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ANTNIO SUAREZ ABREU

Copyright 2008 Antnio Suarez Abreu Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. E proibida a reproduo total ou parcial sem autorizao, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (C1P) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Abreu, Antnio Suarez O design da escrita: redigindo com criatividade e beleza, inclusive fico / Antnio Suarez Abreu. - Cotia, SP: Ateli Editorial, 2008. ISBN 978-85-7180-387-6 Bibliografia 1. Design 2. Escrita 3. Fico - Autoria 4. Redao (Literatura) 5. Textos I. Ttulo. 08-02462 ndices para catlogo sistemtico: 1. Textos: Redao: Tcnicas: Literatura 808.02 CDD-808.02

Agradecimento ao Dr. Wanderley Pires pela leitura crtica deste livro epelas inmeras sugestes que foram plenamente aproveitadas.

Direitos reservados ATELI EDITORIAL Estrada da Aldeia de Carapicuba, 897 06709-300 - Granja Viana - Cotia - SP Telefax: (11)4612-9666 www.atelie.com.br / [email protected] 2008 Printed in Brazil Foi feito depsito legal

SUMRIO

Introduo: Conhecimento para qu?PRIMEIRA PARTE: O DESENHO DO TEXTO

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1. Design - A Alma do Texto 2. Mas... o que Mesmo um Texto? 3. Gneros, Tipos Textuais e Domnios Discursivos . . . 4. Referenciao Criativa 5. Uso Criativo da Metonfmia: um Processo de Projeo 6 .Vivendo Histrias e Fazendo Projees 7. Comparaes e Metforas como Projees 8. Projees por Esquemas de Imagem 9. Aspectos Funcionais dos Processos de Projeo 10. O Som da Linguagem no Texto EscritoSEGUNDA PARTE: ESCREVENDO FlCO

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1. Conselhos Iniciais 2. Primeiros Passos: as Idias 3. Passo Seguinte: Sinopse e Escolha do Gnero 4. Os Personagens 5. Tempo e Espao 6. O Conflito: Estrutura dos Plots 7. Plots Secundrios ou Subplots

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8. Pontos de Vista Narrativos 9. Dilogos 10. Reviso Eplogo: O que um Escritor? Referncias

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INTRODUOCONHECIMENTO PARA QU?

Este livro resultado de uma pesquisa terico-prtica realizada na Unesp nos ltimos trs anos, aplicando princpios da chamada lingstica cognitiva na anlise e produo de textos criativos. Dei aulas sobre esse assunto aos meus alunos de graduao e ps-graduao. Mas, em todos os momentos em que mantinha contato com essas mentes jovens, interessadas, tocadas pela vontade de aprender, uma pergunta aparecia sempre minha frente: para qu? Para que serve estudar tudo isso? S para abrir um livro, um jornal, uma revista, ser capaz de apontar o uso de estratgias criativas e poder dizer: "- Ah viu s como o autor foi feliz?" ou "- Percebe como ele poderia ter feito melhor?" E muito pouco! Depois de ter escrito o Curso de Redao e ter visto o seu sucesso por mais de uma dcada, achei que deveria fazer mais pelos meus leitores: ajud-los a redigir ainda melhor os seus textos, tornando-os mais criativos e mais belos. Ao terminar um dos captulos, lembrei-me tambm dos textos que recebo algumas vezes dos meus alunos na universidade: crnicas, contos, inclusive romances, e da importncia de apontar uma construo inadequada e sugerir um novo caminho. Como havia ministrado, na USP e na Unesp, um curso de extenso intitulado Como Escrever Fico, decidi,

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ento, pr em dia meus conhecimentos nessa rea e escrever uma segunda parte do livro, procurando ajudar os meus leitores a escrever textos de fico com mais desenvoltura e criatividade. Acredito, firmemente, que esse livro cumprir seu propsito porque seu contedo j foi testado com bastante sucesso. A leitura pode comear pela primeira parte ou pela segunda. E indiferente. Aproveitem bastante, escrevam sempre, compartilhem suas experincias, pois o conhecimento como a gua: deteriora-se quando deixa de fluir. E s faz sentido quando conseguimos realizar alguma coisa com ele!

Primeira Parte

O DESENHO DO TEXTO

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DESIGN - A ALMA DO TEXTO

De modo geral, quando se fala em design, as pessoas entendem que se trata apenas de acrescentar um pouco de esttica a alguma coisa que manteria sua funcionalidade, a despeito dela. A maioria das pessoas imagina que design , simplesmente, o acabamento que se d a um produto qualquer, em sua fase final de produo. Voc acha que a HP concordaria com isso? Ou a Apple, fundada por Steve Jobs? Hoje, o design o foco. As montadoras de automveis contratam designers como Giorgetto Giugiaro, Chris Bangle e Pininfarina, para dar uma identidade visual de grife aos seus carros. As fbricas de perfume gastam milhes, anualmente, no design de seus frascos. O design aplica-se hoje at mesmo rea de servios. Numa concessionria de automveis, numa clnica mdica ou odontolgica, o atendimento, a cordialidade, o bom humor compem o design do negcio. Mas claro que um bom design representa muito pouco, se no houver qualidade. Ningum compraria um perfume ruim, mesmo que viesse embalado em um frasco de cristal assinado por Valentino. Beleza fundamental, como dizia Vincius de Moraes, mas, em um texto, no se pode falar em beleza sem contedo. preciso frisar, tambm, que, a exemplo do projeto de

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O DESIGN DA ESCRITA

um edifcio, design no algo que se acrescenta a um texto pronto. algo que SE CONSTRI com um texto. Design a arte de conciliar beleza e funcionalidade. A funcionalidade de um texto medida no somente pelo seu contedo, mas tambm pela sua clareza e objetividade. Um texto funcional, de qualidade, deve ser cristalino. Infelizmente, h gente que acredita que a beleza deve ser procurada apenas nos textos literrios e que os de outra natureza, principalmente os cientficos, dispensam o design. Afinal, h quem diga que, num texto cientfico, a densidade e preciso acadmicas so inimigas de recursos que o tornem mais claro, mais palatvel aos "no-iniciados". Nada mais inconsistente! Um bom texto, qualquer bom texto, seja um poema, uma receita de bolo ou um artigo acadmico deve ser claro e belo, despertando admirao em quem o l. Como diz Mrio Quintana,[...] se um autor faz voc voltar atrs na leitura, seja de um perodo ou de uma frase, no o julgue profundo demais, no fique complexado: o inferior ele. Ao ler algum que consegue expressar-se com toda a limpidez, nem sentimos que estamos lendo um livro: como se o estivssemos pensando .1

conseguem visualizar a silhueta escura e baixa. E o Bugatti Veyron 16.4 que se aproxima, veloz como um raio. Finalmente possvel distinguir a grade dianteira em forma de ferradura e ento... eleja passou! O golpe de ar to violento que quase nos arranca os culos do rosto. Os poucos - e felizardos - presentes pista de Ehra-Lessien giram o pescoo na tentativa de acompanhar o blido. A passagem do Veyron em velocidade mxima perturba a todos e, ao se afastar, o veculo deixa apenas um rastro abstrato de pura fascinao'.

Logo no incio do texto, o autor apresenta o carro mais rpido do mundo por meio do som do seu motor, a que chama, metaforicamente, de "arauto E como se esse rudo antecedesse o automvel, exaltando suas qualidades. Logo em seguida sensao auditiva, aparece a visual. Em funo da alta velocidade desenvolvida, v-se apenas uma silhueta. O autor identifica o Bugatti e pe o olhar do leitor no "logo" da marca: a grade dianteira na forma de ferradura. A seguir, evoca outra sensao, desta vez tctil: o deslocamento de ar produzido pela velocidade ("O golpe de ar to violento que quase nos arranca os culos do rosto"). No final, surge outra vez o recurso ao visual, tambm metafrico: "ao se afastar, o veculo deixa apenas um rastro abstrato de pura fascinao". Como vemos, um texto que poderia ser apenas tcnico e, portanto, mais contido, faz uso de sensaes auditivas, visuais e tcteis, transportando o leitor para a pista de provas de Ehra-Lessien, onde o teste foi realizado.2. Revista Carro, jan. 2007, p. 69. 3. Como na Idade Mdia as pessoas do povo geralmente no sabiam ler, havia os arautos, oficiais reais que liam em voz alta, nas praas, proclamaes solenes, anncios de guerra ou de paz. Nos torneios, os arautos apresentavam os cavaleiros, enaltecendo a sua origem e seus feitos.

Veja, a ttulo de exemplo, o seguinte trecho retirado de uma reportagem tcnica da revista Carro que narra um teste comparativo entre os nove automveis mais velozes do mundo:O carro de srie mais rpido do mundo anunciado por meio de um arauto: um rugido infernal que ecoa ao longe. S ento os olhos

1. Mrio Quintana, A Vaca e o Hypogrifo, p. 110.

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O DESIGN DA ESCRITA

CRIATIVIDADE

Temos o desconcertante costume de fazer sempre as mesmas coisas. Isso representava uma vantagem competitiva h milhares de anos, quando nossos ancestrais, ao estabelecerem uma determinada rotina, tinham chances maiores de sobreviver. Quando ingressamos no perodo histrico, com a inveno da escrita h 5 200 anos, as mudanas comearam a ganhar maior velocidade. Durante o sculo XX, a vida das pessoas sofreu mudanas muito maiores do que em toda a histria da humanidade. Iniciamos o sculo passado ainda movidos por trao animal e o terminamos voando em aeronaves a jato para os locais mais distantes do planeta e assistindo ao pouso de naves-robs em Marte. Neste sculo que se inicia, as mudanas sero, no mnimo, cem vezes mais rpidas. Participar ativamente desse processo de mudanas exige aprendizagem contnua e uma enorme dose de criatividade. No incio do sculo XX, nos Estados Unidos, apenas 10% dos americanos exerciam atividades criativas. Hoje em dia, 70% desenvolvem funes que demandam criatividade. Todos ns somos potencialmente criativos, mas a interao com o meio ambiente essencial. Nossas escolas, entretanto, primam por no oferecer condies para isso. Temos, ento, de procurar nossos prprios caminhos. O primeiro deles desaprender as coisas velhas que no servem mais, mas que continuam a pautar nossas aes dirias. Michael Hammer, em um artigo na Harvard Business Review, conta que gastamos as trs primeiras dcadas aps a inveno do computador, apenas automatizando procedimentos do passado. "Pavimentando a trilha das vacas", diz ele.

Conta-se que um jovem discpulo de uma religio oriental, cuja crena de baseava na existncia de vrias vidas, dirigiu-se a seu velho mestre, j bastante idoso e perguntou-lhe:- Mestre, o que o senhor vai querer ser em sua prxima vida? Depois de certo tempo de silncio, o guru respondeu: - Um burro, meu filho. - Mas um burro, mestre? Como? No consigo entender! - Sim, um burro, meu filho, para poder desaprender muitas coisas que aprendi nesta vida e que no me servem mais. Depois, em uma outra vida, serei algum com a mente apta a aprender novas coisas.

