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7/31/2019 Diss Regina Aragao[1]
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REGINA ORTH DE ARAGO
A CONSTRUO DO ESPAO PSQUICO MATERNOE SEUS EFEITOS SOBRE O PSIQUISMO NASCENTE
DO BEB
Dissertao de Mestrado
Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica
Ncleo de Psicanlise
Laboratrio de Psicopatologia Fundamental
Pontifcia Universidade CatlicaSo Paulo
2007
Dissertao apresentada Banca Examinadora da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial paraobteno do ttulo de Mestre em Psicologia Clnica, sob a orientaodo Prof. Doutor Manoel Tosta Berlinck
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Banca Examinadora
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A AURLIO E EMANUEL
A MEU PAI, EM MEMRIA.
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AGRADECIMENTOS
A Manoel Tosta Berlinck, pela orientao, incentivo e confiana fundamentaispara a realizao desse trabalho.
A Isabel Kahn Marin e Silvia Abu-Jamra Zornig, que indicaram caminhosdecisivos no exame de qualificao para o desenvolvimento desse trabalho.
Aos amigos e colegas do Laboratrio de Psicopatologia Fundamental, pelaleitura atenta e generosa de partes desse trabalho e pela interlocuo sempre viva einstigante.
A Luiz Cludio Figueiredo, pela interlocuo sempre enriquecedora e peladisponibilidade para a leitura atenta de meus textos.
Aos amigos de Braslia, muito especialmente a Norberto Abreu, Luiz Celes,Maria Nilza Campos e Daniela Chatelard, pelo acompanhamento afetuoso eestimulante desse percurso.
Aos amigos de So Paulo, especialmente a Ftima Milnitzky, Elosa Tavares deLacerda, Silvana Rabello e Gisela Haddad, pelo apoio, interesse e carinho constantesao longo desse processo.
A Myriam David, in memoriam, pelo ensinamento do valor fundamental davida e da infncia.
A meus pacientes, crianas e adultos, por tudo o que tm me ensinado.
A meu pai, in memoriam, que transmitiu o valor e o prazer do trabalho.
A minha me, por sua sabedoria de viver.
A meus filhos, por existirem e inventarem sempre novos modos de olhar a vida.
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RESUMO
Esta pesquisa tomou a clnica da criana como ponto de partida para,
passando pela clnica da maternidade, se voltar para o estudo dosprocessos psquicos que se do no tempo antes do nascimento, e sua
questo central pode ser assim apresentada: de que maneira aquilo que se
antecipa e se constri no psiquismo da me durante o tempo de espera da
criana marcar sua relao com o filho, e, portanto influenciar a prpria
constituio do psiquismo desse novo ser?
Essa preparao psquica materna envolve pelo menos trs dimenses: o
tempo, o espao, e a identificao, todas elas atravessadas por alteraes
na estruturao narcsica da mulher. A durao da gravidez estabelece
uma temporalidade que permite gestante percorrer os processos de
transformao em seu psiquismo, em paralelo s mudanas corporais e ao
crescimento do beb em seu ventre. Em outra dimenso, essas mesmas
mudanas corporais deslocam o sentimento de seu prprio espao
psquico, que se altera para conter um outro ser dentro do corpo e dentro
da vida. Trata-se de processos que envolvem alteraes no narcisismo
materno, estabelecendo as possibilidades de um narcisismo englobante ou
excludente, como propusemos denominar essas duas alternativas da
posio narcsica materna em relao ao beb. E como dinmica
intrapsquica fundamental encontram-se os desenvolvimentos da histria
edipiana; especialmente os percalos da relao da menina com a me dosprimeiros tempos sero determinantes para a construo da funo
materna.
Palavras-chave: maternidade, constituio psquica, funo materna.
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ABSTRACT
This research has taken the childs therapeutic work as a starting point,
passing through the therapeutic processes carried out with pregnantwomen, to conceive the study of the psychic processes that take place
before birth. The main question of this research can be presented this way:
in what manner what is anticipated and built in the mothers psyche during
pregnancy will strongly influence her relation with the baby, and
consequently, will present a relevant effect upon the psychic constitution
of this new being.
This maternal psychic preparation involves at least three dimensions: the
time, the space and the identification, all of them touched by changes in
the narcissistic processes of the woman. The lasting of the pregnancy
establishes a time that allows the pregnant woman to pass through the
process of transformation in her psyche, together with the body changes
and the growing of the baby in her womb. In another dimension, these
same body changes produce clear alterations in the internal feeling of her
own psychic space. This psychic space changes in order to receive and to
contain another being inside her body and in her life. Those processes are
related to the alterations in the maternal narcissism, establishing the
possibilities of one including or excluding narcissism, as we have
proposed to nominate these two alternatives of maternal narcissistic
position in relation to the baby. And as one fundamental intra-psychicdynamics, we can find the developments of her edipian history; mainly,
the specificities of the relation between the girl and the mother of the first
years of life, that will be relevant to the construction of the maternal role.
Key-words : maternity, psychic constitution, maternal role.
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SUMRIO
INTRODUO 08
CONSIDERAES METODOLGICAS 16
CAPTULO I De mes e de filhos 24
CAPTULO II Narcisismo materno e criao do espao
psquico para o beb 36
CAPTULO III Resilincia e funo materna 48
CAPTULO IV Dor, pele psquica e funo materna 54
CAPTULO V - Questes sobre o autismo infantil edepresso materna 68
CAPTULO VI De me para filha. A transmisso
da maternalidade 82
CONSIDERAES FINAIS 101
BIBLIOGRAFIA 112
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INTRODUO
TEMA DA PESQUISA
Ponto de partida
Ser possvel delimitar, situar um ponto de partida de uma
pesquisa? A resposta rpida a esta questo seria, sem dvida, dizer que o
ponto de partida encontra-se na experincia clnica do pesquisador. Mas
talvez isso seja mais bem dito ao se afirmar que a clnica simplesmente o
terreno privilegiado no qual a pesquisa se desenvolve, porque se
quisermos realmente buscar um ponto de partida, faz-se necessria a
referncia a um mtico ponto zero, o ponto da origem, que recobre nossa
fantasia mais arcaica sobre a origem de ns mesmos, da qual a fantasia da
cena primitiva e de nossa prpria concepo seria uma representaopossvel. Assim sendo, vamos dizer, formalmente, que o ponto de partida
das interrogaes desta pesquisa situa-se na minha clnica psicanaltica
com bebs, crianas e seus pais, sabendo, no entanto, que a busca por
atuar nessa clnica j foi, em si, norteada por essa questo sobre as
origens, que atravessa de alguma forma a todos ns.
Em razo de ter iniciado minha prtica clnica como psicoterapeuta
de crianas, e mais especificamente na clnica das relaes precoces entre
pais e bebs, as questes relativas constituio do psiquismo e s suas
origens fizeram-se presentes e instigantes para mim desde ento. Essas
interrogaes apresentaram-se dessa forma no somente enquanto pontos
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centrais do questionamento, inseridas no campo terico da psicanlise,
mas tambm diretamente experimentadas na vivncia clnica com esses
pacientes.
A essas questes sobre os determinantes da constituio dopsiquismo, veio se juntar uma interrogao sobre a intrigante variedade
dessas constituies. Assim, por dois caminhos o do estudo terico e o da
clnica as interrogaes foram se acumulando, por vezes encontrando
respostas, mas nunca por muito tempo, e no inteiramente satisfatrias. A
literatura psicanaltica a respeito do tema muito vasta, variada e por
vezes discordante. A comear por Freud, para quem as questes da origem
e do originrio muitas vezes co-existiram, de tal modo que seu texto
prestou-se, nesse ponto tambm, a leituras diferentes: o conceito de
originrio podendo ser relacionado noo de infantil em psicanlise, e
a estamos propriamente no campo do a posteriori, da rememorao, da
reconstruo, enfim, do trabalho propriamente psicanaltico; ou, por vezes,
o conceito de originrio pareceu ligar-se noo de infncia, podendo
assim conduzir a uma perspectiva temporal, cronolgica, no rumo das
teorias do desenvolvimento.
Para melhor circunscrever o tema proposto e de modo a torn-lo
mais facilmente abordvel, busquei orientar-me por um eixo que
permitisse delimitar, na medida do possvel, esse percurso. Winnicott
(1969c) colocou em palavras aquilo que muitas mes de recm-nascidos j
sabiam, ou seja, que no existe um beb por si s, que no possvelpensar em um beb sozinho sem levar em conta seu objeto primordial, em
geral a me. Se o beb se constitui por meio do outro primordial, sua me,
ento como nasce uma me?
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Do ponto de vista da funo materna, a escuta de pacientes s voltas
com a questo da maternidade seja ela efetiva ou um projeto trouxe vrios
elementos de reflexo. Houve um momento na minha clnica em que me
vi s voltas com diferentes mulheres, em diferentes momentos da vidafalando de suas maternidades. Maternidades potenciais, oscilantes em
torno do desejo ou no de se tornarem mes, na dvida sobre ter ou no
filhos. E outras pacientes cujas anlises foram atravessadas pelos perodos
de gravidez. E, ainda, mes em outros tempos de suas vidas, com filhos
pequenos, adolescentes, adultos.
O estudo da funo materna levar a uma anlise dos mecanismos e
dos processos nela envolvidos, a partir dos referenciais psicanalticos.
Outro foco da pesquisa ser o de se debruar sobre os processos psquicos
em jogo na posio materna.
Ainda com relao s fontes da pesquisa, importante mencionar o
aporte das manifestaes psicopatolgicas da infncia, aquelas que
envolvem as primeiras estruturaes do aparelho psquico. A
psicopatologia, seguindo a tradio freudiana de relacionar os fenmenos
patolgicos com os normais, leva a formular interrogaes
metapsicolgicas sobre o beb. O enigma do autismo e das psicoses
infantis precoces pode ajudar a refletir tambm sobre as crianas que
constituem simplesmente suas neuroses infantis.
