25
27 História & Perspectivas, Uberlândia (40): 27-51, jan.jun.2009 O HISTORIADOR E A CULTURA POPULAR: HISTÓRIA DE CLASSE OU HISTÓRIA DO POVO? 1 Déa Ribeiro Fenelon 2 Ao nos colocarmos aqui a questão de que realidade social queremos compreender, como cientistas sociais, para construir uma perspectiva de transformação, que seja capaz de orientar nossa prática social, deveríamos nos questionar inicialmente sobre o significado deste clima de desencanto, desesperança e cansaço que perpassa alguns de nós na sociedade brasileira nestes anos da chamada transição democrática e agora mais recentemente “Brasil Novo”. A sensação de que, como cidadãos, “a gente somos inúteis”, as agruras de acompanhar o lento e angustiado tempo de se forjar Constituições, que todos queríamos democráticas, para logo depois vê-las torpedeadas; a experiência de sofrer impactos cotidianos de uma política de arrocho salarial, dos efeitos do desemprego; o enfrentamento de uma política de combate à inflação, que não conseguimos dominar e nem mais compreender; o descrédito para alguns de qualquer plano ou medida que se nos apresentem como possibilidade de melhoria e tantos outros sinais e sintomas cruéis de uma época de crise, estão a nos colocar diante do que se tem configurado e nomeado como a crise da modernidade ou do rompimento da utopia 1 Texto originalmente publicado em História & Perspectivas n.6, jan./jun. 1992. Comunicação apresentada no VI Encontro Estadual de História de Minas Gerais, organizado pela associação Nacional dos Professores Universitários de História-MG, sobre o tema “Movimentos Sociais e Força de Trabalho”, Belo Horizonte, julho de 1988. 2 Déa Fenelon foi professora do Programa de Pós-graduação em História da PUC/SP. Ocupou o cargo de diretora do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo. Foi professora do Departamento de História da UNICAMP. Tem livros e artigos publicados, inclusive na Revista Brasileira de História.

Cultura Popular Déa Fenelon

Embed Size (px)

Citation preview

  • 27

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    O HISTORIADOR E A CULTURA POPULAR:HISTRIA DE CLASSE OU HISTRIA DO POVO? 1

    Da Ribeiro Fenelon 2

    Ao nos colocarmos aqui a questo de que realidade socialqueremos compreender, como cientistas sociais, para construiruma perspectiva de transformao, que seja capaz de orientarnossa prtica social, deveramos nos questionar inicialmentesobre o significado deste clima de desencanto, desesperana ecansao que perpassa alguns de ns na sociedade brasileiranestes anos da chamada transio democrtica e agora maisrecentemente Brasil Novo.

    A sensao de que, como cidados, a gente somos inteis,as agruras de acompanhar o lento e angustiado tempo de seforjar Constituies, que todos queramos democrticas, paralogo depois v-las torpedeadas; a experincia de sofrer impactoscotidianos de uma poltica de arrocho salarial, dos efeitos dodesemprego; o enfrentamento de uma poltica de combate inflao, que no conseguimos dominar e nem maiscompreender; o descrdito para alguns de qualquer plano oumedida que se nos apresentem como possibilidade de melhoriae tantos outros sinais e sintomas cruis de uma poca de crise,esto a nos colocar diante do que se tem configurado e nomeadocomo a crise da modernidade ou do rompimento da utopia

    1 Texto originalmente publicado em Histria & Perspectivas n.6, jan./jun.1992. Comunicao apresentada no VI Encontro Estadual de Histria deMinas Gerais, organizado pela associao Nacional dos ProfessoresUniversitrios de Histria-MG, sobre o tema Movimentos Sociais e Forade Trabalho, Belo Horizonte, julho de 1988.

    2 Da Fenelon foi professora do Programa de Ps-graduao em Histriada PUC/SP. Ocupou o cargo de diretora do Departamento de PatrimnioHistrico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal deSo Paulo. Foi professora do Departamento de Histria da UNICAMP. Temlivros e artigos publicados, inclusive na Revista Brasileira de Histria.

  • 28

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    moderna, enquanto para outros se trata ainda, de tudo fazer emnome de um Brasil Moderno. Ao erigir a razo como elementodefinidor da organizao social e transform-la em instrumentode poder, o capitalismo acabou por domesticar os homens e suasconscincias, conduzindo a inmeras formas de disciplinarizaoe de tirania poltica, visveis nas instituies, mas tambmpresentes no dia-a-dia, nos valores, nos hbitos e outras formasde governo das pessoas.

    Todas as crticas que vimos estabelecendo s idias deprogresso, racionalidade, desenvolvimento, que marcaram oavano do capitalismo e as anlises sobre as concepes dosocial, terminaram por nos levar constatao de que afinalestamos vivendo a superao da modernidade ou a despedidade utopias realizadas sob a forma de pesadelos, que configuramo estado de pobreza absoluta em que vivem da populaomundial, a fome, a misria, a desnutrio, o desemprego, osdesastres ecolgicos, os armamentos nucleares e apossibilidade de extermnio e da destruio total. o cansao ea saturao do sonho liberal e a necessidade de exorcizar opassado.

    Vivemos, portanto, o enfrentamento da certeza de que nossosmodelos e nossas concepes do social esto em crise, porqueno conseguem dar conta destas questes presentes nocotidiano. Por isto mesmo, a derrota das ortodoxias, dos ismosde toda a natureza, a recusa aos fechamentos modelares, osucesso da crise libertria e a valorizao do pluralismo poltico,filosfico e cultural 3.

    Essa a caracterstica comum, diz Rouanet, de todas as descriesda sociedade ps-moderna: o social como um fervilhar incontrolvelde multiplicidades e particularismos, pouco importando se algunsvem nisso um fenmeno negativo, produto de uma tecnocinciaque programa os homens para serem tomos, ou outros um

    3 HELLER, Agnes Ferenc Feher. Anatomia de la Izquierda Occidental.Barcelona, Ediciones Pennsula, 1985, p. 117/127.

  • 29

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    fenmeno positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas astotalizaes ou o terrorismo do conceito, ou da polcia 4.

    Vivemos, pois, uma clara conscincia de ruptura, restandocompreender se se trata apenas do questionamento e mal estardo fim da modernidade, ou se corresponde a uma ruptura realem todos os campos do social. De qualquer maneira, resta aindicao de que se trata de algo indefinvel porque traduz umasensao, mais do que o resultado, ou evidncia, de umarealidade cristalizada.

