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    REGINA ORTH DE ARAGO

    A CONSTRUO DO ESPAO PSQUICO MATERNOE SEUS EFEITOS SOBRE O PSIQUISMO NASCENTE

    DO BEB

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica

    Ncleo de Psicanlise

    Laboratrio de Psicopatologia Fundamental

    Pontifcia Universidade CatlicaSo Paulo

    2007

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial paraobteno do ttulo de Mestre em Psicologia Clnica, sob a orientaodo Prof. Doutor Manoel Tosta Berlinck

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    Banca Examinadora

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    A AURLIO E EMANUEL

    A MEU PAI, EM MEMRIA.

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    AGRADECIMENTOS

    A Manoel Tosta Berlinck, pela orientao, incentivo e confiana fundamentaispara a realizao desse trabalho.

    A Isabel Kahn Marin e Silvia Abu-Jamra Zornig, que indicaram caminhosdecisivos no exame de qualificao para o desenvolvimento desse trabalho.

    Aos amigos e colegas do Laboratrio de Psicopatologia Fundamental, pelaleitura atenta e generosa de partes desse trabalho e pela interlocuo sempre viva einstigante.

    A Luiz Cludio Figueiredo, pela interlocuo sempre enriquecedora e peladisponibilidade para a leitura atenta de meus textos.

    Aos amigos de Braslia, muito especialmente a Norberto Abreu, Luiz Celes,Maria Nilza Campos e Daniela Chatelard, pelo acompanhamento afetuoso eestimulante desse percurso.

    Aos amigos de So Paulo, especialmente a Ftima Milnitzky, Elosa Tavares deLacerda, Silvana Rabello e Gisela Haddad, pelo apoio, interesse e carinho constantesao longo desse processo.

    A Myriam David, in memoriam, pelo ensinamento do valor fundamental davida e da infncia.

    A meus pacientes, crianas e adultos, por tudo o que tm me ensinado.

    A meu pai, in memoriam, que transmitiu o valor e o prazer do trabalho.

    A minha me, por sua sabedoria de viver.

    A meus filhos, por existirem e inventarem sempre novos modos de olhar a vida.

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    RESUMO

    Esta pesquisa tomou a clnica da criana como ponto de partida para,

    passando pela clnica da maternidade, se voltar para o estudo dosprocessos psquicos que se do no tempo antes do nascimento, e sua

    questo central pode ser assim apresentada: de que maneira aquilo que se

    antecipa e se constri no psiquismo da me durante o tempo de espera da

    criana marcar sua relao com o filho, e, portanto influenciar a prpria

    constituio do psiquismo desse novo ser?

    Essa preparao psquica materna envolve pelo menos trs dimenses: o

    tempo, o espao, e a identificao, todas elas atravessadas por alteraes

    na estruturao narcsica da mulher. A durao da gravidez estabelece

    uma temporalidade que permite gestante percorrer os processos de

    transformao em seu psiquismo, em paralelo s mudanas corporais e ao

    crescimento do beb em seu ventre. Em outra dimenso, essas mesmas

    mudanas corporais deslocam o sentimento de seu prprio espao

    psquico, que se altera para conter um outro ser dentro do corpo e dentro

    da vida. Trata-se de processos que envolvem alteraes no narcisismo

    materno, estabelecendo as possibilidades de um narcisismo englobante ou

    excludente, como propusemos denominar essas duas alternativas da

    posio narcsica materna em relao ao beb. E como dinmica

    intrapsquica fundamental encontram-se os desenvolvimentos da histria

    edipiana; especialmente os percalos da relao da menina com a me dosprimeiros tempos sero determinantes para a construo da funo

    materna.

    Palavras-chave: maternidade, constituio psquica, funo materna.

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    ABSTRACT

    This research has taken the childs therapeutic work as a starting point,

    passing through the therapeutic processes carried out with pregnantwomen, to conceive the study of the psychic processes that take place

    before birth. The main question of this research can be presented this way:

    in what manner what is anticipated and built in the mothers psyche during

    pregnancy will strongly influence her relation with the baby, and

    consequently, will present a relevant effect upon the psychic constitution

    of this new being.

    This maternal psychic preparation involves at least three dimensions: the

    time, the space and the identification, all of them touched by changes in

    the narcissistic processes of the woman. The lasting of the pregnancy

    establishes a time that allows the pregnant woman to pass through the

    process of transformation in her psyche, together with the body changes

    and the growing of the baby in her womb. In another dimension, these

    same body changes produce clear alterations in the internal feeling of her

    own psychic space. This psychic space changes in order to receive and to

    contain another being inside her body and in her life. Those processes are

    related to the alterations in the maternal narcissism, establishing the

    possibilities of one including or excluding narcissism, as we have

    proposed to nominate these two alternatives of maternal narcissistic

    position in relation to the baby. And as one fundamental intra-psychicdynamics, we can find the developments of her edipian history; mainly,

    the specificities of the relation between the girl and the mother of the first

    years of life, that will be relevant to the construction of the maternal role.

    Key-words : maternity, psychic constitution, maternal role.

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    SUMRIO

    INTRODUO 08

    CONSIDERAES METODOLGICAS 16

    CAPTULO I De mes e de filhos 24

    CAPTULO II Narcisismo materno e criao do espao

    psquico para o beb 36

    CAPTULO III Resilincia e funo materna 48

    CAPTULO IV Dor, pele psquica e funo materna 54

    CAPTULO V - Questes sobre o autismo infantil edepresso materna 68

    CAPTULO VI De me para filha. A transmisso

    da maternalidade 82

    CONSIDERAES FINAIS 101

    BIBLIOGRAFIA 112

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    INTRODUO

    TEMA DA PESQUISA

    Ponto de partida

    Ser possvel delimitar, situar um ponto de partida de uma

    pesquisa? A resposta rpida a esta questo seria, sem dvida, dizer que o

    ponto de partida encontra-se na experincia clnica do pesquisador. Mas

    talvez isso seja mais bem dito ao se afirmar que a clnica simplesmente o

    terreno privilegiado no qual a pesquisa se desenvolve, porque se

    quisermos realmente buscar um ponto de partida, faz-se necessria a

    referncia a um mtico ponto zero, o ponto da origem, que recobre nossa

    fantasia mais arcaica sobre a origem de ns mesmos, da qual a fantasia da

    cena primitiva e de nossa prpria concepo seria uma representaopossvel. Assim sendo, vamos dizer, formalmente, que o ponto de partida

    das interrogaes desta pesquisa situa-se na minha clnica psicanaltica

    com bebs, crianas e seus pais, sabendo, no entanto, que a busca por

    atuar nessa clnica j foi, em si, norteada por essa questo sobre as

    origens, que atravessa de alguma forma a todos ns.

    Em razo de ter iniciado minha prtica clnica como psicoterapeuta

    de crianas, e mais especificamente na clnica das relaes precoces entre

    pais e bebs, as questes relativas constituio do psiquismo e s suas

    origens fizeram-se presentes e instigantes para mim desde ento. Essas

    interrogaes apresentaram-se dessa forma no somente enquanto pontos

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    centrais do questionamento, inseridas no campo terico da psicanlise,

    mas tambm diretamente experimentadas na vivncia clnica com esses

    pacientes.

    A essas questes sobre os determinantes da constituio dopsiquismo, veio se juntar uma interrogao sobre a intrigante variedade

    dessas constituies. Assim, por dois caminhos o do estudo terico e o da

    clnica as interrogaes foram se acumulando, por vezes encontrando

    respostas, mas nunca por muito tempo, e no inteiramente satisfatrias. A

    literatura psicanaltica a respeito do tema muito vasta, variada e por

    vezes discordante. A comear por Freud, para quem as questes da origem

    e do originrio muitas vezes co-existiram, de tal modo que seu texto

    prestou-se, nesse ponto tambm, a leituras diferentes: o conceito de

    originrio podendo ser relacionado noo de infantil em psicanlise, e

    a estamos propriamente no campo do a posteriori, da rememorao, da

    reconstruo, enfim, do trabalho propriamente psicanaltico; ou, por vezes,

    o conceito de originrio pareceu ligar-se noo de infncia, podendo

    assim conduzir a uma perspectiva temporal, cronolgica, no rumo das

    teorias do desenvolvimento.

    Para melhor circunscrever o tema proposto e de modo a torn-lo

    mais facilmente abordvel, busquei orientar-me por um eixo que

    permitisse delimitar, na medida do possvel, esse percurso. Winnicott

    (1969c) colocou em palavras aquilo que muitas mes de recm-nascidos j

    sabiam, ou seja, que no existe um beb por si s, que no possvelpensar em um beb sozinho sem levar em conta seu objeto primordial, em

    geral a me. Se o beb se constitui por meio do outro primordial, sua me,

    ento como nasce uma me?