No que diz respeito pesquisa bibliogrfica utilizei, a propsito,
autores de diferentes linhas tericas dentro do campo da metapsicologiapsicanaltica. Parece-me que fazer funcionar assim as diferenas um
exerccio bastante interessante de reflexo. Dentro da tradio da
psicopatologia fundamental, que dialoga com diferentes disciplinas, alm
da psicanlise, recorri eventualmente a noes da etologia, na
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compreenso dos marcos iniciais da sensorialidade do feto e do beb, por
meio de estudos recentes da perinatalidade, e tambm a estudos no campo
das teorias do apego.
Os textos pesquisados na maior parte relacionados com osestudos sobre o beb e o psiquismo inicial, sobre a psicopatologia em suas
formas graves nos primeiros anos de vida, e sobre a maternidade e a
feminilidade serviram como guias, como marcos, e tambm como
indicadores de mudanas de rumo necessrias, ainda que inesperadas, no
percurso deste estudo. E a volta freqente aos textos freudianos operou
como referncia constante ao longo dessas leituras. Algumas delas foram
feitas em textos franceses ou ingleses, eventualmente no traduzidos para
o portugus. Nesses casos, as tradues de citaes, quando apresentadas
no decorrer do texto, sero de minha prpria autoria, como tambm as
tradues dos ttulos dessas obras.
Fontes e percurso da pesquisa
A pesquisa se desenvolve a partir da clnica com crianas, da clnica
das relaes pais-beb, da clnica das patologias graves da infncia, e, por
fim, da clnica com adultos, especialmente da escuta de mulheres s voltas
com a questo da maternidade.
Nesses casos, para alm da singularidade da histria de cada uma
dessas mulheres possvel encontrar pontos comuns, algumas constantes,que tentarei traduzir em termos generalizveis, em metapsicologia.
Os relatos clnicos de criana escolhidos so propositadamente
aqueles que se situam em um perodo j distante do perinatal, para poder
beneficiar da viso proporcionada pelo a posteriori. No tratarei
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do campo da psicanlise, mas que ajuda a refletir sobre os fatores de
vulnerabilidade e sobre os efeitos decisivos do encontro da criana com
seu cuidador primordial.
O quarto captulo, novamente construdo em torno de um casoclnico, retoma as questes suscitadas no captulo anterior, para discutir
quais podem ser os arranjos psquicos da criana diante de situaes de
vida de extrema precariedade. Nesse contexto, utilizo algumas
contribuies da etologia humana em suas pesquisas sobre as primeiras
impresses sensoriais que o feto e o beb recebem do ambiente, e as
condies de disponibilidade do beb para a relao com a me, ou quem
a substitui.
O quinto captulo aborda a clnica do autismo, debruando-se sobre
as caractersticas da relao entre me e beb, a partir dos elementos que
se fazem presentes no caso clnico evocado, e que me remetem ao que est
em jogo no estabelecimento das primeiras relaes entre me e filho. Trata
dos riscos, para o psiquismo da criana, dos efeitos da depresso materna.
O sexto captulo trata da relao me-filha e da transmisso da
maternalidade. Aps uma breve discusso das teses freudianas a respeito
da sexualidade feminina e da ligao entre feminilidade e maternidade,
so discutidas as primeiras relaes entre me e filha, e as formas pelas
quais interferem na possibilidade, para a menina, de construo de sua
feminilidade e na realizao, ou no, da maternidade.
Observe-se que as evocaes de casos clnicos eventualmente serepetem e aparecem em mais de um texto. E, sobretudo, a questo do
papel do clnico no tratamento, presente no primeiro texto, permeia de fato
toda a elaborao deste trabalho. Alguns desses pacientes, em particular as
crianas, puderam, por diferentes circunstncias, ser revistos anos depois
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de terminadas suas anlises, e suscitaram novos elementos de interrogao
sobre a funo do clnico debruado sobre o sofrimento psquico, em suas
vrias formas. Essas interrogaes ultrapassam o escopo deste trabalho,
mas sero sem dvida fontes para a continuao desses estudos. De todomodo, possvel avanar, desde j, a partir desses reencontros, que
mesmo para a criana pequena o encontro com o psicanalista uma
relao nica, sem precedente, que produz efeitos e inflexes importantes
na estruturao do psiquismo ou na elaborao dos modos de lidar com o
sofrimento.
Ponto de chegada
Se o ponto de partida foi o interesse pelas origens, pelo originrio,
o ponto de chegada foi para um mais aqum do nascimento, isto , o
psiquismo materno durante o tempo de espera do beb, tempo de
construo da me, tempo de construo do beb no psiquismo materno.
E, particularmente, a interface entre o narcisismo materno e o lugar
possvel para o outro/beb/estrangeiro/familiar, numa relao de tenso
com o narcisismo materno. Dentro, fora, parte dela, parcialmente outro,
parcialmente ela. Problemtica da relao me-filho ao longo da vida.
Como o beb poder introjetar, no seu prprio processo de tornar-se
sujeito, o que lhe ter sido transmitido do narcisismo materno? Paradoxos
desse processo, beb parte de si, parte do narcisismo, beb como outro,potencialmente ameaador para o narcisismo, potencialmente objeto de
dio, j que, como Freud (1914) nos ensinou, toda relao de objeto
atravessada pelo dio, na medida em que o outro representa uma invaso
do espao narcsico do um.
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Espao da pesquisa
Essa pesquisa se desenvolveu no Laboratrio de PsicopatologiaFundamental do Programa de Estudos Ps-graduados em Psicologia
Clnica. Se o trabalho da pesquisa se passa essencialmente no interior do
cenrio psquico do pesquisador, a partir dos vrios encontros clnicos e
outros que permeiam o seu percurso, ele demanda tambm para se
desenvolver a existncia de um espao externo um ambiente
suficientemente bom, talvez dissesse Winnicott. Foi esse o espao
encontrado no Laboratrio, no qual a continncia, o estmulo, e ao mesmo
tempo o desafio, estiverem sempre presentes. O respeito diversidade
exteriorizada na produo singular de cada um dos pesquisadores, o
interesse pelo escrito do outro, a disposio para se debruar sobre as
interrogaes do colega, um pouco como faz o clnico sobre o pathos de
seu paciente, tudo isso configura esse espao propcio para o
desenvolvimento das pesquisas a respeito da subjetividade humana em
suas mais variadas manifestaes. Essas caractersticas do trabalho ali
desenvolvido criaram as condies desse espao externo nico, operando
em contraponto e como referncia ao que se desenvolvia em meu espao
psquico durante esta trajetria.
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CONSIDERAES METODOLGICAS
Questes sobre a interpretao
Como surge a interpretao? Reconhecer algo no outro j em si
um ato interpretativo. Mas como passar do reconhecimento para a
formulao de hipteses? Como surgem as hipteses ao clnico? Elas
surgem no intervalo produzido pelo efeito de surpresa na relao
transferencial, ou no decorrer da experincia clnica. A escrita da clnica
enfrenta esse desafio de buscar uma construo ou reconstruo da
experincia. Como passar do afeto, do vivido, para a representao no
mbito da relao transferencial e da para uma representao com a qual
seja possvel jogar, compor, dando sentido e forma ao que aparece
inicialmente como experincia bruta, por vezes quase sensorial?
Pensamos, ento, que a funo do analista encontra de perto a funo
materna. Ao escrever a clnica, j num outro registro, passamos da
construo de um mito subjetivante, proposto ao analisando, a um mito
mais geral, transmissvel para alm do espao analtico, que possa ser
apropriado por outros clnicos, pelo grupo de pertencimento, pelo discurso
social.
O mtodo clnico
Trata-se de passar da escuta prpria da relao analtica para a
construo do caso clnico, de modo a compor uma escrita, uma narrativa
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que possa ser til, transmissvel, isto , que constitua um quadro mais
geral, aplicvel a outras situaes clnicas.
O mtodo clnico caracteriza-se por seu carter qualitativo.
Investiga-se profundamente um caso, do qual visa-se extrair elementosque possam constituir uma hiptese singular. A pesquisa qualitativa
prioriza a intensidade dos fenmenos, que reconhece como complexos,
visando sua compreenso subjetiva. uma pesquisa que faz apelo
construo e interpretao. A teoria da interpretao uma
metaforizao do observado, do vivido na clnica e a escrita uma
traduo dessa construo metafrica do caso clnico.
A posio da Psicopatologia Fundamental
A posio da Psicopatologia Fundamental, termo cunhado por
Pierre Fdida, busca resgatar a dimenso subjetiva e singular do pathos.
Diz Berlinck (2000a)
(...) a psicopatologia fundamental (...)pretende resgatar adimenso subjetiva e singular contida em pathos, poisdele, alm de sofrimento, deriva-se tambm paixo epassividade. Neste sentido, quando pathos ocorre, algo daordem do excesso, da desmesura se pe em marcha, semque o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a noser como paciente, inaugurando, assim, condiesnecessrias e suficientes para a posio do terapeuta e
para a transformao da vivncia ptica numa patologia e,da, numa experincia (p. 7).
Isto , num discurso que possa ser compartilhado socialmente.
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Entre os princpios da Psicopatologia Fundamental, ressaltamos os
seguintes:
- Prope a investigao dopathos psquico, dentro de diferentes posies
terico-metodolgicas, reconhecendo a sua irredutvel complexidade. Essereconhecimento implica admitir que nem uma nica, nem o conjunto das
posies esgota sua complexidade. Isto , cada um detm apenas uma
parcela de verdade.
- Trata-se, portanto, de se inserir numa rede de interlocues entre
clnicos que ocupam diferentes posies.
- Considera que as teorias so necessrias, mas insuficientes. Elas ajudam
a construir o prprio discurso e conhec-las pressupe aceitar que outros
j pensaram sobre aquele mesmo tema.
O mtodo designado Construo de Caso, proposto por Pierre
Fdida (1992), visa, sobretudo, propiciar ao clnico a possibilidade de,
partindo de sua vivncia pessoal, produzir um escrito de natureza
metapsicolgica, no qual problemticas possam vir a ser enunciadas. No
caso clnico interessa a explicitao dos processos psquicos e no o
contedo em si da narrativa. Podemos dizer ainda que o caso uma
narrativa ficcional criada pelo psicoterapeuta e a construo de uma
narrativa do caso parte constituinte do mtodo clnico da Psicopatologia
Fundamental.