Talvez o mais difcil de desaprender sejam os preconceitos. Acreditamos, por exemplo, que uma escola deva ser um local vigiado, onde, em intervalos regulares, uma turma de alunos fique confinada em um ambiente, ouvindo a preleo de um professor que fala sobre o que ouviu de outros professores ou leu em livros. Ser que isso ainda funciona? Depois de desaprender coisas velhas e vencer preconceitos, uma boa idia desafiar o ltimo mito, o da especializao. Procurar leituras diversificadas, de outras reas diferentes da nossa, investindo na interdisciplinaridade. Fazendo isso, estaremos "pegando carona" em mentes altamente criativas, estimulando e vitalizando a nossa prpria criatividade. Mas, o que criatividade? Os estudiosos da rea costumam dizer que ser criativo ver o que todo mundo v e pensar diferente. Trata-se da habilidade de ver alguma coisa de outro ponto de vista, diferente daquilo que nos diz o senso comum. Foi assim que Henry Ford criou a linha de montagem, no incio do sculo passado, e conseguiu que os empre-

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gados comprassem seus prprios automveis. Foi assim que Rich Teerlink, presidente da Harley-Davidson, reposicionou sua fbrica de motocicletas, ganhando milhes de dlares, ao decretar que a Harley no era mais uma empresa que fabricava veculos apenas. Era uma empresa que fabricava e vendia um estilo de vida! Mas, como pensar criativamente quando se trata de escrever um texto? Como conseguir torn-lo belo e funcional? Bem, isso assunto para os prximos captulos.

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MAS... O QUE MESMO UM TEXTO?

Abro um jornal, percorro suas pginas e leio uma frase do depoimento de uma jovem modelo: "- Perdi minha barriga em quinze dias!" Mais adiante, vejo a declarao de um passageiro em um aeroporto: "- Acabo de perder meu avio!" Logo em seguida, leio uma frase no caderno "Cotidiano": "- Perdi todos meus documentos, quando levaram a minha pasta!" Fico imaginando, agora, que, se algum perde os documentos, porque era dono deles e t-los perdido foi um acontecimento involuntrio e muito desagradvel. Por outro lado, o passageiro que "perdeu seu avio", na realidade no era dono dele; apenas no conseguiu viajar no horrio que tinha programado. E a modelo que "perdeu a barriga" na verdade simplesmente reduziu o volume do abdome e ficou feliz por isso. Continuo folheando as pginas do jornal, e meus olhos detm-se no ttulo de uma matria relativa ao Carnaval:REVELAES AMEAAM DESTAQUES DAS ESCOLAS DE SAMBA NO RIO.

Bem, eu sei que destaques o nome dado pela imprensa s celebridades que desfilam nessas escolas. Fico imaginando, ento, quais seriam as revelaes que as ameaam.

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Seria a divulgao de algum escndalo amoroso, de alguma falcatrua? Lendo a matria com interesse, descubro que revelaes o nome que a imprensa d a belas moas que esto comeando a se destacar na mdia. A, ento, tudo fica claro! O que o ttulo da matria pretende dizer que essas garotas, pela sua beleza e juventude, concorrem com as atrizes e modelos famosas, que tm a tradio de desfilar nas escolas, mas que j esto comeando a perder o seu brilho. Depois dessas reflexes, fico a imaginar que os pequenos textos que li, na verdade, diziam uma pequena parcela daquilo que pude entender. Comeo a perceber que mais da metade da comunicao aconteceu dentro da minha cabea, no momento em que os estava lendo. Os textos funcionaram apenas como indutores do meu pensamento. Com o meu conhecimento de mundo, eu que tinha atribudo sentido a eles. No texto sobre o Carnaval, a manchete era ambgua. Para conseguir compreend-la, precisei ler toda a matria. Um texto, portanto, no alguma coisa que venha pronta, com sentido completo, como diz a tradio. apenas UMA PROPOSTA DE CONSTRUO DE SENTIDOS. SomOS nS, leitores, que, vasculhando nossa memria, buscamos dentro do nosso conhecimento de mundo informaes adicionais que possam complementar aquilo que lemos. Sem isso, no h entendimento possvel. O escritor e filsofo Eduardo Giannetti, expressa essa idia de maneira brilhante em seu livro Aulo-engano:Ler recriar. A palavra final no dada por quem a escreve, mas por quem a l. O dilogo interno do autor a semente que frutifica (ou definha) no dilogo interno do leitor. A aposta recproca, o resultado imprevisvel. Entendimento absoluto no h. Um mal-entendido - o

folhear aleatrio e absorto de um texto que acidentalmente nos cai nas mos - pode ser o incio de algo mais criativo e valioso do que uma leitura reta, porm burocrtica e maquinal. "Autores so atores, livros so teatros." A verdadeira trama a que transcorre na mente do leitor-interlocutor .1

Rubem Alves fala-nos de uma sintonia mais fina entre quem escreve e quem l:Por que se gosta de um autor? Gosta-se de um autor quando, ao l-lo, tem-se a experincia de comunho. Arte isso: comunicar aos outros nossa identidade ntima com eles. Ao l-lo eu me leio, melhor me entendo. Somos do mesmo sangue, companheiros no mesmo mundo. No importa que o autor j tenha morrido h sculos...2

Quem no tem o conhecimento prvio necessrio para atribuir sentido aos textos que l rotulado com uma expresso pejorativa: analfabeto funcional. H alguns anos, o jornalista Gilberto Dimenstein relatou uma experincia: em uma famosa avenida de So Paulo, mostrou aos transeuntes um pequeno pedao de papel com a seguinte inscrio: "11% DO IR". A maior parte das pessoas lia o texto da seguinte maneira:- Bem, est escrito o nmero 11, depois um trao meio deitado para a direita, com duas bolinhas, uma em cima esquerda e outra em baixo direita. Depois est escrito "I ERRE".

Essas pessoas no conheciam o smbolo de porcentagem, nem a sigla do Imposto de Renda. Ou seja, embora "alfabetizados", eram analfabetos.funcionais.

1. Eduardo Giannetti, Aulo-engano, p. 13. 2. Rubem Alves, "Quarto de Badulaques IJCXXIV", Correio Popular, 1'-' jun. 2006, Caderno C, p. 2.

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O DKSIGN DA l SC RITA

Muitas vezes, sobretudo quando lemos algum texto que traz referncias a alguma coisa antiga, perdemos muitos dos sentidos induzidos pelo autor no momento em que escrevia, simplesmente porque no temos repertrio para isso. Vejamos o seguinte trecho de uma coluna do professor Pasquale Cipro Neto publicada no jornal Folha de S. Paulo:O que no se pode aceitar o uso desnecessrio e, sobretudo, exibicionista de termos estrangeiros. Em alguns casos, a coisa beira o ridculo. Quer um bom exemplo? O tal do "Duas Rodas Festival" (pus o acento porque, no comercial da TV, a palavra lida como proparoxtona, inglesa). E o prprio samba do crioulo doido: dois termos so portugueses; a estrutura da frase e a outra palavra so inglesas. Haja!3

Joaquim Jos / Que tambm Da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo E se elegeu Pedro II. Das estradas de Minas / Seguiu pra So Paulo E falou com Anchieta. / O vigrio dos ndios Aliou-se a Dom Pedro / E acabou com a falseta. Da unio deles dois / Ficou resolvida a questo E foi proclamada a escravido. / E foi proclamada a escravido. Assim se conta essa histria / Que dos dois a maior glria. Dna. Leopoldina virou trem / E 1). Pedro uma estao tambm. O, , , , , / O trem t atrasado ou j passou. O, , , , , / O trem t atrasado ou j passou .1

Para entender o que Cipro Neto sugeriu com samba do crioulo doido, preciso poder saber que se trata de uma composio de autoria de Srgio Porto, famoso cronista carioca dos anos de 1960 que usava o pseudnimo de Stanislaw Ponte Preta, cuja letra satirizava o "poder inventivo" dos compositores cariocas de baixa escolaridade que, ao escrever os sambas-enredos das suas escolas de samba, misturavam, equivocadamente, pocas e personagens. Eis aqui a letra do Samba do Crioulo Doido:Foi em Diamantina / Onde nasceu JK Que a princesa Leopoldina / Arresolveu se cas. Mas Chica da Silva / Tinha outros pretendentes. E obrigou a princesa / A se casar com Tiradentes. L i l i l ia / O bode que deu vou te contar. L i l i l i / O bode que deu vou te contar.

Bem, retorno ao meu jornal plenamente convencido de que um texto mesmo apenas UMA PROPOSTA DE CONSTRUO DE SENTIDOS. So os leitores que atribuem sentidos aos textos que lem, por meio do conhecimento prvio de mundo que cada um deles possui. Ao folhe-lo, novamente, vejo a propaganda do lanamento de um novo modelo de automvel e leio um editorial que fala da importncia da diversidade de opinies em um sistema democrtico. A propaganda tem a inteno de vender-me um automvel e o editorial tem a inteno de convencer-me sobre a necessidade de pluralidade das idias em uma democracia. Percebo, tambm, que, por trs de um texto, existe sempre a inteno de algum. Se, ao conversar com um vizinho, troco idias sobre o tempo, minha inteno no , necessariamente, compartilhar informaes meteorolgicas. Posso estar tentando apenas manter uma relao cordial com ele. Se um rapaz pergunta a uma garota o que ela pretende fazer noite, sua inteno, geralmente, convid-la a sair.4. Em: http://www.paixaoeroniance.com.

3. Pasquale Cipro Neto, Folha de S. Paulo, 18 nov. 2004.

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O DESIGN DA ESCRITA

Lendo A Montanha Mgica, o grande romance de Thomas Mann, chego a uma passagem primeira vista bastante estranha. Trata-se de um discurso acompanhado de grandes gestos, feito mesa de jantar, por um personagem de nome Mynherr Peeperkorn, um novo hspede do sanatrio de Behrens em Davos, Sua, palco da narrativa de Mann.- Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queria, no entanto, observar e no perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre declarar que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre declarar no aquilo, mas principal e exclusivamente o seguinte: temos o dever... de uma forma inelutvel... Repito e fao questo de usar essa expresso: de uma forma inelutvel que se reivindica de ns... No, senhoras e senhores, no! Esse no o sentido... No me interpretem como se cu... Que erro grave no seria pensar que... Basta, senhoras e senhores! Basta amplamente! Sei que estamos de acordo sobre todas essas questes, e por isso entremos no assunto!5

diferente de uma conversa informal com amigos, e assim por diante. Um texto sempre produzido em uma situao particular de interao social, seja um editorial, uma propaganda, um telefonema, uma dissertao escolar ou at mesmo um romance como A Montanha Mgica. Se chamarmos essas situaes de interao textual de gneros, veremos que UM TEXTOEXISTE SEMPRE DENTRO DE UM DETERMINADO GNERO.

Finalmente, podemos dizer que um texto: a) uma proposta de construo de sentidos; b) o produto de uma inteno; c) existe, sempre, dentro de um gnero.

Percebo, ento, que Pepperkorn no disse absolutamente nada! Dentro do contexto do romance, fica claro que a inteno do autor foi a de caracterizar Pepperkorn como um perfeito idiota. Mais frente, um comentrio jocoso do narrador confirma essa primeira impresso: "Seria interessante saber qual teria sido a reao de um surdo". Depois de reflexes como essa, sou forado a admitir tambm que UM TEXTO SEMPRE O PRODUTO DE UMAINTENO.

Alm disso, fcil perceber que, em termos de interao textual, um editorial de jornal representa um canal diferente de uma propaganda e uma propaganda, outro bem5. Thomas Mann, A Montanha Mgica, p. 754.