    E afinal, se este o nosso presente e se concordamos quea Histria um objeto de uma construo cujo lugar no otempo homogneo e vazio, mas um tempo saturado de agorascomo disse Benjamin5, precisamos fundar um conceito sobreeste presente e este agora, pois com ele que vamos preenchero tempo histrico, sempre assumindo o campo imenso depossibilidades que ele representa para os fazedores de histriaem todos os nveis e concepes.

    Neste sentido, queremos inverter a relao passado/presentepara tornar mais explcita a relao do momento do qual partimos,ou seja, entre nossos problemas, nossas lutas e a experinciahistrica de outros momentos, para conseguir assim politizar ahistria que transmitimos e produzimos 6.

    Para no perpetuarmos vises de um passado mistificado,com acontecimentos cristalizados, com periodizaes que poucotem a ver com as perspectivas que queremos desvendar, h quedefinir uma concepo de presente, que nos permita atribuirsignificado ao passado, e mais, que nos oriente em direo aofuturo que queremos construir, ou estaramos traduzindo emconservadorismo social o culto pelo passado e transformando a

    4 ROUANET, Srgio Paulo. As razes do Iluminismo. So Paulo, Companhiadas Letras, 1987, p.234.

    5 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de Histria. In: Magia e Tcnica, Artee Poltica. Textos Escolhidos. So Paulo, Editora Brasiliense, 1985, p. 229.

    6 CHESNEAUX, Jean. Hacemos Tabla Rasa del Passado? Mxico, SigloXXI, Editores 1977, p. 60/70.

  • 30

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    memria em instrumento de priso e no libertao, como deveser 7.

    II -

    Comecemos por colocar em evidncia, para poder explicitarposies, algumas das questes mais candentes que se fazempresentes no debate entre os historiadores brasileirospreocupados com projetos desta natureza e com os temas doTrabalho e da Histria Social.

    Seria necessrio falar, em primeiro lugar, da importnciaque atribuimos Histria, produo de seu conhecimento, suadifuso e transmisso. De certa maneira, estamos acostumadosa fazer esta discusso sempre de forma seccionada, ou seja,nos Cursos de Histria, nos Encontros Cientficos e emSeminrios; falamos da produo do conhecimento, fazemos acrtica historiogrfica da ltima produo apresentada, ou dediferentes formas de abordagem, problemas metodolgicos,tcnicas sofisticadas. De outro lado, reservamos, nestesmesmos encontros ou seminrios, algum espao para falarmosdo ensino de Histria, quase sempre com certo tom decondescendncia, como atividade paralela ou secundria, ouatendendo aos apelos e angstias de uma discusso reclamadapelos professores, que formamos e que se encontram no dia adia das escolas, atarantados e confusos com a precariedadedas condies de trabalho, mas sobretudo, com um assustadordespreparo profissional para enfrentar a realidade da escola e doensino.

    Digo isto para acentuar como dialogamos pouco sobrenossas concepes, ou quase nada discutimos sobre a teoriasubjacente s nossas ria, ou atendendo aos apelos eangdescendosdol e com os temas do Trabalho e da Hiinvestigaes, acabando por no partilhar das reflexes sobre o

    7 LE GOFF, Jacques. Memria. Enciclopdia Einaudi, Lisboa, ImprensaOficial, 1985.

  • 31

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    cotidiano de nossa atividade de historiadores e do significado queatribumos s tarefas de fazer avanar nossa profisso que, afinal,passa pela valorizao da Histria no social. Pouco sabemosdas intenes e objetivos dos profissionais da Histria quantoaos compromissos da prtica social e, quando digo isto, estoupensando, principalmente, na nossa prtica profissional comohistoriadores.

    Neste particular, minhas reflexes sobre a experincia deprofissional da Histria me colocam questes at hoje um tantoperturbadoras. So reflexes que certamente se aguaram como correr do tempo, mas que, a rigor, dizem respeito vidaacadmica e seus desdobramentos em nossa rea. O desafiode conviver com a diversidade de perspectivas de trabalho, deconcepes diversas de fazer histria, na vida e na produo doconhecimento, de crescer em vises de processos sociais epolticos, de posicionar-se em situaes profissionais e no mbitodas esferas acadmicas, exigem um constante repensar denossas convices de toda ordem, ao mesmo tempo queenfrentam, quase sempre, incompreenses formalistas,competio mida e desqualificadora em nome da unidade deum lado e da pluralidade do outro, tudo transformado s vezesem questes de prestgio pessoal, agressividade, etc...

    Na verdade o que estou dizendo que o dilogo sadio enatural de posies, o debate no sentido da troca de experincias,infelizmente ainda no se instalou entre ns historiadores e quioutros cientistas sociais. Como vcio de uma formaomaniquesta, sempre se contrape uma posio outra e assim que concebemos e realizamos nossa prtica docente.Para se ter a certeza e a verdade precisa-se sempre desqualificaro outro, pois s assim se caminhar na direo daquilo que seconvencionou chamar, abstratamente, de perspectiva crtica, oude transformao social, ou de mudana. Cresce-se poucoquando em contato com outro tipo de produo ou posiodiferente da nossa, conseguimos apenas desqualific-la comono tendo as qualidades exigidas por nosso modelo de vida oude trabalho intelectual. Isso nos desobriga de pensar outraspossibilidades histricas, inseridas no real, tanto quanto as nossas

  • 32

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    e, ainda mais, impede o dilogo porque no reconhece o outrocomo sujeito possvel de um conhecimento diferente mas, deforma nenhuma, menos vlido.

    Muitos autores tm chamado a ateno para este hbito doshistoriadores no falarem de suas teorias e concepes, desuspeitarem de ortodoxias e de no gostarem de abstraes.Quando se defrontam com dificuldades conceituais buscaminstintivamente os fatos esgrimindo achados ou questiona-mentos aos suportes documentais, mas nunca aos pressupostostericos. De algum modo, as interpretaes tomam corpo apenascom o descobrimento, a seleo e o arranjo dos fatos 8. E acaba-se produzindo uma histria bem arrumada, linear ou at mesmodialtica, explorando as contradies e os conflitos, mas dequalquer maneira o resultado termina sempre por se transformarno conhecimento verdadeiro, ou ento na simples histria doacontecido. Da sacralizao dos contedos apenas um passoe assim elaboramos elencos programticos com os mesmostemas e periodizaes que se critica, escudados na idia de que,afinal, existe toda uma determinada histria da humanidade, quenossos alunos, futuros professores, precisam dominar para podertransmitir na escola de 1 e 2 graus. Estabelecem-se os contedose a discusso passa a ser apenas sobre a melhor maneira detransmiti-los, partindo-se do suposto da hierarquizao dos nveisde aprendizagem e de saber que preciso consagrar.

