

Alenna ficava cada vez mais confusa.

- Porque você precisa tanto de mim?

- É uma longa e intrincada história. Contarei a você, embora ela já seja de seu conhecimento.

- Seja de meu conhecimento?

- Sim. Toda a história que lhe contarei já existe em seu verdadeiro eu, escondida no inconsciente mais profundo de seu espírito. Eu poderia simplesmente despertá-la e fazer com que se lembre de tudo, mas a realidade extra-planar é pesada demais para o seu modo de pensar mortal. A exposição aos verdadeiros fatos do universo fragmentaria sua alma de tal forma, que os humanos comuns a veriam como louca.

Alenna não respondeu. As coisas que ele dizia não pareciam normais. No entanto, ele já havia demonstrado que nada ali era normal.

- Sente-se, vai levar algum tempo. – ele disse, sentando-se novamente.

- Você foi o homem que atacou aqueles dois monstros, não foi? Você me salvou.

Ele assentiu.

- Disse que preciso de você. Não permitiria que ninguém lhe machucasse. Você é de extrema importância. – ele respondeu.

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- Mas afinal, que importância eu tenho em sua vida, Kain? Eu sou uma mulher qualquer, com uma vida monótona. Não tenho grandes feitos em meu passado. Resumindo, não sou importante.

- Certo, certo. Você vai entender. Por onde eu começo a lhe explicar?

Ele fez uma pausa, enquanto Alenna se acomodava no sofá.

- Primeiramente, eu sou sim o Kain bíblico que todos condenam até os dias atuais. Esta é a marca feita pelo próprio Criador, para que todos soubessem de meu pecado. – o Assassino apontou para sua testa.

De fato, Alenna ainda não havia percebido a cicatriz em forma de círculo bem no meio da testa daquele homem. O estigma de um pecado imperdoável.

- Desde que matei o meu irmão, por motivos tão antigos que apenas a emoção permanece em minha mente, eu fui expulso das terras do paraíso, e vaguei pelo mundo, sem rumo. Passaram-se anos, quase eras, até que o Criador viesse ao meu encontro novamente, para dar continuidade à verdadeira história.

- A verdadeira história? Você fala da história contada pela igreja? Ou existe outra? – ela perguntou, curiosa e incrédula.

- Não. É uma situação diferente. Deixe-me lhe dar o ponto de vista correto.

Alenna ficou em silêncio.

- Uma pergunta simples. Como você acha que surgiu o universo?

Ela pensou por um instante.

- Você fala cientificamente ou religiosamente?

- E se eu dissesse a você que aconteceu das duas formas, ao mesmo tempo?

A garota pareceu não entender.

- A história contada pela sua espécie é fragmentada, impedindo o seu entendimento. O poder do Criador é tamanho, que ele fez a Criação de várias formas em várias dimensões diferentes, simultaneamente. Na verdade, o universo foi feito através do Big Bang, exatamente no ponto onde o Criador disse “faça-se a luz”.

A garota pareceu pensar.

- E é justamente por causa deste ponto, onde o universo se fez, que eu estou aqui. – ele continuou.

- Você veio até mim porque eu tenho haver com o local onde o universo surgiu? – Alenna ficava cada vez mais descrente.

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- Sim e não. Deixe-me continuar. Este local, que se diz ser o centro do universo, foi de onde tudo partiu, e para onde tudo volta. É praticamente um continente, fora do limite espaço-tempo. Uma espécie de dimensão, que abriga todas as terras e tudo o que há de vivo no universo. Uma vasta faixa de terra, fisicamente inacabável. Os antigos estudiosos deram a este lugar o nome de Dobra Temporal. – ele explicou.

- Espera. Uma dimensão sem fim, que abriga tudo que existe?

- Exato. É como se fosse a soma do território físico de todos os planetas, em forma de uma planície infindável. De fato, ao contrário do que acontece neste mundo, se você sair andando, seguindo sempre em frente, nunca voltará ao ponto de onde partiu. A extensão realmente não tem fim.

Ela assentiu, demonstrando um leve entendimento.

- E nesta dimensão existe uma fenda na existência, literalmente um rasgão na terra, de onde parte a energia usada pelo Criador para manter o universo estável. É o chamado Fosso Universal. Dali sai tudo que existe. Tudo. Desde idéias até coisas vivas. É o centro do centro do universo. E é aí que reina o problema.

- Não entendi. – ela disse.

- O Fosso, abriga toda a existência, física, emocional, espiritual... Tudo. E, em palavras mundanas, abriga todo o bem que existe. Mas, também abriga todo o mal do universo.

Alenna apertou os olhos, concentrada.

- Tecnicamente, todas as forças do universo possuem uma contraparte que as anula. Calor e frio, terra e água, homem e mulher. O mesmo se aplica para bem e mal. Porém, o universo tende, graças às ações de seus viventes, a se tornar o terreno do caos e da crueldade. E a cada vez que uma maldade acontece, esta força negativa aumenta e se torna mais forte.

Ele fez uma pausa.

- Esta força, não é necessariamente ruim. É uma conseqüência da existência, pois assim como tudo começa, tudo tem que ter um fim. E esta energia, ao qual chamamos de Nulo, é justamente o impulso que leva tudo a inexistência. É a força que inclina o universo a voltar para o seu estado original, onde não havia nada além de escuridão. Para isso, a destruição, o caos, a entropia ,existem.

- Então, o mal do universo é apenas um impulso, um meio para levar toda a existência para o estado anterior ao Big Bang. – ela começava a compreender.

- Isso. De tempos em tempos, quando as forças negativas estão em níveis muito altos, o Nulo, que deveria ser algo efêmero, toma forma física, transformando-se no Agente do Nulo. Uma entidade viva que busca agilizar o processo de “término” do universo. Este ser representa um desequilíbrio fatal, pois ele atua de forma direta e direcionada. O caos deve ocorrer aleatoriamente, e não em lugares e situações premeditadas. Mais ainda, o Agente tem planos

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para engolir o próprio Fosso do universo, que seria a maneira mais fácil de destruir tudo de uma só vez.

A jovem assentiu, abismada com as idéias.

- É aí que eu me integro na história. Na tentativa de cessar as investidas do Agente, o Fosso foi em busca de seu campeão...

- O Fosso é uma coisa viva também? – a curiosidade de Alenna ficava cada vez maior.

- Sim e não. O Fosso é o próprio Criador, mas o Criador não é o Fosso. Os dois são um só, mas são independentes. É complicado de se entender. Mas, de uma forma bem simples, se o Fosso deixar de existir, o Criador ainda estará lá, porém o contrário não aconteceria.

- Certo.

- Mas, como eu dizia, o Fosso começou a escolher seu campeão, para combater o Nulo. Ele precisava de um guerreiro que partilhasse o dom da eternidade, pois o mal no mundo nunca cessaria, conseqüentemente o Agente sempre iria existir. Então ele procurou em diversas eras, diversos tempos diferentes. Queria um guerreiro que tivesse a mesma sede de destruição e fúria que o Agente, para enfrentar fogo com fogo.

- E você é esse guerreiro?

- Sim. Eu fui aquele a quem o fosso escolheu para lutar contra o Agente do Nulo. Afinal de contas, eu fui o primeiro assassino, eu dei a luz à primeira crueldade. O Criador tem tudo sempre sob controle. Eu fui escolhido como forma de punição, pois fui destinado a lutar e destruir eternamente, mas também como redenção, pois a cada batalha posso ajudar a acabar com o mal que criei. Um ciclo eterno.

- E você enfrentou esse Agente?

- Várias vezes. Um inimigo extremamente poderoso. O ódio que ele possui é tão grande quanto o meu. Porém, eu não sou forte para vencê-lo, pois minha cólera não supre todas as necessidades da verdadeira batalha. Vendo isto, o Fosso buscou outro guerreiro para compensar algumas lacunas. Desta vez um total oposto.

Alenna ficou quieta, ouvindo.

- Das hostes celestiais, o Fosso trouxe Vanariel, general da décima horda celeste. Uma mulher dotada de um coração extremamente bondoso, mas afiado como a lâmina de uma espada. Tinha o poder de dizimar dúzias de demônios, e a compaixão para proteger os mais fracos.

- Vocês dois juntos conseguiram vencer?

- Não. Embora fossemos o equilíbrio, homem e mulher, cólera e bondade, faltava alguma coisa. Nossas forças combinadas não possuíam a potência de compreensão que o Agente carregava. Pois, além de uma batalha física, a peleja também acontece em sentidos mais filosóficos. É como se lutássemos em vários aspectos e dimensões ao mesmo tempo,

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onde em um lugar o sangue escorre, em outro as palavras machucam ou os versos ressoam, e em outro a lâmina de aço rasga a pele de pedra.

- E o que aconteceu então?

- Fomos derrotados, e o caos tomou boa parte do universo. A existência ficou em um estado lastimável. Então o Fosso tomou uma atitude controversa. No calor de nossa derrota, o tempo retrocedeu, e voltamos para o momento antes da batalha. Foi uma manobra arriscada, que custou a vida de muitas estrelas no firmamento. Estávamos lá, no início da guerra. Mas, dessa vez, havia três de nós. Roradrin, o Sereiano, nos acompanhava. Um guerreiro do Exército da Resistência no mar de Dullain, famoso por sua sabedoria diplomata e por suas habilidades de combate. Éramos três, e lutamos bravamente.

- E vocês perderam de novo?

- Não. Não houve derrota, mas aconteceria a qualquer momento. Faltava-nos uma espécie de motivação, algo como coragem para entendermos a extensão de todo aquele conflito. Nós não sabíamos como explicar, mas faltava algo. Alguma essência que existia no Agente, e que não partilhávamos. Então, antes que perdêssemos, o último guerreiro apareceu. Junto a ele, fomos transportados para a presença do Fosso.

- E como é esse Fosso?

- Bem. O Fosso em si é apenas uma fenda no chão, mas o lugar onde estávamos era diferente. Um local vazio, sem chão, céu, nada. Havia apenas nós três e o último guerreiro.

- Esse último guerreiro. Quem era? – a curiosidade era tamanha, que Alenna começava a ficar à vontade.

- Na realidade, uma guerreira. Nuala, descendente dos antigos dragões de éter das terras ermas, como ela mesma nos disse. Uma mulher bela e audaz, como poucas no universo. Tinha um olhar elétrico, que impressionou até mesmo a mim. Nuala possuía o orgulho dos dragões e não desistia jamais. Sua sede de vitória era inabalável.

O Assassino fez uma breve pausa, como se lembrasse de alguma coisa.

- Estávamos, então, completos. A dualidade. Ódio e bondade, sabedoria e orgulho. Dois homens, duas mulheres. O equilíbrio.

- Então vocês foram para a batalha novamente?