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GNEROS, TIPOS TEXTUAIS E DOMNIOS DISCURSIVOS

Existem tantos gneros quantos forem as situaes de interao social, o que significa dizer que h infinitos gneros. Telefonemas, cartas comerciais, bulas de remdio, romances, poemas so alguns exemplos. H gneros que j desapareceram, como o telex, outros que esto desaparecendo, como o telegrama, e outros que surgiram recentemente, como o e-mail. H gneros que fazem uso da oralidade, como um telefonema, um discurso poltico ou uma apresentao oral. H outros que fazem uso da escrita, como uma deciso judicial ou uma tese de doutorado. H tambm aqueles que fazem uso de ambos os canais. Sabemos, por exemplo, que a maioria dos noticirios de televiso, embora seja falada, lida em teleprompters. Por esse motivo que no faz muito sentido, hoje em dia, fazer distino rgida entre comunicao oral e escrita. Alis, as diferenas que tradicionalmente so ditas existirem entre fala e escrita so bem menores do que se pensa. Cada gnero tem suas prprias regras e convenes. Num e-mail, temos de preencher o campo de assunto; em um telefonema, mesmo quando estando apenas ouvindo, temos de enviar, freqentemente, sinais vocais como ah, h, / e t c ,

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para sinalizar ao nosso interlocutor que estamos atentos do outro lado da linha. J os TIPOS TEXTUAIS so classificados em apenas quatro: narrao, argumentao, descrio e injuno. Na narrao, contamos um evento, na argumentao, defendemos uma idia. Na descrio, tentamos passar ao nosso interlocutor um cenrio, uma paisagem. Numa injuno, damos uma ordem, fazemos um pedido, estabelecemos condies. Uma orao religiosa, um aviso proibindo pisar na grama, assim como a sentena proferida por um juiz ou a ordem de pagamento que enviamos a algum por meio de um banco so injunes. Dentro de um gnero, podemos utilizar diversos tipos textuais. Se, dentro do gnero telefonema, eu converso com um amigo contando uma aventura, tenho uma narrao. Se descrevo um lugar ou uma pessoa, tenho uma descrio. Se defendo uma idia, tenho uma argumentao e, quando, ao despedir-me, desejo-lhe uma boa semana, tenho uma injuno. Vejamos a pequena carta, a seguir, escrita por Machado de Assis a Joaquim Nabuco, por ocasio da morte da me deste ltimo:Meu caro Nabuco. Receba os meus psames pela perda de sua querida e veneranda me. A filosofia acha razes de conformidade para estes lances da vida, mas a natureza h de sempre protestar contra a dura necessidade de perder to caros entes. Felizmente, a digna finada viveu o tempo preciso para ver a glria do filho, depois da glria do esposo. Retirou-se deste mundo farta de dias e de consolaes. Minha mulher rene os seus aos meus psames. O velho amigo, Machado de Assis (Rio de Janeiro, 5 de out. 1902) .1

A carta tem incio com uma injuno: o voto de psames. Logo em seguida, aparece o tipo textual argumentao, (piando Machado contrape a Filosofia natureza. Depois, vem uma pequena narrao, quando ele fala do percurso de vida da falecida, assistindo glria de Joaquim Nabuco e de seu pai. Finalmente, o texto termina com outra injuno: os psames da esposa acrescentados aos do autor. Na redao classificada em primeiro lugar em 2006, num concurso patrocinado pela EPTV, cujo tema foi A doao de rgos, o efeito criativo estava justamente na utilizao da injuno, um tipo textual diferente da argumentao, que seria o tipo esperado em um texto como esse. Vejamos o primeiro pargrafo desse texto:A morte s tem importncia na medida em que nos faz pensar na vida. Por isso, quando eu me for, no me deixe ir totalmente. Tire da minha morte a esperana da vida. Doe meus rgos, assim eu no morrerei de verdade, mas me perpetuarei como parte das vidas que poderei salvar .2

Chamamos de DOMNIOS DISCURSIVOS instncias socioculturais que congregam gneros que podem estar prximos ou terem naturezas extremamente diferentes. O discurso jurdico congrega gneros prximos como petio, sentena, acrdo. J o discurso jornalstico inclui gneros to diferentes como reportagens, editoriais, anncios classificados, horscopo etc.

1. Joaquim Maria Machado de Assis em: "Epistolrio", Obra Completa, p. 1061.

2. Bruna Henrique Albuquerque, aluna da 8 srie da E. E. Antnio Milito de Lima, em So Carlos, SP.

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O TEXTO ESCRITO

O homem com a capacidade da fala surgiu sobre a face da Terra h milhares de anos, mas, como vimos, s aprendeu a escrever por volta de 3200 anos antes de Cristo. Isso aconteceu na Sumria, na regio onde hoje fica o Iraque, e foi fundamental para o incio das civilizaes. Tanto verdade que a inveno da escrita configura a fronteira entre a Pr-Histria e a Histria. As grandes obras arquitetnicas, a literatura escrita, a Filosofia somente puderam existir, quando algum, lanando mo de uma esptula ou de uma pena, conseguiu fazer clculos, desenhos e depositar seus pensamentos e emoes sobre um suporte fsico qualquer, fosse uma tbua de argila, um papiro ou um pergaminho. Graas escrita, voc pode fazer sua mente viajar na leitura dos jornais do dia, informando-se sobre o que est acontecendo no seu pas ou no resto do mundo. Lendo livros, voc descobrir que a escrita tambm uma espcie de "mquina do tempo" que pode lev-lo a um passado muito distante. Imagine que voc, lendo um livro escrito h muito tempo, se depara com o seguinte trecho:Tal como um fogo destruidor abrasa uma floresta imensa, nos cumes de uma montanha e de longe se v o seu claro, assim, o bronze maravilhoso dos guerreiros em marcha lanava o seu brilho resplandecente, atravs do ter, at ao cu .3

poema chamado Ilada, produzido nove sculos antes da era crist. A escrita, como "mquina do tempo", levou voc trs mil anos atrs e o fez contemplar o brilho das armaduras dos heris conduzidos guerra sob a proteo da deusa Atena.

EXERCCIOS

1. Consulte um jornal do dia e procure relacionar pelo menos cinco textos de gneros diferentes. Tente explicitar diferenas entre eles. 2. Para cada um dos textos do exerccio anterior, identifique pelo menos dois tipos textuais. 3. Leia o texto a seguir:A poupana precaucionara feita sob o signo da prudncia. Ela relete uma postura defensiva perante o futuro. O que se busca no um amanh radiante, mas precaver-se do pior. J o uso excedente, visando a finalidades simblicas, define o que podemos denominar poupana suntuaria. Ela inclui, de um lado, a transferncia de trabalho e recursos do presente para o futuro, feita em nome da obteno de ulguma bno ou favor celeste (como na construo de pirmides e templos ou na realizao de sacrifcios e oferendas). Se h alguma forma de existncia aps a morte e se os deuses se regalam com a materializao de vastas quantidades de trabalho humano em "splicas de pedra" e outras homenagens, ento a poupana suntuaria obedece lgica dos juros: "pagar agora, viver depois". As poupanas precaucionara e suntuaria atendem a diferentes motivaes humanas, mas tm uma caracterstica importante em comum. So ambas economicamente estreis. Quer dizer: elas no realimenlam o processo produtivo de modo a expandir e incrementar sua capacidade de gerar bens e servios para o consumo futuro. O grande divisor de guas - a mudana verdadeiramente capital - nesia dimenso da experincia social humana foi a descoberta e gradual consolidao de uma modalidade de poupana que, em contraste com

Pense um pouco comigo: essa imagem do exrcito grego em marcha para lutar contra os troianos faz parte de um3. Homero, Ilada, p. 36.

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as demais, capaz de procriar, ou seja, capaz de retroalimentar o processo produtivo que lhe deu origem, vivificando o mundo do trabalho, capitalizando-o e frutificando mais de si mesmo: a poupana reprodutiva. A poupana reprodutiva me de si mesma. Ao contrrio de outras modalidades de poupana, que saem do circuito econmico ao cumprirem a funo a que se destinam, ela reentra no sistema, realimentando o processo que lhe deu origem e permitindo a gerao em escala ampliada de cpias de si mesma .4

4REFERENCIAO CRIATIVA

a) b) c) d)

Explique os trs tipos de poupana. Como entende a expresso "splicas de pedra"? Em que consiste o grande divisor de guas? Que significa dizer que a poupana produtiva me de si mesma?

INTRODUZINDO UMA REFERNCIA

4. Eduardo Giannetti, 0 Valor do Amanh, pp. 244-246, adaptado.

Quando produzimos um texto sobre algum assunto, colocamos nele referncias sobre o mundo real ou sobre mundos possveis, mas, embora seja bvio, preciso sempre ter conscincia de que essas referncias, materializadas pelas palavras, no so as prprias coisas, mas a maneira ( orno as vemos e as transportamos para os nossos textos. Se, falando sobre o mundo real, eu digo que "um automvel passou em alta velocidade", a palavra automvel no o objeto fsico automvel, mas apenas uma representao lingstica que eu escolhi. Minha escolha poderia ter sido outra, como "um carro passou em alta velocidade". Se, falando de outros mundos possveis, existentes apenas na nossa imaginao, eu digo que Harry Potter lutou contra um drago, a palavra draeo apenas uma referncia, uma representao lingstica desse ser imaginrio, que poderia ser nomeado, por exemplo, como "um animal mitolgico alado que lana fogo pelas ventas". As referncias que pomos em um texto, portanto, i i ; i o se confundem com o que existe no mundo real ou em mundos possveis; so apenas reconstrues dos seres desses mundos no plano da linguagem.

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ANTNIO SUAREZ ABREU

O DESIGN DA ESCRITA UMA FRASE B, CONSEGUIMOS RECUPERAR UMA REFERNCIA ANI I.RIOR, PRESENTE EM UMA FRASE

Quando criamos pela primeira vez uma referncia em um texto, dizemos que pomos nele uma referncia inicial, ou referncia zero. Para cri-la, temos de procurar construir uma imagem aproximada do pblico-alvo que queremos atingir. Qual a idade dele? Qual sua formao acadmica e cultural? Quais so suas crenas? Qual o domnio que ele tem do assunto que vamos desenvolver em nosso texto? Se voc estiver escrevendo um texto sobre ecologia para adolescentes de 13 anos, contraproducente inici-lo, dizendo, por exemplo, que "uma mudana num ecossistema pode ocasionar srios problemas". Afinal, bem provvel que seu leitor no saiba o que um ecossistema. Essa referncia tem de ser trabalhada adequadamente para ser introduzida pela primeira vez no seu texto. Seria melhor comear dizendo: "Em um ambiente em que convivem seres vivos que se relacionam entre si e com o meio em que vivem, uma mudana pode ocasionar srios problemas". Mais frente, voc poder referir-se a esse ambiente chamando-o de ecossistema, mas a introduo desse conceito, pela primeira vez, deve respeitar o conhecimento prvio de quem vai ler o texto. Resumindo: NA INTRODUO DE UMA REFERNCIA EMUM TEXTO, DEVE-SE CONSIDERAR O NVEL DE CONHECIMENTO DE QUEM VAI LER.

