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DA CONSTRUÇÃO SOCIAL ÀS PRÁTICAS: (re) significação e incorporação da
economia solidária em uma cooperativa de produção1
Roberto Martins Mancini (PPGSoc-UFMA)
Resumo: Partindo de um caso empírico, uma cooperativa de produção localizada no
município de Açailândia (MA), criada por uma organização da sociedade civil com a
finalidade de evitar a (re)incidência de pessoas no chamado trabalho escravo
contemporâneo, através do oferecimento de uma alternativa acessível de ocupação
profissional e renda nos moldes da economia solidária, procuramos observar o
envolvimento desencadeado pelos cooperados envolvidos no empreendimento com os
princípios e modelo de trabalho proposto pela economia solidária. Neste panorama,
buscamos estabelecer uma correlação entre o processo de construção social da
economia solidária, que lhe proporcionou certo grau de objetivação, e o modo como
transcorrem seus princípios no âmbito das práticas locais. Deste modo, o ponto
fundamental da análise aqui desenvolvida é a investigação de duas questões: o processo
de (re)significação e incorporação dos princípios da economia solidária a partir da
realidade social e econômica dos agentes envolvidos no empreendimento, bem como a
natureza dos vínculos sociais que estabeleceram entre si. Através da observação direta e
da realização de entrevistas com os cooperados e organizadores do empreendimento, observou-se como estes, através de suas práticas e significações locais, incorporaram e
ressignificaram categorias exógenas como é o caso dos princípios e representações que
permeiam a ideia de economia solidária.
Palavras-chave: Economia solidária. Cooperativismo. Trabalho escravo
contemporâneo.
Introdução
O presente artigo propõe analisar a ressignificação e processo de incorporação
da economia solidária entre os agentes envolvidos (organizadores e cooperados) na
criação e manutenção de uma cooperativa de produção no município de Açailândia,
mesorregião oeste maranhense. Trata-se da Cooperativa para Dignidade do Maranhão
(CODIGMA), experiência produtiva dividida em três núcleos produtivos (artefatos de
madeira, artefatos de papel reciclado e carvão ecológico - de uso doméstico), que se
busca moldar pelos princípios da economia solidária, e que se constitui como caso
empírico da nossa pesquisa. A cooperativa está ligada a uma organização da sociedade
civil, o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH), que desde 1996
atua no desenvolvimento de esforços para a erradicação do chamado trabalho escravo
1Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN
2
contemporâneo2, a partir de ações voltadas ao suporte a denúncias, prevenção de
ocorrências e reinserção social de pessoas “regatadas”3 neste tipo de relação de
trabalho.
A Cooperativa em questão está inserida no eixo de ações praticadas pelo
CDVDH destinadas à “reinserção social” de trabalhadores “resgatados”, de modo que
estes não retornem às ocupações econômicas caracterizadas pela prática do trabalho
escravo. A experiência também atua na finalidade de evitar que trabalhadores não
“resgatados”, provenientes de famílias em situação econômica precária, cogitem o
trabalho escravo como uma opção de labor, oferecendo-lhes uma alternativa real de
trabalho e renda.
A forma como as particularidades do nosso caso relacionam-se com o modelo
de trabalho proposto da economia solidária, apresentaram-se como um dado de relevo.
O enraizamento da cooperativa com a questão do trabalho escravo contemporâneo
contribuiu no processo de (re) significação, operado tanto pelos organizadores quanto
pelos cooperados, dos princípios da economia solidária.
A economia solidária é o resultado de todo um processo de construção social
(o que implica também um processo intelectual) emergido, sobretudo, no cenário de
modificações econômicas desencadeadas partir dos anos 1980, sendo ao mesmo tempo
o veículo de uma série de representações acerca do mundo do trabalho. Tornou-se uma
referência polissêmica e portadora de múltiplos sentidos (GONÇALVES, 2008): uma
alternativa ao desemprego - opção em momentos de crise econômica (LIMA, 2004);
um discurso acerca da humanização do trabalho por conta da socialização dos meios de
2O “Trabalho escravo contemporâneo” – como é referido por autores (ESTERCI, 1994; MOURA, 2006)
e organizações que tratam da questão no Maranhão (CDVDH) e no Brasil (REPÓRTER BRASIL), e
mesmo pelo Estado brasileiro (como expresso em documentos oficiais como o “Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo” - 2003/2008) - é caracterizado, sobretudo, pela constituição de uma
dívida “fictícia” que o trabalhador contrai no local de trabalho pela compra de alimentos e/ou
equipamentos usados no serviço a preços superfaturados, resultando numa forma de exploração e
controle sobre a força de trabalho pelo “contratante”, acabando por manter, dessa forma, o trabalhador
imobilizado no seu local de trabalho enquanto a dívida não for saldada (MOURA, 2006); somando-se a
situações de condições insalubres e inadequadas de alojamento, alimentação, utilização de equipamentos
de trabalho e segurança, irregularidades na situação trabalhista, dentre outras tópicos observados pela
auditoria fiscal do trabalho durante a fiscalização. Em estados como Maranhão e Pará, as práticas mais
relacionadas ao trabalho escravo envolvem atividades em fazendas (pecuária) e carvoarias (produção de
lenhas para produção siderúrgica nos dois estados). Entre 2003 e 2011, Maranhão e Pará lideravam o
ranking de origem de trabalhadores resgatados no Brasil (CPT/MTE/MPT, 2013 apud CARVALHO DA
SILVA, 2013). No Brasil a prática é considerada crime, ratificada pelo artigo 149 do Código Penal
Brasileiro. 3Terminologia utilizada pelos órgãos responsáveis por fiscalizar a prática do trabalho escravo
contemporâneo, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Delegacia Regional do Trabalho (DRT),
“uma vez que as ações de fiscalização são consideradas de resgate de trabalhadores que se encontravam
em situação de trabalho escravo” (MOURA, 2006, p.14).
3
produção e do processo decisórios (autogestão) (GAIGER, 2003, 2007; SINGER, 2000;
2002); como uma economia – “a outra economia” – que materializa princípios
econômicos alternativos e que evidenciam os laços sociais de reciprocidade em relação
aos interesses economicistas individual (utilitários) (LAVILLE, 2002, 2009; LAVILLE
& GAIGER, 2009); e, pela voz dos mais auspiciosos, como o vetor de uma cosmovisão
socialista que entende a economia solidária como um exercício para autogestão, sendo
um ambiente pedagógico de reeducação coletiva, onde se aprenderiam os princípios de
uma nova lógica do trabalho (cooperativa), passível de se estender para toda a
sociedade (SINGER, 2000, 2002).
Neste contexto de construção social e intelectual da noção de economia
solidária, um caso empírico desperta algumas questões relativas à maneira como
membros de certa localidade apropriam-se e a redefinem a partir de suas características.
Isto porque, hoje em dia a economia solidária movimenta-se do espectro da definição e
legitimação estatal ao espaço das práticas ocorridas localmente, no que se
convencionou a chamar de empreendimentos econômicos solidários. Cosoante a esta
realidade sistêmica, por assim dizer, estruturamos a nossa problemática buscando
perceber como as características sistêmicas da economia solidária desdobram-se em um
nível micro: o processo de incorporação ou não incorporação dos princípios da
economia solidária, “objetivados” pelo processo de construção social, assim como o
processo de (re) significação destes princípios a partir da realidade social e econômica
dos agentes envolvidos no empreendimento.
O estudo dos vínculos sociais que constituem a urdidura de tais experiências
torna-se um problema relevante na oportunidade de investigar um caso empírico
exposto a este modelo de trabalho. A investigação empírica dos vínculos sociais tecidos
entre os cooperados nos interessa na medida em que, no Brasil, uma explicação de
verve economicista seja mais adequada à filiação e permanência num empreendimento
solidário, especialmente no caso brasileiro, onde tais iniciativas “estão intimamente
relacionadas a situações de exclusão socioeconômica e de precarização do trabalho”
(CASTANHEIRA & PEREIRA, 2008, p. 117). Contudo, sendo um modelo de trabalho
construído para promover a coletivização das ações, amplamente relacionado com uma
ideia de solidariedade que lhe propõe escapar das formas de racionalidade econômica
dominante, o estudo da natureza dos vínculos sociais estabelecidos entre os membros
torna-se salutar para a uma compreensão que vá além da economicista, e que possa
então, revelar (ou não) empiricamente a especificidade da economia solidária: em que
4
sentido estes vínculos operam no sentido de construir ou manter um bem coletivo, e em
que momento são solapados por interesses individuais e economicistas.
Efetivamente, a busca pelo processo de incorporação e (re) significação tanto
dos princípios da economia solidária como da própria solidariedade em si, nos leva as
práticas e representações produzidos pelos membros na convivência diária da
cooperativa. Isto nos incorre que estamos diante de dois polos de definições de uma
mesma situação: o conjunto de representações socialmente construídas, que cumprem
um papel na constituição de novas práticas sociais, através de categorias exógenas
próprias da doxa douta e do mundo social; e de outro lado, as significações e
representações produzidas pelos membros localmente. Emerson et al. (2010), diante
destas duas dimensões de definições, sugerem “perseguir” as significações produzidas
pelos membros (“nativos”), privilegiando seus próprios significados para explicar seus
eventos cotidianos, e assim evitar importar categorias e significados exógenos4,
percebendo como ambas as definições confluem para configurar o caso empírico em
questão.