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    Do ponto de vista da funo materna, a escuta de pacientes s voltas

    com a questo da maternidade seja ela efetiva ou um projeto trouxe vrios

    elementos de reflexo. Houve um momento na minha clnica em que me

    vi s voltas com diferentes mulheres, em diferentes momentos da vidafalando de suas maternidades. Maternidades potenciais, oscilantes em

    torno do desejo ou no de se tornarem mes, na dvida sobre ter ou no

    filhos. E outras pacientes cujas anlises foram atravessadas pelos perodos

    de gravidez. E, ainda, mes em outros tempos de suas vidas, com filhos

    pequenos, adolescentes, adultos.

    O estudo da funo materna levar a uma anlise dos mecanismos e

    dos processos nela envolvidos, a partir dos referenciais psicanalticos.

    Outro foco da pesquisa ser o de se debruar sobre os processos psquicos

    em jogo na posio materna.

    Ainda com relao s fontes da pesquisa, importante mencionar o

    aporte das manifestaes psicopatolgicas da infncia, aquelas que

    envolvem as primeiras estruturaes do aparelho psquico. A

    psicopatologia, seguindo a tradio freudiana de relacionar os fenmenos

    patolgicos com os normais, leva a formular interrogaes

    metapsicolgicas sobre o beb. O enigma do autismo e das psicoses

    infantis precoces pode ajudar a refletir tambm sobre as crianas que

    constituem simplesmente suas neuroses infantis.

    No que diz respeito pesquisa bibliogrfica utilizei, a propsito,

    autores de diferentes linhas tericas dentro do campo da metapsicologiapsicanaltica. Parece-me que fazer funcionar assim as diferenas um

    exerccio bastante interessante de reflexo. Dentro da tradio da

    psicopatologia fundamental, que dialoga com diferentes disciplinas, alm

    da psicanlise, recorri eventualmente a noes da etologia, na

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    compreenso dos marcos iniciais da sensorialidade do feto e do beb, por

    meio de estudos recentes da perinatalidade, e tambm a estudos no campo

    das teorias do apego.

    Os textos pesquisados na maior parte relacionados com osestudos sobre o beb e o psiquismo inicial, sobre a psicopatologia em suas

    formas graves nos primeiros anos de vida, e sobre a maternidade e a

    feminilidade serviram como guias, como marcos, e tambm como

    indicadores de mudanas de rumo necessrias, ainda que inesperadas, no

    percurso deste estudo. E a volta freqente aos textos freudianos operou

    como referncia constante ao longo dessas leituras. Algumas delas foram

    feitas em textos franceses ou ingleses, eventualmente no traduzidos para

    o portugus. Nesses casos, as tradues de citaes, quando apresentadas

    no decorrer do texto, sero de minha prpria autoria, como tambm as

    tradues dos ttulos dessas obras.

    Fontes e percurso da pesquisa

    A pesquisa se desenvolve a partir da clnica com crianas, da clnica

    das relaes pais-beb, da clnica das patologias graves da infncia, e, por

    fim, da clnica com adultos, especialmente da escuta de mulheres s voltas

    com a questo da maternidade.

    Nesses casos, para alm da singularidade da histria de cada uma

    dessas mulheres possvel encontrar pontos comuns, algumas constantes,que tentarei traduzir em termos generalizveis, em metapsicologia.

    Os relatos clnicos de criana escolhidos so propositadamente

    aqueles que se situam em um perodo j distante do perinatal, para poder

    beneficiar da viso proporcionada pelo a posteriori. No tratarei

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    do campo da psicanlise, mas que ajuda a refletir sobre os fatores de

    vulnerabilidade e sobre os efeitos decisivos do encontro da criana com

    seu cuidador primordial.

    O quarto captulo, novamente construdo em torno de um casoclnico, retoma as questes suscitadas no captulo anterior, para discutir

    quais podem ser os arranjos psquicos da criana diante de situaes de

    vida de extrema precariedade. Nesse contexto, utilizo algumas

    contribuies da etologia humana em suas pesquisas sobre as primeiras

    impresses sensoriais que o feto e o beb recebem do ambiente, e as

    condies de disponibilidade do beb para a relao com a me, ou quem

    a substitui.

    O quinto captulo aborda a clnica do autismo, debruando-se sobre

    as caractersticas da relao entre me e beb, a partir dos elementos que

    se fazem presentes no caso clnico evocado, e que me remetem ao que est

    em jogo no estabelecimento das primeiras relaes entre me e filho. Trata

    dos riscos, para o psiquismo da criana, dos efeitos da depresso materna.

    O sexto captulo trata da relao me-filha e da transmisso da

    maternalidade. Aps uma breve discusso das teses freudianas a respeito

    da sexualidade feminina e da ligao entre feminilidade e maternidade,

    so discutidas as primeiras relaes entre me e filha, e as formas pelas

    quais interferem na possibilidade, para a menina, de construo de sua

    feminilidade e na realizao, ou no, da maternidade.

    Observe-se que as evocaes de casos clnicos eventualmente serepetem e aparecem em mais de um texto. E, sobretudo, a questo do

    papel do clnico no tratamento, presente no primeiro texto, permeia de fato

    toda a elaborao deste trabalho. Alguns desses pacientes, em particular as

    crianas, puderam, por diferentes circunstncias, ser revistos anos depois

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    de terminadas suas anlises, e suscitaram novos elementos de interrogao

    sobre a funo do clnico debruado sobre o sofrimento psquico, em suas

    vrias formas. Essas interrogaes ultrapassam o escopo deste trabalho,

    mas sero sem dvida fontes para a continuao desses estudos. De todomodo, possvel avanar, desde j, a partir desses reencontros, que

    mesmo para a criana pequena o encontro com o psicanalista uma

    relao nica, sem precedente, que produz efeitos e inflexes importantes

    na estruturao do psiquismo ou na elaborao dos modos de lidar com o

    sofrimento.

    Ponto de chegada

    Se o ponto de partida foi o interesse pelas origens, pelo originrio,

    o ponto de chegada foi para um mais aqum do nascimento, isto , o

    psiquismo materno durante o tempo de espera do beb, tempo de

    construo da me, tempo de construo do beb no psiquismo materno.

    E, particularmente, a interface entre o narcisismo materno e o lugar

    possvel para o outro/beb/estrangeiro/familiar, numa relao de tenso

    com o narcisismo materno. Dentro, fora, parte dela, parcialmente outro,

    parcialmente ela. Problemtica da relao me-filho ao longo da vida.

    Como o beb poder introjetar, no seu prprio processo de tornar-se

    sujeito, o que lhe ter sido transmitido do narcisismo materno? Paradoxos

    desse processo, beb parte de si, parte do narcisismo, beb como outro,potencialmente ameaador para o narcisismo, potencialmente objeto de

    dio, j que, como Freud (1914) nos ensinou, toda relao de objeto

    atravessada pelo dio, na medida em que o outro representa uma invaso

    do espao narcsico do um.

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    Espao da pesquisa

    Essa pesquisa se desenvolveu no Laboratrio de PsicopatologiaFundamental do Programa de Estudos Ps-graduados em Psicologia

    Clnica. Se o trabalho da pesquisa se passa essencialmente no interior do

    cenrio psquico do pesquisador, a partir dos vrios encontros clnicos e

    outros que permeiam o seu percurso, ele demanda tambm para se

    desenvolver a existncia de um espao externo um ambiente

    suficientemente bom, talvez dissesse Winnicott. Foi esse o espao

    encontrado no Laboratrio, no qual a continncia, o estmulo, e ao mesmo

    tempo o desafio, estiverem sempre presentes. O respeito diversidade

    exteriorizada na produo singular de cada um dos pesquisadores, o

    interesse pelo escrito do outro, a disposio para se debruar sobre as

    interrogaes do colega, um pouco como faz o clnico sobre o pathos de

    seu paciente, tudo isso configura esse espao propcio para o

    desenvolvimento das pesquisas a respeito da subjetividade humana em

    suas mais variadas manifestaes. Essas caractersticas do trabalho ali

    desenvolvido criaram as condies desse espao externo nico, operando

    em contraponto e como referncia ao que se desenvolvia em meu espao

    psquico durante esta trajetria.