    Neste caso, ento estaramos reforando a idia de que osalunos de uma certa idade, ou de um certo nvel de escolaridade,no podem e no devem ser incentivados a qualquer iniciativacriadora ou a formular questes e problemas, ou a identificartpicos e temas que queiram formular, ou possibilidade de fazeropes sobre quais temas gostariam de ver desenvolvidos. Aoinvs disto, espera-se que estas mentes maduras devam operarcom contedos prescritos a eles por mentes iluminadas, porquemais amadurecidas.

    8 SAMUEL, Raphael. Historia y Teoria. In: Histria Popular Y TeoriaSocialista. Barcelona, Editora Critica/Grijalbo, 1984, p.48/70.

  • 33

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    Se ao contrrio, considerarmos que a Histria faz sentidocomo fonte de inspirao e de compreenso, no apenas porquepode fornecer os meios de interelao com o passado, mastambm porque nos permite elaborar o ponto de vista crticoatravs do qual se pode ver o presente, outras perspectivas deinteresse pela histria se abririam para todos ns profissionais eespecialmente para nossa situao no ensino e na pesquisa. Apartir da creio que poderamos repensar no s o ensino deHistria, mas tambm o destino de nossa produo acadmica,cada vez mais distanciada da escola e do grande pblico.Poderamos nos indagar, portanto, em que contexto o estudo daHistria tem sido socializado e politizado e destacar a importnciada escola, onde parece vital a possibilidade de discutir a idia detransformao, a conscincia da mudana e das perspectivasque se desdobram frente de todos. Para falarmos da relaocom o tempo que nossa matria, poderamos explicitar melhorqual seria o compromisso presente, que informa esse debruarsobre o passado.

    Alm disto, gostaria de salientar que o ensino e aaprendizagem da Histria, ou seja, o exerccio do pensarhistoricamente exige o desenvolvimento integral das habilidadese capacidades cognitivas, para poder refletir e pensarabstratamente, para contestar valores e perceber que a ordemexistente modificvel. Por isto, considero a discusso sobre omodo de conceber o ensino em qualquer circunstncia ou nvel,de importncia fundamental, principalmente se vier acompanhadado nosso posicionamento no presente e da explicitao de nossasconcepes fundamentadas para conhecer e fazer a Histria eproduzir conhecimento desde tantas formas de abordagem.

    Partindo pois de uma concepo de Histria que buscaconviver com o indeterminado, o indefinido, o diferenciado, querodestacar a importncia de se perceber a diversidade, a diferena,as mudanas e as permanncias, reconhecendo que ningumtem monoplio do caminho a percorrer para construir atransformao que queremos ver realizada, ou seja, a construodemocrtica do socialismo.

    Se falarmos ento, da perspectiva de desenvolver a Histria

  • 34

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    Social do Trabalho, precisamos ter claro que com estaspremissas e estas posies estaremos sempre a enfrentarformas de pensar a Histria que se pretendem hegemnicas eimprimem sua marca no apenas na formao dos professorese alunos, mas tambm na formulao de projetos curriculares,de programas, de contedos, de periodizaes cristalinasestabelecidas.

    S para levantar um ponto de discusso, nesteposicionamento inicial, podemos indagar o porque de nessaHistria sacralizada e definida como patrimnio cultural a sertransmitido, se negar sempre uma referncia mais explcita atemas como do Trabalho e dos trabalhadores, das minorias, ouo porque de se apresentar qualquer grupo contestador comoperturbador da ordem estabelecida, que deve sempre existir parao bem do ovo e da harmonia social. Consagra-se com estaprtica, o que se pode chamar de uma tremenda amnsiahistrica, o que nos permitiria estender longas consideraessobre as implicaes polticas destas atitudes e quais os nossoscompromissos diante dela, se dizemos que o propsito daHistria no o de desencavar o passado para apenasdescobrir as razes de nossa identidade, mas o nossocompromisso de construir a transformao do presente.

    III -

    Em sua ltima passagem pelo Brasil, o historiador inglsHobsbawm9 nos colocou, como sempre o faz, diante deindagaes muito relevantes sobre as premissas, o desenvol-vimento e os impasses dos historiadores, sobretudo aqueles que,adotando as perspectivas da Histria Social, procuram dirigir seusinteresses para a temtica do Trabalho em todos os seusdesdobramentos na formao histrico social do Brasil.

    Uma delas, mais geral, tocada meio de relance e referindo-

    9 ERIC, Hobsbawm em entrevista Paulo Srgio Pinheiro. O Estado de SoPaulo. Caderno 2, 12/06/1988, p. 09.

  • 35

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    se importncia da Histria, obviamente na realidade inglesa,me fez refletir e gostaria de lan-la para nossa discusso. Porque que entre ns, fazendo parte dos currculos escolares emtodos os nveis, sendo sempre salientada como fundamental formao do cidado, apreciada por diletantes que tanto acultivaram, a disciplina Histria no consegue ultrapassar o campode domnio dos especialistas, tornando-se uma matria relevantepara o grande pblico, ou mesmo ser difundida no mbitouniversitrio, para alm das reas de Cincias Humanas eSociais? Ainda que considerando todas as condies j bastantediscutidas, sobre a dominao social e seu impacto na educao,dirijo minhas reflexes para o exame da comunidade doshistoriadores com o objetivo de nos levar a indagar se o tipo deHistria que vimos praticando no tem contribudo para torn-lacada vez mais distanciada da populao, apesar de se ter tornadomoda o culto da preservao e da memria. Ser que noestamos cada vez mais falando para ns mesmos?

    A segunda e a que interessa mais neste debate foi acolocao de que qualquer boa histria no apenas umatentativa de investigar, analisar e descrever o passado, masanalisar como o mundo muda... descobrir como a humanidadecomeou na Idade da Pedra e chegou Idade da Tecnologia, Idade Nuclear?

    Outra vez esta idia bastante rica para ns historiadores deque o nosso objeto a transformao, a mudana, o movimento,o interesse em saber como e por que as coisas aconteceram,principalmente para descobrir o significado e a direo damudana.