Trata-se de tentativa de integrar o afeto palavra com o objetivo deconstruir uma teoria sobre o caso, isto , uma teoria da clnica. Esta
teoria, mesmo sendo criada a partir de um caso singular, faz uso de
conceitos estabelecidos dentro das reas de saber com as quais dialoga a
psicopatologia fundamental, e, em nosso caso, muito particularmente a
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psicanlise. Busca demarcar uma questo geral dentro da singularidade de
um estudo a partir do mtodo clnico.
O modelo da Psicanlise
Tambm no modelo da psicanlise, prprio das cincias
interpretativas, o observador est profundamente implicado. Na verdade,
no cenrio psquico do observador que se desenrola a narrativa, que se
constituem os saberes, as hipteses, as descobertas, bases para a
construo de uma teoria. Na psicanlise atravs do filtro da
transferncia, com todo o seu complexo conjunto de mecanismos
psquicos envolvidos, tais como as identificaes e contra-identificaes,
as projees, as identificaes projetivas e introjetivas, que se cria o relato
clnico, e a metapsicologia a ele associada. No podemos esquecer que
tambm no cenrio psquico do pesquisador esto operando as suas
referncias tericas, suas transferncias de trabalho, com colegas,
supervisores e mestres, e sua prpria estruturao subjetiva.
A referncia central ao inconsciente define a posio
epistemolgica fundamental da psicanlise, e confere a ela sua
especificidade. No entanto, essa referncia central no limita a criao de
um grande nmero de modelos psicopatolgicos como, alis, est
demonstrado pela prpria evoluo do movimento psicanaltico em suas
vrias correntes. Essa multiplicidade de modelos psicopatolgicos podeser tomada ao servio de um enriquecimento da clnica, da qual se percebe
melhor hoje em dia a complexidade, e, portanto, o interesse de dispor de
diferentes ngulos de iluminao sobre realidades clnicas diversas. O
modelo deve ser percebido e utilizado enquanto tal, e no como realidade
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suposta. Essa busca de recortes e de zonas de passagem entre os planos e
entre os modelos tericos pode produzir efeitos de ambigidade, que, no
entanto so fecundos na medida em que revelam algo da prpria natureza
do objeto de conhecimento do qual a psicanlise est tentando dar conta.No nosso caso, seria justamente o que compe os laos da criana com
seus pais, e afinal de todo ser humano com seus semelhantes,
permanentemente marcados pela ambigidade.
A psicopatologia psicanaltica, essencialmente individual, deriva do
estudo das representaes e das fantasias, e as metforas operacionais
utilizadas pelo clnico so destinadas a permitir o surgimento de sentido e
de no-sentido sem ocultar sua escuta. O mtodo psicanaltico no
negligencia o sintoma, mas avalia sua funo e seu valor revelador de um
modo de funcionamento psquico cuja importncia econmica precisar
ser definida. A gnese e a estrutura dos sintomas so reveladores dos
conflitos intrapsquicos e dos modos de estruturao do psiquismo.
Importante lembrar o que o prprio da psicanlise, alm da
dimenso do inconsciente: a sexualidade infantil, a noo de fixao, a
sexualidade na especificidade de seu percurso e de sua estruturao, a
regresso, a dimenso do a posteriori, a problemtica pulsional e o destino
das pulses. Estamos aqui no enquadre da cura analtica, com sua
referncia central e norteadora transferncia, para nos orientarmos na
direo do lugar da construo em anlise, desenvolvido cada vez mais
como um espao de narratividade, no qual se trata, para analista epaciente, de co-construrem uma nova perspectiva da histria do sujeito e
de seus percalos pulsionais e defensivos.
Da prpria natureza desse encontro analtico decorre uma certa
impossibilidade de comunicar, dado o nico e o enigmtico da
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singularidade de cada anlise atravs da dinmica da transferncia. Porm,
se h uma originalidade fundamental em cada tratamento, h tambm um
dinamismo permanente exigindo do analista que se situe em relao s
suas prprias referncias tericas. O trabalho terico da psicanliseconsiste, assim, em tentar construir um fundo comum a partir da
singularidade de cada anlise. E o analista, sujeito implicado diante de
outro sujeito, no pode esquecer de relativizar aquilo que se diz em torno
do analisando, j que h uma distoro permanente introduzida pelo
discurso daquele que fala para o outro a respeito do outro, portanto
tambm de si prprio. Essa relativizao reintroduz a dimenso da
transferncia, presente tambm quando se faz um relato da clnica, e,
conseqentemente, quando se constri uma teoria da clnica.
A posio epistemolgica da psicanlise e da psicopatologia, com
repercusses diretas sobre a prtica clnica, difere da posio mdica,
cincia dedutiva. Trata-se na psicopatologia trata-se de uma construo de
hipteses a partir de inferncias e no de dedues. O clnico vai sendo
tocado pelas situaes clnicas, e necessita de tempo para que um
pensamento se construa a partir do vivido, das emoes que se construiro
em pensamento. o que Bion (1979) postula como posio do analista, a
capacidade negativa, a capacidade de no saber tudo imediatamente, de
dar tempo ao tempo.
O objetivo desta pesquisa o de produzir, em alguma medida, uma
metapsicologia acerca da prtica clnica. Cabe frisar que, aqui, a palavrametapsicologia tomada no seu sentido preciso, dentro do campo da
Psicopatologia Fundamental, a saber, (...) um discurso mito-poitico-
epopico que uma experincia...[, ou seja, que permite um]
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...enriquecimento...a possibilidade de se pensar aquilo que ainda no foi
pensado(...)(Berlinck, 2000a, p. 24).
Questo: podemos considerar a vivncia da maternidade como
uma experincia pthica? Assim tambm a experincia donascimento?
O estudo da maternidade tem seu espao dentro do campo da
psicopatologia fundamental, considerando que o psiquismo materno, nesse
tempo da gestao, configura-se em um estado particular que tem as
caractersticas de uma verdadeira crise psquica. O nascimento envolve, de
fato, a paixo humana em sua experincia mxima, pois toca ao mesmo
tempo nas dimenses da criao, da morte e do sexo. Dar a vida implica
mudar de lugar na cadeia geracional, passar de filha a me, e assim seguir
no percurso em direo morte. O nascimento traz em seu bojo a finitude,
a morte. Por outro lado, o nascimento a revelao e a concretizao da
dimenso sexual da vida da mulher.
Consideramos o nascimento, com sua coorte de intensos afetos,
angstias, fantasias e temores, inserindo-se no campo de estudos da
psicopatologia fundamental, lugar de observao e de cuidado da paixo
humana e todas as suas desmesuras.
Pathos, como excesso de paixo, se faz presente em todo
nascimento. Toda criao de um outro humano envolve a violncia do
encontro com o outro, envolve o risco de jogar-se numa empreitada para a
qual no se tem garantia, apesar de todos os progressos da medicina e dacincia atual. Mesmo que tudo ocorra bem no campo somtico, h ainda, e
sempre, o desconhecido em outro registro. Como se dar a vida desse
outro, ao mesmo tempo criao de si, ao mesmo tempo autnomo e para
sempre destinado a escapar dos seus criadores?
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No nos esqueamos da violncia da esperana, representada pelo
nascimento, pelo surgimento do outro, potencialmente igual e diferente.
Violncia do encontro com a alteridade, em si geradora de pathos.
Sofrimento inerente violncia do encontro com o outro, outro que aomesmo tempo distinto e tambm o mais igual possvel, pois produto de si
prprio.
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CAPTULO I
DE MES E DE FILHOS
Na apresentao desta pesquisa, escrevia que as questes relativas
constituio do psiquismo, s suas origens, tinham se apresentado a mim
de modo insistente desde o incio de minha prtica clnica, que se deu com
crianas pequenas e com pais e seus bebs. Se de incio essa pretenso a
buscar os determinantes da constituio do psiquismo poderia parecer
utpica, e mesmo ingnua, logo as interrogaes se deslocaram para algo
diferente, que foi a infinita e intrigante variedade dos modos de
constituio. Produto dessa alquimia misteriosa e fascinante que se d
entre pais e bebs, como diz Cramer (1989). Para aproximar esse tema to
vasto e j to explorado da constituio do psiquismo, busquei uma forma
de circunscrev-lo, orientando-me por dois eixos: de um lado o beb, de
outro a me, contrariando o pensamento de Winnicott (1969c), para quem
no existe um beb por si s. Do lado do beb, parece sempre intrigante
constatar que crianas em situaes de vida aparentemente muito
semelhantes reajam e se constituam de modo to diverso. O que faz, por
exemplo, com que alguns bebs sejam mais vulnerveis s experincias de
separao do que outros?
A clnica com a criana, se no nos traz respostas, ajuda-nos a
melhor formular as questes, e ser ento seguindo essa trilha queprocuraremos, nesta pesquisa, encontrar recortes com a teoria para
esclarecer pontos que ainda nos interrogam. O que vai conduzir
necessariamente de volta ao estudo do entorno da criana (Figueiredo,
2000), e s interrogaes sobre a construo das funes maternas. Desse
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ponto de vista, a escuta de mulheres s voltas com a maternidade, seja ela
efetiva ou expresso de um desejo, produziu tambm vrios focos de
interrogao, como j dito anteriormente.