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    CONSIDERAES METODOLGICAS

    Questes sobre a interpretao

    Como surge a interpretao? Reconhecer algo no outro j em si

    um ato interpretativo. Mas como passar do reconhecimento para a

    formulao de hipteses? Como surgem as hipteses ao clnico? Elas

    surgem no intervalo produzido pelo efeito de surpresa na relao

    transferencial, ou no decorrer da experincia clnica. A escrita da clnica

    enfrenta esse desafio de buscar uma construo ou reconstruo da

    experincia. Como passar do afeto, do vivido, para a representao no

    mbito da relao transferencial e da para uma representao com a qual

    seja possvel jogar, compor, dando sentido e forma ao que aparece

    inicialmente como experincia bruta, por vezes quase sensorial?

    Pensamos, ento, que a funo do analista encontra de perto a funo

    materna. Ao escrever a clnica, j num outro registro, passamos da

    construo de um mito subjetivante, proposto ao analisando, a um mito

    mais geral, transmissvel para alm do espao analtico, que possa ser

    apropriado por outros clnicos, pelo grupo de pertencimento, pelo discurso

    social.

    O mtodo clnico

    Trata-se de passar da escuta prpria da relao analtica para a

    construo do caso clnico, de modo a compor uma escrita, uma narrativa

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    que possa ser til, transmissvel, isto , que constitua um quadro mais

    geral, aplicvel a outras situaes clnicas.

    O mtodo clnico caracteriza-se por seu carter qualitativo.

    Investiga-se profundamente um caso, do qual visa-se extrair elementosque possam constituir uma hiptese singular. A pesquisa qualitativa

    prioriza a intensidade dos fenmenos, que reconhece como complexos,

    visando sua compreenso subjetiva. uma pesquisa que faz apelo

    construo e interpretao. A teoria da interpretao uma

    metaforizao do observado, do vivido na clnica e a escrita uma

    traduo dessa construo metafrica do caso clnico.

    A posio da Psicopatologia Fundamental

    A posio da Psicopatologia Fundamental, termo cunhado por

    Pierre Fdida, busca resgatar a dimenso subjetiva e singular do pathos.

    Diz Berlinck (2000a)

    (...) a psicopatologia fundamental (...)pretende resgatar adimenso subjetiva e singular contida em pathos, poisdele, alm de sofrimento, deriva-se tambm paixo epassividade. Neste sentido, quando pathos ocorre, algo daordem do excesso, da desmesura se pe em marcha, semque o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a noser como paciente, inaugurando, assim, condiesnecessrias e suficientes para a posio do terapeuta e

    para a transformao da vivncia ptica numa patologia e,da, numa experincia (p. 7).

    Isto , num discurso que possa ser compartilhado socialmente.

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    Entre os princpios da Psicopatologia Fundamental, ressaltamos os

    seguintes:

    - Prope a investigao dopathos psquico, dentro de diferentes posies

    terico-metodolgicas, reconhecendo a sua irredutvel complexidade. Essereconhecimento implica admitir que nem uma nica, nem o conjunto das

    posies esgota sua complexidade. Isto , cada um detm apenas uma

    parcela de verdade.

    - Trata-se, portanto, de se inserir numa rede de interlocues entre

    clnicos que ocupam diferentes posies.

    - Considera que as teorias so necessrias, mas insuficientes. Elas ajudam

    a construir o prprio discurso e conhec-las pressupe aceitar que outros

    j pensaram sobre aquele mesmo tema.

    O mtodo designado Construo de Caso, proposto por Pierre

    Fdida (1992), visa, sobretudo, propiciar ao clnico a possibilidade de,

    partindo de sua vivncia pessoal, produzir um escrito de natureza

    metapsicolgica, no qual problemticas possam vir a ser enunciadas. No

    caso clnico interessa a explicitao dos processos psquicos e no o

    contedo em si da narrativa. Podemos dizer ainda que o caso uma

    narrativa ficcional criada pelo psicoterapeuta e a construo de uma

    narrativa do caso parte constituinte do mtodo clnico da Psicopatologia

    Fundamental.

    Trata-se de tentativa de integrar o afeto palavra com o objetivo deconstruir uma teoria sobre o caso, isto , uma teoria da clnica. Esta

    teoria, mesmo sendo criada a partir de um caso singular, faz uso de

    conceitos estabelecidos dentro das reas de saber com as quais dialoga a

    psicopatologia fundamental, e, em nosso caso, muito particularmente a

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    psicanlise. Busca demarcar uma questo geral dentro da singularidade de

    um estudo a partir do mtodo clnico.

    O modelo da Psicanlise

    Tambm no modelo da psicanlise, prprio das cincias

    interpretativas, o observador est profundamente implicado. Na verdade,

    no cenrio psquico do observador que se desenrola a narrativa, que se

    constituem os saberes, as hipteses, as descobertas, bases para a

    construo de uma teoria. Na psicanlise atravs do filtro da

    transferncia, com todo o seu complexo conjunto de mecanismos

    psquicos envolvidos, tais como as identificaes e contra-identificaes,

    as projees, as identificaes projetivas e introjetivas, que se cria o relato

    clnico, e a metapsicologia a ele associada. No podemos esquecer que

    tambm no cenrio psquico do pesquisador esto operando as suas

    referncias tericas, suas transferncias de trabalho, com colegas,

    supervisores e mestres, e sua prpria estruturao subjetiva.

    A referncia central ao inconsciente define a posio

    epistemolgica fundamental da psicanlise, e confere a ela sua

    especificidade. No entanto, essa referncia central no limita a criao de

    um grande nmero de modelos psicopatolgicos como, alis, est

    demonstrado pela prpria evoluo do movimento psicanaltico em suas

    vrias correntes. Essa multiplicidade de modelos psicopatolgicos podeser tomada ao servio de um enriquecimento da clnica, da qual se percebe

    melhor hoje em dia a complexidade, e, portanto, o interesse de dispor de

    diferentes ngulos de iluminao sobre realidades clnicas diversas. O

    modelo deve ser percebido e utilizado enquanto tal, e no como realidade

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    suposta. Essa busca de recortes e de zonas de passagem entre os planos e

    entre os modelos tericos pode produzir efeitos de ambigidade, que, no

    entanto so fecundos na medida em que revelam algo da prpria natureza

    do objeto de conhecimento do qual a psicanlise est tentando dar conta.No nosso caso, seria justamente o que compe os laos da criana com

    seus pais, e afinal de todo ser humano com seus semelhantes,

    permanentemente marcados pela ambigidade.

    A psicopatologia psicanaltica, essencialmente individual, deriva do

    estudo das representaes e das fantasias, e as metforas operacionais

    utilizadas pelo clnico so destinadas a permitir o surgimento de sentido e

    de no-sentido sem ocultar sua escuta. O mtodo psicanaltico no

    negligencia o sintoma, mas avalia sua funo e seu valor revelador de um

    modo de funcionamento psquico cuja importncia econmica precisar

    ser definida. A gnese e a estrutura dos sintomas so reveladores dos

    conflitos intrapsquicos e dos modos de estruturao do psiquismo.

    Importante lembrar o que o prprio da psicanlise, alm da

    dimenso do inconsciente: a sexualidade infantil, a noo de fixao, a

    sexualidade na especificidade de seu percurso e de sua estruturao, a

    regresso, a dimenso do a posteriori, a problemtica pulsional e o destino

    das pulses. Estamos aqui no enquadre da cura analtica, com sua

    referncia central e norteadora transferncia, para nos orientarmos na

    direo do lugar da construo em anlise, desenvolvido cada vez mais

    como um espao de narratividade, no qual se trata, para analista epaciente, de co-construrem uma nova perspectiva da histria do sujeito e

    de seus percalos pulsionais e defensivos.

    Da prpria natureza desse encontro analtico decorre uma certa

    impossibilidade de comunicar, dado o nico e o enigmtico da

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    singularidade de cada anlise atravs da dinmica da transferncia. Porm,

    se h uma originalidade fundamental em cada tratamento, h tambm um

    dinamismo permanente exigindo do analista que se situe em relao s

    suas prprias referncias tericas. O trabalho terico da psicanliseconsiste, assim, em tentar construir um fundo comum a partir da

    singularidade de cada anlise. E o analista, sujeito implicado diante de

    outro sujeito, no pode esquecer de relativizar aquilo que se diz em torno

    do analisando, j que h uma distoro permanente introduzida pelo

    discurso daquele que fala para o outro a respeito do outro, portanto

    tambm de si prprio. Essa relativizao reintroduz a dimenso da

    transferncia, presente tambm quando se faz um relato da clnica, e,

    conseqentemente, quando se constri uma teoria da clnica.