A. Vejamos o seguinte texto:

Santos Dumont viajou para a Frana aos 19 anos. L, ele inventou o dirigvel e o avio. Na segunda frase (frase B), o advrbio l recupera a referncia Frana da primeira frase (frase A). O mesmo acontece Com o pronome ele, que, na segunda frase, que recupera a referncia Santos Dumont. Imaginemos uma outra seqncia como: Pedimos uma cerveja. Uma cerveja no veio gelada. Diante dela, achamos algo estranho. Embora cada uma das frases que a compem esteja gramaticalmente correta, as duas juntas no formam um todo. No sabemos se a cerveja (l;t segunda frase tem a mesma referncia da primeira. Falta .i coeso textual. Trocando o artigo indefinido uma pelo definido a, teremos: Pedimos uma cerveja. A cerveja no veio gelada. Agora, sim, as duas frases formam um todo que podemos chamar de texto. Voltando ao primeiro trecho, o da viagem de Santos Dumont, poderamos dar a ele outras redaes. Vejamos uma primeira alternativa: Santos Dumont viajou para a Frana aos 19 anos. L, inventou ii dirigvel e o avio. Lendo a segunda frase, ligamos imediatamente o ad-

CONSTRUINDO UMA REFERNCIA

Depois de introduzir uma referncia pela primeira vez em um texto, voc ter, com certeza, necessidade de retomla mais adiante. A maneira de fazer isso se chama coeso textual que pode ser definida como UM PROCESSO PELO QUAL, EM

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ANTNIO

SURE7.

ABREU

O DESIGN DA ESCRITA

vrbio l ao termo Frana, mas no temos nenhuma palavra para recuperar Santos Dumont. Examinando, contudo, a frase com mais ateno, conclumos que possvel relacionar o agente do verbo inventar {inventou) a Santos Dumont, ou seja: existe uma "posio vazia" antes de inventou que recupera o termo Santos Dumont. As gramticas do portugus costumam chamar isso de sujeito oculto ou elptico. Pois : agora voc fica sabendo que o famoso sujeito oculto no passa de uma estratgia para costurar uma frase na outra, promovendo a coeso textual por meio da recuperao de uma referncia feita anteriormente. Uma outra alternativa de redao poderia ser:Santos Dumont viajou para a Frana aos 19 anos. L, esse brasileiro inventou o dirigvel e o avio.

nome de hipernimo. Vejamos, para maior clareza, uma lista com alguns hipernimos:substantivo mesa termmetro garfo sapato So Paulo hipernimo mvel instrumento ou aparelho talher calado cidade

As pessoas que no dominam a arte da escrita costumam utilizar palavras como mesmo ou referido, para construir a coeso de seus textos, com resultado sofrvel. Compare os dois textos a seguir e sinta a diferena, para melhor, no segundo texto, com o uso de um hipernimo.Muita gente que freqenta restaurantes chineses prefere usar garfos e facas. H quem recuse os mesmos, preferindo improvisar com OS tradicionais palitos. Muita gente que freqenta restaurantes chineses prefere usar garfos e facas. H quem recuse esses talheres, preferindo improvisar com OS tradicionais palitos.

Agora, temos o termo esse brasileiro que recupera Santos Dumont. Trata-se de uma outra estratgia de coeso textual, em que utilizamos um sinnimo do termo da orao anterior. O mecanismo de coeso que faz uso de pronomes, artigos definidos e advrbios de lugar para realizar a coeso textual tem o nome de COESO POR REFERNCIA. O que faz uso de elipses (sujeito oculto, por exemplo) tem o nome de COESO POR ELIPSE. O que faz uso de sinnimos, o nome deCOESO LXICA OU LEXICAL.

O hipernimo pode ser ampliado, por motivo de clareza, como em:Santos Dumont suicidou-se no Guaruj, em plena revoluo do 3 2 . H quem afirme que o brasileiro inventor do J4-bis tenha posto fim i s u a vida pelo desgosto de ver os avies que criou sendo usados em misses de bombardeio.

A coeso lxica um dos mais importantes mecanismos de coeso textual. No exemplo anterior, o sinnimo que foi empregado para recuperar Santos Dumont foi brasileiro. Trata-se de um sinnimo bastante genrico que recebe o

A coeso lxica, por meio do uso de hipernimos simples ou estendidos, que podemos chamar de FORMAS NOMI-

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ANTONIO SI'KKZ ABREU

O

DES1N

DA ESCRITA

NAIS REFERENCIAIS,

, em grande parte, responsvel pela cla-

reza de um texto. s vezes, uma forma nominal referencial pode recuperar no um termo da orao anterior, mas uma frase inteira. Vejamos o seguinte exemplo:Hoje j nos acostumamos a viver conectados com o trabalho, a famlia e os amigos pela internet. Uma sintonia que se torna mais produtiva e prazerosa quando no depende de um infernal emaranhado de fios .1

11 intaminar a plantao", explica Guimares. Esse tipo de conduta, na verdade, j amplamente disseminada pelo Brasil, inclusive para a I ii r M rvao de pequenos jardins'.

Nesse outro texto, a palavra conduta retoma o fato de 08 agricultores usarem o cravo-de-defunto como defensivo agrcola.CONSTRUINDO A REFERENCIAO KM BUSCA DE CLAREZA

Nesse texto, a palavra sintonia, na segunda frase, retoma no um termo da anterior, mas todo o seu contedo, o fato de vivermos conectados com o trabalho, a famlia e a internet. Nesse caso, a forma nominal referencial , quase sempre, um substantivo abstrato. Outros exemplos:A associao de jogadores chegou a entrar com um processo contra a liga, alegando ms condies de trabalho. Foi o sinal de alerta para que David Stern, principal dirigente da NBA, decidisse dar o brao a torcer e aceitar a volta da velha bola, algo sem precedentes na histria do campeonato. A deciso entrou em vigor anteontem, no jogo entre Charlotte e Minnesota, time de Kevin Garnett, um dos maiores crticos da bola sinttica. "Aleluia para a bola de couro!"-'

Uma primeira funo das formas nominais utilizadas para a construo da referncia a clareza. Comea aqui o I ii imeiro passo para a redao de um texto ao mesmo tempo i laro e criativo. Compare, por exemplo, as duas verses, a leguir, de um mesmo texto:I verso Em outubro passado, quando lanou ao vento seu pacoto de sugestes para melhorar a Frmula 1 e reduzir seus custos, Max Mosley quase foi detido numa camisa-de-fora. Houve quem achasse que ele iniliii pirado de vez. Entre outras coisas, / propunha a troca de pilotos para dar mais emoo s corridas. 2 verso Em outubro passado, quando lanou ao vento seu pacoto de sugestes para melhorar a Frmula 1 e reduzir seus custos, Max Mosli \ quase foi detido numa camisa-de-fora. Houve quem achasse que o onsidente da FIA (Federao Internacional de Automobilismo) tinha pirado de vez. Entre outras coisas, o advogado ingls propunha a troca de pilotos p;n;i dar mais emoo s corridas'.a a

Aqui, a palavra deciso retoma o fato de o dirigente da NBA trazer de volta a bola de couro s quadras de basquete.No caso das pragas, os agricultores usam como defensivo a planta cravo-de-defunto para impedir que o pulgo-do-algodoeiro possa

1. Revista poca, edio especial, dez. 2006, p. 2. Folha de S. Paulo, 3 jan. 2007.

.1, Folha de S. Paulo, 10 dez. 200(i. I Revista Quatro Rodas, mar. 2003, p. 100.

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ANTNIO SUAREZ ABREU

O DESIGN DA ESCRITA REFERENCIAO COMO AVALIAO

Na segunda verso, publicada na revista Quatro Rodas, o leitor fica sabendo que Max Mosley era presidente da Federao Internacional de Automobilismo, que era ingls e que era advogado. Isso torna o texto muito mais claro para o leitor e tambm mais criativo. Existem algumas maneiras de fazer isso. Uma delas o uso das anforas'' definicionais, em que o termo utilizado para a coeso lxica uma definio da referncia inicial, como no texto a seguir:Este ano, no Brasil, o H5N1 poder ser diagnosticado num prazo de trs horas. O investimento para o diagnstico do vrus da gripe aviria implicar um investimento de R$ 39 milhes e o treinamento de 1 700 tcnicos".

M u i t a s v e z e s , q u e m fala ou e s c r e v e utiliza a c o e s o l xica para fazer u m a a p r e c i a o - positiva ou n e g a t i v a - sobre algum o u a l g u m a coisa, c o m o n o t e x t o a seguir, e m q u e o autor p r o c u r a d a r d e s t a q u e a o a r q u i t e t o b r a s i l e i r o O s c a r

Niemeyer:Niemeyer est de volta ao Olimpo da arquitetura. (...) Quando decidiu convidar essa lenda viva da arquitetura para projetar uma pavilho pequeno e temporrio, Julia Peyton Jones, a diretora da Serpeniiiii', pediu ajuda a Zaha Hadid. A arquiteta iraquiana conhece NieiIH ver pessoalmente e escreveu uma carta de apresentao". A expresso

lenda viva da arquitetura arquiteta iraquiana,

utilizada p a r a re-

Como vemos, a forma nominal o vrus da gripe aviria, que retoma H5N1, uma definio de H5N1. Outra maneira de fazer isso a utilizao de metforas como anforas didticas, como no texto a seguir:7

li

miar

Niemeyer t e m

o c l a r o o b j e t i v o d e e x a l t a r sua figura. para retomar

0 uso d o h i p e r n i m o

J Zaha

Hadid,

t e m a p e n a s o o b j e t i v o d e dar m a i o r c l a r e z a a o t e x t o .

1 IH e x e m p l o do e m p r e g o da c o e s o l x i c a p a r a a p r e c i a o negativa p o d e ser visto n o seguinte t r e c h o :

0 dicionrio da vida - o famoso cdigo gentico - pode at parecer complexo, mas muito pobre. Na prtica, a receita para a construo de qualquer organismo exige apenas 20 palavras. Mas, como toda linguagem, ele tambm pode crescer, com uma mozinha do ser humano: um grupo de cientistas dos EUA acaba de criai cinco neologismos genticos para uma coleo de fungos num laboratrio da Califrnia".-

O Brasil vai deixar de ter populao rural em 2030, se continuarem sendo usados os critrios atuais para definir o grau de urbanizao do pas. Esse absurdo, terico e prtico, foi apontado ontem pelo pesquilador da USP,Jos Eli da Veiga, em palestra realizada na 5 4 Reunio Anual da SBPC .a 10

A e x p r e s s o " a b s u r d o , t e r i c o e p r t i c o " c u m p r e o pa5. Anfora vem de do grego: an(a)- "de baixo para cima" + phor "ao de levai', transportar". Significa transportar a referncia de uma frase anterior para a frase seguinte. 6. Revista Pesquisa Fapesp, abr. 2006, p. 122, adaptado. 7. No prximo captulo, falarei um pouco mais amplamente sobre a metfora. 8. Graziela Zamponi, "Estratgias de Construo da Referncia no Gnero de Popularizao da Cincia", Referenciao e Discurso, p. 180. pel de desqualificar os atuais critrios p a r a definir o grau deIH

BANI/ao

d o pas.