Extrato de um caso clnico
Bruno, que acabou de completar 10 anos, chegou por indicao de
uma psicopedagoga, que no compreende como um menino to
inteligente possa ir to mal na escola. A histria inicial, relatada pelos
pais, a seguinte: a famlia estava no exterior, na fase final de preparao
da tese da me. Ela preparava-se tambm para uma cirurgia, e por essa
razo fazia os exames pr-operatrios, quando descobriu a gravidez, j no
incio do quarto ms. A gravidez havia passado desapercebida! A partir
da, e at o parto, h uma grande preocupao por parte dos mdicos e dos
pais quanto ao estado do beb em funo dos exames realizados, o que
leva a gravidez a ser considerada de alto risco. Poucos dias aps o
nascimento de Bruno, que se deu sem complicaes, ele acometido de
uma pneumonia grave, levando-o a internao em UTI no-natal, pois
corria risco de vida. A me refere-se a Bruno como um lutador, um beb
que no desiste. Ela o admira por isso, por sua garra, e surpreende-se com
a vida que est nele e no parece estar nela. Bruno ento vence a infeco,
volta para casa. Nos meses que se seguem, os cuidados do beb so
divididos entre a av materna e a me, que estava, a essa altura, muitoenvolvida com a redao final de seu trabalho. Voltam ento para o Brasil;
Bruno tem trs meses, e a av materna morre subitamente, produzindo na
me uma profunda dor, e um sentimento de perda do qual ela diz no ter
se recomposto ainda hoje. Aos cinco meses de Bruno, sua me teve de
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voltar para o exterior para complementar seu trabalho. Bruno fica com o
pai, os irmos mais velhos, e uma bab, escolhida cuidadosamente, mas
que at ento ele no conhecia. O retorno da me se d quando Bruno
tinha entre oito e nove meses, e, evidentemente, ele no a reconhece.Os anos seguintes se passam sem problemas somticos. Bruno tem
uma sade de ferro; seu desenvolvimento lento, mas as etapas vo se
dando aproximadamente dentro dos tempos previstos, com exceo da
linguagem. Bruno s vai comear a falar por volta dos trs anos e meio.
Sua histria escolar foi sempre difcil, com inmeras mudanas. Na
primeira escola maternal escolhida por utilizar uma lngua estrangeira do
pas onde ele nascera Bruno vive uma pssima relao com a professora,
que chega a bater nele, impaciente porque ele no entendia o que ela
pedia. Desde ento, ele acompanhado por uma fonoaudiloga, que
nessa etapa se preocupa principalmente com sua incapacidade de contar
histrias, de fazer relatos que tenham incio, meio e fim. A pedagoga, por
sua vez, ressalta a discrepncia entre seus resultados nos instrumentos de
avaliao, e a pobreza de sua produo, sua impossibilidade de criar
qualquer brincadeira ou histria, sua dificuldade em fantasiar.
Socialmente, os pais descrevem Bruno como simptico, afetuoso,
conversador, fcil com os amigos.
assim que Bruno chega em suas primeiras sesses: simptico,
afvel, mas com um ar pedinte, como mendigando algo, esperando algo
de mim, com um olhar que se prega ao meu, esperando... o qu?Conseguiu, recentemente, alfabetizar-se, mas no pode contar histrias.
Por vezes, em sua fala, parece desorientado no tempo, perdido em suas
referncias de lugar, de cidade, de pas. Em suas primeiras sesses aplica-
se a fazer um helicptero, que ele j encontrou pronto ao chegar e foi
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desfazendo para refazer. Durante a construo desse helicptero,
trabalhamos ns dois juntos, e eu me vejo impelida a ajud-lo nessa tarefa,
encontrando para ele as peas de Lego que me pede. Essas so especiais,
sempre as menores, difceis de encontrar no meio das outras. A cada buscade pea, aflijo-me em achar o que ele precisa e surpreendo-me percebendo
que Bruno capaz de inventar novas solues, quando a pecinha que ele
pediu no existe. Enfim o helicptero fica pronto, um helicptero especial,
pois um veculo para todos os terrenos, que alm de voar tem rodas para
deslocar-se sobre a terra, e uma base que lhe permite navegar. Na sesso
seguinte, Bruno corrige seu helicptero, pois procurou em casa um
modelo e agora adapta seu produto a esse modelo conhecido, fazendo
ento um helicptero igual aos outros.
Depois, ele desenha com lentido, cuidado e inmeras correes a
figura de um menino, cujo rosto s se v pela metade, a outra parte
ficando coberta pela aba de um bon. A figura toda detalhada,
caprichada, a cala que veste termina com um corte bem feito da barra,
mas abaixo dela... faltam-lhe os ps! A falta dos ps no desenho faz logo
pensar numa representao evocando a castrao, mas parece-me que aqui
preciso pensar alm ou aqum disso. Olhando a figura como se
houvesse um grande esforo para se construir, para se constituir, que, no
entanto, esbarra numa falta fundamental, na falta de uma parte de si que
lhe permita andar por suas prprias pernas, que o impede de mover-se
pelo espao do mundo, que o impede de criar, inventar suas histrias.Como ressalta a pedagoga, ele no consegue se servir de sua inteligncia
para pensar por si. Mas lembro-me que, laboriosamente e com minha
ajuda prxima, construiu seu helicptero, que tinha sua marca pessoal,
mesmo que depois tenha de novo se tornado somente uma cpia. Como
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continuaremos, na anlise, nessa hesitao entre correr o risco de criar, e
refugiar-se de volta na cpia que o faz sentir-se de novo seguro?
De que ordem esse poder materno imenso? Bruno tinha o pai, os
irmos, a bab, a casa. Mas no tinha a me. Alis, ela mesma no o teve,no incio de sua vida fetal, pois nem sequer o suspeitava dentro dela, o que
difcil de compreender dado o seu nvel intelectual. Ser que isso
assinala para um distanciamento em relao ao prprio corpo? De todo
modo, como se no houvesse espao psquico na me para se perceber
grvida. Podemos pensar ento numa gravidez propriamente acidental,
mesmo levando em conta que do ponto de vista do desejo inconsciente
nenhuma gravidez pode ser pensada como acidental. Nesse caso, ela
aconteceu revelia da me. E depois da gravidez sabida, essa mulher foi
tomada por situaes que parecem ter impedido o investimento desse
beb: riscos de m-formao do feto em razo das radiaes dos exames
pr-cirrgicos, angstia em relao sua produo intelectual, morte da
av materna, compondo um conjunto de fatores que vm marcar sua
posio materna. No entanto, ela hoje se emociona ao falar da valentia do
filho, de sua garra e de sua luta por viver, apesar de tudo. Apesar,
principalmente, de seu prprio desconhecimento da existncia dele, de seu
investimento prioritrio em seu trabalho, de sua depresso pela morte da
me. Ele insistia em viver.
Coloca-se aqui a necessidade imperiosa, vivida a cada vez na
clnica, de pensar sobre o caso, de articular aquilo que vivemos na sessocom o que pensamos, com o que sabemos para alm daqueles momentos.
Comeo ento a conhecer Bruno, e as impresses que ele me causou nas
primeiras sesses, seu falar desabitado de si, seu olhar pedinte e
interrogativo, como se procurasse no outro a significao de si mesmo, me
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impulsionam a buscar os caminhos tericos que me ajudem a pensar sobre
ele. Preciso desses aportes porque servem para situar-me na transferncia,
no campo prprio do trabalho analtico. A interrogao que move a clnica
parece-me ser a de se perguntar em que lugar podemos nos colocar parapossibilitar ao outro se descentrar da posio de sofrimento na qual est
situado, para desfazer e refazer de outro modo seus processos psquicos.
Como o helicptero que Bruno faz e refaz... Por onde eu mesma preciso
andar para servir a Bruno como suporte que possibilite a ele operar uma
mudana, pequena que seja, em sua posio subjetiva?
E, para alm desse caso clnico, penso que podemos encontrar aqui
algumas das interrogaes fundamentais em relao aos determinantes da
constituio do psiquismo. Como se processou, de que modo a
constituio edpica de partida (Bleichmar, 1983) dos pais foi decisiva
para a constituio edpica de chegada (idem), para a maneira particular
com a qual Bruno se organizou, para a escolha de suas falhas, de seu
sintoma? Por quais vias isso se d? Em que memrias precoces se
inscrevem as primeiras experincias? Por que, nele, a falha apresenta-se
no criar, no inventar, no fantasiar? Por que Bruno no pode servir-se de
sua inteligncia, que, no entanto, manifesta-se quando responde s
questes dos testes e das avaliaes com a psicopedagoga? O que houve
que o impede de tomar posse de sua prpria histria, de suas fantasias,
para poder contar suas prprias estrias?
Podemos tomar diferentes pontos de partida para pensar sobre osintoma de Bruno. Podemos considerar, de um certo ngulo, o impacto da
separao precoce me-beb, que se deu em momento extremamente
sensvel em relao constituio do psiquismo. De outro ponto de vista,
podemos considerar as peculiaridades do desejo materno, evidenciadas
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pela ignorncia da gravidez, e, em seguida, pela dificuldade de
investimento libidinal nessa criana, podemos ainda lembrar dos efeitos da
depresso materna, reativa morte da av. Cada um desses pontos de
partida, e haveria outros ainda, nos conduziria a uma corrente terica nocampo da psicanlise, em funo da forma como se compreende a
constituio do psiquismo, e em funo da matriz clnica (Mezan, 1988)
que tomamos como ponto de partida.
A seguir evocaremos algumas dessas construes tericas sobre a
relao inicial me-beb, e seu impacto sobre a constituio do aparelho
psquico. Lembremo-nos em primeiro lugar de Winnicott, cujo tema
principal de interesse foi justamente esse, e que afirma, sempre de modo
categrico, o papel fundamental do ambiente materno para a
determinao do psiquismo que se constitui, ou, em suas palavras, para os
processos de integrao necessrios para que se d o desenvolvimento
emocional. Lacan, por sua vez, aponta para o papel da me como
encarnao do Outro, como aquela que veicula num primeiro tempo, junto
ao beb, a lei simblica da cultura, e que lhe fornece o primeiro espelho
atravs do qual ele ao mesmo tempo se aliena e se constitui. Laplanche
enfatiza o papel inicitico da me, responsvel pela seduo
generalizada necessria, desenvolvimento do pensamento freudiano
explicitado nos Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde Freud
(1905) afirma que funo da me despertar o instinto sexual dacriana e
ensin-la a amar. A me, ento aquela que introduz o beb no campopulsional, instilando Eros em sua constituio. Essa idia parece pressupor
um beb passivo do ponto de vista da formao do aparelho psquico, que
se constituir como que inoculado pelo outro. Ou seria o aparelho psquico
uma organizao que se constituir como instncia defensiva diante do
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ataque pulsional? (Ribeiro, 2000). Dolto (1984), por sua vez, refere-se ao
papel fundamental da me como responsvel por fazer operar as
castraes simbolgenas, que vo, passo a passo, estabelecendo os
marcos e fazendo surgir novas estruturaes no psiquismo infantil.Servimo-nos aqui de Winnicott, (1999) quando descreve o que est
em jogo no desenvolvimento emocional primitivo. Para ele, esse
desenvolvimento abrange trs tarefas principais:
(...) a integrao do eu, a psique que habita o corpo e arelao objetal. Numa correspondncia aproximada a estestrs itens, temos as trs funes da me: segurar (holding),manipular (handling) e apresentar o objeto. ( p.32 )
O prprio termo holding, em ingls, como tambm em portugus,
tem um significado abrangente, incluindo a idia de tornar seguro, de
firmar, de amparar, de impedir que caia, de garantir, de apoiar. Assim,
medida que o beb cresce, o significado primeiro do segurar fisicamente o
corpo do beb amplia-se cada vez mais, at englobar a funo de todo o
grupo familiar, em sua designao de entorno da criana. Segurar e
manipular bem uma criana facilita os processos de maturao, e segur-la
mal significa uma incessante interrupo desses processos, devido s
reaes do beb s quebras de adaptao (idem, p.54).