    Sempre presente em todos os debates sobre estas questese o fazer da Histria, Hobsbawn escrevia, em 1971, sobre ocaminho da Histria Social, ao que ele chamou de Histria daSociedade, salientando que aqueles eram bons tempos para oshistoriadores sociais, tempos de reviso, definies, explicitaesde posies, mas sobretudo de produo de grande nmero detrabalhos, que obrigaram os historiadores sociais a serepensarem no interior da diversidade das propostas existentese por desenvolver, para fazer avanar o dilogo que haviam

  • 36

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    provocado ao refutarem formas de ortodoxia, de esquematismose defenderem o conviver com diferentes concepes sobre osocial e seu estudo.

    Na tentativa de explicitar suas posies, j dizia que jamaispoderia encarar a Histria Social como uma outra especializaoou qualquer outra Histria com hfen porque seu objeto nuncapode ser tomado como em separado

    os aspectos sociais do ser humano no podem ser separados dosoutros aspectos do seu existir... dos modos pelos quais os homensconstroem o seu viver e se relacionam com o meio ambiente... nopodem ser separados de suas idias (por exemplo), uma vez quesuas relaes uns com os outros so expressas em linguagem oque implica conceitos, logo que abram a boca...10

    Esta ento continua ser umas das dificuldades enfrentadaspor estas abordagens. Alguns anos mais tarde, h que reconhecerque a Histria Social abriu caminhos para reunir historiadores dediversas abordagens e concepes, de maneira que dificilmentese poderia manter hoje a estreita correlao e at mesmoidentificao desta, apenas com o marxismo. No h dvida deque a Histria Social continua a ter dificuldades em tornar clarosos seus objetivos11. Ao incorporar para alm de seu interesseinicial, quase exclusivo com as classes trabalhadoras, outrostemas, como a sexualidade, as minorias, o lazer, a vida em famlia,os homens, as mulheres, a velhice, o urbano e o viver em cidade,os saberes e os odores e tantos outros, no gostaria de rotul-los apenas de novos temas, novos objetos ou novosproblemas, mas de salientar como ao ter de lidar, ao mesmotempo que enfrentasse questes metodolgicas especficas, comesta diversidade de objetos, a Histria Social vem contribuindopara alargar o campo de atividades consideradas passveis de

    10 HOBSBAWM, Eric. From Social History to the History of Society. In:Daedalus. Winter, 1971, p.20/45.

    11 ZELDIN, Theodore. Social History and Total History. In: Journal of SocialHistory. Winter, 1976, volume 10 (2), p. 237/245.

  • 37

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    serem estudadas, mas principalmente vem contribuindo para acompreenso e a articulao destas temticas no todo social.Ainda mais, por se tratar de objetos pouco estudados at aqui considervel a contribuio prestada no sentido descobrir ereinventar fontes, materiais, suportes no pensados peloshistoriadores, para dar substncia s suas anlises, explicaese concluses. E ainda que seus objetos sejam, s vezes, restritosou representem estudos monogrficos limitados, as questes eas indagaes colocadas pela Histria Social so sempre nosentido mais amplo e abrangente das experincias vivenciadas,seja na configurao das explicaes buscadas e seja no arranjodos resultados obtidos nas pesquisas.

    por a que se quer salientar o grande salto dado pela HistriaSocial ao se libertar, tambm, de outra estreita e exclusivavinculao com a histria sindical e a histria do movimentooperrio, principalmente da forma realizada em certos momentospela historiografia em geral e a brasileira em particular.

    De fato, a busca de uma tradio revolucionria para a classeoperria e seu movimento, bem como para as populaesoprimidas, que caracterizou muito da produo dos historiadoressociais de linha marxista, acabou distorcendo a experincia dosdiversos grupos formadores da classe. Em princpio por colocarmuita nfase na questo da presena ou ausncia da conscinciade classe na formao do proletariado. No caso brasileiro, porexemplo, contribuiu para relegar a segundo plano experinciasimportantes de atuao poltica de outros grupos que fizeramparte da fora de trabalho em formao, abandonandoperspectivas de estudo sobre as tradies do campo e da cidade,das experincias de escravos, etc., para no falar de outrosaspectos. Por uma concepo estreita do que seria o proletariadobrasileiro configurou-se o mito da historiografia de identificarfortemente o proletariado com o imigrante e da a perda de outroselementos da formao do mercado de trabalho assalariadourbano. Agravando tais omisses, o vis da adeso a uma fortelinha de determinismo e de acompanhamento da idia deprogresso, no caminho da formao social e da classe, impediuuma leitura mais abrangente e flexvel do passado. Seria urgente

  • 38

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    incorporar nas reflexes sobre o fazer-se das classestrabalhadoras, no Brasil, toda a gama de estudos realizados sobrea experincia de viver a escravido, o ser liberto, e tambm ascondies de existncia dos trabalhadores livres em situaesanteriores chegada dos imigrantes ou em regies onde aformao dos trabalhadores assalariados no sofreu o impactoto forte da presena do estrangeiro, do imigrante, como o casode So Paulo.

    Finalmente, ainda dentro desta linha de trabalho, apreocupao de acompanhar as realizaes apenas daslideranas e dos segmentos ativistas do proletariado,obscureceu o exame da vivncia de outros homens, mulherese crianas e negligenciou foras culturais importantes incluindo-se a a vida em famlia, os hbitos e costumes sociais dosdiversos segmentos da populao, a religiosidade e seu pesona formao das tradies, as festividades populares, asexperincias, enfim, do viver no campo e na cidade em umapoca de transformao e, sobretudo, os momentos maisimportantes da configurao do se definir a dominao social eseus desdobramentos, em construir outros elementos do viver,seja em hbitos de morar, de se alimentar, se divertir e expressarsuas peculiaridades, para construir novas estratgias de governodos indivduos, na formao do homem dcil e domesticadonecessrio ao mundo moderno, agora como fruto daracionalidade capitalista.

