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Discutir o racismo no Brasil é muito complicado. Complicado porque falta muita seriedade no debate entre o público leigo, público tanto passivo quanto ativo às práticas discursivas do racismo. No meio acadêmico a discussão é riquíssima no sentido de trazer à tona novas abordagens e reinterpretações sobre o nosso passado colonial escravocrata. Mas o debate perde em qualidade quando o tema “racismo” se fecha, se isola nas comunidades acadêmicas. Quando isso acontece, o alcance dos discursos racistas por parte das camadas conservadoras é muito maior sobre a sociedade. Há necessidade dos pesquisadores acadêmicos democratizarem os frutos das suas pesquisas nas mídias mais acessíveis e em linguagens acessíveis aos leigos. Se isso não acontecer, discursos preconceituosos dos Danilos Gentilis serão mais receptivos, alimentando as práticas racistas que vemos na atualidade. Um dos principais argumentos dos racistas, é o de que no Brasil não existe racismo. Para eles, o que existe é um “coitadismo exacerbado” que vê racismo em tudo. Para construírem tal argumento, utilizam o famoso bordão: “Mas que mal há em chamá-lo de macaco? Me chamam de palmito e eu nem ligo.” É o que dizem os Gentilis. O que eles ignoram é o fato de que a ideologia inerente à animalização do negro, foi um fator determinante para legitimar a escravidão dos negros africanos desde os tempos em que aquele continente se viu sob o jugo do império islâmico. Até nos escritos gregos da Antiguidade, principalmente nos escritos de Hipócrates e Galeno, ambos, médicos, o negro africano é

Discutir o Racismo No Brasil é Muito Complicado

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Page 1: Discutir o Racismo No Brasil é Muito Complicado

Discutir o racismo no Brasil é muito complicado. Complicado porque falta muita

seriedade no debate entre o público leigo, público tanto passivo quanto ativo às

práticas discursivas do racismo. No meio acadêmico a discussão é riquíssima

no sentido de trazer à tona novas abordagens e reinterpretações sobre o nosso

passado colonial escravocrata. Mas o debate perde em qualidade quando o

tema “racismo” se fecha, se isola nas comunidades acadêmicas. Quando isso

acontece, o alcance dos discursos racistas por parte das camadas

conservadoras é muito maior sobre a sociedade. Há necessidade dos

pesquisadores acadêmicos democratizarem os frutos das suas pesquisas nas

mídias mais acessíveis e em linguagens acessíveis aos leigos. Se isso não

acontecer, discursos preconceituosos dos Danilos Gentilis serão mais

receptivos, alimentando as práticas racistas que vemos na atualidade.

Um dos principais argumentos dos racistas, é o de que no Brasil não existe

racismo. Para eles, o que existe é um “coitadismo exacerbado” que vê racismo

em tudo. Para construírem tal argumento, utilizam o famoso bordão: “Mas que

mal há em chamá-lo de macaco? Me chamam de palmito e eu nem ligo.” É o

que dizem os Gentilis. O que eles ignoram é o fato de que a ideologia inerente

à animalização do negro, foi um fator determinante para legitimar a escravidão

dos negros africanos desde os tempos em que aquele continente se viu sob o

jugo do império islâmico. Até nos escritos gregos da Antiguidade,

principalmente nos escritos de Hipócrates e Galeno, ambos, médicos, o negro

africano é representado analogicamente à condição animal. Mas vou simplificar

e falar mais da construção da identidade nacional na perspectiva oficial para

mostrar o quanto é equivocado o argumento de que não há mal algum em

denominar um negro de “macaco” e o que isso implica na prática.

Quando se deu a Abolição, em 13 de maio de 1888, Joaquim Nabuco disse

que as conseqüências de mais de 300 anos de cativeiro perdurariam por 100

anos. Passaram-se os 100 anos e as conseqüências ainda perduram. Nabuco

errou no cálculo, infelizmente. Mas o que Nabuco realmente quis dizer? A quais

conseqüências ele se refere? Acredito que o maior visionário e que respondeu

a essa pergunta, foi Machado de Assis. Machado de Assis dizia que o negro,

após a Abolição, não conquistaria plena liberdade porque continuaria excluído

do projeto de construção da identidade nacional. Dizia que as estruturas

opressivas aos escravos se (res)significariam na opressão e exclusão dos

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“cidadãos negros”. A República prometia em seu discurso a elevação de todos

os homens à categoria de “cidadão”. Isso no discurso. Na prática os negros

continuaram relegados à condição de sub-humanos. Se antes havia a figura do

capitão do mato, na República teríamos a figura do agente policial à caça de

“vagabundos”.

Sem direito à terra e expulsos das grandes fazendas, a massa de ex-escravos

ocupariam os centros urbanos. Sem emprego, exerceriam o trabalho informal,

à mercê da repressão policial. Nas antigas fazendas, no lugar do negro vieram

os europeus brancos. Enquanto vinham europeus, a entrada de africanos no

país passou a ser proibida. A estratégia oficial era o branqueamento do país. O

governo brasileiro até bancava a viagem de negros que quisessem voltar à

África. A Educação Eugênica vigorava nos currículos escolares, ensinando aos

cidadãos brancos a superioridade da “raça”. Os escritores que tentavam dar

uma identidade nacional ao Brasil, bebiam na fonte de escritores europeus que

difundiam uma concepção determinista evolucionista das raças. Neste sentido,

para Karl Von Martius e Varnhagen, historiadores do Império, o entrave para o

desenvolvimento do Brasil era a raça negra.

Para se ter uma idéia da força dessa ideologia, empresto a análise feita pelo

professor Eduardo França Paiva sobre a pintura abaixo.