Winnicott afirma que as bases da relao objetal instauram-se na
primeira infncia, e dependem da maneira como a me apresenta ao beb
o seio, a mamadeira ou qualquer outro objeto. Nessa apresentao doobjeto, ela o faz de tal modo que permite ao beb criar o que j se
encontrava ali, e na verdade o que o beb cria parte da me que foi
encontrada. Trata-se de um dos paradoxos fundamentais da concepo
winnicottiana de inscrio do beb no mundo, que s possvel porque a
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me encontra-se naquele estado especial que lhe d a condio de estar
presente mais ou menos no momento e no lugar certos.
Se essas so as condies que permitem criana situar-se no
mundo de forma criativa, podemos pensar que certamente para Bruno, opaciente referido acima, essas condies foram falhas especialmente no
que diz respeito apresentao do objeto, que permite criana fazer uso
de sua criatividade a partir da iluso renovada de ter sido o inventor do
objeto que encontra. E Bruno no parece ter podido se apossar de seus
objetos com a iluso de t-los inventado, de modo que hoje no se apossa
de suas prprias histrias.
Bernard Golse (1990) faz uma interessante anlise dessa funo
materna. Segundo ele, a apresentao do objeto introduz precocemente a
presena de um terceiro entre a me e seu beb, na medida em que o
objeto apresentado permite desviar e filtrar as moes pulsionais da me,
tanto as agressivas quanto as libidinais, que poderiam submergir o beb.
Por outro lado, a maneira de apresentar o objeto permite me regular e
canalizar a excitao advinda da realidade externa. Essa funo inscreve-
se duplamente: como elemento do sistema pra-excitao oferecido pela
me sua criana, pois a protege ao mesmo tempo de uma invaso
excitante da prpria me e de uma intruso traumtica do meio externo.
De um modo ou de outro, a funo de apresentao do objeto contribui
para a instaurao de uma primeira triangulao: me-criana-objeto.
Mas para que essas condies se dem, Winnicott pressupe que ame se encontra num estado especial, nomeado por ele de preocupao
materna primria. Para alcanar tal estado, a me, ao longo da gravidez,
prepara-se para a chegada do beb, por meio de um processo de
adoecimento progressivo, que paradoxalmente s pode ocorrer se ela for
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saudvel. A palavra doena utilizada por Winnicott de forma
paradoxal, para indicar que preciso me ser suficientemente saudvel
para se deixar adoecer dessa maneira, at poder se recuperar desse estado
quando o beb a libera. Esse estado se desenvolve medida que aumentasua capacidade crescente ao longo dos nove meses de gravidez de se
identificar com seu beb, provavelmente a partir das inscries primeiras
de sua prpria experincia infantil com sua me. Winnicott(1969)
considera que existem mulheres que so
(...) capazes de manter uma vida rica e proveitosa, mas
que no conseguem atingir esta doena normal que ascapacitaria a se adaptar delicada e sensivelmente snecessidades iniciais do beb. Estas mulheres no socapazes de se preocupar com seu prprio beb, a ponto deexcluir outros interesses, da maneira que normal etemporria. Pode-se supor a existncia de uma fuga paraa sanidade em algumas dessas pessoas. (p. 171).
Retornemos ento s nossas interrogaes sobre Bruno, agora
olhando para o que se passou do ngulo da funo materna, considerada
aqui sob o ponto de vista do desenvolvimento da preocupao materna
primria. Em primeiro lugar, Winnicott afirma a necessidade do tempo da
gravidez para que a me desenvolva progressivamente sua capacidade de
identificao com seu beb. No caso da gravidez de Bruno ela j comea
amputada de uma parte, pois seus primeiros meses foram perdidos pelo
desconhecimento materno. O tempo da gestao um tempo deelaborao necessrio para a construo da representao do beb no
imaginrio da me.
Gostaria de ressaltar novamente a importncia do tempo, da
previso da durao da gravidez, internalizada pela me, e que vai
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marcando para ela o processo de crescimento do beb dentro de si.
como se esse tempo durante o qual o desenvolvimento do feto se d
favorecesse, concomitantemente, a criao do beb imaginrio no
psiquismo materno. Catherine Mathelin (1999) considera que tal tempo deelaborao indispensvel, pois permite criana tomar corpo no s
no ventre da me, mas tambm em seu fantasma (p. 66).
Especialmente os ltimos meses da gravidez so momentos
importantes para a construo da criana, como tambm da me, e
podemos supor que o processo vivido pela me produz remanejamentos de
tal ordem que chegam a caracterizar uma revoluo psquica. Nesse
sentido, como se o estado gestacional favorecesse uma maior
permeabilidade no interior do psiquismo, com a emergncia de contedos
at ento eficientemente recalcados mesmo nas mulheres que j estavam
em processo de anlise antes de engravidarem. Isso nos remete
proposio de Freud sobre a sexualidade feminina, em que ele supe que o
dipo da menina s encontrar, na melhor das hipteses, uma resoluo
quando da maternidade, de preferncia de um filho homem, pois somente
assim a mulher se consolaria de seu estado de castrao. Essas
proposies freudianas sero discutidas mais detalhadamente no captulo
VI deste trabalho.
Em uma conferncia na Sociedade Psicanaltica de Viena, em
1911, Sobre as bases do amor materno, Margarete Hilferding avana
uma idia desde ento esquecida nos estudos psicanalticos sobre amaternidade: considerar o feto como um objeto sexual da me. Em seu
comentrio, Teresa Pinheiro (1991) enfatiza a novidade que isso produz,
levando em conta que nos acostumamos a pensar a experincia da
gravidez do ngulo do narcisismo materno, e que desse ponto de vista
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que se costuma compreender a experincia de plenitude da me. Pensar o
amor materno via sexualidade da grvida na sua relao corporal com o
feto algo muito diferente. No entanto, o que vemos aqui talvez pelo vis
da relao com esse outro em seu prprio corpo a relao da me comsua prpria sexualidade, com sua prpria identidade sexuada. A gravidez
parece definir um perodo extremamente frtil para a produo imaginria,
permitindo a retomada de posies infantis, edpicas, em relao s
imagos parentais, com nfase particular nas questes da sexuao.
Carregar um filho em si, t-lo feito, parece vir confirmar por um instante o
fantasma de ter em si os dois sexos, mais alm do que resolver a castrao
pensada em termos de inveja do pnis. Tornar-se flica - provavelmente
como a prpria me foi suposta - significa poder ser ao mesmo tempo
masculino e feminino. Mas ser que as questes da gravidez e da
maternidade esgotam-se na problemtica da sexualidade? Freud,
comentando a conferncia de Margarete Hilferding, afirma:
(...) pode-se dizer de sada que toda tentativa de analisar o
fenmeno sob um nico aspecto est fadada ao fracasso; asobredeterminao especialmente evidente nestecaso.(Freud, apud Hilferding, Pinheiro, Vianna, 1991, p.94)
Assim, haveria pelo menos mais dois outros aspectos a considerar.
O primeiro diz respeito ambivalncia fundamental no lao me-filho que
Freud, na poca, atribuiu s moes hostis inerentes aos laos de amor,
correspondendo ao sentimento agora sou seu escravo. S anos depoisele desenvolver em sua obra a idia da destrutividade em si, culminando
no texto Mal-estar na civilizao. Outro caminho j mais trilhado para
pensar a maternidade passa pelo estudo do narcisismo, que ser tratado a
seguir.
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CAPTULO II
NARCISISMO MATERNO E CRIAO DO ESPAO
PSQUICO PARA O BEB
Trataremos agora da construo da representao do beb no
psiquismo materno, durante os meses de gestao, com a suposio de que
o tempo da gravidez o tempo da elaborao necessria para que essa
construo se efetive. Assim, como se de incio o beb se apresentasse
para a me como um estrangeiro, constituindo um enigma que ela no
conhece nem decifra. Durante os meses da espera supe-se que ele possa
progressivamente passar a ser o objeto das mltiplas projees derivadas
das experincias infantis da me. Nesse tempo da gestao tratar-se-ia
ento, para a me, de realizar o trabalho de transformar o estrangeiro em
familiar, atribuindo-lhe caractersticas, por meio dos efeitos de projeo e
de idealizao, ancoradas em sua prpria histria infantil. Como dito
anteriormente, a escuta analtica de mulheres grvidas permite
acompanhar esse delicado e imprevisvel trabalho psquico que se d
durante esses meses.
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Se o incio da gravidez pode ser marcado, para a me, pela
experincia imaginria de ter seu corpo ocupado, ou at mesmo invadido,
por um ser que, ainda que desejado percebido como um estrangeiro, no
final da gestao, atravs de transformaes sutis, porm decisivas, surgea possibilidade de construir para o beb um espao dentro de si, e dentro
de sua vida. A produo onrica e associativa desse perodo pode revelar o
radical remanejamento psquico que se d na mulher durante o tempo de
espera do filho. Uma aproximao sobre o narcisismo materno e seus
percalos durante a gravidez pode ser utilizada para descrever o processo
que permite, ou no, que um espao psquico para o beb, essencial para o
seu advir como sujeito, se constitua na me.
Assim, podemos colocar a interrogao: como nasce uma me?