    Seria rico para a historiografia social brasileira que aincorporao do termo ausente em Marx, no dizer de Thompson a experincia social significasse uma retomada destesperodos, para trabalhar estas temticas relegadas aoesquecimento, para podermos repensar o fazer-se da classe nadireo de que

    os homens e mulheres tambm retornam como sujeitos, dentro destetermo no como sujeitos autnomos, indivduos livres, mas comopessoas que experimentam suas situaes e relaes produtivasdeterminadas como necessidades e interesses e comoantagonismos, e em seguida tratam esta experincia em sua

  • 39

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    conscincia e sua cultura das mais complexas maneiras e emseguida agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.12

    A riqueza do termo est na oportunidade que ele proporciona,por significar a possibilidade de explorar os pontos de disjunoentre os consagrados conceitos de estrutura e de processo,de uma outra perspectiva bem mais enriquecedora do quesimplesmente o da explorao do trabalho, pois

    ... verificamos que com experincia e cultura, estamos num pontode juno de outro tipo. Pois as pessoas no experimentam suaprpria experincia apenas como idia, no mbito do pensamento ede seus procedimentos, ou como instinto proletrio, etc.. Elastambm experimentam sua experincia como sentimento e lidamcom esses sentimentos na cultura, como normas, obrigaesfamiliares e de parentesco, e reciprocidades ou atravs de formasmais elaboradas, na arte ou nas convices religiosas. Essa metadeda cultura, e uma metade completa, pode ser descrita comoconscincia afetiva e moral... significa dizer que toda contradio um conflito, tanto quanto um conflito de interesse; que em cadanecessidade h um afeto, ou vontade, a caminho de se transformarnum dever e vice-versa; que toda luta de classes ao mesmo tempouma luta acerca de valores...13

    Por isto, mesmo no sendo a histria sem poltica, quandose distingue da histria econmica, poltica ou diplomtica, aHistria Social acaba lidando com objetos que no so tratadosem outras especializaes, ou o so apenas secundariamente,como as minorias, a famlia, os migrantes, a vida cotidiana daclasse trabalhadora, a demografia, a mobilidade social, a histriaurbana, etc. Isto significa reconhecer sobretudo que ossentimentos e os valores no so dados imponderveis que os

    12 THOMPSON, E.P. O termo Ausente: A Experincia. In: Misria da Teoria.Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1981, p. 180/201. Tambm a expressivaobra, agora finalmente traduzida, A Formao da Classe Operria Inglesa.So Paulo, Editora Paz e Terra, 1987.

    13 THOMPSON, E.P. A Misria da Teoria. P. 189/190.

  • 40

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    historiadores podem seguramente dispensar, com a reflexo deque, uma vez que no so susceptveis de medida, significamapenas questes de satisfao humana. Ao contrrio, representaexatamente valorizar estas reflexes pela importncia queassumem na discusso da mudana social, principalmente aquesto da moral cujo silncio em Marx virou represso paraos marxistas, que parecem no perceber que explorar o campodas contradies nos colocar, sempre, diante das lutas entreprojetos alternativos de organizar tambm os valres do social.

    Portanto, mais que abrigar e descobrir temas novos, a HistriaSocial representa a rebeldia de alguns historiadores em sedeixarem limitar por definies de Histria Social como a Histriacom a poltica deixada de lado, ou a viso residual de que suaspreocupaes so aquelas no incorporadas por outrasespecializaes. Por isto se pode considerar como positiva arebeldia destes historiadores contra a dominao da HistriaPoltica no sentido tradicional. Tambm positiva a reao doshistoriadores sociais contrria sua classificao como umahistria especial ou como uma disciplina em separado porque,nesta dimenso, preferimos consider-la no como uma parteda Histria, mas toda a Histria de um ponto de vista social14,para salientar o avano conseguido desde o Colquio de St. Cloud,em 1.965, quando Soboul definia que todo o campo da Histria,incluindo o mais tradicional depende da Histria Social; ou GeorgeDuby, ao dizer que Histria Social de fato toda a Histria15,sem maiores preocupaes tericas de situar seus estudos.

    E nesta parte da questo no se pode deixar de reconhecerque, por criticar a histria construda de cima para baixo, a HistriaSocial coloca nfase em outros sujeitos, que no reis, polticosou parlamentares, como capazes de fazer a Histria, sem

    14 PERKIN, Harold. Social History. In: Fritz Stern Varieties of History: FromVoltaire to the Present. New York, 1973, citado em James Henretta: SocialHistory as Lived and Written. In: American Historical Review, volume 85(n.5), 1979, p. 1299/1333.

    15 LARROUSE, E. A Histria Social: Problemas, Fontes e Mtodos. Lisboa,Editora Cosmos, 1967.

  • 41

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    transform-los outra vez em viles e novos heris. Maispreocupada com processos coletivos, com grupos voltados parao interesse geral, consegue trabalhar na direo dademocratizao da Histria podendo, em algumas variantes,enfatizar concepes que buscam explorar as contradies declasse como suposto de suas anlises. Neste ngulo ereconhecendo a diversidade nela contida, se afasta da idia deuma Histria Social dedicada ao suprfluo, obviedade e,portanto, uma histria leve em contraposio ao peso daHistria Econmica e Poltica e continua comprometida com umasuposio socialista, ou pelo menos anti-capitalista.

    Neste sentido importante perceber que as tentaivas dereduzir a Histria Social a uma Histria tpica ou especial, quandosua pretenso a de se colocar como capaz de abrangeraspectos gerais, para garantir uma abordagem mais ampla, semno entanto cair na armadilha das generalizaes superficiais,parece obedecer a uma estratgia de retalhar no apenas o socialmas, sobretudo, o trabalho intelectual, colocando cada um emuma caixa com seu respectivo rtulo para melhor organizar odesenvolver da cincia!

    So muitos os problemas tericos e metodolgicos que aHistria Social vem enfrentando. Falemos de alguns deles. Emprimeiro lugar a questo da teoria. Se ela est explicita e definidanos historiadores de inspirao marxista, em suas diversasdimenses e vertentes como tentamos esboar anteriormente,restando reconhecer as diferenas, as interpretaes, assuperaes, as crticas, esta questo no est to bemdimensionada para outras abordagens da Histria Social. Algunsautores da linhagem acentuam caractersticas sociais,tecnolgicas e da vida cultural em um ambiente especfico,adotando uma abordagem geogrfica e seus trabalhosrepresentam uma concepo de histria que ao mesmo tempomtodo, definio de objeto e interpretao. Entre os historiadoressociais franceses desta corrente, a coerncia conseguidaatravs do valorizar a quantificao e das noes de totalidade eestrutura. A quantificao usada para reduzir a margem daimponderabilidade, a totalidade como elemento de coeso de

  • 42

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    qualquer perodo histrico e o delinear das estruturas comogarantia de uma proposta de compreender e reconstruir acausalidade histrica. Sempre se reconhece o inclinar-se paraum determinismo social acentuado e uma crena de que a histria, pelo menos parcialmente, determinada por foras externas aohomem, mas no h um sitema referencial coerente para enfeixartais determinaes, seno a idia de que a totalidade significatodos os aspectos da vida, do clima cultura popular. O resultadodestas abordagens que muito se refora a idia de estabilidadee de continuidade das tradies e ainda permanece a questosempre levantada sobre esta corrente de onde est a teoria naEscola dos Anais16.