    A posio epistemolgica da psicanlise e da psicopatologia, com

    repercusses diretas sobre a prtica clnica, difere da posio mdica,

    cincia dedutiva. Trata-se na psicopatologia trata-se de uma construo de

    hipteses a partir de inferncias e no de dedues. O clnico vai sendo

    tocado pelas situaes clnicas, e necessita de tempo para que um

    pensamento se construa a partir do vivido, das emoes que se construiro

    em pensamento. o que Bion (1979) postula como posio do analista, a

    capacidade negativa, a capacidade de no saber tudo imediatamente, de

    dar tempo ao tempo.

    O objetivo desta pesquisa o de produzir, em alguma medida, uma

    metapsicologia acerca da prtica clnica. Cabe frisar que, aqui, a palavrametapsicologia tomada no seu sentido preciso, dentro do campo da

    Psicopatologia Fundamental, a saber, (...) um discurso mito-poitico-

    epopico que uma experincia...[, ou seja, que permite um]

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    ...enriquecimento...a possibilidade de se pensar aquilo que ainda no foi

    pensado(...)(Berlinck, 2000a, p. 24).

    Questo: podemos considerar a vivncia da maternidade como

    uma experincia pthica? Assim tambm a experincia donascimento?

    O estudo da maternidade tem seu espao dentro do campo da

    psicopatologia fundamental, considerando que o psiquismo materno, nesse

    tempo da gestao, configura-se em um estado particular que tem as

    caractersticas de uma verdadeira crise psquica. O nascimento envolve, de

    fato, a paixo humana em sua experincia mxima, pois toca ao mesmo

    tempo nas dimenses da criao, da morte e do sexo. Dar a vida implica

    mudar de lugar na cadeia geracional, passar de filha a me, e assim seguir

    no percurso em direo morte. O nascimento traz em seu bojo a finitude,

    a morte. Por outro lado, o nascimento a revelao e a concretizao da

    dimenso sexual da vida da mulher.

    Consideramos o nascimento, com sua coorte de intensos afetos,

    angstias, fantasias e temores, inserindo-se no campo de estudos da

    psicopatologia fundamental, lugar de observao e de cuidado da paixo

    humana e todas as suas desmesuras.

    Pathos, como excesso de paixo, se faz presente em todo

    nascimento. Toda criao de um outro humano envolve a violncia do

    encontro com o outro, envolve o risco de jogar-se numa empreitada para a

    qual no se tem garantia, apesar de todos os progressos da medicina e dacincia atual. Mesmo que tudo ocorra bem no campo somtico, h ainda, e

    sempre, o desconhecido em outro registro. Como se dar a vida desse

    outro, ao mesmo tempo criao de si, ao mesmo tempo autnomo e para

    sempre destinado a escapar dos seus criadores?

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    No nos esqueamos da violncia da esperana, representada pelo

    nascimento, pelo surgimento do outro, potencialmente igual e diferente.

    Violncia do encontro com a alteridade, em si geradora de pathos.

    Sofrimento inerente violncia do encontro com o outro, outro que aomesmo tempo distinto e tambm o mais igual possvel, pois produto de si

    prprio.

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    CAPTULO I

    DE MES E DE FILHOS

    Na apresentao desta pesquisa, escrevia que as questes relativas

    constituio do psiquismo, s suas origens, tinham se apresentado a mim

    de modo insistente desde o incio de minha prtica clnica, que se deu com

    crianas pequenas e com pais e seus bebs. Se de incio essa pretenso a

    buscar os determinantes da constituio do psiquismo poderia parecer

    utpica, e mesmo ingnua, logo as interrogaes se deslocaram para algo

    diferente, que foi a infinita e intrigante variedade dos modos de

    constituio. Produto dessa alquimia misteriosa e fascinante que se d

    entre pais e bebs, como diz Cramer (1989). Para aproximar esse tema to

    vasto e j to explorado da constituio do psiquismo, busquei uma forma

    de circunscrev-lo, orientando-me por dois eixos: de um lado o beb, de

    outro a me, contrariando o pensamento de Winnicott (1969c), para quem

    no existe um beb por si s. Do lado do beb, parece sempre intrigante

    constatar que crianas em situaes de vida aparentemente muito

    semelhantes reajam e se constituam de modo to diverso. O que faz, por

    exemplo, com que alguns bebs sejam mais vulnerveis s experincias de

    separao do que outros?

    A clnica com a criana, se no nos traz respostas, ajuda-nos a

    melhor formular as questes, e ser ento seguindo essa trilha queprocuraremos, nesta pesquisa, encontrar recortes com a teoria para

    esclarecer pontos que ainda nos interrogam. O que vai conduzir

    necessariamente de volta ao estudo do entorno da criana (Figueiredo,

    2000), e s interrogaes sobre a construo das funes maternas. Desse

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    ponto de vista, a escuta de mulheres s voltas com a maternidade, seja ela

    efetiva ou expresso de um desejo, produziu tambm vrios focos de

    interrogao, como j dito anteriormente.

    Extrato de um caso clnico

    Bruno, que acabou de completar 10 anos, chegou por indicao de

    uma psicopedagoga, que no compreende como um menino to

    inteligente possa ir to mal na escola. A histria inicial, relatada pelos

    pais, a seguinte: a famlia estava no exterior, na fase final de preparao

    da tese da me. Ela preparava-se tambm para uma cirurgia, e por essa

    razo fazia os exames pr-operatrios, quando descobriu a gravidez, j no

    incio do quarto ms. A gravidez havia passado desapercebida! A partir

    da, e at o parto, h uma grande preocupao por parte dos mdicos e dos

    pais quanto ao estado do beb em funo dos exames realizados, o que

    leva a gravidez a ser considerada de alto risco. Poucos dias aps o

    nascimento de Bruno, que se deu sem complicaes, ele acometido de

    uma pneumonia grave, levando-o a internao em UTI no-natal, pois

    corria risco de vida. A me refere-se a Bruno como um lutador, um beb

    que no desiste. Ela o admira por isso, por sua garra, e surpreende-se com

    a vida que est nele e no parece estar nela. Bruno ento vence a infeco,

    volta para casa. Nos meses que se seguem, os cuidados do beb so

    divididos entre a av materna e a me, que estava, a essa altura, muitoenvolvida com a redao final de seu trabalho. Voltam ento para o Brasil;

    Bruno tem trs meses, e a av materna morre subitamente, produzindo na

    me uma profunda dor, e um sentimento de perda do qual ela diz no ter

    se recomposto ainda hoje. Aos cinco meses de Bruno, sua me teve de

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    voltar para o exterior para complementar seu trabalho. Bruno fica com o

    pai, os irmos mais velhos, e uma bab, escolhida cuidadosamente, mas

    que at ento ele no conhecia. O retorno da me se d quando Bruno

    tinha entre oito e nove meses, e, evidentemente, ele no a reconhece.Os anos seguintes se passam sem problemas somticos. Bruno tem

    uma sade de ferro; seu desenvolvimento lento, mas as etapas vo se

    dando aproximadamente dentro dos tempos previstos, com exceo da

    linguagem. Bruno s vai comear a falar por volta dos trs anos e meio.

    Sua histria escolar foi sempre difcil, com inmeras mudanas. Na

    primeira escola maternal escolhida por utilizar uma lngua estrangeira do

    pas onde ele nascera Bruno vive uma pssima relao com a professora,

    que chega a bater nele, impaciente porque ele no entendia o que ela

    pedia. Desde ento, ele acompanhado por uma fonoaudiloga, que

    nessa etapa se preocupa principalmente com sua incapacidade de contar

    histrias, de fazer relatos que tenham incio, meio e fim. A pedagoga, por

    sua vez, ressalta a discrepncia entre seus resultados nos instrumentos de

    avaliao, e a pobreza de sua produo, sua impossibilidade de criar

    qualquer brincadeira ou histria, sua dificuldade em fantasiar.

    Socialmente, os pais descrevem Bruno como simptico, afetuoso,

    conversador, fcil com os amigos.

    assim que Bruno chega em suas primeiras sesses: simptico,

    afvel, mas com um ar pedinte, como mendigando algo, esperando algo

    de mim, com um olhar que se prega ao meu, esperando... o qu?Conseguiu, recentemente, alfabetizar-se, mas no pode contar histrias.