Freud (1915) dizia que era necessrio, para ter um filho, amar o que
somos, o que fomos e o que gostaramos de ser, assim como aqueles que
de ns cuidaram, para poder investir narcisicamente uma criana.
Bydlowski (1998b) assinala que em se tratando de filiao humana uma
dvida de vida inconsciente liga o sujeito a seus pais, a seus ascendentes.
Para que se d a transmisso da vida, fundamento de todo nascimento,
seria preciso assumir o reconhecimento dessa dvida de existncia.
Mas buscando nos centrar sobre os meses da espera real do beb, j
concebido, como descrever esse processo no psiquismo materno? Tanto
quanto seu beb, ela tambm precisa do tempo da gestao para, no seu
tempo psquico, constituir-se como me. Esse perodo seria necessriopara possibilitar o esboo da criao de um espao psquico materno
constitutivo de um suporte no qual o beb possa advir como um ser
subjetivado, e no mais como um ser biolgico somente. Supomos que as
experincias corporais da me, as mudanas fsicas que ocorrem durante a
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gravidez, sejam indissociveis das suas experincias psquicas. Talvez
possamos nos servir do modelo do beb em que o corpo e a psique so
indissocivies - para pensar o funcionamento do psiquismo da me.
Monique Bydlowski (1998a) define como transparncia psquica essamodalidade particular de funcionamento do psiquismo materno, na qual a
eficincia habitual do recalcamento se v reduzida, permitindo a
emergncia de contedos psquicos recalcados, relativos a experincias e
fantasias infantis; esse estado (...)marcado por um superinvestimento
da histria pessoal da me, com uma plasticidade importante das
representaes mentais centradas sobre uma inegvel polarizao
narcsica(...) ( p. 217).
Muitas vezes, a expresso desses fantasmas se d atravs de sonhos,
outras vezes se denuncia pelas bruscas e intensas oscilaes emocionais
manifestadas pelas gestantes, com sentimentos agudos de tristeza ou
euforia aparentemente inexplicveis.
Assim, podemos pensar que a gravidez inaugura a experincia de
um encontro ntimo da mulher consigo mesma; Bydlowski supe que o
que est em questo sua capacidade ou no de erotizar uma parte ainda
interna a si mesma. O embrio configura para a me, inicialmente, um
estrangeiro, um outro dentro de seu prprio corpo. Alis, h uma
ilustrao orgnica dessa relao, que se concretiza em uma das
modalidades de patologia da gravidez. Trata-se da repetio de abortos
espontneos provocados pela rejeio do embrio pelo organismomaterno, como um objeto estranho, da mesma forma como ocorrem os
fenmenos de rejeio de rgos transplantados. Para que a gravidez
prossiga, preciso que haja uma adaptao imunolgica entre o
organismo da me e o embrio, mas em alguns casos o organismo materno
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tem dificuldade em diferenciar a gravidez de uma doena, interpretando-a
como uma agresso, levando-se a produzir substncias para interromper a
gestao. A chave do problema est na maneira como o organismo
materno interpreta as informaes genticas paternas presentes nas clulasdo embrio. Para que a gestao possa prosseguir preciso, ento, que o
organismo materno faa a leitura do embrio como uma gravidez, e no
como um corpo estrangeiro a ser rejeitado.
Poderamos tomar essa patologia como uma metfora da aceitao
ou no pela me de um estrangeiro dentro de si, de seu prprio corpo. Esse
beb pode ser percebido como um invasor, ameaador. Sabemos tambm
que para mes psicticas o beb pode nem chegar a ser percebido como
um outro, nos casos em que a negao da gravidez persiste at o momento
do parto.
Por outro lado, o tempo cronolgico da gravidez seria necessrio
para permitir a elaborao do beb como tal, num deslizamento dessa
percepo do feto como parte do corpo at se constituir como um outro
beb objeto das projees maternas. Desse modo, a crise psquica da
gravidez poderia ser pensada como uma conseqncia da intruso no
narcisismo da me, causada pela introduo desse outro, mesmo que
desejado, em seu espao psquico. Como dizia uma paciente ao saber que
estava grvida, nunca mais poderei estar s. Essa fala expressa o temor
de uma intruso definitiva e permanente desse outro em seu campo
subjetivo.Na busca de respostas para sua interrogao sobre a escolha
feminina de ter filhos ou no, Genevive Serre (2002) entrevistou um
grupo de mulheres que fizeram a segunda opo. Serre, dentro do
referencial terico adotado, partiu da hiptese inicial de que se tratava de
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uma renncia, ligada provavelmente a movimentos depressivos, a uma
baixa estima de si, o que foi aparentemente desmentido pelo teor de suas
entrevistas. Alis, relata em seu artigo que nos Estados Unidos, onde
pedidos de ligaduras de trompa e de vasectomia feitos por adultos que noquerem assumir uma descendncia tm se tornado muito freqentes,
cunhou-se uma nova expresso, substituindo o termo childless por
childfree... As entrevistas realizadas com esse grupo de mulheres, todas
bem-sucedidas profissionalmente, apontaram para a percepo, por elas,
no de uma perda ou de uma renncia, mas, ao contrrio, de terem feito
uma escolha positiva ligada a um ganho de liberdade, pois assim se
liberaram de um elo que as teria acorrentado por toda a vida. Numa
anlise desses testemunhos, Serre prope dois registros diferentes de
compreenso: o da problemtica edipiana, j que no ter filhos afasta a
mulher do risco de realizao do fantasma incestuoso, e o de uma
problemtica narcsica, com o temor da perda de si mesma, temor que
essas mulheres experimentariam de serem destrudas nesse jogo da
maternidade.
Cramer (1999) afirma que as mudanas durante a gravidez podem
corresponder experincia, pela me, de se sentir habitada por um de
seus pais, ou por um aspecto deles, experincia que tanto pode ser bem-
vinda como assustadora. De certo modo, tornar-se me reencontrar sua
prpria me. Mais ainda, a gestao seria o tempo necessrio para aceitar
essa nova situao que envolve ligar-se para o resto da vida com umdesconhecido, fonte de angstia, como o vazio. Trata-se, ento, de realizar
o trabalho de transformar esse estrangeiro em familiar. Durante a
gravidez, a criana tem um duplo status, ao mesmo tempo presente no
interior do corpo da me e em seus pensamentos conscientes e
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inconscientes, mas ausente da realidade visvel, s podendo ser objeto das
interaes fantasmticas, onde esto em jogo essencialmente os
contedos psquicos da me em torno desse objeto ainda eminentemente
narcsico que o beb, que existe sem existir.Por meio dos sonhos relatados por uma analisanda grvida, foi
possvel acompanhar esse delicado e imprevisvel trabalho psquico que
ocorre durante os meses da gestao. Se, no comeo, a experincia dessa
mulher foi a de se perceber a servio desse ser que, ainda que desejado,
era considerado por ela como um invasor no interior de seu corpo, no
final, por sutis remanejamentos, aparece a possibilidade de organizar para
o beb um espao dentro de si, ao mesmo tempo em que ela se v, num
sonho, ocupando com seu marido a casa que havia sido a casa de sua
prpria infncia. Mas para que isso acontecesse, um longo percurso,
marcado por sua ambivalncia, precisou ser trilhado durante meses. Os
sonhos dessa paciente, em sua ordenao quase lgica, obedecendo
lgica do inconsciente, ajudaram-na a dar forma e sentido experincia da
maternidade, vivida por ela como um fenmeno incontrolvel.
Fao aqui a ressalva de que neste trabalho no se trata de fazer o
estudo detalhado desses sonhos, em suas associaes e desdobramentos. A
maior parte deles foi objeto de associaes por parte da analisanda,
levando a um trabalho de elaborao que muitas vezes prolongou-se por
vrias sesses. A prpria seqncia dos sonhos, com seu encadeamento
peculiar, foi motivo de ateno de minha parte e da analisanda, no que elaparecia vir pontuar seu percurso imaginrio durante a gravidez, tendo
como eixo sua histria edpica, retomada em sua relao transferencial.
Assim, sirvo-me dos sonhos em relatos muito sucintos apenas para ilustrar
o que parece importante ser pesquisado mais a fundo, que o radical
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remanejamento psquico que se produz na mulher durante o tempo de
espera do filho.
Nos primeiros meses, sua experincia corporal de enjos, vmitos,
dores e tonturas vinha acompanhada do sentimento de subservincia a esseser, diante de quem ela tinha de se curvar, que a tomava do interior de seu
corpo. Paralelamente, seus sonhos a angustiavam, com contedos erticos
homossexuais e bissexuais, totalmente novos em sua produo onrica. No
plano consciente, temia que seu marido a trasse, sem que nada de objetivo
indicasse essa possibilidade, como ela mesma reconhecia. Mas sentia-se
insatisfeita e desconfiada, achando que ele a deixava s, com sua gravidez,
e que no se mobilizava com ela para preparar a chegada do beb.
Um elemento que se apresentar constante em todos os seus sonhos
so as vrias representaes onricas de suas casas da infncia. Nos
primeiros sonhos, as casas apareciam desabitadas, ou ento ocupadas por
pessoas estranhas, invasoras. Nos sonhos subseqentes comeam a surgir
no interior das casas personagens mais familiares - uma tia distante, uma
amiga da infncia - mas trazendo ainda uma certa impresso de
estranhamento, de modo que as associaes durante os relatos dos sonhos
vinham freqentemente acompanhadas de perguntas como: no sei por
que coloquei tal pessoa nesse cenrio, nunca mais pensei em fulana, no
sei por que ela aparece em meu sonho. At que, na segunda metade da
gravidez, os incmodos fsicos diminuem, ela se sente plena, o beb se
mexe muito, ela j sabe que um menino. A mudana que muitas vezes sedesencadeia a partir da percepo pela me dos movimentos do feto
parece ser fundamental para modificar a fantasia do estrangeiro, do
desconhecido dentro de si. Os movimentos do beb permitem me criar
significaes sobre ele, interpretando seus movimentos, estabelecendo-se
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assim um modo de comunicao entre os dois. A definio do sexo do
beb tambm foi, nesse caso, de grande importncia para dar-lhe uma
identidade, e assim uma configurao no imaginrio materno. H um
sonho desse perodo que parece ter sinalizado uma reestruturao decisivana construo do lugar do beb por vir. Ela est com sua me, que carrega
um beb morto, e ambas procuram um bom lugar para enterr-lo, o que
realizado no final do sonho. Para alm de uma provvel relao com
questes precisas da histria dessa paciente, suas associaes conduzem-
na a pensar que dela mesma, em sua imagem de beb da me, que se
trata aqui. Como se fosse necessrio enterrar esse beb narcsico ela
mesma, o beb imaginrio de sua prpria me para dar lugar a um outro
beb, agora o seu prprio, sendo um outro que no ela mesma. Esse sonho
ser objeto de outras reflexes no captulo VI. No perodo final da
gestao ela sonha com a mesma casa da infncia, agora ocupada por ela e
seu marido, que ali recebem hspedes, amigos do marido. interessante
assinalar como surge a representao de amigos do marido, hspedes
agora aceitos em sua casa da infncia, se lembrarmos da patologia ligada
rejeio do embrio, no aceito pelo organismo materno porque carrega a
mensagem gentica do pai.