- Ainda não, pois havia coisas que precisávamos aprender. Mesmo que fôssemos as forças duais, ainda não tínhamos alguns conhecimentos, essenciais para a vitória. Então o Fosso falou dentro de nossas almas, e nos abençoou de duas formas. A primeira foi o dom da Vontade. O poder de entender as leis do universo em seu aspecto mais puro, podendo alterá-las segundo nossos próprios gostos. Era como ter o poder do Criador, mudando, renovando e reconstruindo tudo o que quiséssemos. Só que, por sermos mortais e por ainda não termos vivido a eternidade, nossos poderes eram limitados a uma compreensão razoável, mas que era

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suficiente para sustentar a batalha. Jamais alcançaríamos, em momento nenhum, o entendimento do Criador, pois nós “somos”, não “fomos” nem “seremos”.

Ela continuou a ouvir, intrigada.

- Além disso, a Vontade é muito subjetiva, e nossas personalidades moldaram-na rapidamente, tornando cada poder totalmente único. Minha Vontade é destrutiva, enquanto a de Vanariel tem um ar de compaixão e amor. Mas isso não impede que eu tenha o dom da cura ou que ela incendeie um exército. É algo profundo, como nosso próprio eu interior. Difícil explicar. Mas em suma, é o que vocês, humanos, chamam de magia.

- Vocês agora conheciam uma parcela do universo. Mas, qual seria a outra benção?

- A outra benção, foi o despertar de nossa alma. A capacidade de cristalizá-la, transformando-a em algo físico. Foi nos concedido este dom porque precisávamos nos proteger contra a nulificação, o agir do Nulo em sua essência. Pois como o Agente tinha o poder de erradicar ou banir da existência qualquer coisa, nada impediria que fizesse o mesmo conosco. Então, para que nossos corpos não fossem neutralizados, retirados do universo, o Fosso nos cobriu com uma camada de nossas próprias almas, a única coisa que o Agente não podia desintegrar. Essa camada, em forma de uma armadura, tinha vida, e nos protegia física e espiritualmente. Era o Avatar, um pedaço de nossas almas endurecido ao ponto do mais raro diamante. Contudo, fomos alertados ao fato de que o Avatar, mesmo sendo uma inabalável proteção, possuía vida, e devido a isso também poderia morrer. E é justamente por isso que estou aqui, em sua frente.

- Como? Eu ouvi toda a história, mas não entendi.

- Veja. O Agente, ou Aetheros, como ele se intitula, é um poderoso feiticeiro, dotado dos mesmos poderes que nós. Um guerreiro eterno, assim como o mal do universo. A cada era, a cada mil anos, ele ressurge no próprio Fosso, e a guerra se inicia novamente. Por isso somos eternos, para que possamos sempre estar prontos para uma nova batalha. E assim que o derrotamos, nos dispersamos pelo universo, para evoluirmos espiritualmente e estarmos prontos para a próxima era, pois ele sempre retorna mais e mais forte. E na última batalha, há pouco mais de vinte anos atrás, eu fui mortalmente ferido, enquanto Aetheros lançava uma maldição contra mim. Ele destruiu meu Avatar, deixando-me a mercê da nulidade. Tive que fugir o mais rápido que pude do campo de batalha, para não ser engolido pela onda de “nada” que ele irradiava.

- Destruíram seu Avatar? Mas, e aí?

- Sim. E como disse antes, é por isso que estou aqui. Quando o Avatar é destruído, aquela parte da sua alma se perde no universo, e você se torna um ser incompleto. Desde lá, eu tenho vagado pelos mundos, procurando aquela pequena centelha que me completa, a outra metade das minhas forças e de meu ser. Desde lá, que todas as qualidades que desenvolvi, lutando ao lado de meus companheiros, se foram. Sou apenas uma casca cheia de fúria. O pouco de compaixão, sabedoria e orgulho que criei se desfizeram. E só há pouco tempo atrás entendi finalmente o que havia acontecido. O meu Avatar, minha outra metade,

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havia se tornado uma alma por inteiro, um ser vivente por completo. Havia se adaptado e encarnado na Terra. Um ser humano.

Os olhos de Alenna se encheram de compreensão, quando ela percebeu o que ele explicava. Mais ainda, se encheram de dúvidas.

- E este Avatar, sou eu? – ela perguntou, incrédula.

Ele assentiu. A garota pôs as mãos na cabeça.

- Olha. Acho que é história demais para uma noite. É melhor que você vá embora, e me deixa pensar sobre isso tudo. Entendo o que você diz, mas não sei o que você quer de mim. – ela explicou.

- O que quero de você? Preciso que você volte à mim. Que você se torne parte de mim novamente. Mas, eu não faço idéia de como isso acontecerá.

A garota fez uma cara de repulsa.

- Espera. Você quer que eu me torne sua “armadura” novamente? Quer que eu deixe de existir e vire um traje para você?

Do jeito que ela havia falado, parecia um absurdo.

- Sim. – ele respondeu, friamente.

Ela se levantou e começou a caminhar pela sala.

- Você enlouqueceu? Eu sou uma pessoa, não um objeto! Eu tenho uma vida. Tenho anseios, desejos, sentimentos! Eu não tenho nem um namorado! E você quer que eu simplesmente deixe de existir!

Kain levou uma mão ao rosto, impaciente. Ele pôs-se de pé, os olhos visando os dela.

- Alenna, ouça. Isto não é questão de ser ou não ser. Não estamos lidando com momentos existenciais aqui. Estamos lidando com a proteção de todo o universo. Sem você reunida a mim, toda a Criação estará comprometida, pois são necessários os quatro guerreiros juntos para se enfrentar os poderes do Agente. Eles estão travando uma guerra sem mim neste momento, e podem ser derrotados a qualquer instante. Se isso acontecer, você continuar vivendo sua vida não vai fazer diferença.

A última frase chocou um pouco mais a garota. Alenna procurou as palavras para responder.

- Olha, é melhor você ir embora. É muita coisa para digerir. Você está aqui, dentro da minha casa, me contou toda essa história. Eu nem sei quem é você! Por favor, deixe-me sozinha, Kain.

- Alenna...

- Vá embora, por favor!

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O Assassino apertou os olhos. Em um vislumbre, sua ira desenvolveu uma cena dentro de sua cabeça, onde aquela mulher era despedaçada sem nenhuma piedade.

- Certo. – ele disse, dando as costas e indo embora.

Alenna sentou-se no sofá, sem saber o que pensar. Quem era aquele homem? E o que era aquilo tudo? Mas antes que pudesse refletir por tempo suficiente, a campainha tocou. Alenna, já cansada de tudo aquilo, deixou que tocasse. Mas a pessoa do outro lado era bastante insistente, ao ponto de fazê-la perder a paciência e atender a porta. Para sua surpresa, era Taylor quem estava do outro lado. Parecia cansado, quase destruído. No mesmo instante, ela lembrou-se de sua aparição naquele trágico acontecimento. Ele foi salvá-la da morte certa. Ele era um herói.

- Taylor! Você está bem? – disse Alenna, indo rapidamente em direção ao seu amado.

O jovem, atordoado, não esboçou resposta. Apenas entrou no apartamento, e sentou-se no sofá. Alenna, estranhando a atitude do rapaz, continuou a questioná-lo.

- Você está bem?

Taylor, agora parecendo retornar à realidade, finalmente respondeu.

- Estou sim, Alenna. E fico feliz que você também esteja.

A garota fez-se silenciar. Naturalmente ele não estava nem um pouco bem. Os dois ficaram quietos por um certo tempo, como se refletissem sobre a noite que tiveram. Até que o jovem quebrou o silêncio.

- O que você estava pensando, ficando sozinha naquele lugar?

Alenna abaixou a cabeça, reprovando a si mesma.

- Eu estava distraída, mal pude ver o que acontecia a minha volta. Se você não tivesse aparecido e me ajudado, não sei o que teria ocorrido comigo,

Taylor sorriu com escárnio.

- Não ajudei em nada. Foi outra pessoa. Um homem, estranho, com uma marca na testa.

A garota não soube o que responder. Ele já sabia de Kain. O que mais ele devia saber?

- Quem era aquele cara? Aliás, o que era aquele cara?

- Eu não sei. – ela respondeu.

- Ele quase me matou, e eu ainda não entendo como. Num instante, ele se virou pra mim, e, no outro, minha cabeça começou a doer e se espremer, como se fosse implodir. A dor foi tanta que eu não sei como acordei depois.

- Eu também não entendo. Não entendo quase nada.

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- E, quando me levantei, a primeira coisa que pensei foi em ver se você estava bem. – jovem olhou Alenna rapidamente, dos pés à cabeça. – pelo que estou vendo, parece que nunca sofreu um arranhão.

A garota sentou-se no sofá, ao lado dele.

- Eu, sinceramente, não entendo o que está acontecendo em minha vida. Aquele homem... Ele... eu não sei nem como dizer.

Taylor, notando o desconforto de sua amada, decidiu deixar este assunto de lado.

- Isso não importa. O que interessa é que você está bem. Já posso ir dormir em paz.

Ao terminar sua frase, o jovem levantou-se e foi em direção à porta. Mas, antes que partisse, Alenna o interrompeu.

- Obrigado por se importar. E, por ter ido me proteger. De coração, obrigado.

Taylor sorriu, e saiu. No primeiro passo que deu, sentiu sua força se esvair, e sua mente ficar em branco. No segundo seguinte, ele estava no chão, desacordado. Alenna, dando um grito de susto, foi de encontro ao seu herói, temendo pelo seu bem estar.

Algumas horas depois, Taylor abre os olhos.

- Você acordou! – disse uma voz familiar.

Olhando em volta, ainda com dificuldade, Taylor percebeu que estava numa cama de hospital. Ao seu lado, sentada em uma cadeira um tanto quanto desconfortável, estava Alenna, com olhos quase chorosos.

- O que aconteceu? – ele perguntou, ainda tonto e enfraquecido.

- Você desmaiou na porta da minha casa. Chamei uma ambulância e nos trouxeram pra cá.

- Desmaiei? Eu não me lembro de quase nada sobre isso.

- Mas você está bem. É o que importa.

- E alguém disse o que eu tenho? Se eu vou morrer?

Alenna sorriu.

- Não vai não. Você é forte. Vai ficar tudo bem.

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Charlie estava perdida, em meio às sombras inebriantes. Seus olhos, por mais forçados que estivessem, mal podiam ver um palmo à frente. Era tudo trevas, e tudo frio. Depois de algum tempo, ela então começou a perceber o ambiente a sua volta. Pareciam paredes, paredes grossas e escuras. Uma estrutura de arquitetura peculiar, talvez uma casa. Uma casa muito estranha. A garota andou por alguns momentos, sem conseguir se situar. Até que um

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foco de luz surgiu em meio a escuridão. Uma luz tremeluzente, mas que obviamente chamava atenção. E como uma alma perdida em direção ao paraíso, Charlie caminhou até a luz.

Ao chegar o mais perto possível, ela pôde ver que a luz partia da fechadura de uma porta. Prontamente, Charlie girou a maçaneta e entrou. Porta adentro, a luz era forte, quase divina. Então o clarão reduziu-se, e ela viu onde se encontrava. Era um quarto. Seu quarto. Do parapeito da janela, um pássaro negro a observava. Ele tinha olhos em um tom vermeho intenso, e o contorno do seu corpo brilhava em uma miríade de cores. Era do tal pássaro que saia a luz que lhe guiou até ali.