    Por vezes, em sua fala, parece desorientado no tempo, perdido em suas

    referncias de lugar, de cidade, de pas. Em suas primeiras sesses aplica-

    se a fazer um helicptero, que ele j encontrou pronto ao chegar e foi

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    desfazendo para refazer. Durante a construo desse helicptero,

    trabalhamos ns dois juntos, e eu me vejo impelida a ajud-lo nessa tarefa,

    encontrando para ele as peas de Lego que me pede. Essas so especiais,

    sempre as menores, difceis de encontrar no meio das outras. A cada buscade pea, aflijo-me em achar o que ele precisa e surpreendo-me percebendo

    que Bruno capaz de inventar novas solues, quando a pecinha que ele

    pediu no existe. Enfim o helicptero fica pronto, um helicptero especial,

    pois um veculo para todos os terrenos, que alm de voar tem rodas para

    deslocar-se sobre a terra, e uma base que lhe permite navegar. Na sesso

    seguinte, Bruno corrige seu helicptero, pois procurou em casa um

    modelo e agora adapta seu produto a esse modelo conhecido, fazendo

    ento um helicptero igual aos outros.

    Depois, ele desenha com lentido, cuidado e inmeras correes a

    figura de um menino, cujo rosto s se v pela metade, a outra parte

    ficando coberta pela aba de um bon. A figura toda detalhada,

    caprichada, a cala que veste termina com um corte bem feito da barra,

    mas abaixo dela... faltam-lhe os ps! A falta dos ps no desenho faz logo

    pensar numa representao evocando a castrao, mas parece-me que aqui

    preciso pensar alm ou aqum disso. Olhando a figura como se

    houvesse um grande esforo para se construir, para se constituir, que, no

    entanto, esbarra numa falta fundamental, na falta de uma parte de si que

    lhe permita andar por suas prprias pernas, que o impede de mover-se

    pelo espao do mundo, que o impede de criar, inventar suas histrias.Como ressalta a pedagoga, ele no consegue se servir de sua inteligncia

    para pensar por si. Mas lembro-me que, laboriosamente e com minha

    ajuda prxima, construiu seu helicptero, que tinha sua marca pessoal,

    mesmo que depois tenha de novo se tornado somente uma cpia. Como

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    continuaremos, na anlise, nessa hesitao entre correr o risco de criar, e

    refugiar-se de volta na cpia que o faz sentir-se de novo seguro?

    De que ordem esse poder materno imenso? Bruno tinha o pai, os

    irmos, a bab, a casa. Mas no tinha a me. Alis, ela mesma no o teve,no incio de sua vida fetal, pois nem sequer o suspeitava dentro dela, o que

    difcil de compreender dado o seu nvel intelectual. Ser que isso

    assinala para um distanciamento em relao ao prprio corpo? De todo

    modo, como se no houvesse espao psquico na me para se perceber

    grvida. Podemos pensar ento numa gravidez propriamente acidental,

    mesmo levando em conta que do ponto de vista do desejo inconsciente

    nenhuma gravidez pode ser pensada como acidental. Nesse caso, ela

    aconteceu revelia da me. E depois da gravidez sabida, essa mulher foi

    tomada por situaes que parecem ter impedido o investimento desse

    beb: riscos de m-formao do feto em razo das radiaes dos exames

    pr-cirrgicos, angstia em relao sua produo intelectual, morte da

    av materna, compondo um conjunto de fatores que vm marcar sua

    posio materna. No entanto, ela hoje se emociona ao falar da valentia do

    filho, de sua garra e de sua luta por viver, apesar de tudo. Apesar,

    principalmente, de seu prprio desconhecimento da existncia dele, de seu

    investimento prioritrio em seu trabalho, de sua depresso pela morte da

    me. Ele insistia em viver.

    Coloca-se aqui a necessidade imperiosa, vivida a cada vez na

    clnica, de pensar sobre o caso, de articular aquilo que vivemos na sessocom o que pensamos, com o que sabemos para alm daqueles momentos.

    Comeo ento a conhecer Bruno, e as impresses que ele me causou nas

    primeiras sesses, seu falar desabitado de si, seu olhar pedinte e

    interrogativo, como se procurasse no outro a significao de si mesmo, me

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    impulsionam a buscar os caminhos tericos que me ajudem a pensar sobre

    ele. Preciso desses aportes porque servem para situar-me na transferncia,

    no campo prprio do trabalho analtico. A interrogao que move a clnica

    parece-me ser a de se perguntar em que lugar podemos nos colocar parapossibilitar ao outro se descentrar da posio de sofrimento na qual est

    situado, para desfazer e refazer de outro modo seus processos psquicos.

    Como o helicptero que Bruno faz e refaz... Por onde eu mesma preciso

    andar para servir a Bruno como suporte que possibilite a ele operar uma

    mudana, pequena que seja, em sua posio subjetiva?

    E, para alm desse caso clnico, penso que podemos encontrar aqui

    algumas das interrogaes fundamentais em relao aos determinantes da

    constituio do psiquismo. Como se processou, de que modo a

    constituio edpica de partida (Bleichmar, 1983) dos pais foi decisiva

    para a constituio edpica de chegada (idem), para a maneira particular

    com a qual Bruno se organizou, para a escolha de suas falhas, de seu

    sintoma? Por quais vias isso se d? Em que memrias precoces se

    inscrevem as primeiras experincias? Por que, nele, a falha apresenta-se

    no criar, no inventar, no fantasiar? Por que Bruno no pode servir-se de

    sua inteligncia, que, no entanto, manifesta-se quando responde s

    questes dos testes e das avaliaes com a psicopedagoga? O que houve

    que o impede de tomar posse de sua prpria histria, de suas fantasias,

    para poder contar suas prprias estrias?

    Podemos tomar diferentes pontos de partida para pensar sobre osintoma de Bruno. Podemos considerar, de um certo ngulo, o impacto da

    separao precoce me-beb, que se deu em momento extremamente

    sensvel em relao constituio do psiquismo. De outro ponto de vista,

    podemos considerar as peculiaridades do desejo materno, evidenciadas

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    pela ignorncia da gravidez, e, em seguida, pela dificuldade de

    investimento libidinal nessa criana, podemos ainda lembrar dos efeitos da

    depresso materna, reativa morte da av. Cada um desses pontos de

    partida, e haveria outros ainda, nos conduziria a uma corrente terica nocampo da psicanlise, em funo da forma como se compreende a

    constituio do psiquismo, e em funo da matriz clnica (Mezan, 1988)

    que tomamos como ponto de partida.

    A seguir evocaremos algumas dessas construes tericas sobre a

    relao inicial me-beb, e seu impacto sobre a constituio do aparelho

    psquico. Lembremo-nos em primeiro lugar de Winnicott, cujo tema

    principal de interesse foi justamente esse, e que afirma, sempre de modo

    categrico, o papel fundamental do ambiente materno para a

    determinao do psiquismo que se constitui, ou, em suas palavras, para os

    processos de integrao necessrios para que se d o desenvolvimento

    emocional. Lacan, por sua vez, aponta para o papel da me como

    encarnao do Outro, como aquela que veicula num primeiro tempo, junto

    ao beb, a lei simblica da cultura, e que lhe fornece o primeiro espelho

    atravs do qual ele ao mesmo tempo se aliena e se constitui. Laplanche

    enfatiza o papel inicitico da me, responsvel pela seduo

    generalizada necessria, desenvolvimento do pensamento freudiano

    explicitado nos Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde Freud

    (1905) afirma que funo da me despertar o instinto sexual dacriana e

    ensin-la a amar. A me, ento aquela que introduz o beb no campopulsional, instilando Eros em sua constituio. Essa idia parece pressupor

    um beb passivo do ponto de vista da formao do aparelho psquico, que

    se constituir como que inoculado pelo outro. Ou seria o aparelho psquico

    uma organizao que se constituir como instncia defensiva diante do

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    ataque pulsional? (Ribeiro, 2000). Dolto (1984), por sua vez, refere-se ao

    papel fundamental da me como responsvel por fazer operar as

    castraes simbolgenas, que vo, passo a passo, estabelecendo os

    marcos e fazendo surgir novas estruturaes no psiquismo infantil.Servimo-nos aqui de Winnicott, (1999) quando descreve o que est

    em jogo no desenvolvimento emocional primitivo. Para ele, esse

    desenvolvimento abrange trs tarefas principais:

    (...) a integrao do eu, a psique que habita o corpo e arelao objetal. Numa correspondncia aproximada a estestrs itens, temos as trs funes da me: segurar (holding),manipular (handling) e apresentar o objeto. ( p.32 )

    O prprio termo holding, em ingls, como tambm em portugus,

    tem um significado abrangente, incluindo a idia de tornar seguro, de

    firmar, de amparar, de impedir que caia, de garantir, de apoiar. Assim,

    medida que o beb cresce, o significado primeiro do segurar fisicamente o

    corpo do beb amplia-se cada vez mais, at englobar a funo de todo o

    grupo familiar, em sua designao de entorno da criana. Segurar e

    manipular bem uma criana facilita os processos de maturao, e segur-la

    mal significa uma incessante interrupo desses processos, devido s

    reaes do beb s quebras de adaptao (idem, p.54).