9 Revista Veja, 18 jun. 2003, p. 92. 10.Jornal Folha de S. Pmt* 10 JUL 2O0B.

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ANTNIO SUAREZ ABREU

O DESIGN DA ESCRITA

UMA ALTERNATIVA PARA A CONSTRUO DA REFERNCIA: o APOSTO EXPLICATIVO

E possvel, tambm, utilizar o chamado aposto explicativo como forma de construir uma referncia, seja didaticamente, seja como avaliao. E preciso lembrar que o aposto um termo da orao que modifica seu antecedente e se identifica com ele. Quando dizemos "rio Amazonas", por exemplo, Amazonas aposto de rio, porque modifica rio e se identifica com rio (Rio Amazonas e Amazonas rio). Nesse exemplo, temos o aposto especificativo, uma vez que rio gnero e Amazonas espcie. Quando dizemos "Eisenhover, general e presidente americano", general e presidente americano aposto de Eisenhover, porque modifica Eisenhover e se identifica com ele. Nesse caso, contudo, temos um aposto explicativo, uma vez que Eisenhover espcie e general e presidente americano gnero. O aposto explicativo deve vir sempre entre vrgulas. Vejamos agora o seguinte trecho de Arnaldo Jabor:Depois, o papa ficou doente, h dez anos. E eu olhava cruelmente seus tremores, sua corcova crescente e, sem compaixo alguma, pensava que o pontfice no queria "largar o osso"?, e ria dele como um anticristo. At que, nos ltimos dias,Joo Paulo IIchegou ajnela do Vaticano, tentou falar... e num esgar dolorido, trgico, foi fotografado em dose, com a boca aberta, desesperado. Essa foto um marco, um smbolo forte, quase como as torres caindo em NY. Parece um prenncio do Juzo Final, um rosto do Apocalipse, a cara de nossa poca. E aterrorizante ver o desespero do homem de. Deus, do Infalvel, do embaixador de Cristo. Naquele momento Deus virou

homem. E, subitamente, entendi alguma coisa maior que sempre me escapara: aquele rosto retorcido era o choro de uma criana, um rosto infantil tm prantos! 0 papa tinha voltado a seu nascimento e sua vida se fechava. Ali estava o menino pobre, ex-ator, ex-operrio, ali estavam as vtimas da guerra, os atacados pelo terror, ali estava a imensa solido igual minha. Ento, ele morreu".

Nos dois primeiros pargrafos a coeso textual feita de maneira normal. No terceiro pargrafo, porm, esse procedimento ganha uma dimenso maior por ser um recurso utilizado por Jabor para reconstruir a figura do papa como objeto do seu discurso, de acordo com um novo ponto de \ ista da sua percepo. A figura do pontfice resumida por < ssa foto, retomada na frase seguinte como prenncio do Juzo Final. Logo a seguir, h dois apostos, um rosto do Apocalipse v a cara de nossa poca. Na frase seguinte, prossegue o uso da l oeso lxica. A expresso o homem de Deus retoma a figura do papa. Seguem-se dois apostos: o Infalvel, o embaixador de < 'ristn. Nas frases seguintes, prossegue o uso da coeso lxica Com mais apostos. Na frase final, temos dois apostos modii . ando a expresso o menino pobre: ex-ator e ex-operrio e mais Uma cadeia de expresses nominais construindo a figura do papa [vtimas da guerra, os atacados pelo terror), finalizando por Sua identidade com o autor do texto: ali estava a imensa solido igual minha. Como vemos, aliado coeso lxica, o aposto explicativo um importante recurso da lngua disponvel para ser usado na construo das referncias.

11. Arnaldo Jabor, Pornopultiai, pp. 6 9 - 7 0 .

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ANTONIO SURF.Z ABREI." REFERENCIAO E MEMRIA DISCURSIVA EXERCCIOS

O DESIGN DA ESCRITA

Alm da clareza e das orientaes argumentativas, a coeso lxica tambm cria outros espaos para veicular informaes, dentro de um texto. Vejamos o seguinte texto:Desde que os terroristas da Al Qaeda atacaram o World Trade Center e o Pentgono, no ano passado, h uma certeza: a organizao islmica prepara novos atentados. A dvida quando e onde. Nos ltimos dez meses, a derrota no Afeganisto e a vigilncia internacional tornaram mais difcil a comunicao entre as clulas do grupo terrorista liderado pelo saudita Osama bin Laden .a

1. Comece a escrever um texto, introduzindo uma referncia sobre os temas abaixo, imaginando que seu pblico-alvo so jovens pr-adolescentes: a) a China; b) os satlites de comunicao; c) o imposto de renda; d) um museu. 2. Comece a escrever um texto, introduzindo uma referncia sobre os temas abaixo, imaginando que seu leitor um australiano adulto que aprendeu portugus em Sidney e com quem voc se corresponde pela internet: a) o Brasil; b) a escravido no Brasil; i i Santos Dumont; d) o Carnaval. 3. Escolha um dos incios de texto do exerccio anterior e desenvolva a referncia inicial: a) por meio de uma coeso lxica neutra; I)) por meio de algumas anforas definicionais; c) por meio de coeso lxica agregando valores (positivos ou negativos); d) acrescentando alguns apostos explicativos. 1. Repita o exerccio anterior para todos os outros temas do exerccio 2.

Pela "linha do texto", somos informados de que os terroristas da Al Qaeda preparam novos atentados, no se sabe quando e onde e que a derrota no Afeganisto e a vigilncia internacional dificultaram a comunicao entre suas clulas. Pela "linha da coeso lxica", somos informados de que a Al Qaeda uma organizao islmica, que um grupo terrorista e que seu lder Osama bin Laden, de naturalidade saudita. Essas informaes poderiam tambm ser fornecidas dentro da linha do texto, mas o autor preferiu utilizar a construo da referncia para veicul-las. De fato, a coeso lxica ao longo do texto vai completando, dentro das mentes do leitor, a referncia inicial terroristas da Al Qaeda. Essa construo acumulada, que recebe o nome de MEMRIA DISCURSIVA, tem o efeito de ampliar o conhecimento enciclopdico de mundo do leitor.

12. Revista Veja, 17 jul. 2002, p. 50.

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5Uso CRIATIVO DA METONMIA: UM PROCESSO DE PROJEO

O QUE PROJEO?

Transportemo-nos para a pr-histria e imaginemos dois de nossos longnquos ancestrais que, numa manh, abandonaram provisoriamente a segurana da caverna em que moravam, em busca de comida. Esto observando as rvores, procurando frutos. Subitamente, surge um grande ligre negro que ataca um deles e comea a devor-lo. Em desabalada carreira, esquecendo a prpria fome, o sobrevivente volta caverna. No dia seguinte, sai ele de novo, procura (Ir alimento. De repente, v, a meia distncia, um tigre cinza vagando por perto. Imediatamente, pe-se a correr de volta caverna. Mas, por que ele fez isso? Afinal, o tigre que vira 11,10 era o tigre negro do dia anterior que tinha "almoado" 0 amigo! Ocorre que nosso ancestral j era dotado de um PR( >CESSO COGNITIVO DE PROJEO, ou seja, ele projetou sobre 0 tigre cinza a figura do tigre negro do dia anterior e concluiu que ele era igualmente perigoso. O resultado desse processo tem o nome de CATEGORIZAO. Intuitivamente, nosso ancestral incluiu os dois animais, o do dia anterior e o do dia seguinte em uma categoria: a de animal predador. Graas a essa habilidade cognitiva, ele pde sobreviver e, quem sabe,

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ANTNIO SUAREZ ABREU

O Dh.SKiN DA LN( RITA

ter a oportunidade de passar seus genes frente e ser um de nossos tataravs perdidos no abismo do tempo. Podemos, agora, tirar duas concluses. A primeira que um processo de projeo implica partir de um DOMNIO DE ORIGEM (no caso, o tigre negro) e aplic-lo a um DOMNIO ALVO (no caso, o tigre cinza). A segunda que esse processo faz parte do arsenal cognitivo do animal humano e sempre foi fundamental para sua sobrevivncia. Como diz Antnio Damsio, em seu livro 0 Erro de Descartes,quando somos confrontados com uma situao, a categorizao prvia permite-nos descobrir rapidamente se uma dada opo ou resultado ser vantajoso ou de que modo as diversas contingncias podem alterar o grau de vantagem .1

de METONMIA. Antigamente, a metonmia era tratada apenas como figura de linguagem. Modernamente, entendida como um dos principais processos cognitivos utilizados no (lia-a-dia pelos seres humanos. Os processos cognitivos que nos levam a fazer projees metonimicas acham-se tambm ligados a fatores hislricos e culturais. Por que uma revoluo acontecida em Pernambuco, em 1848, foi denominada "praieira"? Porque a sede do jornal liberal 0 Dirio Novo, que propagava as idias que originaram a revolta, ficava na Rua da Praia, no Recife. Temos a uma projeo metonmica que se configura pela utilizao do nome de um local pelo evento nele acontecido. Pelo mesmo processo, provm uma infinidade de denominaes como: "batalha de Waterlo" (nome de uma regio cio sul de Bruxelas onde se deu a famosa batalha em que Napoleo foi derrotado pelos ingleses), "escndalo de Watergate" (edifcio onde ficava a sede do partido democrata americano, em Washington), "deciso de Downing Street' (residncia do primeiro ministro britnico) etc. etc. Antnio Damsio, no mesmo livro citado h pouco, relaciona a metonmia tambm s nossas emoes e nos fala que, se um componente marginal se acha vinculado a algo positivo ele visto, tambm, como positivo e se, ao contrrio, ele se acha vinculado a algo negativo, visto, tambm, como negativo. Conclui ele, dizendo que "A luz que ilumina uma coisa genuinamente importante, boa ou m, brilha tambm sobre o que a rodeia" .2

A nossa experincia de projeo mais comum a da projeo de uma parte em um todo. Se estamos diante de uma pessoa sentada do outro lado de uma mesa, nossa percepo visual abarca apenas parte do seu tronco, a cabea e, possivelmente, os braos. Sabemos, entretanto, que ela se encontra inteira atrs da mesa. Essa concluso se fundamenta numa projeo: projetamos a parte que percebemos visualmente no todo que a pessoa inteira. Por esse motivo que podemos utilizar fotos 3x4 em documentos de identificao. Quando mostro uma dessas fotos a algum, ningum diz: "- Ah, a cabea do Joo". Diz, simplesmente, "- E o Joo". E tambm por esse motivo que apenas a fachada de um prdio pode ser construda como cenrio para um filme ou telenovela. Quem assiste projeta o cenrio da fachada em um prdio inteiro. Essa projeo de parte no todo chamadaI. Antnio Damsio, 0 Erro de Descartes, pp. 231-232.

por esse motivo que, muitas vezes, ao conhecer uma2. Idem, p. 145.

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O DESIGN DA ESCRITA

pessoa, podemos simpatizar ou antipatizar com ela primeira vista. O formato do rosto, o som da voz, um detalhe qualquer podem ativar nossa memria emocional para o bem ou para o mal. H uma conhecida apresentadora de televiso, muito bonita e competente, mas que, sem culpa prpria, me causou pssima impresso desde a primeira vez em que a vi, porque sua voz exatamente igual de uma professora que eu considerava antiptica. Plato, no livro em que narra o dilogo de Scrates com seu discpulo Fdon, sobre a natureza da alma, faz referncia a essa metonimia emocional, caracterizando-a como reminiscncia'.- Muito bem - prosseguiu Scrates. - No sabes o que acontece com os amantes quando vem uma lira, um traje ou qualquer outra coisa que seus amados costumem usar habitualmente? Que ao ver essa coisa pensam em seu dono? Isto a reminiscncia. [...] Poderia te dar um milho de Exemplos .3

do cigarro Malrboro, que associava o cigarro imagem de um caubi viril. A metonmia ligada s emoes explica, tambm, a paixo que certas pessoas demonstram por carros antigos. interessante acompanhar a forma como um homem de 50 .mos passeia por uma exposio desses veculos. Automveis bastante antigos, fabricados nos anos de 1920, quase no chamam sua ateno. Diante de um Mustang 1966, contudo, ele se detm emocionado. Um Ford 29 nunca fez parte da sua experincia de vida, mas o Mustang 66, que ele teve a oportunidade de ver, quando criana, circulando imponente pelas ruas da sua cidade ou estampado nas revistas da poca, pode ter sido um objeto de desejo da infncia. A metonmia explica a importncia das famosas madeleines lembradas com emoo por Mareei Proust, em sua obra Procura do Tempo Perdido, por terem sido parte de uma experincia emocional de convvio com a me em sua infncia. A metonmia tambm importante para criar uma infinidade de projees criativas. Vejamos o seguinte trecho do Werther de Goethe:4

E em funo da memria emocional metonmica que muitas agncias de propaganda utilizam locais paradisacos, belas garotas, celebridades para anunciar produtos. Elas apostam no efeito da projeo desses locais, das garotas ou das celebridades sobre aquilo que pretendem vender. Esse tipo de "colagem" chamado de amlgama cognitivo. Numa atitude, muitas vezes criminosa, algumas agncias de publicidade associam o esporte ao consumo de cigarros, e o consumo de cerveja a corpos bonitos. Um caso que ficou famoso nos anais da tica na publicidade foi a propaganda

Retido por uma reunio a que no podia faltar, no fui casa de ('adota. Que hei de fazer? Mandei l o meu criado, apenas para ter liiiilo de mim algum que se tivesse aproximado dela. E com que impacincia o esperei! Com que alegria o vi regressar! Deu-me vontade de beij-lo, mas tive vergonha. Conta-se que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, furtalhe os raios e fica por algum tempo luminosa durante a noite. Pareceume haver acontecido o mesmo com o meu criado. S o pensar que os olhos de Carlota tinham pousado em seu rosto, nas suas faces, nos

3. Plato, "Fdon ou da Alma", Dilogos, p. 137.

I Bolinho em forma de concha.