- O que está acontecendo? – ela se indagou.

Uma voz estranha, ecoante, respondeu.

- Ainda não está acontecendo, Charlotte.

A garota olhou em volta, sem saber de onde a vinha aquela voz.

- Está com medo, criança? – disse a voz novamente, desta vez mais firme.

Foi então que, espantando-se, ela notou que quem falava era o pássaro. O pássaro negro, falante.

- Isso só pode ser um sonho. – ela retrucou.

O pássaro, abrindo suas asas, então respondeu.

- E qual a diferença, minha jovem, entre o real e o irreal? Está tudo diante de seus olhos, sempre e sempre.

- Mas você está falando comigo. Pássaros não falam.

O pássaro gralhou.

- Errado. Você que não os entende. Mas, vamos ao que importa, minha jovem,.

- O que você quer, pássaro falante?

- Não é o que eu quero, mas o que você vai querer, minha cara.

Charlie sorriu, com escárnio.

- Eu só quero acordar.

- Logo você irá, minha pequena. Mas antes, preciso que você localize um certo objeto.

- Objeto? Que objeto.

O pássaro a fitou por um instante.

- O objeto que salvará a vida de sua amiga. Sua tão querida amiga.

Charlie pareceu não entender.

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- Salvar minha amiga? Que amiga, pássaro?

- Sua amiga. Você entenderá no momento certo.

- Sem enigmas, pelo amor de Deus. Isso tudo já é loucura demais pra mim. – ela retrucou.

- Lembre-se que Deus tem seus próprios mistérios. Enigmas não são nada comparados a isso.

- O que você está querendo dizer? – a garota já quase perdia a paciência.

- Tudo a seu tempo, minha cara. No momento certo, procure onde nunca procurou. O objeto estará lá, esperando pelo mensageiro.

- Onde nunca procurei? Mensageiro? Mas que mer...

E um clarão de luz ofuscou a visão de Charlie, que acordou assustada, quase pulando da cama.

- Que droga de sonho foi esse?

Sem entender o que lhe acontecera, ela levantou-se, tomou um pouco de água e retornou a cama.

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O tempo passou rápido, ao ponto de Alenna nem perceber. Ela ficou tomando conta de Taylor, que constantemente realizava exames e testes para saber o que lhe havia ocorrido, durante alguns dias. Felizmente, nada foi achado. E quando o veredicto sobre o estado do rapaz foi dado, Alenna tirou o peso que tinha na sua consciência, finalmente sentindo-se em paz para poder voltar para casa. Taylor, em compensação, continuou sob observação médica por mais algum tempo.

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Na mesma noite, Tahlu-aht voava pelo céu escuro, suas asas reluzindo à luz das estrelas. Ela seguia em direção ao salão do Conselho, o núcleo do poderio terrestre. Sua cabeça estava pesada, dúvidas brotando como água na rocha. Não demorou muito, e o grande castelo em cima de uma montanha surgiu majestoso em sua frente. Ela pousou lentamente, cerrou suas asas e entrou. Era um lugar suntuoso e conservador, com candelabros espalhados por todos os lugares. O anjo caminhou por um imenso hall, depois por um longo corredor, até se deparar com o umbral da sala de reuniões. Lá dentro, ela encontrou um local vazio, com apenas uma enorme mesa retangular disposta no centro.

- Não tem ninguém? Mas que estranho.

Ela olhou em volta por alguns instantes, observando a sala vazia. Havia armaduras em cada canto do recinto, aumentando o aspecto antiquado do local. Em cima da mesa, que era coberta por um enorme tecido azul marinho, havia alguns livros de capas escuras, próximos de

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uma pena e um tinteiro. Ela, curiosa por natureza, pegou o primeiro livro da pilha e o abriu. Era uma espécie de diário. Um relato histórico descrito pelo ponto de vista de alguém em particular.

“Os olhos de Nuala eram avermelhados, como o mais perfeito rubi. Ela tinha um porte orgulhoso, debaixo de seus longos cabelos acastanhados. Durante a batalha pelo Sétimo Céu, sua participação fora decisiva na derrota de Marvuhkax, o dragão de ébano que ameaçou transformar em fogo o firmamento. Alguns dizem que, até hoje, ela carrega em seu pescoço o Olho de Ébano, fonte do poder da besta...”

Um trecho interessante, mas que remetia a uma história da qual Tahlu-aht tinha pouco ou nenhum conhecimento. Mas ela não teve muito tempo para divagar.

- A que devemos a sua visita, meu divino anjo de aço? – disse uma voz carcomida.

Os olhos de Tahlu-aht se dirigiram à voz. Entrara no local, não se sabe quando, um ancião encapuzado, de aspecto nobre e misterioso. Era Belriomn, um dos líderes do Conselho Terreno. Ela, ao perceber a quem pertencia a voz, ajoelhou-se quase que automaticamente, num pleno gesto de devoção ou submissão.

- Lorde Belriomn. Vim em sua presença para me reportar, e pedir conselhos. – ela disse, prontamente.

O lorde, como ela havia o intitulado, fez sinal para que ela acabasse com a cerimônia e se levantasse. O anjo, prontamente, pôs-se de pé, sua disciplina ficando cada vez mais visível.

- Veio para pedir conselhos? Mas o que um pobre velho como eu poderia vir a lhe aconselhar? – Belriomn falava com breve humildade.

Tahlu-aht meneou a cabeça.

- Meu lorde, creio que Sua Graça já esteja ciente dos recentes acontecimentos em minha camada de proteção. – ela falou, com um certo ar de impotência.

Lorde Belriomn assentiu com a cabeça.

- Sim, sim, minha jovem. Você se refere à presença de um Iluminado da Dobra Temporal em nosso planeta. Kain, o Assassino.

- Isso, meu lorde. Ele parece estar em uma busca aqui em nossa dimensão. Tentei compeli-lo a ir embora diplomaticamente. Porém, fora inútil.

- Continue. – disse o ancião.

- Eu não entrei em conflito direto com ele, embora fosse a minha vontade, porque julguei necessário um reporte direto do Conselho. Neste momento, ele está por aí, a solta, provocando o Caos em toda parte que passa.

Lorde Belriomn pareceu pensativo. Ele caminhou um pouco pela sala, as mãos cruzadas nas costas.

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- Minha pequena. Observo que você tomou a atitude correta, embora fosse necessário um pouco mais de requinte da sua parte. Enfrentar abertamente um Iluminado poderia levar o Fosso a tomar uma posição hostil em relação ao Conselho e sua jurisdição. Porém, não podemos ficar simplesmente de mãos atadas enquanto este renegado perfura e rasga o cunho de nossa realidade ao seu bel prazer. Nesta parte, você devia ter sido um pouco mais radical, ou talvez mais lógica.

Tahlu-aht manteve-se ouvinte.

- O Fosso tem o mais amplo poder existente no universo, mas até mesmo sua escrita pelas entrelinhas deve ter um limite. Conjurar o Ardor de Marte, em plena via pública! Mais que isso, ainda levar duas almas mortais para o inferno! Um disparate inadmissível.

O anjo, então, pronunciou-se.

- Meu lorde. O que devo fazer então?

Mais uma vez, o ancião pôs-se a divagar.

- O que você acha? – ele perguntou.

A pergunta foi estranha aos ouvidos dela, que esperava respostas e não outras questões.

- Me inquieta a presença daquele homem aqui na Terra, e todo o poder de destruição que ele carrega. Mesmo assim, a “missão” que ele executa parece de extrema importância, e envolve uma certa mortal que ele encontrou alguns dias atrás. Ele disse que tinha vindo buscá-la. Porém, ele ainda não foi embora! Se ele veio buscar esta mulher, porque ele ainda insiste em estar aqui? Esta dúvida me aflige, pois tenho medo de estar participando negativamente de uma trama maior do que imagino, atrapalhando o caminho daquele homem.

Belriomn pensou um instante, e então pôs uma das mãos sobre o ombro de Tahlu-aht.

- É natural que você se sinta assim. Mas asseguro-lhe que está tomando a posição certa. Estamos aqui para proteger a Terra, e não importa qual seja o objetivo daquele homem, ele não tem o direito de exercer sua força da maneira que desejar.

Tahlu-aht assentiu.

- Ele está aqui por causa da alma daquela mulher. É um problema antigo que caiu em nossas mãos. Kain necessita daquela alma mortal para poder completar um certo artefato que ele procura. Porém, como eu disse antes, ele está transgredindo as regras de nosso Plano, e isto não podemos tolerar. O Assassino é afamado por deixar sangue onde quer que passe, como se repete no presente momento. É nosso dever impedir que ele continue provocando mortes e destruição neste planeta. Mas temos que fazer isso de uma forma indireta, que não leve a um confronto com ele. – disse o ancião.

O anjo pareceu confuso.

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- Mas este artefato é algo ruim? – ela disse, dando atenção a apenas uma parcela da explicação.

Belriomn apertou os olhos.

- Você tapa os ouvidos para o que realmente importa, minha jovem. Seus sentimentos enevoam seu sentido racional, impedindo que compreenda o todo. Se o que ele busca é bom ou mau, não tem importância. O que está em jogo são os métodos que ele usa para alcançar o seu objetivo. Nesta situação, com certeza, os fins não justificam os meios.

Ela abaixou a cabeça, reprovando a si mesma. O ancião pôs-se a pensar mais uma vez.

- É necessário que esta mortal seja retirada de nosso Plano. – ele então respondeu.

- Como assim?

- Não consegue ver? Ele está aqui por causa dela, por causa daquela mulher. Cortaremos então o mal pela raiz. Se aquele espírito mortal for levado para outro Plano, outra dimensão, o Assassino será forçado a ir embora. Faremos com que ele saia sem a necessidade de uma ordem direta. – ele explicou.

- Meu lorde deseja que eu a mate?

Belriomn respondeu com seu silêncio.

- Mas, meu lorde. Isto não nos faria diferentes do Assassino. Alcançar um objetivo através de derramamento de sangue é exatamente o que ele faz. Deve haver outro modo.

O ancião então fez-se mais imponente.

- Tahlu-aht, protetora da camada terrena. Você está contestando uma decisão do alto escalão do Conselho. É óbvio, minha cara, que deve haver outro modo para compelir Kain a ir embora. Porém, precisamos de uma solução rápida, pois a cada momento que aquela mortal é poupada, outros são dizimados pela maldade contida no Assassino. É a vida desta mulher em contrapeso à de milhões de mortais, e a balança não pesa para o lado dela. Esta, minha jovem, é uma situação em que os fins justificam os meios.

A voz do anjo silenciou-se diante do poder contido nas palavras de Belriomn.

- Mate-a, e faça com que sua alma rume para os confins da galáxia, para que Kain seja obrigado a ir embora o mais rápido possível. Seja, contudo, rápida e indolor, pois nenhum mortal merece sofrer pela causa de alguém como o Assassino. – o pulso firme e a benevolência misericordiosa andavam de mãos dadas no Conselho.

Tahlu-aht manteve-se em silêncio. O ancião, então, sorriu.