    Winnicott afirma que as bases da relao objetal instauram-se na

    primeira infncia, e dependem da maneira como a me apresenta ao beb

    o seio, a mamadeira ou qualquer outro objeto. Nessa apresentao doobjeto, ela o faz de tal modo que permite ao beb criar o que j se

    encontrava ali, e na verdade o que o beb cria parte da me que foi

    encontrada. Trata-se de um dos paradoxos fundamentais da concepo

    winnicottiana de inscrio do beb no mundo, que s possvel porque a

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    me encontra-se naquele estado especial que lhe d a condio de estar

    presente mais ou menos no momento e no lugar certos.

    Se essas so as condies que permitem criana situar-se no

    mundo de forma criativa, podemos pensar que certamente para Bruno, opaciente referido acima, essas condies foram falhas especialmente no

    que diz respeito apresentao do objeto, que permite criana fazer uso

    de sua criatividade a partir da iluso renovada de ter sido o inventor do

    objeto que encontra. E Bruno no parece ter podido se apossar de seus

    objetos com a iluso de t-los inventado, de modo que hoje no se apossa

    de suas prprias histrias.

    Bernard Golse (1990) faz uma interessante anlise dessa funo

    materna. Segundo ele, a apresentao do objeto introduz precocemente a

    presena de um terceiro entre a me e seu beb, na medida em que o

    objeto apresentado permite desviar e filtrar as moes pulsionais da me,

    tanto as agressivas quanto as libidinais, que poderiam submergir o beb.

    Por outro lado, a maneira de apresentar o objeto permite me regular e

    canalizar a excitao advinda da realidade externa. Essa funo inscreve-

    se duplamente: como elemento do sistema pra-excitao oferecido pela

    me sua criana, pois a protege ao mesmo tempo de uma invaso

    excitante da prpria me e de uma intruso traumtica do meio externo.

    De um modo ou de outro, a funo de apresentao do objeto contribui

    para a instaurao de uma primeira triangulao: me-criana-objeto.

    Mas para que essas condies se dem, Winnicott pressupe que ame se encontra num estado especial, nomeado por ele de preocupao

    materna primria. Para alcanar tal estado, a me, ao longo da gravidez,

    prepara-se para a chegada do beb, por meio de um processo de

    adoecimento progressivo, que paradoxalmente s pode ocorrer se ela for

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    saudvel. A palavra doena utilizada por Winnicott de forma

    paradoxal, para indicar que preciso me ser suficientemente saudvel

    para se deixar adoecer dessa maneira, at poder se recuperar desse estado

    quando o beb a libera. Esse estado se desenvolve medida que aumentasua capacidade crescente ao longo dos nove meses de gravidez de se

    identificar com seu beb, provavelmente a partir das inscries primeiras

    de sua prpria experincia infantil com sua me. Winnicott(1969)

    considera que existem mulheres que so

    (...) capazes de manter uma vida rica e proveitosa, mas

    que no conseguem atingir esta doena normal que ascapacitaria a se adaptar delicada e sensivelmente snecessidades iniciais do beb. Estas mulheres no socapazes de se preocupar com seu prprio beb, a ponto deexcluir outros interesses, da maneira que normal etemporria. Pode-se supor a existncia de uma fuga paraa sanidade em algumas dessas pessoas. (p. 171).

    Retornemos ento s nossas interrogaes sobre Bruno, agora

    olhando para o que se passou do ngulo da funo materna, considerada

    aqui sob o ponto de vista do desenvolvimento da preocupao materna

    primria. Em primeiro lugar, Winnicott afirma a necessidade do tempo da

    gravidez para que a me desenvolva progressivamente sua capacidade de

    identificao com seu beb. No caso da gravidez de Bruno ela j comea

    amputada de uma parte, pois seus primeiros meses foram perdidos pelo

    desconhecimento materno. O tempo da gestao um tempo deelaborao necessrio para a construo da representao do beb no

    imaginrio da me.

    Gostaria de ressaltar novamente a importncia do tempo, da

    previso da durao da gravidez, internalizada pela me, e que vai

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    marcando para ela o processo de crescimento do beb dentro de si.

    como se esse tempo durante o qual o desenvolvimento do feto se d

    favorecesse, concomitantemente, a criao do beb imaginrio no

    psiquismo materno. Catherine Mathelin (1999) considera que tal tempo deelaborao indispensvel, pois permite criana tomar corpo no s

    no ventre da me, mas tambm em seu fantasma (p. 66).

    Especialmente os ltimos meses da gravidez so momentos

    importantes para a construo da criana, como tambm da me, e

    podemos supor que o processo vivido pela me produz remanejamentos de

    tal ordem que chegam a caracterizar uma revoluo psquica. Nesse

    sentido, como se o estado gestacional favorecesse uma maior

    permeabilidade no interior do psiquismo, com a emergncia de contedos

    at ento eficientemente recalcados mesmo nas mulheres que j estavam

    em processo de anlise antes de engravidarem. Isso nos remete

    proposio de Freud sobre a sexualidade feminina, em que ele supe que o

    dipo da menina s encontrar, na melhor das hipteses, uma resoluo

    quando da maternidade, de preferncia de um filho homem, pois somente

    assim a mulher se consolaria de seu estado de castrao. Essas

    proposies freudianas sero discutidas mais detalhadamente no captulo

    VI deste trabalho.

    Em uma conferncia na Sociedade Psicanaltica de Viena, em

    1911, Sobre as bases do amor materno, Margarete Hilferding avana

    uma idia desde ento esquecida nos estudos psicanalticos sobre amaternidade: considerar o feto como um objeto sexual da me. Em seu

    comentrio, Teresa Pinheiro (1991) enfatiza a novidade que isso produz,

    levando em conta que nos acostumamos a pensar a experincia da

    gravidez do ngulo do narcisismo materno, e que desse ponto de vista

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    que se costuma compreender a experincia de plenitude da me. Pensar o

    amor materno via sexualidade da grvida na sua relao corporal com o

    feto algo muito diferente. No entanto, o que vemos aqui talvez pelo vis

    da relao com esse outro em seu prprio corpo a relao da me comsua prpria sexualidade, com sua prpria identidade sexuada. A gravidez

    parece definir um perodo extremamente frtil para a produo imaginria,

    permitindo a retomada de posies infantis, edpicas, em relao s

    imagos parentais, com nfase particular nas questes da sexuao.

    Carregar um filho em si, t-lo feito, parece vir confirmar por um instante o

    fantasma de ter em si os dois sexos, mais alm do que resolver a castrao

    pensada em termos de inveja do pnis. Tornar-se flica - provavelmente

    como a prpria me foi suposta - significa poder ser ao mesmo tempo

    masculino e feminino. Mas ser que as questes da gravidez e da

    maternidade esgotam-se na problemtica da sexualidade? Freud,

    comentando a conferncia de Margarete Hilferding, afirma:

    (...) pode-se dizer de sada que toda tentativa de analisar o

    fenmeno sob um nico aspecto est fadada ao fracasso; asobredeterminao especialmente evidente nestecaso.(Freud, apud Hilferding, Pinheiro, Vianna, 1991, p.94)

    Assim, haveria pelo menos mais dois outros aspectos a considerar.

    O primeiro diz respeito ambivalncia fundamental no lao me-filho que

    Freud, na poca, atribuiu s moes hostis inerentes aos laos de amor,

    correspondendo ao sentimento agora sou seu escravo. S anos depoisele desenvolver em sua obra a idia da destrutividade em si, culminando

    no texto Mal-estar na civilizao. Outro caminho j mais trilhado para

    pensar a maternidade passa pelo estudo do narcisismo, que ser tratado a

    seguir.

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    CAPTULO II

    NARCISISMO MATERNO E CRIAO DO ESPAO

    PSQUICO PARA O BEB

    Trataremos agora da construo da representao do beb no

    psiquismo materno, durante os meses de gestao, com a suposio de que

    o tempo da gravidez o tempo da elaborao necessria para que essa

    construo se efetive. Assim, como se de incio o beb se apresentasse

    para a me como um estrangeiro, constituindo um enigma que ela no

    conhece nem decifra. Durante os meses da espera supe-se que ele possa

    progressivamente passar a ser o objeto das mltiplas projees derivadas

    das experincias infantis da me. Nesse tempo da gestao tratar-se-ia

    ento, para a me, de realizar o trabalho de transformar o estrangeiro em

    familiar, atribuindo-lhe caractersticas, por meio dos efeitos de projeo e

    de idealizao, ancoradas em sua prpria histria infantil. Como dito

    anteriormente, a escuta analtica de mulheres grvidas permite

    acompanhar esse delicado e imprevisvel trabalho psquico que se d

    durante esses meses.