    Reconhecendo a importncia desta corrente na contestaoao positivismo e tambm na extenso e abrangncia dastemticas que se prope analisar, resta salientar a aproximaoque proporcionaram com as outras disciplinas do social como aetnologia, sociologia, a psicologia social, etc., quando sedispuseram a ir alm da Histria para enriquecer suasperpectivas17.

    No desenvolvimento da Histria das Mentalidades, comovertente muito difundida da Escola dos Anais, se pode caracteri-zar o desdobramento destas perspectivas e a passagem para aNova Histria Francesa. Considerando a importncia de identificarpontos de juno entre o indviduo e o coletivo, da longa duraoe o cotidiano, do intencional e o inconsciente, estes historiadoresdas mentalidades tm se preocupado com as heranas , astradies, as defasagens, as continuidades, assumindo que, nasestruturas mentais, as mudanas so lentas e vagarosas e, poristo mesmo, possveis de serem examinadas na longa durao.

    O estudo dos ritos, das cerimnias, das representaes edo imaginrio destas prticas vem colocando, quase que como

    16 HENRETTA, James. Op. Cit. P. 1295/1298.17 Um bom balano sobre a Escola dos Anais est em Fontana, J. L.

    |Asceno e Decadncia da Escola dos Anais. In: Histria e Idias. Porto,Editora Afrontamento, 1979, n.3 e n.4, p. 65/79.

  • 43

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    ponto principal destas abordagens, a inegvel contribuio quetm dado na extenso de nossas concepes tradicionais dedocumentos e fontes histricas, onde objetos de adorno, detrabalho, ritos, disposies nas cerimnias, etc. tm se transfor-mado em valiosos elementos de discusso das mentalidades.Outra vez a discusso terica parece passar ao largo. Por falarde uma mentalidade comum a todos parecem no reconheceras diferenciaes nas estruturas sociais ou em outras obras seconstata a tentativa de caracterizar as mentalidades comopeculiares a setores especficos. No se preocupam comquestes como: trata-se de uma mentalidade dominante? Devrias? Quando se desfaz? Quando se constri outra?18

    Depois de algumas discusses e crticas recprocas houvealgumas tentativas recentes de aproximao entre asconcepes e os trabalhos dos historiadores das mentalidadese dos autores ingleses preocupados com a cultura das classestrabalhadoras. Isto entretanto, parece difcil apesar das simpatiasmtuas. A fragilidade terica da histria das mentalidades e muitomais a forma como, acriticamente, incorporam conceitos dascincias sociais tais como tradicional e moderno, civilizao,irracionalidade e inconsciente e outros com tendncia aexplicaes funcionalistas tornam mais afastadas estas duasabordagens. bem verdade que os mais recentes trabalhos daNova Histria vm procurando dar maior consistncia s anlisesdas mentalidades mas, ainda assim, de alguma maneira elasflutuam no ar, por alguma dinmica interna da conscinciacoletiva, quando muito configurada a partir de perspectivas doestruturalismo francs19.

    18 LE GOFF, Jacques. As Mentalidades: uma histria ambgua. Novosobjetos. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S/A, 1976 e ANova Histria. Lisboa, Martins Fontes, 1983, p.11/39. Tambm com umaperspectiva crtica ver VOVELLE, Michel Introduo, Ideologias eMentalidades: um esclarecimento necessrio. In: Ideologias eMentalidades. So Paulo, Editora Brasiliense, 1987.

    19 GISMOND, Michael. The gift of Theory: a critique sur la histoire desmentalits. In: Social History volume 10, 1985, p. 211/230.

  • 44

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    A crtica mais profunda vai, portanto, na direo de que tambma histria das mentalidades no demonstra nenhuma preocupaocom a questo terica para fundamentar suas explicaes,confirmando suas estreitas afinidades com a escola dos Anais epagando tributo s perspectivas de encontrar um fator unificadorpara permitir compreender a essncia da histria, negando assima idia de processo, de movimento e de mudana.

    Retomando ento a questo da teoria queremos reafirmarprimeiro que, em nossa prtica da Histria Social, no se tratade buscar modelos elaborados e explicativos porqueconcordamos em que no h, nem pode haver nunca um sistemafinito20, ou seja, nenhuma teoria pode ser pensada como capazde dispensar a investigao emprica sobre a realidade, oucorreremos o risco de construir castelos na areia. Neste sentido,as formas de exame e leitura dos dados so to importantesquanto a construo da teoria e sempre ampliam as possibilidadescriativas desta construo. No se trata pois de introduzir de forauma reflexo que nada tem a ver com a realidade. E nemconcordamos em que a teoria seja algo pronto e acabadoesperando por ns para adot-la na forma de hipteses, modelos,etc. Por a teramos tambm de avanar para discutir, de formamais aprofundada, as tentativas que recusamos, de assegurar averdadeira teoria classificando-a como cientfica.

    As correntes tericas, nos lembra Samuel, s ganhamimportncia porque respondem, ou parecem responder a algumsilncio ou inquietao... assim por exemplo a popularidade doconceito de hegemonia est evidentemente relacionado com ovisvel crescimento dos poderes do estado21.

    Desta maneira, a teoria somente comea a ter valor, parans, se nos engajamos em um trabalho de construo terica,sem aceitar nada de olhos fechados, se nos tornarmosconscientes dos modos pelos quais as questes so construdas,se neste processo nos tornamos mais crticos sobre as

    20 THOMPSON: Op. cit. P.18521 SAMUEL, Raphael. Op. cit. p.63.

  • 45

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    categorias explicativas que usamos e mais conscios dosfundamentos filosficos da investigao histrica e dainterdependncia com outras formas de conhecimento22.

    Tambm por isto de importncia fundamental para a HistriaSocial a questo da periodizao. Se temos sido capazes deincorporar outras temticas do social, alargando com isto nossacompreenso, temos demonstrado, entretanto, uma dependnciaestreita em relao aos marcos tradicionais. Isto sem falar danecessidade que sentimos de demarcar acontecimentos eprocessos para podermos falar com mais tranquilidade do antese do depois, revelando resqucios de concepes queteoricamente condenamos, mas que parecem ainda estarpresentes em nossas anlises, em nossos programas e planosde ensino, em nossas aulas, etc.