As reflexões e dados aqui apresentados se baseiam em pesquisa bibliográfica,
sobretudo na literatura brasileira especializada em economia solidária, na teoria da
dádiva e economia plural e em discussões acerca do trabalho escravo contemporâneo
no Brasil e no Maranhão. A coleta de dados foi baseada na observação direta da
realidade pesquisada, na consulta a arquivos digitais cedidos pela administração da
cooperativa e pela realização de entrevistas semi-abertas com os cooperados e membros
do CDVDH.
1 Contexto de surgimento e construção social da economia solidária
A literatura sobre o que se convencionou a chamar, no Brasil, por economia
solidária, desenvolve-se através de trabalhos com enfoque ora militante, inserindo o
tema em projetos políticos reformistas revolucionários; ora institucional – analisando o
efeito de políticas públicas orientadas para o desenvolvimento local e comunitário
emolduradas pela economia solidária -; ora conduzem sua análise através da sociologia
e antropologia econômica, com foco nas possibilidades e limites econômicos e sociais
4Como Bourdieu (2011) propôs em sua concepção de senso prático, em que preferiu não refutar ou negar
inteiramente nem as abordagens objetivistas (estruturalistas) nem as subjetivistas (interpretativas), mas
extrair o que ambas tem de positivo, não nos lançamos em apropriar unilateralmente nem as categorias
exógenas (“estruturais”) da economia solidária, fruto da doxa douta dos cientistas e especialistas, nem
tampouco as significações produzidas localmente pelos membros.
5
das atividades que se associam ao projeto da economia solidária, evidenciando os
princípios de ação plurais e alternativos – em relação ao capitalismo - passíveis de
existir em empreendimentos solidários assim como nos aspectos simbólicos que tais
atividades envolvem; e aqueles outros, menos auspiciosos, que focalizam a economia
solidária como uma ampliação da precarização do trabalho, e atuante no processo de
(re)significação do trabalho no bojo das políticas estatais, atuando no sentido de
contribuir para legitimação da cultura ao auto-emprego e desvalorização do trabalho
formal (PEREIRA, 2011 apud MASCARELLO, 2013, p. 48).
Indo além de uma modalidade de atividade econômica, a economia solidária
penetrou em diferentes áreas de interesse ao torna-se pauta de agendas políticas
(municipais, estaduais e federais) e estudos acadêmicos (LECHAT, 2002; SANTANA
JR., 2009). Hoje, a noção de economia solidária é associada não somente as suas
manifestações concretas, através das atividades que lhe circunscrevem, ou aos estudos
acadêmicos que abordam suas diferentes nuances, mas a todo um aparato institucional
presente não somente na escala da sociedade civil (em sindicatos, organizações não
governamentais, entidades religiosas, universidades), mas, inclusive, no seio do
aparelho burocrático do Estado, lhe atribuindo uma espécie de consagração oficial
enquanto nova categoria de percepção do mundo social (LENOIR, 1996); neste caso,
como uma representação que invoca um processo de reinvenção e novas possibilidades
para a organização trabalho.
A forma como a economia solidária atualmente estrutura-se, nos leva
questionar em qual contexto sócio-economico e político, a economia solidária,
enquanto modelo e conjunto de representações sobre o trabalho, foi socialmente
produzida e através de quais meios foram operados o “trabalho social” de seu
reconhecimento e legitimação (BOURDIEU, 2001). Concernente a este contexto, é
necessário nos lançarmos numa “sociologia da construção da noção” (LENOIR, 1996),
observando alguns aspectos que foram determinantes no processo de construção social
da noção aqui em pauta.
I
O contexto de surgimento das idéias que vieram a conformar o que
entendemos por economia solidária, é apresentado por autores (LIMA, 2009;
POCHMANN, 2004) como iniciado, sobretudo, nos anos 1990, quando se intensificou
6
o surgimento de cooperativas devido ao conjunto de medidas que engendraram o
processo de reestruturação econômica, ocasionando no aumento do desemprego como
uma das conseqüências. Autores como Pochmann (2004), identificam de forma mais
estrita um nexo entre a crise de desenvolvimento do capital e as modificações no
modelo e divisão social do trabalho que passou a ser predominante a partir das décadas
de 1980 e, em especial, em 1990 no Brasil, e o processo inicial de construção da
economia solidária no país.
Os traços prementes que contribuíram para desenhar o cenário profícuo a
construção da economia solidária possuíam a finalidade de ajustar o capital nacional
aos novos padrões de acumulação global, tais como: adoção de políticas neoliberais,
que contribuíram para privatização do setor produtivo estatal, terceirização do setor
público, internacionalização de setores econômicos importantes (LIMA, 2009;
POCHMANN, 2004). Estas medidas obtiveram respostas negativas no segmento
organizado do trabalho5, o que se refletiu no agravamento do desemprego, contenção
de aberturas de novas vagas assalariadas formais, flexibilização da legislação de
trabalho e aumento do setor não organizado do trabalho, como no caso do trabalho
informal, e de contratos de trabalho que escapavam a formalidade do assalariamento,
característicos do novo modelo de acumulação do capital – subcontratação,
terceirização, trabalho parcial, etc. (ANTUNES, 2005).
Para além do recrudescimento do setor não organizado do trabalho e aumento
do desemprego, um dos efeitos da retração do mercado de trabalho formal foi o
aumento considerável de cooperativas urbanas no Brasil, entre os anos de 1990 e 2000
(CASTRO, 2011). No bojo do crescimento não organizado do trabalho, composto por
formas de trabalho, em geral precárias, desenvolvidas nos interstícios do capitalismo,
floresceu o germe do que se convencionou a chamar de economia solidária, a partir do
movimento e confluência de um “conjunto de militantes sociais críticos e engajados na
construção de alternativas de organização social e laboral no Brasil” (POCHMANN,
2004, p. 24). Tendo, em geral, como alvo populações em situação econômica precária,
desempregados e aqueles de ocupações degradantes, agentes diversificados –
religiosos, universitários, sindicalistas, etc. - estiveram envolvidos na criação de
5Na visão de Pochmann (2004) o “segmento organizado do trabalho” refere-se “aos empregos
assalariados regulares e relativamente homogêneos, gerados por empresas capitalistas” (p.23), e que
também contemplam o conjunto de direitos sociais e trabalhistas que lhe competem.
7
experiências de ocupação e renda, assim como a possibilidade de fomento e incubação
de tais alternativas.
Neste processo de construção, é elementar a presença do economista Paul
Singer. O embrião daquilo que viria ser economia solidária é expresso publicamente
pela primeira vez num artigo publicado por Singer no jornal Folha de São Paulo em
1996. Na ocasião, Singer estava envolvido com a campanha de Luiza Erudina a
prefeitura de São Paulo, onde elaborou - para a proposta de programa de governo - uma
alternativa ao desemprego em que os próprios trabalhadores se (re) inseririam no
mundo do trabalho; a sugestão do nome foi lançado por Aloizio Mercadante, candidato
a vice-prefeito na época (CASTRO, 2011). A solidariedade é inserida na proposta por
conta da conscientização de Singer que percebeu que nem sempre a transformação de
trabalhadores em microempresários será bem sucedida, pelo contrário. Neste aspecto, o
ideal seria inserir os novos microempresários num mesmo setor econômico,
conformado para possibilitar suas possibilidades de sucesso; onde a solidariedade
definir-se-ia pela cooperação dos empresários entre si na troca de serviços e produtos
mútua (CASTRO, 2011).
A partir deste momento Singer concebe a economia solidária como uma
estratégia de combate ao desemprego e exclusão social, e passa a desenvolver o
elemento central da sua proposta de trabalho, a saber, um modelo de trabalho fundado
na autogestão e que isso seria determinante para demarca a economia solidária
enquanto um modo de produção distinto do capitalismo, onde o laço fundamental dar-
se-ia com os marginalizados do mercado de trabalho (SINGER, 2000), e cujo pródromo
residiria nas lutas – contra o capitalismo industrial - empreendidas pelo movimento
operário nos meados do século XIX, sobretudo na experiência cooperativa de
“Rochdale” – de onde Singer retirou os princípios que viriam a nortear toda
organização do trabalho “solidário”. Segundo Castro (2011), a associação com o
movimento operário do século XIX garantiu um caráter transhistórico para a economia
solidária, e a descontextualizou de cenários históricos ou sociais específicos, e demarca
a mudança de uma simples proposta contra o desemprego para um meio revolucionário
(socialista) e estratégico de lutas para os trabalhadores.
No âmbito acadêmico a economia solidária foi abordada sob outras
perspectivas, distinta ou divergente da perspectiva militante e política de Singer.
Contudo, a amplitude da economia solidária enquanto discurso e prática não restringiu-
se somente ao espaço acadêmico, mas incorporou-se nos planos e projetos de diferentes
8
segmentos da sociedade civil, que com interesses e estratégias de ação diferentes,
contribui para configurar a multiplicidade de sentidos e significados que a economia
solidária possui atualmente (GONÇALVES, 2008).
No final da década de 1990 a economia solidária passa a integrar a agenda
política de governos estaduais, inicialmente no Rio Grande do Sul, posteriormente se
integrado na pauta de outros governos estaduais, municipais e, a partir de 2003,
também no governo federal, através da criação no âmbito do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES).