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    Se o incio da gravidez pode ser marcado, para a me, pela

    experincia imaginria de ter seu corpo ocupado, ou at mesmo invadido,

    por um ser que, ainda que desejado percebido como um estrangeiro, no

    final da gestao, atravs de transformaes sutis, porm decisivas, surgea possibilidade de construir para o beb um espao dentro de si, e dentro

    de sua vida. A produo onrica e associativa desse perodo pode revelar o

    radical remanejamento psquico que se d na mulher durante o tempo de

    espera do filho. Uma aproximao sobre o narcisismo materno e seus

    percalos durante a gravidez pode ser utilizada para descrever o processo

    que permite, ou no, que um espao psquico para o beb, essencial para o

    seu advir como sujeito, se constitua na me.

    Assim, podemos colocar a interrogao: como nasce uma me?

    Freud (1915) dizia que era necessrio, para ter um filho, amar o que

    somos, o que fomos e o que gostaramos de ser, assim como aqueles que

    de ns cuidaram, para poder investir narcisicamente uma criana.

    Bydlowski (1998b) assinala que em se tratando de filiao humana uma

    dvida de vida inconsciente liga o sujeito a seus pais, a seus ascendentes.

    Para que se d a transmisso da vida, fundamento de todo nascimento,

    seria preciso assumir o reconhecimento dessa dvida de existncia.

    Mas buscando nos centrar sobre os meses da espera real do beb, j

    concebido, como descrever esse processo no psiquismo materno? Tanto

    quanto seu beb, ela tambm precisa do tempo da gestao para, no seu

    tempo psquico, constituir-se como me. Esse perodo seria necessriopara possibilitar o esboo da criao de um espao psquico materno

    constitutivo de um suporte no qual o beb possa advir como um ser

    subjetivado, e no mais como um ser biolgico somente. Supomos que as

    experincias corporais da me, as mudanas fsicas que ocorrem durante a

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    gravidez, sejam indissociveis das suas experincias psquicas. Talvez

    possamos nos servir do modelo do beb em que o corpo e a psique so

    indissocivies - para pensar o funcionamento do psiquismo da me.

    Monique Bydlowski (1998a) define como transparncia psquica essamodalidade particular de funcionamento do psiquismo materno, na qual a

    eficincia habitual do recalcamento se v reduzida, permitindo a

    emergncia de contedos psquicos recalcados, relativos a experincias e

    fantasias infantis; esse estado (...)marcado por um superinvestimento

    da histria pessoal da me, com uma plasticidade importante das

    representaes mentais centradas sobre uma inegvel polarizao

    narcsica(...) ( p. 217).

    Muitas vezes, a expresso desses fantasmas se d atravs de sonhos,

    outras vezes se denuncia pelas bruscas e intensas oscilaes emocionais

    manifestadas pelas gestantes, com sentimentos agudos de tristeza ou

    euforia aparentemente inexplicveis.

    Assim, podemos pensar que a gravidez inaugura a experincia de

    um encontro ntimo da mulher consigo mesma; Bydlowski supe que o

    que est em questo sua capacidade ou no de erotizar uma parte ainda

    interna a si mesma. O embrio configura para a me, inicialmente, um

    estrangeiro, um outro dentro de seu prprio corpo. Alis, h uma

    ilustrao orgnica dessa relao, que se concretiza em uma das

    modalidades de patologia da gravidez. Trata-se da repetio de abortos

    espontneos provocados pela rejeio do embrio pelo organismomaterno, como um objeto estranho, da mesma forma como ocorrem os

    fenmenos de rejeio de rgos transplantados. Para que a gravidez

    prossiga, preciso que haja uma adaptao imunolgica entre o

    organismo da me e o embrio, mas em alguns casos o organismo materno

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    tem dificuldade em diferenciar a gravidez de uma doena, interpretando-a

    como uma agresso, levando-se a produzir substncias para interromper a

    gestao. A chave do problema est na maneira como o organismo

    materno interpreta as informaes genticas paternas presentes nas clulasdo embrio. Para que a gestao possa prosseguir preciso, ento, que o

    organismo materno faa a leitura do embrio como uma gravidez, e no

    como um corpo estrangeiro a ser rejeitado.

    Poderamos tomar essa patologia como uma metfora da aceitao

    ou no pela me de um estrangeiro dentro de si, de seu prprio corpo. Esse

    beb pode ser percebido como um invasor, ameaador. Sabemos tambm

    que para mes psicticas o beb pode nem chegar a ser percebido como

    um outro, nos casos em que a negao da gravidez persiste at o momento

    do parto.

    Por outro lado, o tempo cronolgico da gravidez seria necessrio

    para permitir a elaborao do beb como tal, num deslizamento dessa

    percepo do feto como parte do corpo at se constituir como um outro

    beb objeto das projees maternas. Desse modo, a crise psquica da

    gravidez poderia ser pensada como uma conseqncia da intruso no

    narcisismo da me, causada pela introduo desse outro, mesmo que

    desejado, em seu espao psquico. Como dizia uma paciente ao saber que

    estava grvida, nunca mais poderei estar s. Essa fala expressa o temor

    de uma intruso definitiva e permanente desse outro em seu campo

    subjetivo.Na busca de respostas para sua interrogao sobre a escolha

    feminina de ter filhos ou no, Genevive Serre (2002) entrevistou um

    grupo de mulheres que fizeram a segunda opo. Serre, dentro do

    referencial terico adotado, partiu da hiptese inicial de que se tratava de

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    uma renncia, ligada provavelmente a movimentos depressivos, a uma

    baixa estima de si, o que foi aparentemente desmentido pelo teor de suas

    entrevistas. Alis, relata em seu artigo que nos Estados Unidos, onde

    pedidos de ligaduras de trompa e de vasectomia feitos por adultos que noquerem assumir uma descendncia tm se tornado muito freqentes,

    cunhou-se uma nova expresso, substituindo o termo childless por

    childfree... As entrevistas realizadas com esse grupo de mulheres, todas

    bem-sucedidas profissionalmente, apontaram para a percepo, por elas,

    no de uma perda ou de uma renncia, mas, ao contrrio, de terem feito

    uma escolha positiva ligada a um ganho de liberdade, pois assim se

    liberaram de um elo que as teria acorrentado por toda a vida. Numa

    anlise desses testemunhos, Serre prope dois registros diferentes de

    compreenso: o da problemtica edipiana, j que no ter filhos afasta a

    mulher do risco de realizao do fantasma incestuoso, e o de uma

    problemtica narcsica, com o temor da perda de si mesma, temor que

    essas mulheres experimentariam de serem destrudas nesse jogo da

    maternidade.

    Cramer (1999) afirma que as mudanas durante a gravidez podem

    corresponder experincia, pela me, de se sentir habitada por um de

    seus pais, ou por um aspecto deles, experincia que tanto pode ser bem-

    vinda como assustadora. De certo modo, tornar-se me reencontrar sua

    prpria me. Mais ainda, a gestao seria o tempo necessrio para aceitar

    essa nova situao que envolve ligar-se para o resto da vida com umdesconhecido, fonte de angstia, como o vazio. Trata-se, ento, de realizar

    o trabalho de transformar esse estrangeiro em familiar. Durante a

    gravidez, a criana tem um duplo status, ao mesmo tempo presente no

    interior do corpo da me e em seus pensamentos conscientes e

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    inconscientes, mas ausente da realidade visvel, s podendo ser objeto das

    interaes fantasmticas, onde esto em jogo essencialmente os

    contedos psquicos da me em torno desse objeto ainda eminentemente

    narcsico que o beb, que existe sem existir.Por meio dos sonhos relatados por uma analisanda grvida, foi

    possvel acompanhar esse delicado e imprevisvel trabalho psquico que

    ocorre durante os meses da gestao. Se, no comeo, a experincia dessa

    mulher foi a de se perceber a servio desse ser que, ainda que desejado,

    era considerado por ela como um invasor no interior de seu corpo, no

    final, por sutis remanejamentos, aparece a possibilidade de organizar para

    o beb um espao dentro de si, ao mesmo tempo em que ela se v, num

    sonho, ocupando com seu marido a casa que havia sido a casa de sua

    prpria infncia. Mas para que isso acontecesse, um longo percurso,

    marcado por sua ambivalncia, precisou ser trilhado durante meses. Os

    sonhos dessa paciente, em sua ordenao quase lgica, obedecendo

    lgica do inconsciente, ajudaram-na a dar forma e sentido experincia da

    maternidade, vivida por ela como um fenmeno incontrolvel.