- Eu sei, minha pequena, que é difícil. Mas, proteger o plano terreno foi o caminho escolhido por você, e às vezes atitudes radicais são necessárias. Você está fazendo o certo, e será abençoada por isso.

Ela assentiu com a cabeça.

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- Agora se apresse e cumpra sua missão. – ele disse.

- Sim, meu lorde. – o anjo respondeu.

Então o anjo de aço deixou a sala, e seguiu em direção à saída do palácio. Belriomn, porém, fez de seu sorriso bondoso uma expressão séria.

- Isto será um problema maior do que imaginei. – ele disse.

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Algumas horas depois, Lisandir, a Valquíria, pairava no céu noturno, a alguns milhares de pés de distância do chão. Sob si, as nuvens avermelhadas de uma noite comum. Acima de sua cabeça, apenas a escuridão do infinito, salpicada com inúmeras estrelas e uma Lua crescente. Uma noite calma, como há alguns dias não havia.

- Parece que finalmente terei paz.

Os olhos esverdeados de Lisandir passeavam pela imensidão do firmamento, que se estendia horizonte afora. Sua mente, conectada com a área ao redor, concentrava-se em sentir o fluir da existência, procurando por anomalias características. Vez ou outra, breves pensamentos iam e vinham, lembrando-lhe da sua companheira de batalha, Tahlu-aht, e seus problemas com o Assassino. A inquietação do anjo de aço em relação à Kain havia despertado velhas desconfianças na alma da Valquíria, trazendo-lhe desarmonia.

- Tem alguma coisa errada com isso tudo. Eu sinto isso.

Suas palavras soaram-lhes agourentas o suficiente para fazer-lhe calar a boca, e ela permaneceu em silêncio por alguns instantes, quase entrando em meditação. Quando então, um estrondo peculiar chamou sua atenção.

- Mas o que...

Ao longe, bem longe, uma luz alaranjada cortava o céu. Ao vê-la, Lisandir a associou instantaneamente com a chegada de Kain, presumindo que mais um dos Iluminados estava descendo à Terra. Isto, ela não permitiria. Ela não iria cometer o mesmo erro duas vezes.

- Maldição.

Em um gesto rápido com a mão direita, ela distorceu o ar em sua frente, formando um pequeno vácuo, de onde se materializou uma longa lâmina brilhante, uma espada bastarda. Era Balmung, a lâmina sagrada de safira, a assassina de hidras. Empunhando a lâmina com uma das mãos, Lisandir voou o mais rápido que pôde em direção à pequena estrela cadente.

- A noite não podia ter ficado melhor. – a ânsia guerreira pulsava em suas veias.

Na medida em que a Valquíria se aproximava, o astro cadente aumentava sua velocidade, de uma forma quase proposital. Também aumentava de proporção, tornando-se uma esfera de fogo cada vez maior.

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- Você não vai a lugar nenhum! – o grito de Lisandir ecoou pelo céu enegrecido, quando ela finalmente alcançou a estrela em chamas.

E em resposta à sua ameaça, a bola de fogo mudou de curso, investindo violentamente contra a Valquíria. Sem demora, Lisandir brandiu sua espada, para dissipar o fogo e cessar o ataque. O impacto fora maciço, e tilintou agudo, faíscas voaram para todos os lados enquanto as chamas evanesciam, revelando o inimigo. No lado oposto, enfrentando a força de Balmung, havia outra lâmina, duas na realidade. E uma outra mulher, dona de um olhar ofídico, as empunhava.

- Mas o quê? – disse a Valquíria, recuando e se recompondo.

Lisandir estava confusa. Ela tinha certeza de que estava lidando com outro Iluminado da Dobra Temporal, aliado do Assassino. Porém, havia dado de cara com uma mulher estranha, de pele azulada e olhos de cobra, segurando duas lâminas curvadas. Ela jamais havia ouvido falar daquela mulher, e desconhecer o inimigo podia ser fatal. Mesmo assim, a Valquíria manteve sua postura e seu olhar bravio, calejado das incontáveis batalhas em Midgard.

A outra mulher, contudo, parecia bastante tranqüila, como se já esperasse o encontro com Lisandir. Em um gesto provocador, ela desviou o seu olhar da Valquíria, e pôs-se a limpar os pequenos recortes de tecido e metal que recobriam suas curvas exóticas, porém, magníficas. E num último movimento esnobe, ela jogou os longos cabelos brancos por cima dos ombros, lançando um olhar de fêmea fatal para Lisandir.

- Esperava o seu namorado, filha de Odin? Pena, ele não te quer mais.

- Quem é você?

A mulher sorriu, cinicamente.

- Façamos assim: você para de fazer perguntas e me deixa em paz, e eu juro que não desfiguro seu rostinho bonito. – ela respondeu, saindo.

Num movimento rápido, a Valquíria cortou o ar na frente da mulher, pondo Balmung em seu caminho.

- Você não vai a lugar nenhum! – suas palavras soaram mais incisivas, enquanto ela apertava os olhos.

A mulher sorriu mais uma vez, afastando-se para trás.

- Vamos ver se não. – ela disse, fazendo malabarismo com suas espadas.

- Não tenho medo de você, esquisita. – insultou a Valquíria.

A frase final de Lisandir pareceu ferir o íntimo daquela mulher.

- Você não vai soltar outra gracinha depois que eu arrancar sua língua fora.

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E num movimento sinuoso, a mulher revelou sua carta na manga. De suas costas, dois membros superiores “extras” se projetaram, cada um carregando uma espada semelhante às anteriores. E num caleidoscópio maligno, ela fez sua postura de batalha, com quatro braços formando uma espiral de lâminas gêmeas.

- O que diabos é você? – Lisandir parecia mais enojada do que assustada.

- Eu sou Sajani, herdeira do trono de Shiva. E você, é um cadáver!

E as duas avançaram, suas espadas clamando por sangue. Valendo-se da força ganha na investida, Lisandir realizou um feroz golpe horizontal, que foi defletido pelas incontáveis espadas de Sajani. Esta, esquivando-se para o lado onde a guarda de Lisandir ficara aberta, respondeu ao ataque com um golpe perfurante, usando uma de suas lâminas. Por pouco, a Valquíria conseguiu se esquivar, defletindo-o com sua espada bastarda. Sajani seguiu o ataque anterior, usando desta vez as outras armas restantes. As três lâminas de Sajani se aproximaram de uma vez só, o aço zunindo no ar. Lisandir, num contra-ataque rápido, aparou o golpe mais próximo usando o antebraço, fazendo com que as espadas de Sajani ficassem amontoadas em uma fila, impedindo-a de terminar seu movimento. O excesso de membros era um trunfo, mas também um grande defeito. E se aproveitando da pequena brecha, a Valquíria acertou o flanco de sua oponente com uma joelhada, que entrou direto em suas costelas. Sajani soltou um pequeno grunhido ante a dor da contusão, afastando-se logo em seguida.

- Até que você não é tão ruim assim. – Sajani sibilou, limpando a saliva que havia cuspido no impacto.

Lisandir não esboçou resposta, estava concentrada demais para perder tempo com conversas. E as investidas reiniciaram, as duas mulheres se atacando como demônios. O que se seguiu foi uma valsa mortífera, com golpes e contragolpes violentos, enquanto as duas inimigas rodopiavam no ar. As lâminas de Sajani eram rápidas e leves, causando pequenas perfurações no corpo de Lisandir a cada vez que um golpe era bem sucedido. Balmung, em contraparte, era pesada e destruidora, e nas poucas vezes que conseguiu acertar o alvo, causou ferimentos consideráveis. As duas mulheres eram hábeis, e conseguiam aproveitar-se dos pontos fracos uma da outra.

A batalha se estendeu por alguns minutos, as duas guerreiras em um nível bem semelhante, com Lisandir ligeiramente à frente. A velocidade de Sajani não era suficiente para derrubar a ferocidade da assassina de hidras. As oponentes pareciam incansáveis, e embora estivessem ficando cada vez mais feridas, poderiam passar a eternidade em combate. Mas, havia algo errado. À medida que Lisandir lutava, seu corpo ficava fraco, como nunca acontecera antes. Seu espírito guerreiro mantinha-se de pé, mas sua carne e ossos ficavam mais lentos e perdiam a tenacidade. Ela permaneceu em combate, suportando a fraqueza ao máximo que pôde. Até o momento em que sua visão começou a falhar.

- O que há de errado comigo? – ela recuava lentamente, percebendo sua derrota iminente.

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Sajani, com sua audácia sadista, cessou seus ataques e ficou observando a postura inabalável da Valquíria ruir, que neste ponto lutava para manter-se de pé. E embora estivesse muito machucada e ensangüentada, encontrara tempo para o escarnecimento.

- Que vergonha, hein, Valquíria? A luta mal começou, e você já está em frangalhos. O Conselho deveria escolher melhor os seus “guerreiros”.

Lisandir estava fraca, o sangue escorrendo por entre suas feridas.

- Escolher melhor? Não sabe nada de mim para dizer isso.

Sajani sorriu um sorriso ferido, mas orgulhoso. Ela sabia sim, e mais do que Lisandir imaginava.

- Mas olha só para você! Nas últimas, e ainda consegue retrucar alguma coisa.

Desta vez, a Valquíria manteve-se em silêncio. Sajani aproximou-se um pouco, mantendo uma distância segura.

- Como está se sentindo? Está fraca? O corpo dói? – a instigação de Sajani parecia não ter fim.

- Vá pro inferno... – as palavras estavam começando a serem difíceis de pronunciar.

- Talvez. Mas acho que você vai primeiro. Afinal, veneno não dá mesmo pra suportar.

A frase acertou Lisandir como um choque. Era veneno, o motivo de ela estar tão fraca.

- Como ousa?

A Valquíria tentou reunir forças para mais um ataque, mas foi inútil. Seja lá qual fosse o tal veneno, já a havia consumido. Sajani, no entanto, apenas se animou mais com as tentativas frustradas de continuar o combate.

- Como eu ouso? Você acha que eu ia ficar brincando de espadinha com você de graça? Tenha sempre uma carta na manga, minha querida.

Lisandir já não conseguia responder.

- Veneno de Nagha. Não é muito rápido, mas é extremamente incapacitante. E quando entra por várias perfurações como as suas... é melhor nem comentar.

Balmung já estava muito pesada, e caiu das mãos da Valquíria derrotada.

- Agora, para finalizar, o golpe de misericórdia.

E num ataque violento, Sajani cruzou suas quatro lâminas, realizando quatro golpes diagonais ao mesmo tempo. As lâminas rasgaram profundamente a carne de Lisandir, que com a força do impacto fora lançada em direção ao solo.

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Ao longe, um homem com uma marca na testa observava uma pequena estrela cair ao chão em alta velocidade. Mal sabia ele, porém, que se tratava de uma guerreira finalmente vencida.