A criação da SENAES possibilitou a realização, entre os anos de 2005 e 2007,
em parceria com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), do primeiro
mapeamento nacional da economia solidária, identificando em todo país atividades
passíveis de serem relacionadas à categoria. Os resultados da extensa pesquisa
resultaram na origem do Sistema de Informações em Economia Solidária (SIES), que
corroborou em grande medida para o processo de construção social da noção de
economia solidária, na medida em que sua conformação estatística possibilitou seu
reconhecimento social para além daqueles que estavam diretamente envolvidos no
processo
Divulgar os dados era um objetivo do mapeamento, entendido como forma
de dar visibilidade à Economia Solidária. Fazer existir para todos os que
existiam apenas para os próprios agentes da economia solidária passa por
fazer chegar a boa nova também às pessoas que não fazem parte deste
mundo. (...). O Atlas foi apresentado naquele momento como prova material
da existência da economia solidária e possibilitou ver concretamente como
funcionavam e onde estavam os empreendimentos. (MOTTA, 2010, p. 180-
184 apud MASCARELLO, 2013, p. 53-54).
O processo de construção estatística da economia solidária possibilitou a
definição operada pela SENAES do que se considerar ou não como pertencente à
economia solidária (LECHAT, 2004). A definição do que viria a ser economia
solidária, seus principais fundamentos, foi elaborado e reelaborado por anos, sobretudo
por aqueles intelectuais que, na análise de Lechat (2004), são os atores centrais do que
chama de “campo da economia solidária”: Paul Singer, Luís Inácio Gaiger e Marcos
Arruda. Atores ao mesmo tempo do mundo acadêmico e com estrita relação com
organizações da sociedade civil, e com o engajamento geral na construção da economia
solidária enquanto prática e representação reconhecidas e institucionalizadas
socialmente.
Em rateio, nas definições que foram sendo elaboradas por estes autores, é
possível identificar certos princípios que seriam próprios aos empreendimentos
9
passíveis de receber a qualificação de “solidários”. Os princípios que estes
materializariam são identificados, sobretudo, pelo modo distinto (em
relação às empresas capitalistas comuns) pela qual se organiza o trabalho nos
empreendimentos que lhe estariam relacionados. Isto implica dizer que, na leitura de
alguns autores brasileiros (GAIGER, 2003, 2007; SINGER, 2000, 2002), a economia
solidária é entendida fundamentalmente pela: i) posse coletiva dos meios de produção;
ii) gestão democrática do empreendimento, isto é, o poder de decisão pertence aos
trabalhadores (autogestão); e, iii) repartição mais igualitária dos rendimentos do
trabalho, assim como do excedente (denominado “sobras”) através de critérios
aprovados por todos os membros; relacionando-se, ainda, com todo um esteio ético:
solidariedade com a população trabalhadora em geral, sobretudo com os mais pobres;
proteção ao meio ambiente; além de produzir serviços e produtos sócio-políticamente
atinentes (essenciais para a população pobre e que possibilite o desenvolvimento local e
comunitário). (LECHAT, 2004).
É possível sintetizarmos esse processo de construção e reconhecimento social
da economia solidária, através das balizas desenvolvidas por Lenoir (1996) em sua
análise da construção dos “problemas sociais”, em sua proposta de “sociologia da
construção da noção”. Por mais que a economia solidária não se evidencie enquanto um
“problema social”, mas como uma espécie de alternativa e/ou resposta, o foco de
Lenoir era, antes de tudo, nas “categorias que servem de base para a construção da
realidade social e que, por conseguinte, se apresentam diante do sociólogo, [e que] são
o resultado de lutas” (p.105). A economia solidária antes de referir-se a um conjunto
de práticas que ganharam impulso a partir dos anos 1990 refere-se a representações e
categorias de percepção – de determinadas modificações – do mundo do trabalho.
Consoante a tal processo, a economia solidária tornou-se tema de
investigações acadêmicas, sobretudo nas áreas da sociologia, economia e
administração. No entanto, considerar a economia solidária um datum bruto, é ignorar
o seu dinâmico processo de construção através da articulação de diferentes segmentos
da sociedade civil e do estado; ocorrência esta já assinalada em Gaiger (2012) e Lechat
(2004).
Bourdieu (2001), ao propor um processo de objetivação do objeto que tomamos
por objeto, reforça a consideração de Lenoir (1996) sobre o trabalho sociológico, que
“não poderia consistir em registrar os dados construídos segundo categorias que são o
produto de um trabalho social” (p.75). É neste ponto que, seguindo as etapas gerais de
10
construção de uma nova categoria ou representação do mundo social demarcadas por
Lenoir, que podemos melhor compreender a economia solidária no âmbito deste
processo de construção social, assim como a conformação do seu “campo”.
Seriam três etapas fundamentais: a) As transformações que afetam a vida
cotidiana dos indivíduos ocasionada por transformações em aspecto(s) da sociedade; b)
um “trabalho social” que envolve o reconhecimento – que implica em tornar visível,
digna de atenção, a “ação de grupos socialmente interessados em produzir uma nova
categoria de percepção do mundo social a fim de agirem sobre o mesmo” (p.84) – e
legitimação, que envolve o processo de promoção e imposição da questão na esfera
pública; c) a última etapa refere-se à institucionalização do problema; o que significa
que o “problema foi colocado e resolvido ao ponto de torná-las evidentes para todos”
(p. 95). É o momento em que o problema já foi discutido publicamente e direcionado a
uma solução, neste caso, materializada através de instituições ao nível estatal. É quando
também as categorias em jogo são imobilizadas e fixadas e tornadas evidente para
todos.
Observando os aspectos gerais de construção social da economia solidária,
anteriormente apontados, é possível identificar estas três etapas da seguinte forma:
i) as transformações nas estruturas econômicas ocasionando no desemprego e
modificações nas relações de trabalho correspondem ao primeiro estágio elencado;
ii) todo processo de formulação teórica (a organização de obras voltadas para
o tema, em geral conjunta, inclusive no caso de dicionários destinados a explicitar
verbetes relacionados à temática6, constituem um importante aspecto da construção
teórica da noção); formulação política e propaganda da economia solidária por
diferentes autores (sobretudo nos três aqui mencionados), além da presença do debate
nas mais diferentes reuniões, comissões, fóruns, na constituição de redes de
pesquisadores, a nível nacional e mesmo internacional, a fim de debater sobre as
práticas da “nova economia” e trocar experiências acerca das diferentes realidades
nacionais; a apreensão de diferentes organizações da sociedade civil da noção e prática
proposta pela economia solidária e dentre outras medidas que contribuíram para a sua
visualização e reconhecimento no espaço público;
6 Como o livro A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego, organizado
por Paul Singer e André de Souza, e o caso do dicionário A outra economia, organizado por Antonio
David Cattani e Luís Inácio Gaiger - uma referência para o estudo da temática. Dentre outras
publicações. Cf. Lechat (2004).
11
iii) a terceira e última etapa relaciona-se com o processo de legitimação estatal
e institucionalização da economia solidária, quando estava passa a ser política pública
em escala federal, estadual e municipal, contando inclusive com secretárias e setores da
gestão pública direcionada a sua difusão e desenvolvimento.
O que é possível perceber é que a forma como estes autores construíram a
economia solidária reverberou na reconfiguração da realidade socioeconômica e
política. Tal ocorrência não parece ser um fato isolado. Nas ciências sociais o
conhecimento produzido possui uma maior probabilidade de transformar o seu próprio
objeto, pois a própria prática é o objeto da teoria (GIDDENS, 2009). Lechat (2004) faz
constatação semelhante ao observar a produção e trajetória intelectual e militante dos
autores anteriormente mencionados:
vimos o quanto essas representações da realidade ajudaram na constituição
e a transformação desta realidade, a tal ponto que em certos momentos estas
representações aparecem como sendo a própria realidade. É nisto que
consiste, em parte, a participação destes intelectuais na construção do campo
da economia solidária no Brasil e na sua transformação num movimento
social (p. 290).
O processo de construção social, combinando utopia e realidade concomitante a
uma postura entre os seus principais atores - em maior ou menor medida - contra a
lógica econômica dominante (LECHAT, 2004), resultou em um grau de objetivação da
economia solidária. Seus fundamentos, por sua vez, estão, em certo sentido, pré-
fabricados antes de serem incorporados em uma localidade específica. Um caso
empírico pode demonstrar como uma comunidade de trabalho específica7 não somente
incorpora (ou não) os princípios “objetivados” da economia solidária, mas (re)
significam em consonância as suas peculiaridades sociais, culturais e econômicas.
2 Tópicos recorrentes em economia solidária
A economia solidária vem suscitando inúmeros debates em diferentes partes
do mundo nos últimos anos. No Brasil, o debate floresceu nos anos 1990, quando se
intensificou o surgimento de cooperativas devido ao conjunto de medidas que
engendraram o processo de reestruturação econômica, ocasionando no aumento do
desemprego como uma das consequências (LIMA, 2009). Entretanto, as finalidades que
envolvem a criação de cooperativas - nos dias de hoje - vão desde a criação de
alternativas ao desemprego a empreendimentos organizados visando o rebaixamento de
7 Uma comunidade de trabalho no sentido de que os vínculos (ou laços) sociais de reciprocidade entre os
membros co-determina a racionalidade econômica (GAIGER, 2007).
12
custos de empresas (via terceirização) ou empreendimentos organizados por
trabalhadores e voltados para o mercado, ou mesmo como “veículos” de propostas
políticas (enquadrando a economia solidária em agendas políticas que buscam o
socialismo ou uma forma de produzir alternativa ao capitalismo), e formas de geração
de trabalho e renda como possibilidade à inclusão social de pessoas em situação
econômica precária - geralmente capitaneado por ONG’s, movimentos sociais,
programas governamentais e organizações como a Cáritas Brasileira (LIMA, 2009).