    H que retomar, portanto, premissas e supostos de umcompromisso de construir o presente e assim ser capaz derepensar o tempo, no com os marcos j traados, masdescobrindo novas maneiras de delimitar nossos objetos, nossoscurrculos e programas e, sobretudo deixar claro que aperiodizao cristalizada na histria acontecida, dos programase currculos oficiais, podemos contrapor diferentes leituras doprocesso, que necessitam delimitar e marcar o tempo de acordocom suas propostas.

    E porque adotamos a idia de que o historiador em cada mo-mento de seu trabalho sempre um ser formado em valores sociaise que quando prope problemas e interroga as evidncias nopode e no quer se desvencilhar destes valores que consideramosimportante a discusso sobre os compromissos assumidos nopresente para explicitar estas posies e estes valores.

    IV -

    Quando conseguimos refletir que os conceitos dos quias

    22 History and Theory. Editorial da History Workshop Journal- Issue 6,Autumm, 1978.

  • 46

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    partimos no so conceitos, mas problemas e no problemasanalticos, mas movimentos histricos ainda no definidos creiopodermos atribuir um significado diferente proposta de se fazera Histria Social do Trabalho partindo de categorias como culturae experincia social da maneira que j discutimos anteriormenteaqui e em outros trabalhos.

    Se estamos falando de examinar a experincia social dostrabalhadores em todos os seus ngulos de existncia e de vida,para alm de apenas examinar seu movimento e organizaesou associaes polticas, isto significa querer examinar todo oseu modo de vida no campo das transformaes e mudanasque, cotidianamente, experimentam os trabalhadores em todosos aspectos do viver a dominao burguesa e capitalista. Noapenas as condies e padres de existncia material namoradia, na fbrica, no lazer, na alimentao, na religiosidade,etc. mas tambm no campo dos sentimentos e dos valores soexpropriados no dia-a-dia da dominao, a resistncia oferecidaneste processo e a necessidade de reconstruir e reinventar acultura a partir de sentimentos de perda de padres antesestabelecidos23.

    neste campo que queremos tambm redefinir nossasnoes de lutas de classes, para perceber que esta cultura nadamais do que o modo de vida das classes trabalhadoras e quea se define o campo de foras, em embates constantes, tornandoa cultura, assim entendida, o espao privilegiado para oentendimento das contradies colocadas pelo processo. E ointeresse nesta abordagem no passa por concepes dedescrever ou constatar como se desenvolve esta vida e sedesenrolam estas lutas, mas passa por tentar entender o comoe o por que isto acontece, recuperando sim sentimentos, valores,sensaes de perda e necessidade de reconstruo esobrevivncia para entender o constante fazer-se e refazer-sedas classes trabalhadoras. No estamos, pois, adotando ascategorias experincia social e cultura, nem como identificao

    23 THOMPSON, E.P. A Formao da Classe Operria. Volume II, op. cit.

  • 47

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    das manifestaes da superestrutura e nem moda de uma certaantropologia para significar apenas a descrio do modo de vida,quase sempre a vida material, os laos de parentesco, os hbitose os costumes.

    Segundo as concepes de Thompson e Willians,consideramos necessrio reconhecer a complexidade evariabilidade das foras que do forma e sentido ao cotidiano daluta de classe para podermos entender processos mais amplosde conscincia, opes, orientaes e direes tomadas pelostrabalhadores no seu viver, no como etapas necessrias esucessivas, mas para entender que neste construir da classe,nestas atividades e nestas possibilidades, que se definem osprocessos sociais, constitutivos que so, todos eles, de situaesespecficas e diferenciadas. S a podemos dar consistncia idia de que uma classe se define pelos prprios homens,segundo e como vivam sua prpria histria e, em ltima instnciaesta a nica definio possvel24.

    Falando destas perspectivas de compreenso creio que nosfaltam, na situao brasileira, estudos histricos com investigaoaprofundadas nestas vrias direes: do exame da religiosidadee das prticas religiosas para perceber, de um lado, comoinstitucionalmente se configuram a religio e a Igreja nainstrumentao do controle social, mas tambm a experinciade viver o contedo desta religiosidade e, da probreza e dosdespossudos, sobretudo para acompanharmos o processo emque se agrava o medo das classes perigosas25 tornandonecessrio separ-las das classes trabalhadoras, mas tambmpara acentuar como este processo est intimamente relacionadoao crescimento das cidades e todos os problemas sociais dadecorrentes; ainda no tema das cidades, o estudo das condiese da qualidade de vida, como sade, alimentao, transporte,seja no estudo das condies de moradia dos trabalhadores, seja

    24 THOMPSON, E.P. Op. cit. Prefcio. p. 12.25 CHEVALIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangereuses. Paris,

    Librarie Generale, 1978.

  • 48

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    tambm no estudo de seu arranjo, divises, objetos, etc. esobretudo nas questes da diviso do espao urbano, comocentros habitacionais, bairros, espaos para o lazer e o esporte,bem como o prprio desenrolar destas atividades, o rdio e ateleviso, o futebol, o jogo de cartas, os cinemas, os bares e osbotequins, as revistas, os folhetins, as novelas e outros espaosalternativos de divertimento, principalmente as festas populares,as quermesses, etc.; a questo da criminalidade e do crime paraacompanhar o processo de identificao e associao que faz opoder do protesto social com baderna, desordem, violncia ecrimes, podendo assim explicitar a estrita relao entrecriminalidade e organizao do mercado de trabalho, bem comoo surgimento e a burocratizao de instituties como a polcia eoutras desenvolvidas a partir da necessidade de vigiar e punir,como a penitenciria, a cadeia e o asilo26.

    Quando se fala, portanto, de experincia e nas contradiessociais em que ela se desenvolve, compreendendo todo o vivercomo cultura, ela no est pensada apenas na vida, mas tambmno trabalho e da falar-se de uma cultura de fbrica, por exemplo,para abarcar as prticas, as residncias, a disciplinarizao, oviver, as condies de explorao intensiva, as mobilizaes, asolidariedade, etc.