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ANTO MO STREZ ARRKU

O DESIGN DA ESCRITA

botes da sua libr, no seu colete, fez com que ele se tornasse para mim to precioso, to sagrado! Naquele momento, eu no daria o meu criado por 1 000 escudos. Eu me sentia to feliz junto dele!... Que Deus no deixe voc rir-se de tudo isto! Wilhelm, no so as vises quimricas que nos tornam felizes?5

ceu e que o av fez previso de que ele seria, futuramente, um advogado ou um poltico. A projeo metonmica tambm muito usada na poesia, como se pode ver no seguinte poema, composto em PorI iigal no sculo XV, pelo poeta Joo Roiz de Castelo Branco.CANTIGA, PARTINDO-SE7

Utilizando a projeo metonmica dos olhos da amada na figura do seu criado, Goethe escreveu esse captulo memorvel. Jos Cndido de Carvalho utilizou tambm a projeo metonmica no incio do seu conhecido romance 0 Coronel e o Lobisomem:Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capoto de meu av, passei os anos de pequenice, que pai e me perdi no gosto do primeiro leite. Como fosse dado a fazer garatujaes e desabusado de boca, l num inverno dos antigos, Simeo coou a cabea e estipulou que o neto devia ser doutor de lei: - Esse menino tem todo o sintoma do povo da poltica. invencioneiro e linguarudo .6

Senhora, partem to tristes Meus olhos por vs, meu bem, Que nunca to tristes vistes Outros nenhuns por ningum. To tristes, to saudosos, To doentes da partida, To cansados, to chorosos, Da morte mais desejosos Cem mil vezes que da vida: Partem to tristes os tristes, To fora de esperar bem, Que nunca to tristes vistes Outros nenhuns por ningum.

Para falar na perda dos pais, o narrador em primeira pessoa, na figura do Coronel Ponciano, diz "que pai e me perdi no gosto do primeiro leite", fazendo analogia entre o leite e sua me. Para criar uma situao humorstica, descreve o menino que fora, por meio de caractersticas que, dentro do imaginrio popular, fazem parte do comportamento dos doutores da lei e dos polticos: escrever garatujas (letra ruim e disforme) ser desabusado de boca, invencioneiro e linguarudo. O texto ficou muito mais criativo e bonito do que se ele dissesse, simplesmente, que tinha ficado rfo logo que nas5. Juhann Wolfgang von Goethe, Werther, p. 324. 6. Jos Cndido de Carvalho, O Coronel e o Lobisomem, p. 3.

Nesse poema, o autor projeta nos olhos, metonimii a mente, sentimentos como tristeza, saudade, cansao e desejo. Quando a projeo metonmica feita pondo foco em uma parte inalienvel de alguma coisa ou pessoa (olhos, I omo no caso desse poema), ela chamada, nos tratados de ' t dstica, de SINDOQUE.

|.,sJoaquim Nunes, Crestomatia Arcaica, p. 471. (A ortografia foi atualizada.)

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EXERCCIOS

6 1. Descreva alguma pessoa que voc conhea a partir de alguns de seus traos particulares: modo de andar, falar, agir, comportar-se. 2. Narre a histria do incio do namoro entre uma garota desleixada e um rapaz obcecado por limpeza, descrevendo, para caracteriz-los, o local do encontro entre os dois. 3. Copie alguns trechos de um poema em que o autor tenha feito uso de projeo metonmica. 4. Escreva um pequeno poema, utilizando projeo metonmica. Pode ser parte do corpo de algum, uma pea de roupa, uma jia ou parte de um cenrio, como um quadro, uma foto, uma mesa etc. Segundo Mark Turner, autor do livro The Literary Mind: lhe Origins of Thought and Language, a maior parte da nossa experincia e do nosso conhecimento organizada por meio de histrias. Quando pensamos em histrias, pensamos logo em um romance, um conto policial ou, saindo do campo da fico, em histrias envolvendo pessoas reais, em crises polticas, ou em histrias curiosas de povos distantes, como as narradas no "Discovery Channel". Ningum pensaria que uma pessoa atravessando a rua consiste em uma histria, mas uma pequena histria, uma espcie de "marco zero" de outras histrias mais complexas. Vivemos uma poro delas durante o nosso dia. Pela manh, h a pequena histria de nos levantarmos, tomarmos banho e fazermos o desjejum. Depois, a pequena histria de entrarmos no carro, sair enfrentando o trnsito, e assim por diante. Em nossas pequenas histrias dirias, somos capazes de distinguir objetos de pessoas, um objeto de outro objeto, uma pessoa de outra pessoa. Somos tambm capazes de distinguir objetos de eventos. Fazemos isso, porque o processo evolutivo nos ensinou a distinguir objetos de acontecimentos e ii reuni-los em histrias. Somos acostumados a ouvir histrias desde pequenos.56

VIVENDO HISTRIAS E FAZENDO PROJEES

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ANTONI( i SUAREZ ABREU

O DESIGN DA ESCRITA

Ouvir histrias foi um dos mais importantes processos de aprendizagem de nossos longnquos ancestrais. A noite, em volta da fogueira, um adulto falava das aventuras do dia, de como ele conseguira localizar uma presa no exerccio de uma caada e de como se aproximou dela e conseguiu matla. Em volta, as crianas ouviam, fascinadas, os relatos de sucessos e fracassos, aprendendo as tcnicas de caa, vitais para sua prpria sobrevivncia futura, numa poca em que os seres humanos ainda eram apenas coletores e caadores.A PARBOLA COMO PROJEO

infncia dentro de uma caverna, obrigados a olhar apenas para as sombras projetadas na parede (domnio de origem), Plato faz a projeo:- Meu caro Glauco, esse quadro - continuei - deve agora aplicar-se a tudo quando dissemos anteriormente, comparando o mundo visvel atravs dos olhos, caverna da priso, e a luz da fogueira que l existia, fora do Sol. Quanto subida ao mundo superior e viso do que l se encontra, se a tomares como a ascenso da alma ao mundo inteligvel, no iludirs minha expectativa, j que leu desejo conhec-la .1

PARBOLAS, PROVRBIOS F. FBULAS

Assim como fomos condicionados a fazer projees para criar categorias ou para estabelecer relaes entre partes acessrias de coisas ou acontecimentos importantes e essas prprias coisas ou acontecimentos, fomos tambm condicionados a fazer projees de uma histria sobre outras histrias. Buda, Cristo e outros grandes mestres e filsofos utilizaram projees chamadas PARBOLAS, para seus ensinamentos. Para defender a tese do resgate daqueles que se desviaram do caminho, Jesus conta a parbola do filho prdigo; para defender a tese da contribuio de cada um segundo suas posses, Jesus narra a parbola do bolo da viva. No campo da Filosofia, a projeo mais conhecida a parbola da caverna contada por Plato, na Repblica, para salientar a distino entre as "miragens" que vemos e o verdadeiro conhecimento. Em conversa com Glauco, seu irmo, depois de contar a histria de seres humanos agrilhoados desde a

As fbulas so tambm parbolas, pequenas narrativas cujo domnio alvo da projeo a vida pessoal de cada um. Vejamos a verso original da conhecida fbula da Raposa e as Uvas de Esopo:Uma raposa faminta viu uns cachos de uva pendentes de uma vinha: quis peg-los mas no conseguiu. Ento, afastou-se murmurando: "Esto verdes demais". MORAI,: Assim tambm, alguns homens, no conseguindo realizar seus negcios por incapacidade, acusam as circunstncias .2

Veja-se que, em primeiro lugar vem a histria (domnio de origem). Logo em seguida, vem o ensinamento moral (domnio alvo) que anlogo ao provrbio: "Quem desdenha quer comprar". Alis, os provrbios so parbolas condensadas. Quando vemos que algum se esfora para conseguir algo e est a ponto de desistir, podemos dizer:

1. Plato, A Repblica, p. 212. 2. Esopo, Fbulas, p. 31.

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ANTNIO SUAREZ ABREU - Agua mole em pedra dura tanto bate at que fura.

O DESIGN DA ESCRITA vao da flora etc. Concluindo: preservar seguir apenas aquela mxima antiga que diz: ratio est in media res. A razo est no meio da coisa.

Ao dizer essa frase, fazemos uma projeo cujo domnio de origem o provrbio e o domnio alvo a situao vivida por nosso interlocutor. O objetivo motiv-lo a perseverar em seu intento.ESCREVENDO TEXTOS CRIATIVOS POR MEIO DA PROJEO DE HISTRIAS

No primeiro pargrafo, temos a histria dos milionrios excntricos que compram Ferraris apenas para exp-las na sala de estar. No segundo, a projeo dessa histria sobre o tema tratado. O resultado um texto com um poder muito maior de atrair o leitor. Em uma de suas crnicas, Nelson Rodrigues narra, primeiramente, uma experincia de infncia num processo de premiao em exposio de gado:A nossa modstia comea nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez, a uma exposio de gado. E o jri, depois de no sei quantas dvidas atrozes, chegou a uma concluso. Vi, transido, quando colocaram no pescoo da vaca a fitinha e a medalha. Claro que a criana tem uma desvairada imaginao ptica. H coisas que s a criana enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pnica e pingou vrias lgrimas da gratido brasileira e selvagem-' .1

A projeo de pequenas histrias um excelente recurso para desenhar criativamente um texto. Imagine que algum queira redigir um texto defendendo a explorao sustentvel da Amaznia. Poderia dizer, por exemplo, que tanto devastar essa regio de maneira irresponsvel quanto deix-la intocada so um mau negcio e que o ideal seria aproveit-la de maneira racional. Mas essa mensagem ficar mais bem gravada na cabea do leitor se, primeiramente, criarmos uma imagem por meio de uma pequena histria, para, depois, projet-la na defesa da nossa tese, como no seguinte texto:Li, em uma revista especializada em automveis, que h alguns milionrios americanos malucos que, tendo comprado uma Ferrari de um milho de dlares, em vez de us-la, colocam-na em exposio, como enfeite, na sala da manso em que costumam receber seus convidados. Quando se fala em preservao da Amaznia, h muita gente que pensa dessa maneira. Ora, preservar no quer dizer no utilizar. preciso ser contra o desmatamento predatrio, no contra o desmatamento racional. preciso ser contra a retirada irracional de madeira, no contra sua retirada racional. Isso vale para a pesca, a caa, a preser-

Na seqncia do seu texto, fala, mais frente, sobre a cerimnia de premiao de importantes figuras brasileiras:Fiz as divagaes acima porque assisti, no ltimo sbado, entrega dos prmios do Museu da Imagem e do Som. [...] Sala Ceclia Meireles. Como o governo da Guanabara estava ligado aos prmios, compareceu o governador Negro de Lima que, em pessoa, faria a entrega. E, para maior nfase do acontecimento, puseram l uma banda de msica. Um dos premiados era Oscar Niemeyer. Outro: Gluber Rocha; outro ainda: Pele .4

3. Nelson Rodrigues, A Cabra Vadia, p. 20. 4. Idem, p. 22.

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O DESIGN DA ESCRITA

Logo a seguir, na continuao do texto, Nelson retoma a pequena histria inicial, projetando-a sobre a premiao de um dos agraciados:Dir algum que eram prmios modestos. No importa. A vaca j citada recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha. E nasceu nos seus dentes toda uma espuma; a gratido escorria-lhe em forma de baba elstica. Eis o que me perguntava: - como reagiria Oscar Niemeyer?5

No primeiro pargrafo, o autor explica como o pavo, sendo pobre em cores, obtm uma quantidade infinita de matizes, por meio da luz refratada nas bolhas d'gua presentes em suas penas. No ltimo pargrafo, faz a projeo: aquilo que o torna magnfico como amante so apenas seus olhos recebendo a luz que emana dos olhos da amada.