Os termos atribuídos às atividades relacionadas ao que se chama de economia
solidária, no caso brasileiro – nos seus diversos formatos jurídicos: cooperativas,
associações, clubes de trocas, fábricas recuperadas em processo falimentar, etc. -, em
outras partes do mundo correspondem a termos como economia popular, economia
popular solidária, terceiro setor, economia plural, serviços de proximidade, e etc.
(ICAZA&TIRIBA, 2009; LAVILLE, 2009; LECHAT, 2002); sendo a economia
popular mais própria dos Países do Sul, com atividades econômicas destinadas a
subsistência, onde a América Latina seria seu espaço de desenvolvimento, e os serviços
de proximidade, próprios dos Países do Norte (experiência europeia) – historicamente
amparados pela forte proteção social que caracterizou o chamado “Estado
providência” e a “sociedade salarial” que lhe estava implicada-, voltada para a
expansão e facilidade de acesso a serviços diversos (LAVILLE, 2009).
De todo modo, há um chão comum que subjaz a todos estes termos que reside
na busca de uma outra economia, na possibilidade de materialização de princípios
alternativos à economia capitalista predominante.
Por trás da diversidade de conceitos que visam a instituir novos modos de
organização do trabalho e da produção – economia social, economia de
proximidade, economia solidária ou de solidariedade, socioeconomia
solidária, economia social, humanoeconomia, economia popular, economia
do trabalho, economia do trabalho emancipado, colaboração solidária –
existe uma busca comum de se recuperar o sentido original do vocábulo
economia, que em grego significa a gestão, o cuidado da casa. (ARRUDA,
2003, p. 234 apud IASKIO, 2006, p. 122)
O elemento basilar destas atividades - pressupõe-se - é o da solidariedade; em
contraposição ao homo oeconomicus utilitarista, “não socializado, onisciente e movido
unicamente pela busca do ganho máximo” (STEINER, 2006, p. 3), o arquétipo de
agente econômico próprio da economia de mercado capitalista - tal como é entendido
13
pela economia clássica e neoclássica-, estas atividades proporcionariam um laço social8
de reciprocidade que sustentam as suas relações de cooperação. Isto quer dizer que
existe uma reciprocidade de atos e interesses entre os membros que se manifesta,
sobretudo, através de ações voluntárias e gratuitas, que dão suporte a associação
voluntária (LÉVESQUE, 2009). Contudo, na literatura brasileira sobre economia
solidária, considera-se o elemento da solidariedade como resultado da materialização
dos princípios acima citados, deixando a dimensão da investigação dos laços sociais de
lado:
Essas atividades apresentam em comum a primazia da solidariedade sobre o
interesse individual e o ganho material, o que se expressa mediante a
socialização dos recursos produtivos e a adoção de critérios igualitários
(LAVILLE & GAIGER, 2009, p.162).
A economia solidária, por conta desta sua “racionalidade específica”
(GAIGER, 2007) de princípios, desperta dois tipos de posturas acerca dos seus efeitos
sociais e econômicos: uma crítica e outra utópica. Enquanto existem autores que
enfatizam o papel atenuador e de alternativa ao desemprego em momentos de crise
econômica que as cooperativas, por exemplo, incorporam (LIMA, 2004), restritas a
atuar nos interstícios do capitalismo, existem outros, mais auspiciosos, que enquadram
a economia solidária como o ponto nevrálgico para a construção de uma sociedade
socialista, como é o caso de autores de verve marxista como Singer (2000, 2002) e
Nuñez (1998). Para Paul Singer, a economia solidária representa a possibilidade da
superação gradual do capital, sendo uma oportunidade real dos trabalhadores
praticarem a autogestão, e (re) socializarem-se numa nova prática de relação com o
mundo do trabalho; pois a economia solidária comportaria os germes de um modo de
produção (socialista).
Um tópico cadente na literatura especializada em economia solidária refere-se à
relação que os empreendimentos que lhe circunscrevem desenvolvem com o mercado
capitalista (majoritário). O modo predominante de se produzir para o mercado “tem
sido a produção capitalista que implica trabalho assalariado e propriedade privada (e
alheia ao trabalhador) dos meios de produção” (TAUILE, 2002, p.110). Não estando
estabilizada a sua própria rede de trocas (ou redes solidárias) como uma forma de
resistir às pressões externas do ambiente econômico (e assim, conservar as suas
particularidades), os empreendimentos econômicos solidários, caso estimem a sua
8Entendemos “laço social” tal como postulou Grossetti (2009, p.60):
“Um conhecimento e um compromisso recíproco fundados nas interações que dão lugar a formas
específicas de confiança entre os companheiros”.
14
sobrevivência enquanto empresa, inserem-se no mercado capitalista e passam a
concorrer com outras empresas que escapam ao “modelo solidário”, e assim “estão
sujeitos aos efeitos da lógica de acumulação e às regras de intercâmbio imposta ao
conjunto dos agentes econômicos” (GAIGER, 2003, p. 201).
Nos últimos anos a economia solidária tornou-se objeto de análise sociológica
através do ramo da sociologia econômica, cujo projeto maior é o estudo dos fatos
econômicos considerando a dimensão das relações sociais que lhes circunscrevem e
ampliando analiticamente a dimensão do comportamento egoísta do agente econômico
(SWEDBERG, 2003 apud STEINER, 2006, p. 1). Este projeto corresponde às
atividades atribuídas à economia solidária que, em geral, estão relacionadas a uma
pluralidade de princípios econômicos, como é o caso da reciprocidade (os demais são
redistribuição e troca), que implica “na relação estabelecida entre grupos ou pessoas
graças à prestação de serviços que só ganha sentido pela vontade das partes
interessadas em estabelecer um laço social” (LAVILLE, 2002, p.29-30).
Ao lado da pluralidade de princípios econômicos identifica-se outra dimensão
das atividades que a economia solidária comportaria – o que conformaria uma dupla
dimensão -, que do mesmo modo amplia os fenômenos econômicos para além da forma
como é concebido pela análise econômica (neo) clássica: a dimensão (sócio) política
(LAVILLE, 2009, 2002). As manifestações da economia solidária representariam uma
espécie de liame social, corporificado numa tomada de posição da sociedade civil
atuando na construção de atividades que não teriam sido concebidas pelo mercado ou
estado, originando os “serviços de proximidade”, muito próprio dos “Países do Norte”
(idem, 2002).
No caso brasileiro, no liame social voluntário, próprio da sociedade civil, há
uma forte atuação de organizações, como é o caso de sindicatos - como a Agência de
Desenvolvimento Solidário (ADS) da Central Única de Trabalhadores (CUT) -, das
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP`s) instaladas em algumas
universidades, secretarias municipais ou estaduais que criam setores específicos para
estes tipos de atividades (LECHAT, 2002; LIMA, 2004), e mesmo a Cáritas Brasileira,
entidade ligada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – que apoia
grupos de “economia popular e solidária” com a finalidade de promover emancipação
social e econômica de comunidades em situação econômica precária. Compartilhando a
definição de economia solidária institucionalizada socialmente, atuam no intuito de
15
fomentar e fornecer suporte para empreendimentos que se propõe, de alguma forma,
receber a qualificação de “solidários”.
3 Á procura de práticas e vínculos solidários
Iniciativas de economia solidária vêm sendo reconhecidas como “formas
contemporâneas de solidariedade” (GAIGER, 2012; FRANÇA FILHO, 2002). A
investigação destas novas solidariedades ancoradas em práticas permite valorizar o
espaço efetivo onde estas transcorrem.
Azais (2009) refere-se às “práticas solidárias”9. Tais práticas operariam no
sentido de gerar não somente bens e serviços, mas também vínculo social. Este tipo de
prática reinseriria a “dimensão relacional” na atividade econômica, “combinando
engajamento social a iniciativa econômica” (FONTAINE & GIRARD apud AZAIS, p.
52). Desse modo, as práticas solidárias - sempre combinadas às representações e
significações - produzem vínculo social no momento mesmo da produção de bens e
serviços por e entre agentes. Nesse ponto a teoria da dádiva contribui para o
aprofundamento empírico e teórico das investigações acerca da natureza dos vínculos
sociais circunscritos a experiências de economia solidária.
Os delineamentos teóricos da teoria da dádiva foram construídos, em grande
medida, pelo Movimento Antiutilitarista em Ciências Sociais (M.A.U.S.S) escola
francesa filiada a tradição teórica de Marcel Mauss. Fundada em 1981, o M.A.U.S.S,
tinha como fundamento a crítica a todo tipo de economicismo, isto é, a tendência de
encarar o homem como sendo, em primeiro plano, um homo oeconomicus, pautado em
ações “utilitaristas”. O antiutilitarismo deste movimento reside na crítica à forma de
pensamento que se tornou hegemônica na ciência econômica – sobretudo em suas
vertentes clássica e neoclássica-, paradigmática nas Ciências Sociais através do
paradigma da escolha racional (Ractional Action Theory – RAT) e mesmo em políticas
econômicas praticadas por Estados (neoliberalismo) (GODBOUT, 2002).
A fundação teórica fulcral do antiutilitarismo encontra-se no célebre Ensaio
sobre a Dádiva, publicado em 1923-24 por Marcel Mauss. O aspecto fundamental
descoberto por Mauss (2003) foi a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir,
9Azais (2009), apoiando-se na definição dicionarizada e de Fontaine & Girard, define prática como “toda
atividade em geral, e principalmente aquela que implementa os princípios de uma arte ou de uma ciência
(...) uma maneira de atuar, um procedimento (...)” (p.50).