    Para finalizar, coloco discusso um problema queenfrentamos no estender nossas categorias e descobrir outrostemas, valorizados at pelos movimentos sociais dereinvindicao pelos equipamentos sociais e por nova qualidadede vida. Nesta descoberta parece que os historiadores da culturase encontram com a questo, j bastante discutida dentre osoutros cientistas sociais, e que se encontra bem no limiar destasinvestigaes ou mesmo na necessidade que sentimos de

    26 MELOSSI, Dario e Masimo Pavarini. Corcel y Facbrica: los origines delsistema penitenciario. Siglo XXI, Mxico Editora, 1980. STORCH, Robert.A polcia no cotidiano da vida inglesa. In: Revista Brasileira de Histria.Nmeros 8 e 9, ANPUH, So Paulo, Marco Zero, 1985, CRUZ , Heloisa deFaria Mercado e Polcia, So Paulo, 1890/1915. In: Revista Brasileirade Histria, nmero 14, Marco zero, ANPUH.

  • 49

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    politiz-las e socializ-las com o pblico, muitas vezes, objetodestas pesquisas. Afinal falamos das classes trabalhadoras oude algo mais abrangente? Quando falamos de cultura, comoenfrentar as concepes j existentes de cultura popular?Estaremos iniciando uma tentativa de produzir uma histriapopular? Ou uma histria do povo?

    Na Europa o descobrimento da cultura popular representourazes polticas que tinham a ver com os movimentos delibertao nacional significou motivaes nativistas para reviverculturas tradicionais, em oposio dominao estrangeira. Nocaso brasileiro, o nacional e o popular surgem como propostasde construo da cultura dos anos 50 e 60, com grande incentivodas esquerdas, com projetos prprios, que afinal marcaram osestudos sobre o tema e o perodo27.

    Em geral, as abordagens da questo da cultura popularpassam por algumas suposies bsicas que, segundo PeterBurke, se mostram bastante danosas aos estudos, pelos vciosque carregam como o pimitivismo para significar a idia de quecrenas, costumes, artefatos, canes, etc. foram transmitidasatravs dos anos, sem sofrer mudana alguma e significamtradies milenares, o que certamente uma suposio bastanteequivocada; o purismo para designar como popular tudo aquiloque tem origem no campo e produzido pelos camponeses; ocomunitarismo para considerar que o povo sempre criacoletivamente28. No difcil reconhecer estes vcios nas obrassobre o tema.

    De qualquer forma fica evidenciado o despreparo doshistoriadores para este debate. Carlo Ginzburg, que trabalha comtemticas dos sculos XVI/XVII, chama a ateno para a falta dedesenvolvimento no campo e para a necessidade de se

    27 CHAU, Marilena. O Nacional e o popular na cultura Brasileira. Seminrios.So Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

    28 BURKE, Peter. El Descubrimiento de la Cultura Popular. In: HistoriaPopular y Teoria Socialista p. 78/92 e tambm do mesmo autor:Revolution in Popular Culture. In: Revolution. R. Porter and N. Teid,Cambridge University Press, 1986.

  • 50

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    estabelecer novas tcnicas e para o problema da documentaoquando afirma a ambiguidade do conceito cultura popular. sclasses subalternas das sociedades pr-industriais atribudaora uma passiva adequao aos subprodutos culturaisdistribudos com generosidade pelas classes dominantes, orauma tcita proposta de valores, ao menos em parte autnomosem relao cultura destas classes, ora um estranhamentoabsoluto que se coloca at mesmo para alm, ou melhor, paraaqum da cultura. bem frutfera a hiptese formulada por Baktinde uma influncia recprocas entre a cultura das classessubalternas e a cultura dominante. Mas precisar os modos e ostempos dessa influncia significa enfrentar o problemas postopela documentao, que no caso da cultura popular , comodissemos, quase sempre indireta29.

    Para muitos autores, ento lidar, com o popular e o povopode significar ou a busca de uma cultura dominante, hegemnicade um lado, ou a cultura popular autntica de outro e, com isto,conseguem ambos obscurecer a vitalidade da cultura comoexpresso da experincia vivida no sentido de um duplomovimento de conteno e resistncia que ela carrega.

    Para perceber melhor estas questes h que acompanhar olento e prolongado processo de moralizao dos trabalhadores,a desmoralizao dos pobres e a reeducao do povo.Considerar que a rigor muitas destas lutas se desenvolveramlonge da lei, do poder e da autoridade e somente com oaparecimento das instituies repressoras, como a polcia,pincipalmente, que se pode acompanhar melhor este processode conteno/resistncia, pelo chamado problema das fontes.Fica a certeza de que no h cultura autnoma a ser procurada,que esteja fora do campo das foras da relao poder/dominao.

    Por mais problemas que os termo popular e povo noscoloquem, no h que abandonar a perspectiva de que a cultura

    29 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. So Paulo, Cia das Letras,1987 e tambm do mesmo autor: Os Andarilhos do Bem, So Paulo, Cia.Das Letras, 1988.

  • 51

    Histria & Perspectivas, Uberlndia (40): 27-51, jan.jun.2009

    se mostra um campo rico e fecundo para estudar as condiesde classe, principlamente se abandonarmos as concepessimplistas de manipulao para procurarmos sempre ascontradies, a desigualdade da luta, os propsitos de organizare reorganizar valores e educar o povo, para lidarmos ento coma cultura como campo de batalha onde estas lutas seconcretizam30.

    A questo est, portanto, em que no podemos nos esquecerdas relaes estreitas entre o popular e as classes, no apenaspara identificar unificaes ou hegemonias, ou manipulaes, masos pontos de luta, de contradio. inegvel, entretanto, queesta preocupao com o popular est intimamente associada,para ns, com as preocupaes do presente, no que diz respeitos alianas que queremos e devemos realizar na construo doprojeto de transformao. Os termos povo e popular sosempre difceis de serem tratados. Em seu nome se tem forjadograndes tentativas de definir projetos elaborados de dominaopara o bem do povo para conseguir o povo dcil, que semprediz sim ao poder. Mas no h que necessariamente ser assim.Se considerarmos o campo de foras contido na cultura do povoa tambm pode estar sendo construdo o caminho democrticopara o socialismo.

    30 HALL, Stuart. Notas sobre la Desconstrucion de la Popular. In: HistoriaPopular y Teoria Socialista. P. 93/110. Sobre o assunto, interessanteperceber a discusso no Brasil em Jos Leite Lopes. Cultura e IdentidadeOperria. Editora Marco Zero, 1987, UFRJ.