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No momento em que Kain viu a estrela cair, ele estava em cima de um prédio, sentado em posição de meditação. Suas mãos, unidas frente ao corpo, formavam uma estranha figura. Seus olhos, fechados, enxergavam mais do que os mortais podiam ver. Sua mente, ligada ao místico, mantinha-se em Alenna, vigiando cada passo que ela dava. Fazia quatro ou cinco dias que ele estava daquele jeito, parado, a observar. Ele a protegia de longe, temendo que algo lhe acontecesse. A todo momento, ele tentava afastar o pensamento sobre seus companheiros, buscando permanecer uno com a alma da garota. Era difícil manter tal conexão, mas a concentração extrema do Assassino facilitava um pouco as coisas. Mais difícil ainda, era manter a discrição. Usar a Vontade para dobrar a existência e ter onipresença na vida de um mortal era uma atitude invasiva, e por diversas vezes levava o observado a notar que algo estava errado, como se sua alma percebesse que uma força externa penetrava em seu eu. Mas, até o dado momento, Alenna não havia notado o que acontecia. Estava ocupada demais para notar.

O Assassino permaneceu imóvel, totalmente conecto com o espírito da garota. Por um motivo peculiar, ele se sentia em paz, como se novamente estivesse reunido com seu Avatar, sua metade astral. Mas a calmaria durou pouco, pois, de repente, a conexão foi cortada, de uma forma um tanto estranha. A visão astral que Kain utilizava simplesmente sumiu, e ele passou então a enxergar as trevas de seus olhos cerrados. Tão logo, ele levantou-se, pois sabia que algo havia saído do previsto. E no reflexo de uma lebre em fuga, ele partiu em direção a garota.

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Tahlu-aht voava em alta velocidade, em direção ao seu alvo. Ela havia pensado e pensado, mas não conseguiu chegar a uma conclusão válida. Então, simplesmente acatou a ordem de seu Lorde, pois era esta a vontade do Conselho. Ele estava certo, afinal de contas.

O anjo seguia em direção ao apartamento onde a tal garota vivia, e onde provavelmente teria seu fim. Ao longe, com sua visão periférica, ela percebeu uma estrela que caía. Por um momento, ela cogitou se seria algum companheiro do Assassino. Mas, logo lembrou-se que Lisandir estava lá, para proteger os Céus de qualquer invasão. Não cogitou, no entanto, que aquela estrela poderia ser a própria Valquíria, como na realidade era.

A guerreira manteve-se firme em vôo, cortando o vento como uma lâmina brutal rasga a carne. A cada momento que se aproximava de seu destino, ela julgava se o que estava fazendo era o certo. Mas ordens eram ordens.

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Depois de sair do hospital, Alenna caminhou tranqüila no percurso de sua casa. Naquele momento, a paz embriagante de saber que seu amado estava bem, fazia ela esquecer o resto do mundo. Dobra Temporal, Kain, Avatar. Nada disso era importante. Nada disso.

Alguns minutos passaram, e Alenna manteve-se no percurso, calma e serena. Então, por um instante, ela sentiu um perfume diferente no ar. Um cheiro doce, misturado com ervas selvagens e aromas exóticos. Quase que por instinto, ela virou-se e olhou em volta, procurando a quem pertencia aquele doce perfume. Não havia ninguém. Porém, no céu, ao longe, um estranho pássaro se aproximava. Era um animal enorme, talvez do tamanho de um ser humano.

- O que é aquilo? – ela disse a si mesma, curiosa.

O pássaro se aproximava em alta velocidade, bem mais rápido que qualquer animal que ela havia visto na vida. Alguns segundos depois, e ela pôde identificar o animal. Estranhamente, era uma mulher. Uma mulher com enormes asas metálicas e uma grande espada nas mãos.

- Meu Deus. – Alenna começava a ficar nervosa.

E quando notou que a tal mulher vinha em sua direção, literalmente, Alenna pôs-se em estado de fuga, a adrenalina fazendo com que seu coração pulsasse com toda força. E ela correu, apenas por alguns instantes. Definitivamente, ela seria pega pela criatura, por razões óbvias. E no instante antes do impacto, a mulher-criatura urrou alto e brandiu sua espada, puxando do fundo de seu ser a fúria para o ataque fatal. E tudo o que Alenna fez, foi esperar. Esperar pelo golpe que lhe tiraria a vida. Mas, por alguma razão, tudo o que ela sentiu foi um baque surdo, como ossos se partindo ou metal se amassando. Assustada, ela olhou novamente para trás, temendo o que veria.

- Você está bem? – disse uma voz familiar.

A voz era de Kain, que estava abaixado no chão próximo a Alenna. E na parede mais próxima dos dois, mais especificamente ao lado de Kain, estava a tal mulher-criatura, esmagada contra o concreto.

- O que está acontecendo? – Alenna estava agitada e nervosa.

O Assassino nada respondeu. Ao invés disso, levantou-se e se pôs na frente de Alenna, entre ela e a guerreira voadora. A mulher, forçada contra a parede, começava a se mexer, recobrando seu estado normal. Kain então virou-se para a mulher, e se colocou em posição de combate, os braços em frente ao rosto e os pés formando uma base firme no chão. Alenna, ao ver que a mulher voltara a si, valeu-se do seu instinto de sobrevivência e fugiu, correndo mais rápido do que seu corpo suportava.

Enquanto Alenna fugia, a guerreira, Tahlu-aht, se recompunha e prestava-se de frente ao Assassino. Ela estava ferida no flanco direito, decorrente de um golpe violento da parte de Kain, que a desviou da rota de ataque e a lançou contra a parede na qual foi esmagada.

- Saia da minha frente, Assassino. – ela disse, sua voz carregando-se de fúria.

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- Você não vai tocar nela, de forma nenhuma. – o tom de Kain demonstrava sua determinação.

O Anjo apertou os olhos.

- Saia! Estou cumprindo meu dever! – ela respondeu, lançando-se contra o Assassino.

Este, com presteza, desviou-se e a empurrou de volta para onde estava. Ela, em resposta, investiu mais uma vez, tentando passar pelo Assassino. Eles não iriam se arriscar em um confronto direto, em atacar para matar, a menos que fosse realmente necessário.

- Você não vai passar. Não vai alcançá-la. Eu não permitirei.

Tahlu-aht lançou-se à esquerda, tentando furar o bloqueio de Kain. Mas ele era tão hábil quanto ela, e se colocou na frente, fazendo com que a guerreira recua-se.

- Afaste-se! – A guerreira começava a berrar.

- Não! – ele respondeu no mesmo tom.

A paciência de Tahlu-aht estava acabando. Ela então apontou sua espada em direção ao Assassino.

- Escute, monstro. Sei o que veio fazer aqui, e sei porque precisa da alma daquela humana. Mas nenhuma missão justifica as atitudes que têm tomado.

- Não me importo com justificativas. – ele se mantinha em guarda.

- Mas eu sim. E, independente de sua vontade ou não, cumprirei meu dever como protetora deste Plano.

A guerreira apontou ainda mais a espada contra o Assassino, que se manteve imponente diante da arma. Mas, por um segundo, só por um segundo, a situação mudou.

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Kain manteve-se firme perante as ameaças do Anjo de Aço, que, por algum motivo estranho, tentava tirar a vida de Alenna. E isso, com certeza, Kain não iria permitir. O Assassino continuou em guarda, até que algo tirou sua atenção. Um pressentimento, ruim, sobre a segurança de Alenna, o desconcentrou da batalha, fazendo-o perder o foco e baixar a guarda. E, como se estivesse esperando por isso, a guerreira aproveitou a brecha para golpear brutalmente o Assassino. Tudo que Kain teve tempo de fazer foi fechar os olhos, por reflexo. A dor que se seguiu foi intensa, ardente como o fogo infernal. A lâmina o acertou em cheio no tronco, rasgando-lhe a roupa, pele e carne. Foi uma ferida profunda, e a agonia fora tamanha, que o Assassino foi ao chão, sangrando. A guerreira, agora sentindo-se orgulhosa pelo seu potencial, sorriu, vingando-se de todas as afrontas que Kain havia feito. Lentamente, saboreando o prazer da vitória, ela caminhou, passando pelo Assassino. Mas, este ainda não havia se entregado à morte.

- Aonde você pensa que vai? – ele disse, sua voz fraquejando junto com sua força.

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- Você ainda não desistiu? Não vê? Você foi derrotado. E não há nada que possa ser feito.

Ouvindo essas palavras, o Assassino forçou-se a ficar de pé. Mas, antes que conseguisse, Tahlu-aht se concentrou e lançou-lhe um feitiço. O concreto do chão tornou-se esquisito como lama, absorvendo parte do corpo de Kain. Em seguida, o mesmo chão se solidificou, prendendo-lhe os membros. Ele estava derrotado.

- Aceite a derrota, Assassino. E perceba que tudo isto é sua culpa. Não fosse sua arrogância e petulância, a humana viveria em paz, e eu jamais iria interferir. Mas, seus planos horrendos e suas atitudes egoístas falam mais alto.

- Vá pro inferno. – foi tudo o que ele disse.

Tahlu-aht sorriu novamente.

- Agora sim, entendo porque o Criador lhe repudia tão ferozmente. – ela rebateu.

Kain não esboçou resposta. A dor estava muito forte, e seu corpo já não lhe provia a mesma força do início do combate. Então, mais uma vez, algo lhe chamou a atenção. Um grito agudo, um pouco distante, foi trazido pelo vento. Era a voz de Alenna, que provava estar certo o mau pressentimento do Assassino. Tahlu-aht, ao ouvir o grito, voou rapidamente na direção do som, deixando Kain preso e agonizando.

- Maldição. – ele sussurrou, já quase sem forças.

Foi um golpe traiçoeiro, que o pegou desprevenido. O Assassino sequer conseguia se levantar, ainda mais com a força do concreto a lhe prender. E sua força foi se esvaindo aos poucos, até o Assassino ter apenas energia para se manter respirando. Mas antes que o Abismo o puxasse, Kain apelou para seu lado mais sombrio, libertando as amarras de seus demônios internos. Obviamente, esse tipo de coisa era proibido em outros Planos, por ser extremamente perigosa. Porém, não havia alternativa. E libertando suas forças mais tenebrosas, o Assassino conseguiu, com facilidade, arrancar-se do chão, levantando-se em seguida. Seu corpo, agora extremamente pálido, estava envolto em uma aura negra e gélida, que causaria calafrios aos outros, se tivesse alguém próximo. Seus olhos, que tinham um aspecto negro e sem vida, estavam totalmente brancos e demoníacos. Sua ferida, antes aberta e ensangüentada, agora cicatrizava com velocidade anormal, como se evaporasse de seu corpo. E quando o Assassino estava totalmente restaurado, ele deixou que suas feras se esvaíssem, voltando lentamente ao normal. Alguns segundos depois, Kain partiu a toda velocidade em direção ao grito de Alenna. Mas, quando chegou ao local, não havia ninguém. Nem sequer um rastro de presença, nenhuma ressonância, nenhuma aura, nada.

- Para onde você a levou, Anjo de Aço? – ele resmungou, furioso.