16
identificada como um dos fundamentos da vida social de sociedades primevas. A
tríplice obrigação representa uma circulação de reciprocidades (incorporadas em bens,
serviços, rituais, etc.) entre “pessoas morais” (tribos, famílias, etc.) que consiste em
rivalizar (de maneira agonística ou não) níveis de generosidade para com o outro. Neste
aspecto, o que Mauss descobriu, de fato, foi um operador sociológico que engendra
uma específica forma de relacionamento humano, de laço social, fora do âmbito do
contrato ou das trocas mercantis.
A presença do dom – e dos laços que gera – em tempos mais recentes, é
colocado por Mauss: ainda subsiste entre nós, em certos costumes e tradições, a
obrigação (ao mesmo tempo uma liberdade) de retribuir ou dar. O sociólogo francês
Alain Caillé relaciona a dádiva à ação associativa em geral, definindo-a como o
“oferecimento aos outros de um bem ou serviço sem garantia que haverá retribuição,
mas com esperança de que ocorrerá correspondência, situação que pode estabelecer
relações de aliança e de amizade” (CAILLÉ, 2009b, p.103).
A dádiva deve ser entendida como uma tipologia da ação que tenta fugir do
reducionismo analítico explorando diferentes matizes da ação. A dádiva não pode ser
entendida sem uma dimensão simbólica: a ação possui reverberações simbólicas no
vínculo que inicia e mantém; seja confiança, prestígio, lealdade, ou qualquer outro
simbolismo que resgata a noção maussiana de “hau” (do “espírito da coisa”). Enquanto
tipologia da ação, a dádiva se propõe uma teoria pluridimensional (CAILLÉ, 2002b),
comportando quatro móbeis de ação: obrigação-liberdade e interesse (por si)-
desinteresse (interesse pelos outros). O oferecimento da dádiva demonstra uma
disposição em se tomar parte do jogo da associação e da aliança (CAILLÈ, 2002),
intercalando-se entre a manutenção de um endividamento e a liberdade que o doador
pode colocar em ação para atenuar o peso da obrigação de retribuir por parte do
donatário.
Na compreensão de ações associativas a teoria da dádiva possibilita a
compreensão das sociabilidades primária e secundária. Tal aspecto relaciona-se com as
chamadas novas formas de solidariedade que se revestem de uma forma associativa em
prol da resolução de certas problemáticas locais (FRANÇA FILHO, 2002). Estas novas
formas desenvolvem-se na interface da sociabilidade tradicional, própria de um
comunitarismo herdado, emoldurado por relações personalizadas, e da sociabilidade
exigida pela sociedade contratual, onde predomina as funções impessoais. Entretanto,
tais formas não são como as comunidades tradicionais onde predomina a sociabilidade
17
primária (como uma família ou vizinhança), elas possuem “um registro do tipo
comunitário, no sentido em que este repousa em um princípio de socialização ativa,
deliberada, facultativa e revogável” (CAILLÉ, 2002b, p.197). É o que Godbout (apud
CAILLÉ, 2009) denomina de “dádiva entre estranhos” e Caillé (2002b) de “espaços
públicos primários (ou privados)”.
Esta forma de solidariedade fincada numa associação, na escolha e construção
de um bem comum, facultado, e não imposto pelo costume (FRANÇA FILHO, 2002);
implica em interconhecimento e reciprocidade entre os participantes. Uma das formas
de solidariedade implica em reciprocidade (LECHAT, 2004), neste caso, no
compartilhamento de interesses que resulta na construção conjunta de um bem coletivo
através de vínculos sociais (democráticos) efetivos10
. Este tipo de solidariedade
desenrola-se entre iguais, e corresponde ao que Laville (2001) designa por
“solidariedade democrática”, contrapondo-se a uma “solidariedade filantrópica”,
ocorrida entre desiguais, que coloca a solidariedade num viés caritativo, beneficente,
unilateral, de preservação da paz social e alívio dos pobres.
4 A Cooperativa para Dignidade do Maranhão – CODIGMA: gênese e trajetória
Desde meados do século XIX, socialistas como Louis Blanc e Ferdinand
Lassalle enxergavam no cooperativismo a possibilidade dos trabalhadores (operários,
artífices e camponeses) sobrepujarem as condições de vida e trabalho compelidas pelo
capitalismo (HENDERSON, 1979). De lá pra cá, a economia solidária esteve sempre
muito cogitada como uma opção de superação do capitalismo e, no caso de não chegar
a tanto, tornar-se ao menos uma forma social de produção distinta daquelas encontradas
sob o capital (GAIGER, 2003; SINGER, 2000).
Os germes do projeto da CODIGMA encontram-se em 2007, quando foram
aplicados pelo CDVDH questionários nos bairros de Açailândia11
que, na sua
experiência, possuíam uma maior frequência de pessoas envolvidas com o trabalho
10O que nos leva de encontro a noção de economia plural (LAVILLE, 2002; 2009), entendida como uma
economia que promove a hibridação entre recursos e princípios de diferentes tipos de economia: recurso
mercantil e princípio do mercado (venda ou troca de serviços e/ou produtos), recurso não mercantil e
princípio da redistribuição (recursos angariados através dos poderes públicos e parapúblicos) e recursos
não-mercantil e não-monetário e princípio da reciprocidade (ações de voluntariedade e gratuidade que
dão consistência ao vínculo associativo). A voluntariedade em manter o vínculo social, a gratuidade nas
ações dos membros pode funcionar como um elemento recursivo que atuam no sentido de manter a
comunidade de trabalho acima de tudo. Autores como Laville, Gaiger e França Filho identificam tal
pluralidade de princípios de ação como um dos traços de empreendimentos solidários. 11Pesquisa realizada em parceira com o Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho e Sociedade (GEPTS) da
Universidade Federal do Maranhão.
18
escravo. De um universo de 428 famílias investigadas, a equipe do CDVDH identificou
100 pessoas - selecionados de acordo com o nível da renda, se provinham de trabalho
escravo (critério predominante no processo de seleção) ou se tinham algum parente
envolvido com este tipo de prática e, alguns que não tinham passagem pelo trabalho
escravo, mas, na visão dos agentes do CDVDH, estavam em “risco” de incidir, pois não
possuíam inserção formal no mercado de trabalho. Destas 100 pessoas, foram
destacadas 40, que foram os primeiros cooperados.
A finalidade do projeto da CODIGMA consiste em ser uma alternativa de
trabalho e renda para desempregados em situação econômica precária, embora sem a
verve anticapitalista muito encontrada no movimento da economia solidária12
. O
objetivo do CDVDH ao criar um empreendimento solidário é colocá-lo no bojo de
ações de combate a uma forma específica de relação de trabalho, de erradicá-la, pois
nela identificam o ultraje à dignidade e o desrespeito à condição de humanidade dos
trabalhadores envolvidos neste tipo de prática: o chamado trabalho escravo
contemporâneo.
A expectativa para uma cooperativa balizada pelos princípios da economia
solidária, neste caso, é proporcionar tais condições de trabalho e humanidade solapadas
pelas relações de trabalho usualmente encontradas em ocupações relacionadas ao
trabalho escravo contemporâneo. É todo um processo de ressignificação do sentido da
economia solidária operada através dos interesses estratégicos dos membros do
CDVDH, a partir de uma conjuntura social e econômica encontrada no oeste
maranhense; muito embora, geralmente na América latina o conceito de economia
solidária refira-se a experiências de geração de trabalho e renda que possibilitam o
aumento da qualidade vida e participação cidadã (GAIGER, 2012).
A CODIGMA possui três núcleos produtivos: o núcleo de produção de
artefatos de madeira, o núcleo de produção de carvão ecológico, ambos localizados no
mesmo bairro (Vila Ildemar), e o núcleo de produção de artefatos de papel reciclado
localizado num outro (Vila Bom Jardim). Ambos os bairros possuem considerável
número de famílias em situação econômica precária – sendo um dado recorrente,
segundo informações do CDVDH, trabalhadores resgatados em situação de trabalho
escravo provenientes de Açailândia, residir nestes bairros.
12Mesmo porque, a maior parte dos seus cooperados nunca estiveram inseridos numa relação formal de
trabalho, o que certamente prejudica o fomento de uma “mentalidade crítica” diante das relações de
trabalho sob o capitalismo e/ou dos desdobramentos que a crise do mundo do trabalho iniciado na década
de 1970 trouxe para estas mesmas relações.
19
Por estes núcleos de produção estão distribuídos 16 cooperados: 5 no núcleo
de produção de carvão ecológico, 7 no de produção de artefatos de madeira e 4 no de
produção de artefatos de papel reciclado. Cada um desses núcleos possui seus próprios
cooperados e uma equipe de suporte específica (monitores). Operacionalmente, a
função dos monitores é estabelecer uma relação direta com os clientes e fornecedores e
controlar a gestão interna de cada núcleo produtivo (matéria prima, produção, vendas,
despesas, cooperados, finanças, cuidados com o imóvel e máquinas). A cooperativa
possui ainda um coordenador geral, que se enquadra na mesma perspectiva dos
monitores: gerenciar e executar um plano estratégico de negócios, a fim de garantir a
sustentação do empreendimento. Esta equipe gerencial é mantida pelo CDVDH, que
angaria recursos – através da apresentação do projeto da cooperativa – de fontes
diversas (como PETROBRAS e Catholic Relief Services - entidade norte-americana
ligada a Igreja Católica e filiada a Cáritas Internacional, e que também apóia outras
ações do CDVDH), com a finalidade de proporcionar estabilidade financeira a
CODIGMA.