O nome da pintura já nos diz muita coisa. Portanto, iniciaremos pela análise do

mesmo. Cã foi o filho de Noé que foi repreendido pelo pai por ter visto o

patriarca nu. Na tradição lendária judaica, por essa falta cometida, os

descendentes de Cã foram amaldiçoados à escravidão, os Canaanitas. Mas na

Bíblia não diz nada sobre a cor da pele desses descendentes, e mais, os

Canaanitas não eram do continente africano, mas sim vizinhos dos Hebreus no

Oriente Médio. Mas de onde Marco Feliciano tirou a idéia de que eram os

negros africanos os amaldiçoados? Aí que entra outro personagem na História:

o Islã. Na versão lendária do Islã, os africanos seriam os descendentes

amaldiçoados de Ham, outro filho de Noé. Foram os muçulmanos que deram

essa versão para legitimar a escravidão na África já no califado Abássida.

Como o Islã dominou a Península Ibérica, da qual faz parte Portugal, os

portugueses se apropriaram dessa versão muçulmana para legitimar a

escravidão africana nas suas colônias.

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Analisando agora a pintura em si, a mulher mais negra é a alegoria dos

descendentes de Cã e do passado colonial. Não esqueçamos que a pintura é

de 1895, já na República. Portanto, ela nos diz muito sobre o ideal de nação da

oficialidade do poder. No centro, há a moça mulata, filha da velha negra. A

mulata já sofreu o processo de mestiçagem. O homem, mais branco, é a

analogia do típico italiano camponês. A criança, já de pele totalmente branca, é

a analogia do futuro. Um futuro em que não haveria mais negros por conta do

processo de mestiçagem. O futuro da República e do desenvolvimento. A velha

negra levanta as mãos aos céus se redimindo, agradecendo aos céus por não

legar um futuro negro à nação. A criança faz um sinal de “Abenção”, que

remete ao Cristianismo primitivo, como se quisesse dizer “Amém”.

Como podemos ver, numa só pintura analisada, podemos sintetizar vários

discursos dos intérpretes não só do Império, como também dos posteriores à

Abolição. De fato, essa ideologia de exclusão do negro na formação da nação

por meio da mestiçagem, já que acreditavam que quanto mais mestiçagem

mais branca seria a Pátria, refletiu na exclusão do negro na conquista pela

cidadania.

Só para citarmos como exemplo como se deu essa exclusão, basta uma

simples abordagem sobre a Revolta da Vacina, ocorrida na cidade do Rio de

Janeiro em 1904. A República vinha com a promessa de modernizar e isso

implicaria reformas urbanas. É quando o pais quer se mostrar desenvolvido aos

olhos do mundo. Como vimos que desenvolvimento era sinônimo de

branqueamento, tendo como espelho a Europa, especialmente a Paris da Bélle

Epocque, não seria bem quisto um Rio de Janeiro cujo centro urbano

transbordava negros para todo lado. Nos diários de viajantes da época há

relatos de abominação à cidade por conta da grande quantidade de negros.

Os negros eram descritos como “fezes sociais” nos relatórios de polícia. Os

responsáveis pelo atraso, pela desordem. Aí que a política higienista de

Oswaldo Cruz caiu como uma luva para expulsar os negros do centro da

cidade. Durante a matança de negros pela polícia, nos relatórios oficiais os

negros eram rebaixados às doenças contagiosas as quais a reforma higienista

se propunha a neutralizar. Os que conseguiram sobreviver, ocuparam os

morros, que hoje são as favelas. Outros foram colocados em porões de navios

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e asfixiados com cal e mandados para trabalhos forçados na Amazônia. Muitos

nem sobreviveram à viagem.

Excluídos do projeto de nação, os negros não tiveram acesso a direitos sociais

básicos que lhes proporcionassem ascensão social. Não conseguiam trabalhos

formais, eram em sua maioria analfabetos e por serem analfabetos, não tinham

nem direito ao voto. Então, temos que vasculhar o passado e ver quais as

conseqüências desse passado no nosso presente. Ao negar a humanidade de

um ser Humano, chamando-o de macaco, estamos trazendo à tona um

discurso utilizado por centenas de anos para legitimar a segregação e a

exclusão. Esse discurso preconceituoso reflete nos dados estatísticos sobre

repressão policial, defasagem educacional, desigualdade social. Reflete na

dificuldade de lutar pelos direitos políticos e sociais. Não adianta dizermos que

não há racismo quando no Brasil a pobreza, o analfabetismo e os cemitérios

têm como cor dominante a cor negra.

Está mais do que na hora dos acadêmicos e pesquisadores envolvidos com os

temas relacionados ao racismo tomarem os espaços dos propagadores

conservadores. É inadmissível que sujeitos como Danilo Gentili permaneçam à

vontade para difundir o racismo sem respostas à altura da sua audiência. Ao

acadêmicos, peço que deixem essa redoma universitária de congressos e

seminários, e venham para a rua. Ocupem os jornais mais populares, as

rádios, os canais de TV. Fiquem cara-a-cara com a sociedade e dialoguem

numa linguagem acessível. De nada adianta escrevermos somente para

revistas científicas se tais mídias não chegam às mãos daquele aluno de

Ensino Médio que assiste pela TV a difusão do racismo velado e hipócrita. Se

tal iniciativa não partir daqui de baixo, não vai partir nem de Globo, nem de

SBT e nem de nenhuma mídia de grande audiência, uma vez que tal iniciativa

afeta diretamente os interesses dos que se mantém no privilégio rebaixando os

demais pela cor da pele.