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Taylor estava deitado na cama do hospital, entediado. Alenna havia ido embora e não havia mais nada a se fazer senão esperar a hora de ir embora, pacientemente. Quase que

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ritmicamente, ele mudava o canal da TV, sem encontrar nada de interessante. Nem seu telefone, que tocou durantes algumas ocasiões, ousava chamar sua atenção.

- Saco. Saco ao quadrado. – ele resmungava em baixo volume.

Mas, respondendo a seu tédio, algo interessante aconteceu. Um rápido flash iluminou a janela do quarto, com força suficiente para ofuscar por alguns instantes a visão de Taylor.

Quando tornou a enxergar, percebeu que havia um pássaro na janela, e que ela estava aberta. O animal, do porte de uma gralha, era negro e tinha olhos vermelhos. E, de uma maneira estranha, emanava uma certa aura brilhante, vívida em milhares de cores.

- Levanta-te, meu jovem. – disse o pássaro.

Taylor quase caiu da cama, quando ouviu o pássaro falar.

- Quem é você? Aliás: O que é você? – ele retrucou.

O pássaro alçou vôo, e pousou na mesa ao lado da cama.

- Quem eu sou, você descobrirá, no fundo de sua alma. O importante aqui, meu jovem, é quem você é. – respondeu o pássaro negro.

Taylor com certeza não havia entendido.

- Do que você está falando? E porque você está falando? Isso é um sonho?

O pássaro gralhou.

- Não. Isto, meu jovem, é a pura realidade. Você está acordado, e bastante atento.

O rapaz pôs a mão na cabeça, sem entender. Então o pássaro continuou sua explicação.

- Estou aqui, meu jovem, para lhe trazer um alerta.

- Do que você está falando? – perguntou Taylor.

- Estamos em um momento crítico, e você é a peça chave para a resolução correta desta situação.

Taylor entendia cada vez menos.

- Explique, pássaro. – ele não podia acreditar no que estava dizendo.

- Você tem uma amiga. Na realidade, a amiga, que está correndo um grande perigo neste momento.

Taylor, quase que automaticamente, lembrou-se de Alenna. O pássaro, ao notar a expressão do garoto, continuou a falar.

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- Sua amiga, neste momento está sob as garras de um mal sem precedentes. E só você, meu jovem, pode libertá-la.

- Do que você está falando, pássaro. O que está havendo com Alenna?

O corvo gralhou mais uma vez.

- Alguém vai chegar para você, e lhe trará a arma que você precisa para derrotar o terrível mal.

- Mas que mal é esse? E que arma é essa?

- O mesmo mal que lhe trouxe a este hospital. O mal que assola sua cidade.

Taylor pensou por um instante, e chegou a sua óbvia conclusão.

- Aquele homem! Ele me fez estar aqui! Aquele homem estranho e monstruoso! O que ele fez com Alenna?

- Ele fará, se você não impedi-lo a tempo. – respondeu o animal.

Taylor cerrou os olhos.

- E como eu o impeço?

- Como eu disse, alguém lhe trará a arma necessária. Você, então, deve feri-lo. Tudo estará em paz depois disso.

- E quem é esse alguém? Responda-me!

- Você terá sua resposta. – disse o pássaro, alçando vôo.

Mas, antes que o pássaro fosse embora, Taylor fez mais uma pergunta.

- Porque está me ajudando?

O corvo, pousando na janela, respondeu.

- Porque alguém precisa aprender uma pequena lição. E você saberá ensinar muito bem.

O animal então voou para fora da janela e partiu. Taylor pôs-se a pensar no estranho momento que acabou de ter. Um corvo. Salvar Alenna. Uma arma estranha. Um mal sem precedentes. E antes que pudesse concluir qualquer raciocínio, seu telefone tocou.

- Taylor, onde está a Lenna? – disse uma voz feminina, no outro lado da linha.

O rapaz reconheceu imediatamente a voz de Charlie.

- Eu não sei. Porque?

- Eu estou ligando para o celular dela, e só dá desligado. – ela respondeu.

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Então o jovem lembrou da história do corvo, sobre Alenna estar em perigo.

- Charlie. Pode parecer estranho, mas acredito que Alenna esteja em perigo. – ele disse, com um tom sério.

- E porque você diz isso? – a amiga já ficava preocupada.

Taylor hesitou por um instante.

- Porque... Um pássaro me contou. Um corvo, na verdade.

Charlie ficou quieta por um instante.

- Um corvo? – Charlie lembrou-se do sonho que teve.

- Sim. – ele disse.

A jovem fez silêncio por mais um segundo, como se procurasse encaixar as peças do quebra-cabeça.

- Taylor. Eu sonhei com um corvo também. Ele me disse que o mensageiro viria até mim, à procura de um objeto. – ela explicou.

Taylor fez silenciar-se também. Então falou.

- Então você tem a arma que vai destruir o mal?

- Como é? Você é o mensageiro que vem buscar o tal objeto?

Taylor ficou mais sério.

- Escute, Charlie. O corvo me disse que alguém teria a arma da qual eu preciso para salvar Alenna. Ela deve estar em grande perigo. – explicou o rapaz.

- Eu não estou entendendo mais nada. – ela disse.

- Nem eu. Mas, que arma seria essa?

- Eu não sei. Só tive esse sonho estranho. O pássaro me disse que, quando o mensageiro viesse, eu procurasse onde nunca procurei.

- E o que isso significa? – perguntou Taylor.

- Também não sei. Eu não faço idéia, sinceramente.

O rapaz ficou em silêncio, preocupado com Alenna.

- Taylor, temos que encontrar Alenna.

- Eu sei! Mas ela está nas mãos de um monstro, e só a arma certa pode vencê-lo. E a arma está com você.

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A garota pensou mais um instante. Aonde seria o tal lugar que ela nunca procurou? Por alguns segundos, ela visualizou sua casa, mentalmente. Ela conhecia cada canto daquele local, e havia estado em todos os lugares. Exceto...

- Taylor, acho que entendi.

- O que?

- O lugar aonde nunca procurei. Venha aqui em minha casa!

- Mas, eu estou no hospital!

- Eu preciso de você aqui! Venha! – ela disse, desligando o telefone logo em seguida.

O rapaz ficou aturdido. Ele não sabia o que fazer. Ir atrás de Alenna, sem saber onde ela estava seria um tiro no escuro. Encontrar com Charlie talvez ajudasse, mas ele não sabia se havia tempo o suficiente. E pensou, por alguns segundos. Quando deu por si, já estava pulando a janela do quarto, roupas trocadas e pernas sacudindo no ar.

Passaram-se alguns minutos, e então Taylor bateu na porta de Charlie. Ela, como se já o esperasse, prontamente abriu, pedindo-o para entrar.

- Você está um caco, Taylor. – ela disse.

O jovem apenas assentiu com a cabeça.

- Você disse que precisava de mim aqui. Bem, estou aqui. – ele falou.

A garota adentrou o recinto e Taylor a seguiu.

- O pássaro, no meu sonho, disse que eu procurasse onde nunca havia procurado, certo?

- Continue explicando. – retrucou o rapaz.

- Bem. Seguindo esse pensamento ridículo, eu vasculhei minha casa. Só existe um lugar aqui, onde eu nunca mexi. – explicou ela, caminhando até uma escadaria que levava ao sótão.

- Você nunca foi ao sótão?

Charlie sorriu com escárnio.

- Já fui, bobão. Mas, tem uma parte dele que até hoje nunca toquei. – ela continuou, enquanto subia a escadaria.

Taylor a seguiu. Chegando lá em cima, ela apertou um interruptor, acendendo uma fraca luz amarelada. Em seguida, apontou para um canto específico.

- Ali. Os tesouros do meu avô.

O rapaz apertou os olhos para enxergar. Em meio ao monte de poeira e quinquilharias, havia algumas caixas de madeira, aquelas que carregam obras de arte e peças raras. Com

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pressa, Taylor se aproximou, e começou a remexer em tudo o que havia. Estavam lá, no total, cinco caixas, de tamanhos diferentes. A primeira, que ele abriu com certa facilidade, continha alguns pergaminhos estranhos, papiro talvez, escritos em uma língua estranha, provavelmente muito antiga. Havia, também, alguns desenhos. Um deles, ao que Taylor conseguiu discernir, parecia um dragão, enquanto outro era bem semelhante a um anjo.

- Aqui não tem arma nenhuma. – ele disse, descartando a primeira caixa.

Charlie, que não queria ficar parada, abriu uma outra, com certa dificuldade. Nela, estava uma estatueta, com mais ou menos meio metro de altura, feita de um material branco e límpido. Tinha o semblante de um homem alto e esguio, portando um arco e flecha. Seu detalhe mais intrigante, porém, eram suas orelhas, pontiagudas e alongadas.

- Essa aqui tem um personagem do Senhor dos Anéis. – ela disse, descartando a caixa.

Taylor então pegou a terceira caixa. Esta era mais pesada e levou algum tempo para ser aberta. Dentro dela, estavam mais pergaminhos, no mesmo idioma dos anteriores. Porém, havia também um caderno, com anotações, e um colar, bem adornado. Taylor folheou rapidamente o caderno, buscando alguma informação útil. Havia uma espécie de registro diário, sobre alguma escavação no México.

- O que seu avô fazia?

Charlie suspirou, visivelmente não querendo falar do assunto.

- Ele era arqueólogo. Um velho fissurado em antigas lendas e em deuses que jamais existiram. Ele tinha uma fixação por um estranho homem, que ele dizia ter encontrado na sua infância.

- Homem? – perguntou o rapaz, confuso.

- Sim. Ele disse que o viu cair do céu, como um grande meteoro. Nunca descobriu o nome nem nada assim. Desde então, ele dedicou todos os seus esforços a caçar esse tal homem, que ele julgava um deus. E ele buscou esse homem até ficar velho e morrer, em detrimento de tudo o que havia construído na vida.

- E é por isso que você tem raiva dele? Porque ele preferia caçar esse tal homem a estar com seus familiares?

- Eu tenho raiva porque ele nos fez sofrer, nos fazendo passar maus bocados em busca do dito cujo. Desde que ele se foi, eu nunca mexi nas coisas dele, para não me lembrar de tudo o que fomos obrigados a suportar. – ela respondeu.

- Entendo. – disse o rapaz.

O rapaz, continuando sua busca, abriu a quarta caixa.

- Mas o que é isso? – ele disse, quando observou o conteúdo.

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Tahlu-aht voou a toda velocidade, caçando sua presa humana. O tempo todo, ela pensava em como se sentiria quando sua missão terminasse, quando aquela mulher fosse extinta do mundo e o Iluminado fosse embora. Mas, quando alcançou seu objetivo, viu que estava enganada quanto ao término. A garota, Alenna, havia sido levada. Seu raptor, uma criatura azulada dotada de vários braços, a carregava rápido como o vento.

- Droga. – sussurrou o Anjo.

Mas, mesmo com tudo o que tinha, Tahlu-aht não conseguiu alcançar Alenna e seu suposto raptor. Restou-lhe, então, retornar ao Conselho e pedir ajuda, pois nada adiantaria se não soubesse o que fazer, ou se fizesse algo errado.