Quando se trata de uma cooperativa formada por/para populações carentes (de
baixa renda e de baixo nível de escolaridade), como é o caso da CODIGMA, a
existência de um núcleo de assessores internos – ou externos – é reconhecido como um
importante elemento no seu processo de estabilização (SINGER, 2000). Isto porque, de
modo geral, empreendimentos solidários são constituídos por trabalhadores com baixa
escolaridade, que dominam o processo produtivo, mas não estão familiarizados com a
“dimensão empreendedora” que uma empresa solidária comporta, relativa à “gestão dos
fatores produtivos com vistas à realização das metas do empreendimento” (GAIGER,
2007, p.61). Muito embora, no caso aqui analisado, esta característica seja um fator de
irradiação de determinadas indisposições por parte dos cooperados, como mostraremos
mais adiante.
A CODIGMA ainda não tinha alcançado a sua autonomia financeira. Tal
ocorrência mostrou-se patente na dificuldade para manter um capital de giro próprio, e
ter maior autonomia (financeira e administrativa) frente à entidade que lhe fomentou
(CDVDH). Segundo Lima (2009), é recorrente EES desenvolverem uma relação de
dependência com as suas entidades fomentadoras (como ONG`s) ou com redes de
terceirização que muitas vezes estão inseridas. Todos os núcleos produtivos passavam
por dificuldades financeiras, por decorrência da dificuldade em comercializar os seus
produtos no mercado local. Dentre eles, o núcleo de produção de carvão ecológico foi o
20
que mais sofreu com os percalços financeiros, ficando sem retiradas (para os
cooperados) e mesmo sem produzir durante meses. Tais ocorrências engendraram laços
sociais de reciprocidade com sentidos, como veremos, bem distintos.
4.1 O perfil socioeconômico dos cooperados
Para se compreender as posturas expressas pelos cooperados na realidade
apresentada, e o tipo de envolvimento que desenvolvem com a cooperativa, é salutar
descrever um pouco do perfil sócio-econômico que possuem.
Entrevistamos nove cooperados, dentre os quais oito são mulheres, onde mais
da metade está acima dos quarenta anos, e das quais cinco possuem o ensino
fundamental incompleto e somente dois concluíram o ensino secundário. Entre cinco
cooperados, os pais não freqüentaram escola e entre dois possuíam o ensino
fundamental incompleto. Dos nove entrevistados, sete possuíam pais agricultores, e por
decorrência também tinham trabalhado em ocupações agrícolas (no cultivo de roças).
Cinco cooperados tinham no seu trajeto a passagem por fazendas e carvoarias – o que
na maior parte, com base nos relatos, na condição de trabalho escravo contemporâneo -,
e outros dois atuaram na ocupação de empregada doméstica. A participação na
CODIGMA também representou, para sete dos entrevistados, a primeira oportunidade
de cursar um curso profissionalizante, visto que no início do projeto foram oferecidos,
pelo CDVDH, cursos de iniciação a economia solidária, cooperativismo, técnicas de
reciclagem, e etc.
A maior parte dos cooperados não possui algum tipo de trabalho paralelo –
com a exceção de dois -, o que significa que a cooperativa desempenha um papel
importante na reprodução familiar diária dos mesmos. Tal ocorrência torna ainda mais
aguda as reverberações dos percalços financeiros (vivenciado pelos núcleos produtivos)
no comportamento expresso pelos cooperados aqui analisados.
5 Os desafios à implantação de um empreendimento solidário com egressos de
escravidão contemporânea: potencialidades e debilidades de um modelo de
trabalho
A implantação de uma iniciativa de economia solidária entre pessoas
resgatadas de situação de trabalho degradante e desempregadas corroborou a
dificuldade do processo de incorporação dos seus princípios e modelo de trabalho. Os
primeiros cooperados que formaram a cooperativa foram aqueles que melhor aceitaram
21
os princípios solidários e proposta cooperativista prevista para a CODIGMA. Segundo
relatos de membros do CDVDH os primeiros cooperados foram aqueles que:
manifestaram interesse de serem cooperados, que compreenderam que eles
seriam auto- gestores daquela cooperativa, e que eles não seriam
empregados daquela cooperativa (...) foi um dos pontos que a gente teve que
batalhar muito, porque eles achavam que a gente estava levando um
emprego pra eles; que íamos contratar eles pra trabalharem (...) Nas nossas
formações foi bastante complicado fazer eles entenderem isso, de que eles
não seriam empregados, que eles seriam auto- gestores (Entrevista,
Educadora social do CDVDH, 25/11/2011)
O exercício da autogestão, conforme trabalhos de estudiosos do tema
(GAIGER, 2003, 2007, 2012; SINGER 2000, 2002; TAUILE, 2002), é sempre
elencada como um elemento indefectível na qualificação de um empreendimento
econômico como solidário. A autogestão ainda é um projeto em construção na
CODIGMA. A “construção” aqui se dá pela equipe de assistência, através do estímulo
diário a tal prática, e mesmo pelo “esclarecimento” da importância do cooperado
exercer funções além das relativas ao processo produtivo da cooperativa.
A gente tenta integrar eles em tudo, né? Todos os passos que vamos dar
tentamos envolver eles: se a gente vai sair pra vender levamos um
[cooperado]; dinheiro de entrada eles estão lá fazendo todas as anotações; só
que eles se limitam demais: ‘ah, não sei fazer isso’,‘ah, não consigo fazer
aquilo, faz tu mesmo’.Mas a gente está sempre tentando inserir eles, porque
queremos que futuramente eles possam dar os passos sozinhos, que a gente
não precise estar lá fazendo o serviço que é pra eles fazerem. Então, é um
serviço devagar, mas a gente está, à medida do tempo, inserindo eles.
(Entrevista, monitora do núcleo de papel, 26/10/2011).
Muitos fatores podem estar ligados a esse lento processo de assimilação da
prática da autogestão pelos cooperados. O primeiro deles pode estar relacionado com os
tipos de trabalho realizados anteriormente pelos membros da CODIGMA que, quando
não eram ocupações relacionadas à super-exploração da mão-de-obra – como em
carvoarias e fazendas -, transcorriam sob uma rotina de trabalho mais rígida, como é o
caso do trabalho de empregada doméstica. Estes trabalhos têm como ponto comum o
fato de que o trabalhador – em geral - somente executa ordens, não compartilhando,
portanto, de uma rotina de trabalho mais dinâmica e imprevisível que normalmente
ocorre num empreendimento econômico.
A necessidade de desenvolver o negócio, como trabalhador e como gestor,
coloca numerosos desafios para o cooperado da CODIGMA, que, de forma semelhante
ao que ocorre em outros empreendimentos da economia solidária, precisa elaborar uma
visão mais abrangente de sua atuação. Como destacou Singer (2002, p.19), “a
autogestão exige um esforço adicional dos trabalhadores na empresa solidária: além de
22
cumprir as tarefas a seu cargo, cada um deles tem de se preocupar com os problemas
gerais da empresa”. Isto porque, ao lado da dimensão solidária, que implica a
cooperação produtiva e autogestão por parte dos sócios, um EES não deixa de estar
relacionado a uma “dimensão empreendedora” (GAIGER, 2007), que implica na
capacidade do empreendimento gerir-se de forma adequada tanto às formalidades
trabalhistas (capacidade de proporcionar férias e remuneração regulares aos sócio-
trabalhadores, por exemplo) quanto as mercantis (visão estratégica para comercializar
os produtos, independência a financiamentos).
Os obstáculos encontrados no processo de incorporação da prática da
autogestão, o que significa um parco envolvimento dos sócios na vida cotidiana do
empreendimento, são colocados como uma das fragilidades presentes em
empreendimentos cooperativos (GAIGER, 2007). Há quem identifique este tipo de
situação tanto com a baixa escolaridade dos sócios, como pela ausência de trabalhos no
histórico dos cooperados que exijam atividades com funções além das produtivo-
operacionais (ALVES; SOARES apud GONÇALVES, 2008; LIMA, 2004), como bem
é o caso da CODIGMA:
Outros fatores contribuem para a falta de participação dos associados: um
deles estaria relacionado à baixa escolaridade da maioria dos trabalhadores;
outro, ao fato de inexistir o hábito de se manifestarem em assembléia, o que
poderia decorrer da reduzida confiança nas suas possibilidades de
intervenção (LIMA, 2004, p.56).
Entretanto, na CODIGMA, a baixa escolaridade dos membros e a ausência de
ocupações em suas trajetórias que exijam atividades além das produtivo-operacionais,
parecem ter contribuído para a dificuldade da incorporação da autogestão, mas em
conjunto com estas o trabalho empírico revelou outras questões interdependentes: as
dificuldades financeiras vivenciadas pela cooperativa (ocasionada, sobretudo, pela
dificuldade em comercializar os produtos no comércio local e pela ausência de capital
de giro), a expectativa ou a concepção de certos cooperados em serem assalariados, e a
própria experiência com o trabalho escravo contemporâneo, enraizado em parte das
trajetórias dos cooperados e da própria cooperativa. Este conjunto de fatores engendrou
na comunidade de trabalho reações, frente às mesmas situações, ambivalentes, onde se
alternam momentos em que se evidencia uma maior incorporação da proposta
autogestionária e cooperativista, ancorada em vínculos de reciprocidade que atuam no
sentido de manter um bem coletivo, e outros em que a reciprocidade é solapada por
23
interesses economicistas, fruto da dependência material dos cooperados em relação ao
empreendimento – e uma baixa incorporação dos princípios solidários.