Essa seqncia de sonhos permite ressaltar a importncia do tempo,
da durao da gravidez, tal como vai sendo internalizada pela me,
marcando para ela o processo do crescimento do beb dentro de si. Mas
no podemos supor que haja uma coincidncia perfeita entre o tempofsico e o tempo psquico da gravidez. A clnica mostra que a gravidez
psquica se prolonga normalmente, na mulher, para alm do momento do
parto.
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Os sonhos, com suas vrias referncias s casas da infncia, falam
tambm da construo do espao para o beb no interior do psiquismo
materno. Em um estudo sobre a agorafobia, Carlos Alberto da Gama e
Manoel Berlinck (2002) propem que o espao seja pensado como oprimeiro objeto psquico. Buscando superar a dissociao entre externo-
interno, afirmam que
(...) o foco do problema do espao... desloca-se paraa questo de como se d a construo da subjetividade, oude como os diversos elementos se ordenam no espao apartir da histria de cada sujeito. Visto assim, o psiquismo
seria uma organizao psquica do vazio, um espao ondepodem ocorrer os objetos e sua dinmica: a presena, aausncia, o intervalo, a memria, enfim.(p. 177)
Podemos pensar a gravidez como um estado que produz uma
alterao radical dos referenciais, j materializados pelas mudanas
corporais, como tambm pela mudana de lugar na cadeia de filiao, da
passagem do lugar de filha para o lugar de me. A vertigem, fenmeno
que ocorre em pacientes agorafbicos, tambm freqentemente
experimentada pelas gestantes, sobretudo no incio da gravidez. Assim,
tomando emprestada a compreenso de Gama e Berlinck (2002) sobre
essa manifestao da agorafobia, poderamos, do mesmo modo, considerar
a hiptese de que (...) uma perda (ou uma alterao) de referenciais
internos provoca a sensao de perda de referenciais externos. So as
perdas de pilares de sustentao egicos os responsveis por esta aparente
desorganizao externa.( p.177)
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Tambm h na gravidez uma alterao fundamental na referncia de
si mesma. A alterao corporal, induzindo necessariamente a uma
mudana na imagem do corpo, afeta a representao narcsica da mulher.
O limite corporal se modifica, a unidade da representao de si deslocada para permitir a representao do corpo prprio que vai englobar
progressivamente um outro corpo. As mudanas no invlucro corporal e
imaginrio representam uma ameaa construo narcsica. Na
agorafobia, produzem manifestaes de angstia cuja funo sinalizadora
busca prevenir uma possvel desestruturao. Mas na gestao no h
como impedir a alterao que se processa inexoravelmente, a no ser por
uma interrupo da prpria gravidez. Essa uma hiptese a ser
considerada nas ocorrncias de partos prematuros ou de abortos
espontneos repetitivos.
Toda essa modificao supe a necessidade de o ser da mulher
poder aceitar englobar um outro. Diramos que na dinmica ambivalente
que se processa da me para o beb, parece haver uma oscilao entre um
narcisismo englobante, correspondente experincia de plenitude em
que a mulher se vive completa com seu beb no ventre, de tal modo que o
beb est includo em seu prprio narcisismo. E, em contraponto,
poderamos pensar num narcisismo excludente, quando ela se percebe
invadida por um outro, estrangeiro dentro de si, de quem ir livrar-se no
parto. O jogo entre a incluso e a excluso do beb, no espao psquico da
me, poder ser um dos eixos de determinao do investimento dessacriana e do modo como se processaro as passagens dos contedos
maternos para o psiquismo incipiente do beb.
No trabalho psquico materno que consiste em transformar o
estrangeiro em familiar necessrio tambm que a me construa
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antecipadamente o eu do beb, na espera desse encontro, imprevisvel e
eventualmente perturbador. o que Piera Aulagnier chama de construo
do Eu (je) antecipado, primeiro captulo da histria do infans a vir. Em
seu texto Nascimento de um corpo, origem de uma histria (1999), elapergunta:
(...) o que representa o corpo do infans para esta mesuposta esper-lo para acolh-lo?...Aquele que provaria aela a realizao do seu desejo de ser me? A ltimaelaborao do objeto de um longo sonho comeado na suaprpria infncia? Ela encontra um corpo, fonte de umrisco relacional (...) encontro que vai exigir umareorganizao da sua prpria economia psquica, quedever beneficiar esse corpo do investimento do qualgozava at ento o nico representante psquico que otinha precedido, (idem, p. 33),
representante psquico que ela chama de Eu (je) antecipado. Para que
se d a passagem do corpo somtico, do corpo sensorial, para o corpo
relacional, preciso uma historicizao da vida somtica, o que, para
Aulagnier, (1999), exige um bigrafo que possa ligar o evento somtico aum destino psquico. Assim, (...) uma primeira verso construda e
aguardada na psique maternal acolhe esse corpo para unir-se a ele. Faz
sempre parte deste Eu antecipado ao qual se dirige o discurso maternal,
a imagem do corpo da criana que era esperada.(p. 21)
O Eu antecipado insere a criana num sistema de parentesco, e
sua imagem corporal porta em si a marca do desejo materno. Piera
Aulagnier afirma como condio para a preservao da vida psquica e
certamente para sua prpria construo a existncia de um meio
ambiente psquico que respeite exigncias to incontornveis quanto
aquelas necessrias para a preservao da vida somtica. Isso exige da
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me que organize e modifique seu prprio espao psquico para fazer face
a essas novas exigncias.
A antecipao, considerada fundamental por Piera Aulagnier como
uma das funes maternas, traz em si a dimenso do tempo. Podemospensar no tempo da gestao como representando um intervalo psquico
para a mulher durante o qual ela fica suspensa no tempo do outro que est
se criando, o beb. E nesse tempo-entre as trs dimenses se
apresentariam assim: o passado, que ressurge como fantasma, o presente
como um tempo em suspenso, e o futuro, tempo marcado pelas projees,
desejos e temores. Desse modo, o tempo da gestao fica caracterizado
como um tempo intermedirio entre os fantasmas e desejos do passado e
as projees do futuro.
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CAPTULO III
RESILINCIA E FUNO MATERNA
Na introduo deste trabalho, ao indicar o interesse pelo estudo dos
determinantes da constituio do psiquismo, desdobrava essa questo
naquela outra que interroga sobre a variedade infinita dos modos de
constituio, especialmente no que diz respeito s diferenas por vezes to
intrigantes de capacidade de resistncia de alguns bebs, comparados
com outros, em situaes de vida aparentemente semelhantes. O que faz
algumas crianas resistirem melhor do que outras?
Assim, trataremos aqui da noo de resilincia, entendida como o
conjunto das disposies de alguns indivduos, e especialmente de
algumas crianas, que lhes permitem atravessar sem danos sensveis
situaes de graves riscos psquicos. A noo de resilincia no faz parte
do corpo conceitual da psicanlise, mas tem sido considerada pelos
clnicos, especialmente os clnicos de crianas. um conceito-limite que
ainda solicita muitas precises, mas que pode ser situado no campo da
psicopatologia e, mais especificamente, na psicopatologia da criana e do
beb. Desenvolvido principalmente pela psiquiatria infantil preventiva
inglesa, nos anos 1990, resilincia originalmente um conceito da fsica
que define a resistncia mecnica de um material submetido a umimpacto. Os estudos da etologia humana tambm tm se voltado para o
entendimento dos fatores favorecedores da resilincia. Seguindo a posio
da psicopatologia fundamental de dialogar com diferentes saberes, nesse
captulo faremos uso de aportes das teorias do apego e da etologia.
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Podendo fazer contraponto a essa noo de resilincia, a
insuficincia imunolgica psquica, proposta por Berlinck (2000d),
definida como sendo a incapacidade do organismo de defender-se de
ataques virulentos externos, assim como sua vulnerabilidade diante deataques endgenos. Importante notar que a insuficincia imunolgica
psquica do beb associada por Berlinck (2000d) diretamente ao dio
materno, inevitvel na ambivalncia de sua relao com a criana. Pensar
sobre a insuficincia imunolgica psquica do beb leva, necessariamente,
a pensar sobre o outro do beb, sobre a funo materna. Voltaremos a esta
questo no fim deste captulo.
Se perguntamos o que faz com que alguns indivduos sejam mais
vulnerveis do que outros aos ataques internos e externos - o conceito
de resilincia tenta dar conta dessa questo, mas invertendo a proposio,
perguntando o que faz com que alguns indivduos sejam menos
vulnerveis do que outros. Para apresentar essa formulao, referimo-nos
s reflexes de Bertrand Cramer (1999), psicanalista atuando na clnica
com bebs e crianas pequenas.
Reconhecendo a dificuldade de fazer predies no campo do
psiquismo, que seriam quase da ordem da adivinhao, Cramer indica que
a resilincia s pode ser constatada a posteriori, quando suas
conseqncias puderem ser percebidas. Portanto, compreend-la requer
um esforo de reconstruo, a criao de umafantasia do passado.