Quando o Anjo novamente entrou nos umbrais do Conselho, viu que mais uma vez este se encontrava vazio. Ela caminhou por todos os lugares, sem encontrar nenhuma alma viva. Até que, por pressentimento, ela resolveu invadir uma sala, que ficava no canto do corredor. Lá, para sua surpresa, encontrou Lisandir, a Valquíria. Porém, esta não se encontrava em seu melhor estado.

- O que aconteceu, Lisandir?! – berrou o Anjo automaticamente.

A guerreira de Asgard estava em farrapos, presa contra a parede por um grupo de correntes. Em seu peito, uma lança estava atravessada, a única maneira de se parar uma Valquíria.

- O que está acontecendo? – se perguntava Tahlu-aht, enquanto tentava retirar a lança.

- O que você vê é o resultado de alguém que se mete em assuntos que não lhe dizem respeito. – disse uma voz vinda da entrada da sala.

Era Belriomn, Lorde do Conselho.

Ao vê-lo, e ouvir suas palavras, o Anjo de Aço ficou abismado.

- O que está havendo, Lorde Belriomn? Porque Lisandir está neste estado?

O velho sorriu.

- Porque estava na hora de ela sair de cena, pois já estava muito interessada em assuntos que não devia se interessar. E o mesmo, ao que vejo, está para acontecer com você.

Tahlu-aht espantou-se ainda mais. Seria Belriomn um traidor do Conselho?

- Você é uma incompetente! Eu dou-lhe ordens para dar cabo de uma simples mortal, e mesmo assim você hesita! Como pode se chamar guardiã da Terra nesta situação?

- Porque está fazendo isso, meu Lorde? – as palavras mal saiam da boca da guerreira.

- Porque? – ele sorriu novamente. – Porque descobri, minha cara, que existe um poder superior. Um poder que vai engolir a todos, ou pelo menos a todos que se opuserem a ele.

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- E que poder seria esse?

- O Nulo! O Nulo e seu Agente! O destruidor dos destruidores! O mal que assola o universo inteiro! É um poder inigualável, que ninguém, nem sequer o poderoso Criador, consegue rivalizar. E, antes que minha derrocada chegasse, decidi me juntar a ele, ao Nulo, para reinar na Terra uma vez mais.

A coragem de Tahlu-aht veio a baixo. Seu pilar de inspiração, o próprio Conselho, estava se deixando trair pelas conspirações de um mal superior. Ela, na tentativa de resolver o problema, direcionou-se à saída. Mas, quando ia passar pelo Lorde, ele a impediu.

- Aonde vai?

- Avisar aos outros membros do Conselho. Eles devem ficar cientes de sua traição. – ela disse prontamente, com tamanha inocência.

O velho sorriu mais uma vez.

- E para quem você vai avisar? Para Lorde Sigmund? – ele então tirou do bolso um anel. – Ou para o Lorde Magefasto? – e novamente mais um anel apareceu de seus bolsos. – Ou, quem sabe, para o Lord Eidwon? – e outro anel apareceu.

Naturalmente, aqueles eram os respectivos anéis dos Lordes.

- Você os matou?! Como pôde?!

- Ah! Eu não fiz isso. Pelo menos, não diretamente. – respondeu Belriomn.

Por trás do velho, uma figura surgiu. Tinha a pele azulada e escamosa, e era dotada de quatros braços.

- Você! – berrou o Anjo, ao ver que Sajani se aproximava.

- Apresento-lhe, minha cara Tahlu-aht, meu executor. Esta é Sajani, e tratará de por um fim em você, assim como fez com a pobre Lisandir.

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O Iluminado, Kain, estava parado, observando o céu, de cima de um prédio. Estava taciturno e desanimado. Já havia feito inúmeros feitiços e encantamentos, e não havia encontrado nenhum rastro de Alenna, sua protegida. A culpa era de Tahlu-aht, o maldito Anjo de Aço. Ela havia frustrado os objetivos de Kain, e agora recuperar o Avatar era quase impossível.

- Maldição. – ele sussurrava para si mesmo.

E quando suas esperanças haviam-se ido, eis que aparece em sua frente, a figura fraquejada e destruída de Tahlu-aht. A princípio, Kain armou-se para enfrentá-la, mas logo percebeu que ela não estava em condições de combater, pois estava ferida e em frangalhos.

- Kain. – ela disse, em baixo tom.

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O homem nada respondeu.

- Preciso de você, agora. É importante.

Ele continuou em silêncio. Ela, insistiu.

- Preciso que retire uma lança do peito de minha companheira. Ela só pode ser retirada pelos deuses, e, bem... Você é a pessoa mais próxima de um deus que eu conheço.

Ao ver que pedia sua ajuda, de verdade, o Iluminado se enfureceu.

- Como ousa pedir minha ajuda, quando tomou de mim minha única esperança de vencer a grande guerra?

- Do que está falando?

- Estou falando de Alenna! Você a levou de mim! Eu a quero de volta!

- Eu não a levei. E posso ajudá-lo a encontrar. Ela está nas garras de Sajani, um demônio enviado pelo Nulo. O Lorde de minha Casa traiu o Conselho Terreno, e preciso de você para recuperar a paz nesta terra. Mas, como disse antes, posso ajudá-lo a encontrar Alenna. Só preciso de um feitiço de localização.

- E por acaso eu não tentei isso?

- Esqueces que eu sou a guardiã da camada terrena.

______________________________________________________________________

Sajani estava no topo de uma catedral, confiante de sua vitória. Ao seu lado, presa sob enormes correntes e a um altar, estava Alenna.

- O que quer de mim, criatura estranha? – ela perguntava.

Sajani, deliciando-se com o que viria, sorria.

- Você logo verá, minha presa.

Foi então que, sobre o telhado da catedral, surgiram Kain e Tahlu-aht. Os olhos do guerreiro demonstravam sua fúria.

- Devolva a garota! – ele berrou.

Sajani sorriu ainda mais.

- Se você a quer, pegue-a. – ela respondeu.

Sem delongas, Kain avançou, a fúria e a raiva o consumindo. Seus primeiros ataques foram inúteis, pois Sajani possuía quatro braços e se desviava com extrema facilidade. E seguiram-se golpes sobre golpes, com Sajani se desviando e contra-atacando sempre que podia. Kain estava ficando cada vez mais ferido, enquanto seu adversário mantinha-se intacto. Então, num súbito de fúria, e sem conseguir mais segurar seus demônios, o Iluminado deixou o

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mal interior sair. Sua pele se empalideceu e seus olhos clarearam-se, brancos como a morte que vem de súbito. E em um ataque brutal, ele agarrou Sajani pelo pescoço com os dois braços. Ela, esguia e escamosa, se debateu e fez força para sair, mas fora inútil.

- Alcançaste teu fim, demônio. – ele disse, com uma voz rouca e soturna.

Ela, mais uma vez, sorriu.

- E você verá que o seu também está próximo.

Ao dizer estas palavras, Kain a apertou com toda a força, e de repente Sajani se desfez, evaporando como uma fumaça azul disforme.

- Acabou. – ele disse.

Então o Iluminado aproximou-se de Alenna, que estava acorrentada.

- Kain, ajude-me! – ela disse, desesperada.

Com sua força e maldade em disposição, Kain quebrou as correntes e pôs Alenna em liberdade.

- Estás livre. Agora preciso de você para retornar ao Fosso.

Tahlu-aht sentia-se completa de novo, pois havia reparado o mal que ajudara a construir. Restava agora salvar Lisandir.

- Kain, vamos! Precisamos salvar o Conselho! – disse o Anjo.

Prontamente, e agora mais calmo, Kain a acompanhou. Porém, mais uma vez, foram interrompidos.

- Aonde pensam que vão? – disse Alenna.

Os dois guerreiros estranharam a frase da garota, e retornaram em sua direção. Ela, então, pôs-se a rir, em euforia.

- O que está havendo? – perguntou Tahlu-aht.

- Tem algo errado. – disse Kain.

Alenna novamente sorriu.

- Sim! Tem algo errado! E é você, tolo Iluminado! – os olhos da garota começavam a mudar de cor, passando para um vermelho sangue.

- Alenna, o que está fazendo? – perguntou o homem.

- Estou me livrando de você! – ela disse, avançando contra o guerreiro.

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E Alenna, com violência, desferiu uma série de golpes contra Kain, que se esquivou ou bloqueou como pôde. Ela era forte, com uma potência de ataque tamanha que quase se igualava ao Iluminado.

- Você acha que foi fácil, chegar até aqui? Eu precisei lutar muito para me desprender de você, demônio. Jamais voltarei para seu lado.

E os ataques continuavam.

- Do que está falando?

- Que você é um tolo! Você, seus companheiros e sua guerra santa para proteger o universo! Precisei da ajuda do Nulo para ir embora, viver, destruir! Eu não preciso de você!

Kain apertou os olhos.

- Você me enganou. Você não é o meu lado bom que se fez mortal. Você é uma parcela da minha maldade, em forma de carne. – enquanto as palavras de Kain eram ditas, mais golpes eram desferidos contra ele, que inutilmente os evitava.

- Sim! Foi esse o acordo com o Agente! Engane-o, e faça ficar muito tempo na Terra, enquanto a guerra se desdobra ao meu favor. – a voz de Alenna transformava-se em um sussurro maldito.

Desta vez, foi Kain quem sorriu.

- Você me fez ficar aqui, para que meus companheiros perdessem a batalha no Fosso. Inteligente da sua parte. – ele disse.

Com determinada força, então, Kain segurou Alenna, apertando-a o pescoço como fez com Sajani.

- Então, não me resta nada além de mandá-la para o inferno! – ele berrou.

- Não! – gritou uma voz masculina.

Taylor, surgido do nada, avançou contra Kain. Tahlu-aht, sem entender, tentou pará-lo. Mas era tarde demais. Contra o coração de Kain, pela parte das costas, Taylor atravessara um enorme punhal. A dor foi tamanha e inigualável. O Iluminado largou Alenna, que caiu sorridente no chão. Ele então ajoelhou-se, sem forças. E tudo foi ficando branco, e cada vez mais branco, até o nada, com sua força abismal, arrastar Kain para seu destino.

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Kain então abriu os olhos, a dor sufocando seu corpo e sua alma. Fazia tempo que ele não sentia um sofrimento destas proporções. Mas bem, ele estava acordado mais uma vez. Só que, nesta ocasião, seus aliados ou inimigos não estavam lá. Havia, a sua volta, apenas o vazio, o nada encarnado. O Assassino se levantou, pisando no chão que ele não conseguia ver. Andou por alguns instantes, sem saber discernir em que direção estava seguindo. Ao longe, porém,

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ele conseguia perceber uma pequena forma de vida, parada, provavelmente a lhe observar. No início, Kain não deu a menor importância. Mas, nos instantes vazios que se seguiram, era tudo o que lhe restava. Então o Assassino andou rumo ao pequeno ser. Ao se aproximar o suficiente, ele pode identificar o que era. Um pequeno pássaro negro, um corvo talvez.

- Que bom que você veio, meu filho. – falou o animal.