Em nosso caso encontramos uma situação emblemática sobre a baixa
incorporação da prática da autogestão por parte – de alguns13
– dos associados da
CODIGMA: os cooperados do núcleo de produção de carvão ecológico, por
decorrência da dificuldade de venda do carvão no mercado local e estagnação pela qual
estavam passando, trataram de organizar uma espécie de “movimento grevista”, algo
que – idealmente - deveria ser inconcebível em se tratando de um empreendimento
econômico solidário. A proposta de realização da “greve” foi explicada dessa forma por
um dos cooperados:
P. No momento o núcleo está produzindo?
R. Não... aquela que estava aqui [cooperada entrevistada anteriormente] fez
a parceria com nós pra gente parar até receber algum tostão, algum
dinheirinho.
P. Aí vocês combinaram de não produzir enquanto não...
R. Enquanto a gente não receber.
P. Então não teve produção essa semana?
R. Não, teve não.(Mª da Graça, cooperada do núcleo de carvão ecológico,
25/10/2011).
Além da dificuldade em conceber a nova situação trabalhista vivida – como
autogestores do empreendimento - a proposta de realização da “greve” deve ser
considerada como uma resposta, lançada por alguns cooperados, à situação de extrema
dificuldade a consecução da sua reprodução econômico-social.
Aqui, primeiro a gente ganhava até um dinheirinho, uns R$ 400/300 reais a
gente tirava, às vezes tirava mais. Mas só que agora, este ano aqui, tá uma
coisa muito complicada pra nós, porque nem o carvão não tá saindo; não tá
saindo de jeito nenhum, nós estamos com dois meses que não sai um saco de
carvão. E o carvão tá aí, como você pode ver, dentro do depósito, ali na
estufa; não saiu ainda um carvão. Aí nós estamos sem ganhar nada
(Aldenora, cooperada do núcleo de carvão ecológico, 25/10/2011).
Isto demonstra como os “elementos culturais presentes no assalariamento (...)”
podem dificultar a “compreensão de uma proposta autogestionária” (LIMA, 2004,
p.54). Perante a este tipo de situação, foi possível notar uma disparidade entre a forma
como estavam incorporados, pelos membros do CDVDH, os princípios da economia
solidária, assim como a estrutura de funcionamento de uma cooperativa, e o modo
como estava assimilado pelos cooperados, que pareciam ainda carecer de uma melhor
adaptação à lógica que está implicada neste tipo de empreendimento. Ainda que fosse
13De alguns cooperados, pois outros já assumiam cargos da gestão da cooperativa (tesoureiro e
secretário), sobretudo do núcleo de produção de artefatos de madeira – o núcleo que na trajetória da
cooperativa possui uma melhor estabilidade financeira.
24
possível encontrar alguns cooperados com um maior nível de compreensão da proposta
cooperativista:
Eu comecei a trabalhar aqui, até mesmo a conhecer as coisas: que a gente
trabalhava cooperado, que a manutenção daqui tinha que ser participado
pelas pessoas; todo rendimento daqui de dentro tinha que ser dividido com
as coisas: se fosse faltar uma peça, uma máquina,se fosse pro negócio da
fécula, da muinha [matérias-primas do carvão ecológico], tudo em quanto, a
gente tinha que cooperar, porque é cooperativa (Mª das Dores cooperada do
núcleo de carvão ecológico, 25/10/2011).
A constante fragilidade financeira dos núcleos de produção, que leva muitos
cooperados a abandonarem a cooperativa em busca de alternativas de trabalho com um
retorno financeiro mais imediato, representa uma constante e também uma das maiores
dificuldades enfrentada pela CODIGMA. Além da dificuldade em manter os
cooperados no período dos cursos de qualificação, a situação de escassez financeira e
retorno de benefícios somente a médio/longo prazo, ocasiona, desde o preâmbulo da
cooperativa, no retorno de alguns cooperados a atividades associadas ao trabalho
escravo contemporâneo.
(...) uma das grandes dificuldades que encontramos era que as pessoas
precisavam de um apoio financeiro imediato, pois até que eles fossem
aprender a se qualificar e receber algo do próprio projeto, geraria um tempo.
Como não houve um apoio [financeiro] imediato ficava difícil de se manter
no projeto; houve casos em que eles voltaram [para uma situação de
trabalho escravo]... como o projeto não tinha condição de mantê-los... ele
não tem como ficar 3 meses, 6 meses aqui na cidade sem receber uma bolsa
(Entrevista, assessor jurídico do CDVDH, 12/07/2011).
Em grande medida, a própria compreensão e incorporação dos princípios
solidários estão, no caso aqui apresentado, relacionados à experiência de alguns
membros na prática do trabalho escravo. Esta ocorrência nos fez buscar compreender a
possibilidade de existir algum tipo de nexo entre a rotina de trabalho na cooperativa, e
aquela vivenciada em fazendas/carvoarias. Neste sentido, a noção de humanização do
trabalho, presente na literatura especializada em economia solidária, fez-se relevante. A
questão da autogestão é bastante relacionada a uma forma de humanização das relações
de trabalho. A humanização das relações de trabalho se realizaria
porque a economia solidária melhora para o cooperador as condições de
trabalho, mesmo quando estas continuam deixando muito a desejar. Afinal
de contas, assumir o poder de participar das decisões e portanto de estar
informado a respeito do que acontece e que opções existem é um passo
importante para redenção humana do trabalhador (SINGER, 2000, p.18).
Argumento semelhante é encontrado em Gaiger (2007, p.57):
(...) embora limites e debilidades sejam identificados nessas experiências, é
perceptível sua tendência geral a realizarem os seus fins, de preservação da
25
vida em condições dignas, através da participação democrática e da
reciprocidade.
De acordo com esses autores, a possibilidade dos trabalhadores participarem
mais ativamente na vida da empresa, além de estarem no controle dos seus próprios
meios de produção, proporcionaria “uma experiência integral de vida laboral e ascende
a um novo patamar de satisfação, de atendimento a aspirações não apenas materiais ou
monetárias” (GAIGER, 2003, p.27). Este aspecto de humanização que existiria em EES
serve para corroborar a contraposição – e o cotejamento - entre empresa solidária e
empresa capitalista, com a idéia de que “nesta, o capital emprega o trabalho; naqueles
[EES], os trabalhadores empregam o capital” (ibidem, p.27).
Mesmo que na CODIGMA a autogestão esteja em processo de construção, é
possível identificar de algumas formas o aspecto da “humanização”, sobretudo se nos
ativermos à questão do trabalho escravo que está enraizado na sua existência. Quando o
núcleo de produção de carvão ecológico esteve parado durante seis meses em 2011,
dois dos seus cooperados, que já tinham passagem por trabalho em carvoaria,
retornaram para esse tipo de ocupação como uma forma de assegurar o sustento da sua
família – um dos cooperados foi trabalhar em Rondon no estado do Pará e outra no
próprio município de Açailândia. Quando o núcleo de carvão foi reativado através de
recursos angariados pelo CDVDH, estes cooperados retornaram para as suas atividades
na cooperativa:
P. Porque tu retornaste pra CODIGMA?
R. É porque eu achei que aqui era melhor pra mim porque ficava perto da
família; porque eu saia e passava um mês fora e a família aqui... A mulher
gestante ficava longe sem saber o telefone, sem nada... Nem meio de
comunicação a gente tem lá onde trabalha [na carvoaria]; geralmente tem
uns lá com celular, mas eles não liberam ninguém para fazer a ligação (...)
(Carlitos, cooperado do núcleo de carvão ecológico, 25/10/2011).
O motivo para a outra cooperada ter retornado para a CODIGMA é
semelhante: “Ah, porque aqui fica perto de casa, né? Quando a gente fica perto da casa
da gente é bom, que toda hora a gente sai de casa, na hora do almoço é bem pertinho”,
e complementa:
Aqui só é melhor porque têm os horários livres, ninguém fica mandando; a
gente mesmo faz as obrigações da gente (...) Na “carvoeira” [carvoaria] tem
a vantagem porque (...) ganha mais (...) [aqui] o problema é só esse negócio
da venda do carvão (Aldenora, cooperada do núcleo de carvão ecológico,
25/10/2011).
Estes cooperados escolheram voltar para a CODIGMA, mesmo sabendo das
suas restrições financeiras; mas, ainda sim, parecem identificar um maior bem estar e
26
melhores condições de trabalho na cooperativa. Conforme os relatos, este bem estar e
qualidade nas condições de trabalho alegado pelos cooperados, pode-se supor,
relaciona-se com o fato característico de manifestações da economia solidária buscar
sempre enraizarem-se nas comunidades de origem dos seus cooperados (SANTANA
JR., 2009), possibilitando uma integração com a realidade local do cooperado; o que
não se fazia possível nos trabalhos em carvoarias ou fazendas, sempre distantes do
domicílio. Ao mesmo tempo, as condições – de humanização do trabalho - favorecidas
pelo esforço de construção da autogestão na cooperativa - possibilidade de gestão da
rotina de trabalho, poder de decisão nas mãos dos sócios -, ganharam aqui um
significado particular para os cooperados por conta do contraste estabelecido com a
rotina de trabalho vivenciada nas carvoarias:
Só no bem estar da pessoa ficar perto de casa, tem um horário da gente
chegar e (...) sair daqui; almoça na hora que a gente quer; e lá [na carvoaria]
tem que ter o horário certo do café, do almoço e da janta, nem na cozinha
você pode ir pedir um café. E aqui não, se a gente quiser trazer a garrafa de
café a gente traz, que não tem problema. Se quiser parar: ‘vamos trabalha
só até meio dia, à tarde nós não vamos trabalhar’. E lá [na carvoaria] não,
se você parar à tarde [ou] na hora da janta eles vão logo descontar da janta,
se você não trabalhar eles descontam (...) (Carlitos, monitor do núcleo de
carvão ecológico, 25/10/2011).