EXERCCIO

O efeito dessa projeo sarcstico: leva o leitor a visualizar o famoso arquiteto babando, ao receber seu prmio. Trata-se de uma dura crtica a como nos deixamos iludir por essas honrarias (medalhas, fitinhas, placas etc.) que at mesmo as vacas costumam ganhar. Um outro exemplo, desta vez cheio de lirismo, o que nos apresenta a seguinte crnica de Rubem Braga:O PAVO Eu considerei a glria de um pavo ostentando o esplendor de suas cores; um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas no existem na pena do pavo. No h pigmentos. O que h so minsculas bolhas d'gua em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavo um arco-ris de plumas. Eu considerei que este o luxo do grande artista, atingir o mximo de matizes com o mnimo de elementos. De gua e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistrio a simplicidade. Considerei, por fim, que assim o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glrias e me faz magnfico. (Rio, novembro, 1958)6

Escreva textos sobre os temas a seguir, utilizando pequenas histrias como fonte de projeo. Voc pode recorrer a livros que j leu, revistas, jornais ou prpria imaginao: |) perseverana e vitria; 11) ajudar o prximo sem esperar recompensa; c) ser honesto; 11 lazer previso de gastos; t) vender alguma coisa pelo preo justo; l escolher uma profisso. Na resoluo do exerccio a), voc pode comear contando a histria de algum que se superou e venceu na vida; em b), um ipisdio da vida de Madre Teresa de Calcut, por exemplo, e r i m por diante.PROJEES DE AES EM EVENTOS

5. Idem, ibidem. 6. Rubem Braga, Ai de Ti Copacabana, p. 120.

Ns temos duas formas de percepo: o espao e o tempo. \ i\ emos dentro de um espao e somos sensveis ao decorrer do icmpo. Temos conscincia, tambm, de que, embora posi M ii is voltar a um ponto em que j estivemos (espao), no podemos voltar a um momento que j vivemos (tempo).

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Quanto ao entendimento, ns, humanos, desenvolvemos duas "ferramentas": a categorizao, que j vimos no captulo anterior, e a causalidade. Se dentro de uma sala houver um gato e algum, de fora, fizer rolar uma bola sobre o cho, o gato, imediatamente, ir atrs da bola. Mas, se dentro dessa mesma sala, estiver um ser humano, a primeira coisa que ele ir fazer ser voltar-se para a direo da origem da bola, procurando saber de onde vem e quem a atirou. Embora determinadas aes como castigar e mastigar sejam prprias de seres animados, costumamos, s vezes, projet-las em eventos. E o que acontece, quando dizemos que "a chuva castiga o sul do pas", ou que "a impressora est mastigando o papel". Outros exemplos:A. inflao comia os salrios antes do Plano Real. Minha intuio me diz que devo parar de confiar nos outros. Aos trinta e dois anos, um cncer o pegou de surpresa.

mitologia nrdica, a origem dos troves tinha como ator o deus Thor que os produzia brandindo nos cus um martelo chamado de mjolnir. Tambm os romanos tinham mitos bastante criativos, como o da deusa Fortuna, que explicava a boa ou a m sorte das pessoas. Essa deusa era representada pela esttua de uma jovem carregando em uma das mos uma cornucopia, espcie de vaso em forma de chifre com frutos e flores, sugerindo abundncia, e, em outra, um leme de navio. Se movesse a cornucopia em direo a um humano, ele era beneficiado com a riqueza. Se movesse o leme, a prosperidade se afastava dele. A transformao de algo inanimado em ator, mudando eventos em aes, um importante recurso para o design de um texto. Vejamos o seguinte trecho de Joaquim Nabuco:s vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzir a um s. Minha hesitao seria Bntre a Frana e a Inglaterra - alis, sei bem que no comeo do sculo quem eliminasse a Alemanha do movimento das idias, da poesia, da irte, eliminaria o que ele teve de melhor. Entre a Frana e a Inglateri.i, porm, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, socorrer a Frana. "Se Madame Rcamier e eu estivssemos a nos afogar, qual de Ils duas o senhor salvaria?" perguntou uma vez Madame de Stal ao eu amigo Talleyrand. "Oh! Madame, vous savez nager." A Inglaterra, tambm, sabe nadar .7 8

A imaginao dos povos antigos, aliada a essa necessidade de encontrar uma causa animada, criou, para os fenmenos que no sabiam explicar, os mitos, que so formas de projetar aes em eventos. Em vez de entender os raios e troves como fenmenos da natureza, os gregos construram uma histria pondo Zeus como um ator divino que atirava os raios sobre a Terra. Mas... quem manufaturava os raios? Bem, como Zeus era o deus dos deuses, no poderia, devido sua importncia hierrquica, fabric-los. Para dar conta dessa tarefa, os gregos construram outra histria segundo a qual Hefesto, um deus menos importante, era encarregado de produzi-los. Segundo a lenda, esse deus teria fabricado tambm o Carro de Apolo (o sol) e as armas de Aquiles. Na

"A Inglaterra, tambm, sabe nadar." Aqui, Nabuco pro|eia um ator, um ser animado, Madame de Stal, em um ser iM.iilimado: a Inglaterra. Em estilstica, esse procedimento i | 111 o nome de HIPLAGE.I >li! Madame, vs sabeis nadar." H |i mi |uim Nabuco, Minha Formao, p. 85.

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A propsito, nosso Hino Nacional comea com uma projeo por hiplage:Ouviram do Ipiranga as margens plcidas De um povo herico o brado retumbante E o sol da liberdade, em raios fulgidos, Brilhou no cu da Ptria nesse instante.

Muitos interpretam que quem ouviu o brado retumbante foram pessoas, imaginando que o verbo "ouvir" (em "ouviram") est em uma forma impessoal de terceira pessoa do plural, como em "bateram porta". O sujeito da frase, entretanto, so "as margens do Ipiranga", transformadas por Duque Estrada em atores capazes de ouvir. A ordem direta seria: "As margens plcidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo herico". Convenhamos que a ordem invertida dificulta bastante o entendimento da ao projetada. Vejamos um belo exemplo de projeo de uma ao num evento, no poema de Vicente de Carvalho intitulado "A Flore a Fonte":"Deixa-me, fonte!" Dizia A flor, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor. "Deixa-me, deixa-me, fonte!" Dizia a flor a chorar: "Eu fui nascida no monte... No me leves para o mar". E a fonte, rpida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flor.

"Ai, balanos do meu galho, Balanos do bero meu; Ai, claras gotas de orvalho Cadas do azul do cu!..." Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte, sonora e fria Rolava levando a flor. "Adeus, sombra das ramadas, Cantigas do rouxinol; Ai, festa das madrugadas, Douras do pr do sol; Carcia das brisas leves Que abrem rasges de luar... Fonte, fonte, no me leves, No me leves para o mar!..." As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor...

Nesse p o e m a a fonte e a flor se t o r n a m atores v i v e n d o um conflito. N o s v e r s o s finais, esse conflito p r o j e t a d o na vida do eu-lrico do p o e t a : tal qual a flor l e v a d a ao m a r pela fonte, sua v i d a e o q u e restou do seu a m o r esto s e n d o l a m b e m levados.

EXERCCIO

C o n t e p e q u e n a s histrias e m q u e o s atores sejam, r e s p e c tivamente: a) um m o i n h o ; b) um lago; c) u m a rvore;

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d) e) f) g)

um carro; uma jia; uma arma de fogo; uma caneta.

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COMPARAES E METFORAS COMO PROJEES

s vezes, a projeo de imagens feita por comparar o . So famosas as comparaes feitas por Jos de Alencar. Vai aqui um trecho de Iracema, um de seus mais famosos romances:Alm, muito alm daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos mais (iegros que a asa da grana e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati no era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hlito perfumado'.

Alencar projeta, por comparao, a cor das asas da ff] ana aos cabelos de Iracema, cujo comprimento medido pelo tamanho de seu corpo, por sua vez comparado com o talhe de uma palmeira. A seguir, projeta a doura do favo da lati em seu sorriso e o perfume da baunilha, em seu hlito. O i esultado a criao de uma ndia hollywoodiana em plena selva brasileira. Veja o poder da projeo por comparao no seguinte trecho do Hamlet de Shakespeare, no momento em que o

i |i >'.i('posio a, como em:Ku fui casa da minha prima. Eu cheguei a So Paulo s lOh.

1. Cf. George Lakkof & MarkJohnson, Metaphors We Live By, p. 15. 2. Carlos Drummond de Andrade, Antologia Potica, p. 196.