- Quem é você? Mande-me de volta para a batalha. Eu ainda não venci. – o tom de Kain era autoritário.

O pássaro gralhou.

- Não. Você ainda não venceu, meu jovem. E, pelo rumo que as coisas estão seguindo, não vai vencer.

- Porque está dizendo isso, pássaro?

- Não vê? Você foi derrotado, por sua arrogância e seu ceticismo.

- Eu não fui vencido. – ele retrucou.

- Talvez não fisicamente, meu jovem. Mas seu espírito foi derrotado. Derrotado por um simples e fraco mortal.

Kain lembrou-se da dor que sentiu ao ter aquela adaga atravessando seu peito e atingindo seu coração. Era impossível, para um simples mortal, causar um dano daqueles. Mas, mesmo assim, o maldito humano havia feito.

- Como aquilo pôde acontecer? Um verme, me atravessar o peito com uma faca.

- Foi decorrente de suas transgressões, de seu senso de superioridade e de sua ignorância quanto ao que lhe rodeia. Você deixou sua alma aberta aos ataques mais sutis, enquanto dava atenção ao seu “inimigo maior”.

Aquela conversa já começava a irritar o Assassino, que só pensava no campo de batalha.

- E quem é você para se dirigir a mim desta forma? Eu sou um Iluminado. Um dos guardiões do Criador.

A ave gralhou mais uma vez.

- Você ainda tem muito a aprender, meu filho. – respondeu o pássaro.

Estranhamente, aquele jeito de falar era familiar ao Assassino. Mas, não fazia sentido.

- Eu não tenho nada a aprender. Eu só preciso sair daqui. – ele disse, começando a se rebelar.

Kain iniciou uma série de ataques poderosos contra a estrutura vívida do lugar onde estava. Se ele pudesse quebrar e sair da estática nulificada ao seu redor, estaria tudo bem.

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- É inútil, meu filho. Você ainda tem muito a aprender.

O Assassino perdeu a cabeça.

- Cale-se! E pare de me chamar de seu filho! Eu não sou...

E antes que pudesse terminar, o pássaro o interrompeu.

- Tem certeza?

Com esta frase, Kain pôs-se por um instante a pensar. Não podia ser verdade.

- Não me diga que!

- Que bom que você finalmente me reconhece, meu filho.

Kain ajoelhou-se no chão, surpreso com a descoberta.

- Criador... é você? – ele disse, sua voz quase trêmula.

O pássaro assentiu com a cabeça.

- Você. Você ainda está vivo. Não pode ser. Você desapareceu. Deixou todos nós. Você me prendeu neste ciclo monstruoso. Você...

- Estive sempre aqui, meu filho. Jamais o deixei. Você, ao contrário, se distanciou.

A voz de Kain retomou sua força.

- Você me deixou sozinho, neste ciclo de eras intermináveis. Você me aprisionou, me fez lutar por toda a eternidade. Você. Você é um monstro.

- Então diga-me, meu filho. Quem você é?

O Assassino cerrou os olhos, lembrando-se de seu grande pecado.

- Sim, eu o matei! Fui eu! Todos sabem! E agora você me castiga pelo meu ódio. Que excelente criador você é.

- Continue, meu filho. – falou o pássaro.

- Você sabe de tudo, você vê tudo. Você poderia ter me impedido! Se tivesse me parado, Abel teria sobrevivido. Você queria me ver sofrer.

- Sim, filho. Eu poderia ter impedido. Mas, que espécie de Pai eu seria se a cada vez que meus filhos saíssem para brincar, eu os impedisse, pelo medo de se machucarem? Seriam infelizes.

- Pro inferno o seu livre arbítrio! Só me trouxe o mal, a raiva.

- Mas lhe trouxe a liberdade, que você sempre quis.

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- Liberdade?! Eu sou obrigado a lutar a cada era numa guerra inútil! Para simplesmente vencer e esperar a próxima batalha. Isso é loucura! Liberte-me!

- E em qual momento eu lhe impedi de ir, filho?

Kain calou-se, segurando seu ódio.

- Eu apenas lhe mostrei o caminho. Em momento nenhum disse para segui-lo. Você luta, até hoje, e lutará sempre, porque sabe que é o certo a se fazer. Você sabe da culpa que carrega, e sabe que é justo pagar por ela.

- Você poderia ter impedido. Eu seria livre.

- Mas você é, meu filho.

- Mentira! Essa liberdade não quer dizer nada! Tudo o que eu ganho são cicatrizes e sofrimento! Não há liberdade para mim. E a culpa é sua, ó Criador, por fazer seu universo de forma tão medíocre!

O pássaro fez-se silenciar por alguns instantes. Então se pronunciou.

- Diga-me, meu pequeno filho: Como você acha que foi derrotado?

Os olhos de Kain se apertaram mais.

- Não venha andar em círculos, velho. Você já me disse que foi por culpa de meu ódio e minha arrogância. Eu já entendi.

- Mais uma vez, você se engana. – respondeu o animal.

- Então me explique. – disse Kain, sentando-se ao chão, forçando uma paciência que não tinha.

- Você foi derrotado pela única coisa que não conhece: o amor.

- Amor? – ele riu - Você ficou louco? Como um sentimento poderia atravessar meu peito e me causar tanta dor?

- Amor, meu filho. Amor e fé. Amor pelos outros, e fé em si mesmo, e em mim.

O Assassino ficou quieto.

- Há muito sua fé se foi. E há muito você não sabe o que é amar. Não foi a faca que lhe feriu, mas os sentimentos que nela foram imbuídos. Sem o amor e a fé que o rapaz tinha, a adaga seria apenas uma adaga. Foram os bons sentimentos que perturbaram o seu eu.

- E para quê eu preciso de bons sentimentos?

- Para me alcançar, meu filho. Há muito você se distanciou. Fico feliz que alguém tenha lhe mostrado o caminho de volta até mim.

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- Mostrado o caminho de volta? – Kain fez uma pausa - Você sabia de tudo isso. Tem seu dedo nisso tudo.

- Minha presença está em todas as coisas, meu filho. Não importa quais sejam. E assim como o rapaz viu, você também deve ver.

O Assassino pareceu confuso.

- Mas, se você via tudo, como permitiu que tudo isso acontecesse? Seu livre arbítrio é uma falha.

- Eu não só permiti, meu filho, como também fiz com que ocorresse.

Mais uma vez, Kain cerrou os olhos.

- Foi você que deu aquela arma para o humano. Você queria me testar.

- Não. Você testa a si mesmo. Tudo o que fiz foi chamá-lo a minha presença, como sempre foi. Mas, infelizmente, meu filho, às vezes as crianças só aprendem às duras penas.

- E o que você quer me ensinar, afinal?

- Eu já ensinei. Quando sair daqui, você não será mais a mesma criatura.

Kain suspirou.

- Sinceramente, detesto sua forma de demonstrar as coisas.

- Trabalho de maneiras misteriosas, meu filho, como você sempre soube.

O Assassino pôs-se de pé mais uma vez.

- Deixe-me sair. Preciso recuperar meu Avatar.

- Você nunca o perdeu, meu filho.

- Como é? – indagou Kain.

- Ali está a porta de saída, meu jovem. – disse o pássaro, apontando com o bico para uma certa direção.

Kain olhou para onde o Criador apontava. Lá estava, uma enorme porta prateada, cheia de adornos angelicais. Como ele podia imaginar, a porta sempre esteve ali.

- Lembre-se, filho: Amor e Fé. Aprenda e siga em paz. Estarei do seu lado, sempre.

E Kain cruzou a porta de prata, atravessando um enorme feixe de luz, quase cegante.

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Na catedral, Alenna continuava a sorrir, enquanto Taylor cumpria sua missão e dava fim ao mal irremediável que era Kain. Tahlu-aht, empalidecida e perplexa, não sabia o que fazer. Estava acabado.

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- Você, o matou. – ela disse para Taylor, com uma voz fraca.

- Sim. – respondeu o rapaz. – Eu consegui. Cumpri minha missão e agora Alenna pode viver em paz. Acabei com o mal desta terra.

Alenna pôs-se em risada.

- Mais um tolo. – disse a garota.

- Alenna, você está bem? – Taylor se aproximava da garota.

- Afaste-se! – Urrou o Anjo de Aço, pondo-se entre os dois.

Com o pouco de força que lhe restava, a guerreira armou-se com sua espada e a apontou para Alenna.

- O que está fazendo? – perguntou Taylor, sem entender.

- Saia daqui, rapaz. Você já cometeu seu erro fatal.

E com isso o Anjo atacou Alenna, que revidou com facilidade. Os golpes foram precisos, mas Alenna era rápida como o vento, e Tahlu-aht não seria páreo para ela. Foi então, que quando a derrota parecia iminente, um facho de luz cegou a todos, e uma pequena explosão os afastou. Levantando-se do chão, com suas forças renovadas, Kain entrava novamente na batalha. Desta vez, ele não seria derrotado.

- Ora, ora. Veja quem voltou! – disse Alenna, quando o facho de luz finalmente se foi.

Kain a observou, com olhos tristes.

- Agora entendo. – ele disse.

- Entende o que? – perguntou a garota, maquiavélica.

- O que acontece. O porque de minha derrota, e o porque de você estar aí, ao invés de estar comigo. Foi tudo minha culpa. Me perdoe.

- Não fale tolices! – ela iniciou mais uma vez os ataques contra o Iluminado.

Desta vez, ele não se esquivou, nem rebateu. Ao invés disso, abriu os braços, e recebeu de bom grado cada um dos ferimentos. Alenna, ao ver que estava se perdendo a medida que atacava, começou a chorar, com seus golpes ficando cada vez mais fortes. E a cada golpe, Alenna ia evanescendo, e se tornando parte de Kain, até que, com um gesto carinhoso, ele a abraçou. Ela, encontrando seu fim, chorou, e num feixe de luz desapareceu.

- Alenna! – gritou Taylor.

Mas o fim já havia chegado, e não havia nada que ele pudesse fazer. No lugar de Alenna, agora encontrava-se um novo Kain. Este, reluzia em uma armadura negra, com um brilho arroxeado. Os detalhes de sua indumentária eram tantos, que levaria dias para descrever. Mas, o mais importante, era que seu Avatar estava de volta e brilhava a sua volta.

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- Estou completo novamente. Eu sinto. – ele disse, determinado.

Então Tahlu-aht aproximou-se.

- Este então é o verdadeiro você. Fico orgulhosa de ter ajudado. Mas agora precisamos recuperar Lisandir. Venha!

E os dois partiram em direção ao Conselho Terreno, deixando Taylor entristecido perante a catedral.

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Enfim os umbrais do Conselho foram alcançados, e Lisandir fora liberta pelas mãos de Kain, que partiu em seguida em um grande portal luminescente.

- Vamos, minha companheira. Temos um Conselho para limpar. – disse Tahlu-aht, ajudando Lisandir a levantar-se.

E mais uma batalha pela paz foi iniciada, com Kain e seus companheiros defendendo o universo no Fosso, enquanto Lisandir e Tahlu-aht guerreiam para proteger o nosso planeta.