Para melhor definir o estudo desses fatores, seria necessrio fazera distino entre os casos que envolvem situaes de traumatismos
extremos e aqueles decorrentes dos chamados traumas cumulativos. Para
Cramer (1999) a resilincia diante de um trauma
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(...) de natureza muito diferente daquela que seria precisodesenvolver face grande maioria das perturbaespsquicas precoces.... Nessas, trata-se de conflitosrelacionais, de alternncias de privao e hiper-excitao,de contgios de angstia, de conflitos que no podemosreduzir uma origem traumtica determinada. Assim, amaior parte das infelicidades da vida no so efeito detraumatismos, mas dos percalos do agenciamento pelosujeito de seus ferimentos, de seus conflitos e de suasangstias. (p. 215)
Trata-se ento de buscar os fatores que protegem a criana contra
esses efeitos, sendo um deles a relao entre a resilincia e a criatividade.Cramer supe que a compreenso da trajetria que vai do luto na infncia
criatividade na idade adulta traria elementos interessantes para uma
teoria da resilincia. No entanto, nem sempre, felizmente, as crianas
vivem perdas causadas pela morte de pais na infncia. Por outro lado,
fazem a experincia de inmeras perdas nesses primeiros anos, e so
chamadas a elaborar progressivamente seus lutos em relao aos primeiros
vnculos, especialmente em relao ao desejo de controle da presena da
me. O trabalho psquico central da infncia pode ser entendido como a
aceitao, pela criana, de no ser o nico objeto de desejo de sua me,
constatando a atrao que para ela exercem o pai, seus irmos, outras
pessoas, aprendendo ento a renunciar posse exclusiva da me. Assim,
supe Cramer (1999 que a criatividade comea no bero, e Winnicott j
falou muito sobre isso. O beb lida com a angstia da perda fabricandofantasias que substituem seus objetos de amor, produzindo assim
representaes mentais que tomam o lugar da me ausente, estruturando o
pensamento que se desenvolve como um antdoto contra o veneno da
ausncia.
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A resilincia caracterizada como o conjunto dos processos que
podem temperar ou relativizar a vulnerabilidade, e a psicanlise prope
algumas pistas tericas para a compreenso desses processos. Uma delas
a capacidade de rverie materna conceito de Bion (1979a) para ilustrara capacidade de conteno e de transformao do psiquismo da me que
deve poder sonhar, isto , metabolizar e transformar as primeiras
produes ou protoproduces psquicas de seu beb a fim de torn-las
utilizveis por ele. Trata-se de um estado de mente receptivo da me,
capaz de acolher os estados psquicos do beb, transmitidos a ela por meio
dos mecanismos de identificao projetiva. Essa capacidade materna
necessita uma identificao primria com seu beb, a quem ela empresta
seu aparelho para pensar pensamentos, isto , seu aparelho para tornar
pensveis pela criana seus primeiros pensamentos impensveis por ela
sozinha. Esse processo pode ser descrito em quatro tempos. O primeiro,
aquele no qual a me recebe as tenses da criana, seguido de um segundo
durante o qual ela guardar por um perodo suficiente aquilo que lhe foi
endereado, experincia que permite ao beb vivenciar que o que ele sente
pode ser recebido por um outro, que ele pode tocar sem destruir. O
terceiro tempo o da transformao, dentro do aparelho psquico da me,
dessa tenso do beb que ela recebeu e guardou. Essa a funo de
metabolizao, que Bion chamou de funo alpha. O quarto tempo
aquele da restituio ao beb do que foi transformado pela me,
transmitido por meio de gestos, palavras e outras formas de comunicao.O beb passar progressivamente a fazer ele mesmo esse papel de
metabolizar os elementos no pensveis de seu psiquismo, ao internalizar
essa capacidade materna de receber, guardar e transformar, processo que
constituinte, segundo Bion, do aparelho de pensar da criana.
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A propsito dos traumatismos hiper precoces, Ren Diatkine (1994)
utilizou esse conceito de rverie materna para propor uma hiptese que
permitiria manter os dois tempos da teoria clssica do traumatismo, mas
invertendo-os. Nessa sua hiptese, o primeiro tempo desses traumatismosprecoces no seria ligado a um excesso de excitao no possvel de ser
metabolizado, mas sim causado por uma insuficincia da capacidade de
rverie materna. Insuficincia que deixaria o beb desprotegido face aos
acontecimentos ulteriores suscetveis de operar para ele como o segundo
tempo da dinmica traumtica. Seria ento uma falha na interiorizao
dessa capacidade materna que figuraria como o tempo traumtico
primeiro, mas silencioso, em negativo, que s se manifesta quando da
reapresentao dos fatores que reativaro a primeira vivncia traumtica.
J para os tericos do apego, a constituio de um apego seguro
vista como um fator preponderante de resilincia. Peter Fonagy (1995)
introduz uma novidade a esse esquema ao dizer que menos do que a
qualidade dos esquemas precoces de apego que determinar o futuro
psicopatolgico da criana, ser o mecanismo de interpretao
interpessoal, base da capacidade reflexiva que ter aqui um papel
central.
Fonagy (1995) transfere a nfase na internalizao do objeto de
conteno para a internalizao do eu pensante a partir do interior do
objeto de conteno. Para ele, a criana, alm de perceber o
comportamento do provedor de cuidado, tambm percebe uma imagem desi prpria no outro como mentalizando, desejando, acreditando. Aqui, o
importante que a criana v o provedor de cuidado representando-a
como um ser intencional, e esta representao que ser internalizada
para a formao do eu. Fonagy (1995) prope o seguinte modelo: ele
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pensa em mim como um ser pensante; logo, eu existo como um ser
pensante (p. 251). E mais, no que diz respeito a resilincia, a partir da
anlise de vrios estudos sobre seus fatores favorecedores, esse autor
sugere que um nico relacionamento de preferncia o materno com essascaractersticas, pode ser suficiente para o desenvolvimento da capacidade
reflexiva da criana, e assim proteg-la diante de condies de risco
graves no decorrer da vida.
Por essa breve resenha de alguns autores que abordaram o tema da
resilincia, podemos perceber que o fator preponderante de resilincia
envolve sempre a relao com o outro, a relao da criana com seu
cuidador primordial. Essa discusso conduz de volta questo sobre a
posio do beb em sua relao com a alteridade, suposta aqui ser
representada pela me, ou por quem faa essa funo. Essa posio de
passividade, de receptividade, ou de competncia? Questo que pode
introduzir uma outra temtica, a da funo da dor na estruturao do
psiquismo, sobre a qual um caso clnico de uma criana tendo vivido
situaes de extrema vulnerabilidade nos fez refletir, e que trataremos no
captulo seguinte.
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CAPTULO IV
DOR, PELE PSQUICA E FUNO MATERNA
E quando as coisas no se passam bem desde o incio, quando as
condies so tais que a criana se encontra numa situao de extrema
vulnerabilidade? Neste captulo trataremos de um caso clnico envolvendo
uma criana cujo contexto inicial, at os dezoito meses, foi de extrema
precariedade, marcado pela rejeio explcita da me biolgica, at sua
adoo por outra famlia.
Este caso clnico nos conduzir a refletir sobre a funo da dor na
constituio do psiquismo e sobre a funo materna nessa abertura das
vias de erogenizaco do corpo do beb.
Felipe tem cinco anos e seus pais me procuram porque, dentro de
um conjunto de comportamentos inquietantes, denotando dificuldades de
contato, falta de concentrao na escola, agitao mesclada com uma
indiferena aparente ao que est ao seu redor, a criana apresenta um
sintoma que incomoda profundamente aos pais, e que prefiro chamar de
incontinncia urinria ao invs de enurese. Por que incontinncia urinria?
Porque parece haver uma total indiferena de Felipe sua mico, uma
impossibilidade completa de exercer o controle esfincteriano, apesar de
todas as medidas educativas adotadas, sem que nenhuma causa fisiolgica
justifique esse estado. No relato dos pais, inmeras vezes durante o dia eleparece no perceber que urinou ou mesmo que est molhado. Continua sua
atividade como se nada tivesse acontecido, e muitas vezes irrita-se quando
um adulto interrompe seu jogo para lav-lo e troc-lo.
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Felipe foi adotado com a idade de um ano e oito meses. At ento,
viveu com sua famlia de origem, onde era o caula de cinco irmos. Seu
nascimento provocou a separao do casal parental, o pai tendo rejeitado
ao mesmo tempo esse beb e sua mulher, provavelmente por suspeita detraio, segundo os pais adotivos. A me, em conseqncia, recusou
totalmente essa criana que sobreviveu graas aos cuidados dos irmos
mais velhos. Na sua famlia adotiva, Felipe o segundo filho. Como se
deu sua adoo? Ele foi encontrado pela me de sua me adotiva, ou seja,
sua av adotiva que morava nas vizinhanas da famlia de origem. A av
adotiva cuidou dele durante um ms, at a chegada da filha para busc-lo.
O relato dos pais de que encontraram uma criana ainda muito
selvagem, assustada, que apresentava reaes inesperadas e
incompreensveis, mas que tinha estabelecido um lao com essa famlia
dos avs adotivos, principalmente com a av. Transparece nessa fala dos
pais a impresso de que lidavam com um animalzinho, que custaram a
domesticar, em relao a quem precisaram de muito tempo at
consider-lo parte do grupo familiar. Ele rapidamente comeou a andar,
mas corria mais do que andava, e no incio no parecia ter direo, nem a
menor noo de perigo. Falou por volta dos trs anos, e vivendo num meio
bilnge at o incio da psicoterapia, ele apresentava uma impossibilidade
de falar a lngua portuguesa, que a de sua famlia biolgica, tendo
somente construdo sua comunicao na lngua dos pais adotivos.
Durante as entrevistas iniciais com os pais transparece umadificuldade importante da me para lidar com esse filho, algo que faz
pensar num certo horror em relao ao corpo desse menino.
Nas primeiras sesses comigo Felipe mostrou-se tal como seus pais
o descreveram: explorava a sala e os objetos, aparentemente indiferente
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minha presena, com uma atitude em que a desconfiana parecia esconder
uma certa curiosidade, mesclada com temor. Ele aceitou desde a primeira
vez estar s comigo,