A relação que tais empreendimentos buscam com o seu entorno comunitário,
vincula-se com a possibilidade de experiências de economia solidária propiciar a
superação não apenas da pauperização econômica, mas também cultural e política14
(GAIGER, 2012). Para alguns membros, o trabalho na CODIGMA representa uma
forma de abrangerem os seus conhecimentos, de alcançarem coisas positivas que nem
imaginavam que existiam, e tampouco que podiam vir a possuir.
P. O que mudou na tua vida depois que tu entraste aqui na cooperativa?
R. (...) já muda porque a gente deixa de viver presa dentro de casa, já tem
alguma coisa pra gente pensar mais na frente, aprender mais; porque sempre
quando a gente sai de casa a gente aprende alguma coisa a mais (...) Tem
muita coisa que eu nem imaginava na minha vida, que eu já fiz, já aprendi.
Se eu for fazer eu já sei fazer, ou seja, já muda alguma coisa na vida da
gente (Antonia Lebre, cooperada do núcleo de papel reciclado, 26/10/2011).
Outra cooperada apresenta uma estima semelhante pelo aprendizado
propiciado pelo trabalho na cooperativa:
Mudou porque (...) me deu um pouco mais de “profissão”. Mudou mais
porque eu não sabia de nada. [A cooperada descreve o processo de
reciclagem do papel]: reciclar o papel, selecionar ele todinho, botar de
molho, passar no liquidificador, aí nós vamos enchendo as telas e botando no
14Abordagens que buscam explorar o caráter antropológico de iniciativas de economia solidária - via
etnografia - enxergam nestas experiências um universo simbólico onde convergem diferentes aspectos da
vida social, conformando-se numa espécie de “fato social total” (GONÇALVES, 2008).
27
sol. Aprendi o que eu não sabia (...) aqui na cooperativa (Joana, cooperada
do núcleo de papel reciclado, 26/10/2011).
Contudo, os percalços financeiros vivenciados pela cooperativa somada ao
próprio fato do trabalho análogo ao escravo funcionar como um parâmetro pré-
existente – neste caso, negativo – de trabalho, acabou por criar obstáculos para uma
maior assimilação dos princípios solidários por parte dos seus cooperados. A reação
dos cooperados frente à complicada situação financeira vivenciada pela cooperativa
variou entre aqueles que demonstraram descontentamento e incredulidade, como o
“movimento grevista” anteriormente relatado, e entre situações em que predominou a
solidariedade e o fortalecimento de laços de reciprocidade a fim de conservarem a
comunidade de trabalho. As reações que demonstravam descontentamento
contradiziam o próprio propósito de geração de renda e trabalho digno presentes no
projeto da CODIGMA, pois identificavam precarização em condições de trabalho
presentes na cooperativa, por decorrência da ausência de retiradas:
Aqui só é bom porque a gente tem as amigas que trabalham aqui; o serviço
não é pesado (...) só que é escravizado igual [a carvoaria], assim sobre... [o
ponto de não receber um pagamento certo]. Na carvoaria a gente passa de
dois a três meses sem receber, né? Aqui também é do mesmo jeito. Do
mesmo jeito... Aqui a gente só trabalha, só trabalha e nada (...) (Mª da Graça,
cooperada do núcleo de carvão ecológico, 25/10/2011).
O fato da criação da cooperativa não ser fruto da expressão da deliberação
voluntária dos cooperados para se associar, sendo, inclusive, apontada como possível
motivo para a débil assimilação da prática da autogestão, não implica dizer que
posturas de voluntariedade, expressas por laços sociais de reciprocidade entre os
cooperados, não exista. No caso da CODIGMA, a voluntariedade manifesta-se por
outras vias, e nos permitem uma melhor compreensão da natureza dos laços tecidos na
comunidade de trabalho. Ao lado da situação dos cooperados que optaram por retornar
da carvoaria para a cooperativa, mesmo sabendo que ganhariam menos, está o caso de
membros que continuaram como cooperados, com certa boa vontade e ânimo em
relação ao futuro do empreendimento, mesmo quando suas retiradas eram parcas ou
mesmo inexistentes. As dificuldades financeiras provocaram diferentes reações nos
cooperados, sendo possível identificar certa gratuidade e doação nas ações de alguns,
próprias da reciprocidade passível de existir em empreendimentos solidários, e que dão
consistência a ação associativa (CAILLÉ, 2002b).
Uma cooperada expressou bem esse tipo de comportamento:
Quando eu entrei aqui tinham 22 pessoas. Só que essas pessoas foram
desistindo devido ao ganho que era pouco (...) As pessoas que hoje estão
28
trabalhando aqui estão querendo que um dia isso aqui fique melhor, tenha
um futuro melhor(...) A gente trabalha, mas é pelejando para que isso aqui
se levante, nunca caia. A gente já trabalhou muito tempo com produção sem
ganhar nada, a gente trabalhando só pra comprar material (...) (Eleonora,
cooperada do núcleo de artefatos de madeira, 25/10/2011).
O que se pode notar através deste fragmento é a existência de um engajamento
entre alguns cooperados, sobretudo do núcleo de produção de artefatos madeira, não
somente com a sua reprodução diária, mas com um compromisso direcionado a própria
existência da cooperativa. Neste caso, as dificuldades financeiras pelas quais passa a
cooperativa engendraram um comportamento voluntário entre os cooperados, em que
os laços sociais sobrepujaram os aspectos econômicos, mesmo sendo adversos. O
esforço para a manutenção dos vínculos de reciprocidade, que significa o próprio
esforço para manter a comunidade de trabalho, apresenta um caráter recursivo, na
medida em que as práticas de entreajuda entre os cooperados operaram como fator
determinante para a continuidade da cooperativa, ao lado das vendas dos produtos no
mercado, e do apoio do CDVDH através de assistência gerencial e, eventualmente,
financeira.
Tais ocorrências nos levam a perceber a ambivalência de posturas que uma
desfavorável situação financeira que se impõe causa, assim como a pluralidade de
princípios e recursos econômicos (princípio da reciprocidade, recurso não-monetário),
próprio do que se denomina economia plural (LAVILLE, 2002), operacionalizados
através da dádiva e gratuidade presente nas ações dos membros, e que contribuem para
alargar os princípios e recursos (mercantil e monetário) usualmente utilizados em
atividades econômicas.
Considerações finais
A situação financeira que se impõe ocasionou reações ambivalentes entre os
cooperados. As dificuldades financeiras que se impunham foram, por si mesmas, fruto
de aspectos negativos relacionados ao modelo de trabalho da economia soldaria: a falta
de capital de giro e a dificuldade de comercialização no mercado capitalista
predominante – e não em circuitos (solidários) próprios -, gerou comportamentos que
incorporavam descontentamento e incredulidade dos cooperados acerca da cooperativa
e do modelo de trabalho que esta buscava seguir. O “movimento grevista” não é
meramente o reflexo duma débil assimilação dos princípios solidários, mas também
29
uma resposta dos cooperados a dificuldade de garantir a sua própria reprodução social
diária.
De outro modo, estes mesmos percalços financeiros irradiaram reações que
expressavam uma das maiores positividades atribuídas à economia solidária: a
possibilidade de superação do homo oeconomicus utilitarista, no momento em que as
repostas às adversidades econômicas materializaram-se através de laços sociais de
reciprocidade entre os membros, que compartilharam (e agiram em benefício de)
interesses maiores que os individuais.
O enraizamento do trabalho escravo contemporâneo em parte das trajetórias
dos cooperados, e no próprio bojo de ações do CDVDH, corroborou para o processo de
(re)significação da experiência da cooperativa e, acima de tudo, dos próprios princípios
e modelo de trabalho da economia solidária. O que demonstra a capacidade de
diferentes agendas e estratégias político-sociais confluir em torno da ideia de economia
solidária (GAIGER, 2012).
Nestes tipos de situações extremas, que atingiam a própria subsistência dos
cooperados, certas debilidades do modelo de trabalho da economia solidária
identificadas por autores brasileiros, evidenciaram-se na pesquisa empírica. Entretanto,
conforme apresentado, em meio a um dos problemas apontados por esta literatura para
a existência de tais fragilidades, a questão da tutela a que tais empreendimentos muitas
vezes dependem, quando envolvem populações carentes e de baixa escolaridade, pôde-
se identificar um dos aspectos sociais mais singulares e tratados como positivos em tais
experiências: a existência de momentos em que vêm à tona a voluntariedade e
gratuidade recíproca, uma solidariedade construída entre os cooperados através de laços
sociais concretos que se tornaram recursivos para salvaguardar um bem maior: a
comunidade de trabalho que é a cooperativa. Para além das condições objetivas que
conformou a noção de economia solidária no Brasil, e todo o contexto socioeconômico
do município de Açailândia que levou ao surgimento da CODIGMA, e mesmo dos
motivos que impulsionaram os cooperados a participarem do empreendimento (em
geral em busca de renda), os princípios e modelo de trabalho da economia solidária
passaram a ganhar sentido e significado para os agentes envolvidos através do
desenvolvimento de suas subjetividades concretizadas nas suas práticas cotidianas.
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