Contrariando essa orientao, os brasileiros utilizam, n.i lngua oral, a preposio em no lugar de a, dizendo:

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(l DESIUN DA ESCRITA

Eu fui na casa da minha prima. Eu cheguei em So Paulo s l()h.

obstrui a leitura fluviante, flutuai, aula a ateno, isca-a com o risco .3

Isso acontece porque "casa" e "cidade" so containers. Quando vamos casa de algum, entramos dentro dela e, quando vamos a uma cidade, tambm entramos nela. E tambm o esquema de container que interfere na regncia de um verbo como passar. Dizemos: "hoje passei pela avenida Paulista", mas "antes de voltar para casa, passei na padaria". Em "passei pela avenida Paulista", h apenas o esquema do percurso (caminho), mas, em "passei na padaria", h o esquema do container, uma vez que se entra dentro da padaria quando se vai a ela. Um interessante uso do container como esquema de imagem o do poema de Joo Cabral de Melo Neto, intitulado "Catar Feijo":CATAR FEIJO Catar feijo se limita com escrever: jogam-se os gros na gua do alguidar e as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiar no papel, gua congelada, por chumbo seu verbo pois para catar esse feijo, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijo entra um risco: o de que entre os gros pesados entre um gro qualquer, pedra ou indigesto, um gro imastigvel, de quebrar dente. Certo no, quando ao catar palavras: a pedra d frase seu gro mais vivo:

Na primeira estrofe desse poema, a proposta do autor Utilizar como domnio de origem a ao de catar feijo, utilizando uma panela cheia d'gua, ou seja, um container, para projet-la em um domnio alvo: escrever um texto potico. Entretanto, logo no quinto verso, o poeta percebe a no-adeqnao do container escolhido para a escrita: uma folha de papel no apropriada para suas pretenses. Projeta, ento, a imagem do gelo (que branco} na folha (branca) de papel: "gua congelada". Nem assim as coisas se resolvem. Muda, Bnto, parte do domnio de origem: catar feijo passa a ser, agora, uma ao feita sobre uma superfcie plana (adequando se estrutura de uma folha de papel), soprando fora os feijes estragados que so ocos, a palha e o eco (repetio de sons em finais de palavras). A segunda estrofe um comentrio sobre a adequao I H no desse segundo domnio de origem: o de soprar as imI lurezas do feijo sobre uma superfcie plana. Chega ele conI luso de que, no domnio de origem, pequenas pedras no iBo sopradas e podem constituir um obstculo para o consumo do feijo: "entre os gros pesados entre / um gro qualquer, Iiedra ou indigesto, / um gro imastigvel, de quebrar dente". I >essa vez, contudo, mantm o domnio de origem, aceitando u pedra no domnio alvo, como uma projeo da dificuldade que ele pretende pr frente do leitor, ao ler um poema seu: "a I iidia d frase seu gro mais vivo: obstrui a leitura fluviante,l Jofto (Jabral de Melo Neto, A Educao pela Pedra.

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flutuai / aula a ateno, isca-a com o risco ". Cumpre dizer que o prprio poema j um exemplo da arte potica de "colocar pedras" ao longo do percurso da escrita. O exemplo mais visvel a troca de sufixos entre "flutuante" e "fluvial", produzindo "fluviante", "flutuai". O esquema de projeo final, agora, o da imagem de percurso com a pedra no caminho. Esse poema uma espcie de profisso de f de Joo Cabral. Para entender isso, basta ler o trecho a seguir, de uma entrevista que o poeta deu ao jornal 0 Globo, em 1973:Quando eu comecei a escrever, eu encontrei vigente na poesia brasileira um tipo de linguagem que no me interessava muito, com algumas excees. Ento, eu procurei um tipo de linguagem que no era o que estava sendo usado correntemente. Eu tentei criar uma outra linguagem, no completamente nova, como os concretistas fizeram, mas uma linguagem que se afastasse um pouco da linguagem usual. Ora desde o momento em que voc se afasta da norma voc se faz esta palavra antiptica que "hermtico". Quer dizer, voc se faz hermtico numa leitura superficial. Agora, se o leitor ler e reler, estudar esse texto, ele ver que a coisa no to hermtica assim. Apenas est escrito com um pequeno desvio da linguagem usual .4

Antesmente preciso. Deus no se comparece com refe, no arrocha o regulamento. Pra qu? Deixa: bobo com bobo - um dia, algum estala e 1 prende: esperta. S que s vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...1

O esquema de fora dinmica provocado pelo contato entre duas partes exemplificado pelas facas que se atritam e ;imolam, pelas pedras do riacho que se atritam e arredondam e, em seguida, projetado no atrito entre os seres humanos, como resultado de uma ao divina. Logo em seguida, Rosa faz mais uma projeo desse esquema, ao narrar o constrangimento vivido por Riobaldo, j ex-jaguno, quando se defronta, num vago de trem, com um delegado mau e bruto chamado Jazevedo:Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, l em SeteI agoas, para partes de consultar um mdico, de nome me indicado. Pui vestido bem, e em carro de primeira, por via das dvidas, no me sombrearem por jaguno antigo. Vai e acontece perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltando deste brabo Norte um moo |.i/.vedo, delegado profissional. Vinha com um capanga dele, um sel reta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro ruim era .fi

Um magnfico exemplo do emprego do esquema de fora dinmica o utilizado por Guimares Rosa no texto a seguir:O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim como ruim, termina por as espinheiras se quebrar - Deus espera essa gastana. Moo!: Deus pacincia. O contrrio, o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca - e afia - que se raspam. At as pedras do fundo, uma d na outra, vo-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto h neste mundo, porque se merece e carece. 4. 0 Globo, 27 out. 1973.

EXERCCIOS

I. Escreva um texto resumindo a histria de duas pessoas que se amavam muito, mas que se acabaram desentendendo e se separando. Use, para isso, o esquema de percurso.

I [o&o Guimares Rosa, Grande Serto: Veredas, p. 10. ii Idem, ibidem.

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2. Fale um pouco do amor que um rapaz tem por uma garota, utilizando o esquema do container. Voc pode utilizar o corao, a cabea, a pele como container para fazer essa projeo. 3. Descreva um momento de desentendimento entre esses dois amantes, utilizando uma projeo vinculada ao esquema de fora-dinmica.PROJEO DE IMAGENS E VALORES

Um outro exemplo interessante dessa transferncia de valores o fato de, na cultura judaico-crist, o conceito de Deus estar ligado metaforicamente ao conceito de pai ("Pai nosso que estais no cu..."). O jramee pai inclui proteo, responsabilidade, mas inclui tambm controle, ameaas, punio etc. Conheci um religioso que dizia ser muito difcil ensinar uma criana carente a rezar o Pai Nosso, pois a metfora do pai trazia imagens negativas, de abandono, violncia, ausncia, todas elas vinculadas sua prpria experincia. Em seu best-seller O Ponto de Mutao, Fritjof Capra faz aluso aos valores transferidos pelas projees de imagem, quando comenta a diferena entre culturas em que a imagem da divindade masculina e aquelas em que ela feminina:Quando essa imagem do pai aplicada a Deus, ela evoca natui ;ilmente as noes de obedincia, lealdade e f, e inclui, com freqncia, alguma imagem de desafio, com subseqentes prmio ou punio. \ imagem da Deusa, por outro lado, segundo Bruteau, representa uma soluo do problema Uno/Muitos [...] Sua relao caracterizada por harmonia, ternura e afeio, em vez de desafio e drama. Tal imagem claramente maternal, refletindo o amor incondicional da me, em que me e filho esto fisicamente unidos e participam juntos da vida*.

Um aspecto importante nos processos de projeo que eles transferem valores provindos do domnio de origem para o domnio alvo. Se utilizarmos, por exemplo, a metfora da guerra para falar de negcios, dizendo algo como "- Na batalha dos negcios, devemos sempre saber a hora de atacar e de recuar" -, traremos para o campo da negociao um valor negativo, estressante, ligado a vencer ou ser vencido. Se utilizarmos uma metfora de percurso, dizendo que "- na aventura dos negcios, devemos saber a hora de apreciar uma bela paisagem e a hora de procurar novos caminhos" -, traremos um valor positivo, ligado ao ldico, a alguma coisa que pode causar prazer. Joseph Campbell, comentando esse fato em seu livro 0 Poder do Mito diz o seguinte:Minha idia do horror verdadeiro o que se v em Beirute. Voc tem l as trs grandes religies do Ocidente, judasmo, cristianismo e islamismo; e como as trs tm nomes diferentes para o mesmo deus bblico, no so capazes de conviver. Cada uma est fixada na prpria metfora e no se d conta da sua referencialidade. Nenhuma permite que se abra o crculo ao seu redor. So crculos fechados. Cada grupo diz: "Somos os escolhidos, Deus est conosco"'. 7. Joseph Campbell, 0 Poder do Mito, p. 22.

Talvez isso explique o culto a Maria, dentro da religio Catlica, como um contraponto s divindades masculinas i no Deus e o prprio Cristo. O fato de Maria ser chamada de "medianeira" um indicador dessa funo feminina. Em vez de pedir alguma coisa diretamente a Cristo ou a Deus, pede-se a Maria, que nos ama com amor materno incondi(lonal. Por meio desse frame, o pedido chega, finalmente,

H Fritjof Capra, 0 Ponto de Mutao, pp. 406-407.

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divindade masculina. O prprio Vieira explora essa dicotomia entre imagem feminina e masculina, no Sermo pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, quando diz:Perdoai-nos, Senhor, pelos merecimentos da Virgem Santssima. Perdoai-nos por seus rogos, ou perdoai-nos por seus imprios; que, se como criatura vos pede por ns o perdo, como Me vos pode mandar e vos manda que nos perdoeis. Perdoai-nos, enfim, para que a vosso exemplo perdoemos; e perdoai-nos tambm a exemplo nosso, que todos desde esta hora perdoamos a todos por vosso amor".

9ASPECTOS FUNCIONAIS DOSPROCESSOS DE PROJEO

Nesse trecho, Vieira aciona tambm o frame do filho que deve obedincia me. A transmisso de valores nos processos de projeo representa uma excelente ferramenta para a criatividade, pois podemos fazer escolhas de valor no momento em que quisermos destacar alguma parte do nosso texto.

At o momento, discutimos os aspectos cognitivos dos processos de projeo. Mas ainda nos fica uma pergunta: por cpie os seres humanos fazem essas projees? Em outras palavras: qual a funcionalidade delas? No captulo anterior, trabalhamos principalmente com textos literrios cuja principal funo provocar o estranhamento, a emoo esttica. Para isso, em vez de utilizar uma linguagem mais direta e usual, o escritor lana mo de imagens, levando seus leitores a abrir espaos mentais dentro dos quais lm de construir relaes diversas do senso comum, matizando O entendimento de um fato com novas cores e sentimentos. Os processos de projeo podem ter, porm, a funo mais prosaica de simples denominao lexical, como quando ralamos em "casa de boto", "boto de rosa", ou em "colnia de bactrias", criando sentidos diversos (polissmicos) e, ainda, outras funes como a pedaggica, que tem por objetivo trazer clareza a um texto, ou argumentativa, quando tem por objetivo convencer e persuadir.FUNO PEDAGGICA OU DE CLAREZA

).

www.ceveh.com.br/sermoes/portxhol.htm.

Vejamos o seguinte texto de Rubem Alves:

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ANTNIO SUAREZ ABREU O que uma teoria? Teorias so culos feitos com palavras para ajudar os olhos a ver o que normalmente no vem. Os olhos vem o mundo de um jeito. Usando os culos da teoria, a gente passa a ver o mundo de uma maneira diferente. Olhando para os cus, sozinhos, os olhos vem o sol e os cus estrelados girando em torno da terra plana, parada imvel. Usando os culos da teoria, eles vem o contrrio: uma terra redonda girando como um pio. No so os cus que giram; a Terra. Os olhos nos dizem que a tendncia de todo movimento o repouso. Tudo o que se movimenta pra: o pndulo pra, a bola que o jogador chula pra, a flecha que o arqueiro lana pra. Pondo os culos da teoria que Galileu construiu, chamada "princpio da inrcia" a gente v o contrrio: a tendncia de todo movimento continuar em movimento, indefinidamente. Olhando para os animais, a gente v aquela variedade fantstica de formas vivas, todas prontas. Pondo os culos da teoria da evoluo, todas essas formas vivas aparecem interligadas, uma saindo de dentro das outras. As teorias surgem quando a gente comea a desconfiar dos olhos. Elas so inventadas para a gente ver aquilo que os olhos no vem .1

O DESIGN DA ESCRITA roso. O que no universo postal representaria um desperdcio de papel, ou o precursor do spam no correio eletrnico, na fisiologia do doente se manifesta como toxicidade, o dano causado pelo remdio em clulas e tecidos que nada tm a ver com a molst