    Fao aqui a ressalva de que neste trabalho no se trata de fazer o

    estudo detalhado desses sonhos, em suas associaes e desdobramentos. A

    maior parte deles foi objeto de associaes por parte da analisanda,

    levando a um trabalho de elaborao que muitas vezes prolongou-se por

    vrias sesses. A prpria seqncia dos sonhos, com seu encadeamento

    peculiar, foi motivo de ateno de minha parte e da analisanda, no que elaparecia vir pontuar seu percurso imaginrio durante a gravidez, tendo

    como eixo sua histria edpica, retomada em sua relao transferencial.

    Assim, sirvo-me dos sonhos em relatos muito sucintos apenas para ilustrar

    o que parece importante ser pesquisado mais a fundo, que o radical

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    remanejamento psquico que se produz na mulher durante o tempo de

    espera do filho.

    Nos primeiros meses, sua experincia corporal de enjos, vmitos,

    dores e tonturas vinha acompanhada do sentimento de subservincia a esseser, diante de quem ela tinha de se curvar, que a tomava do interior de seu

    corpo. Paralelamente, seus sonhos a angustiavam, com contedos erticos

    homossexuais e bissexuais, totalmente novos em sua produo onrica. No

    plano consciente, temia que seu marido a trasse, sem que nada de objetivo

    indicasse essa possibilidade, como ela mesma reconhecia. Mas sentia-se

    insatisfeita e desconfiada, achando que ele a deixava s, com sua gravidez,

    e que no se mobilizava com ela para preparar a chegada do beb.

    Um elemento que se apresentar constante em todos os seus sonhos

    so as vrias representaes onricas de suas casas da infncia. Nos

    primeiros sonhos, as casas apareciam desabitadas, ou ento ocupadas por

    pessoas estranhas, invasoras. Nos sonhos subseqentes comeam a surgir

    no interior das casas personagens mais familiares - uma tia distante, uma

    amiga da infncia - mas trazendo ainda uma certa impresso de

    estranhamento, de modo que as associaes durante os relatos dos sonhos

    vinham freqentemente acompanhadas de perguntas como: no sei por

    que coloquei tal pessoa nesse cenrio, nunca mais pensei em fulana, no

    sei por que ela aparece em meu sonho. At que, na segunda metade da

    gravidez, os incmodos fsicos diminuem, ela se sente plena, o beb se

    mexe muito, ela j sabe que um menino. A mudana que muitas vezes sedesencadeia a partir da percepo pela me dos movimentos do feto

    parece ser fundamental para modificar a fantasia do estrangeiro, do

    desconhecido dentro de si. Os movimentos do beb permitem me criar

    significaes sobre ele, interpretando seus movimentos, estabelecendo-se

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    assim um modo de comunicao entre os dois. A definio do sexo do

    beb tambm foi, nesse caso, de grande importncia para dar-lhe uma

    identidade, e assim uma configurao no imaginrio materno. H um

    sonho desse perodo que parece ter sinalizado uma reestruturao decisivana construo do lugar do beb por vir. Ela est com sua me, que carrega

    um beb morto, e ambas procuram um bom lugar para enterr-lo, o que

    realizado no final do sonho. Para alm de uma provvel relao com

    questes precisas da histria dessa paciente, suas associaes conduzem-

    na a pensar que dela mesma, em sua imagem de beb da me, que se

    trata aqui. Como se fosse necessrio enterrar esse beb narcsico ela

    mesma, o beb imaginrio de sua prpria me para dar lugar a um outro

    beb, agora o seu prprio, sendo um outro que no ela mesma. Esse sonho

    ser objeto de outras reflexes no captulo VI. No perodo final da

    gestao ela sonha com a mesma casa da infncia, agora ocupada por ela e

    seu marido, que ali recebem hspedes, amigos do marido. interessante

    assinalar como surge a representao de amigos do marido, hspedes

    agora aceitos em sua casa da infncia, se lembrarmos da patologia ligada

    rejeio do embrio, no aceito pelo organismo materno porque carrega a

    mensagem gentica do pai.

    Essa seqncia de sonhos permite ressaltar a importncia do tempo,

    da durao da gravidez, tal como vai sendo internalizada pela me,

    marcando para ela o processo do crescimento do beb dentro de si. Mas

    no podemos supor que haja uma coincidncia perfeita entre o tempofsico e o tempo psquico da gravidez. A clnica mostra que a gravidez

    psquica se prolonga normalmente, na mulher, para alm do momento do

    parto.

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    Os sonhos, com suas vrias referncias s casas da infncia, falam

    tambm da construo do espao para o beb no interior do psiquismo

    materno. Em um estudo sobre a agorafobia, Carlos Alberto da Gama e

    Manoel Berlinck (2002) propem que o espao seja pensado como oprimeiro objeto psquico. Buscando superar a dissociao entre externo-

    interno, afirmam que

    (...) o foco do problema do espao... desloca-se paraa questo de como se d a construo da subjetividade, oude como os diversos elementos se ordenam no espao apartir da histria de cada sujeito. Visto assim, o psiquismo

    seria uma organizao psquica do vazio, um espao ondepodem ocorrer os objetos e sua dinmica: a presena, aausncia, o intervalo, a memria, enfim.(p. 177)

    Podemos pensar a gravidez como um estado que produz uma

    alterao radical dos referenciais, j materializados pelas mudanas

    corporais, como tambm pela mudana de lugar na cadeia de filiao, da

    passagem do lugar de filha para o lugar de me. A vertigem, fenmeno

    que ocorre em pacientes agorafbicos, tambm freqentemente

    experimentada pelas gestantes, sobretudo no incio da gravidez. Assim,

    tomando emprestada a compreenso de Gama e Berlinck (2002) sobre

    essa manifestao da agorafobia, poderamos, do mesmo modo, considerar

    a hiptese de que (...) uma perda (ou uma alterao) de referenciais

    internos provoca a sensao de perda de referenciais externos. So as

    perdas de pilares de sustentao egicos os responsveis por esta aparente

    desorganizao externa.( p.177)

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    Tambm h na gravidez uma alterao fundamental na referncia de

    si mesma. A alterao corporal, induzindo necessariamente a uma

    mudana na imagem do corpo, afeta a representao narcsica da mulher.

    O limite corporal se modifica, a unidade da representao de si deslocada para permitir a representao do corpo prprio que vai englobar

    progressivamente um outro corpo. As mudanas no invlucro corporal e

    imaginrio representam uma ameaa construo narcsica. Na

    agorafobia, produzem manifestaes de angstia cuja funo sinalizadora

    busca prevenir uma possvel desestruturao. Mas na gestao no h

    como impedir a alterao que se processa inexoravelmente, a no ser por

    uma interrupo da prpria gravidez. Essa uma hiptese a ser

    considerada nas ocorrncias de partos prematuros ou de abortos

    espontneos repetitivos.

    Toda essa modificao supe a necessidade de o ser da mulher

    poder aceitar englobar um outro. Diramos que na dinmica ambivalente

    que se processa da me para o beb, parece haver uma oscilao entre um

    narcisismo englobante, correspondente experincia de plenitude em

    que a mulher se vive completa com seu beb no ventre, de tal modo que o

    beb est includo em seu prprio narcisismo. E, em contraponto,

    poderamos pensar num narcisismo excludente, quando ela se percebe

    invadida por um outro, estrangeiro dentro de si, de quem ir livrar-se no

    parto. O jogo entre a incluso e a excluso do beb, no espao psquico da

    me, poder ser um dos eixos de determinao do investimento dessacriana e do modo como se processaro as passagens dos contedos

    maternos para o psiquismo incipiente do beb.

    No trabalho psquico materno que consiste em transformar o

    estrangeiro em familiar necessrio tambm que a me construa

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    antecipadamente o eu do beb, na espera desse encontro, imprevisvel e

    eventualmente perturbador. o que Piera Aulagnier chama de construo

    do Eu (je) antecipado, primeiro captulo da histria do infans a vir. Em

    seu texto Nascimento de um corpo, origem de uma histria (1999), elapergunta:

    (...) o que representa o corpo do infans para esta mesuposta esper-lo para acolh-lo?...Aquele que provaria aela a realizao do seu desejo de ser me? A ltimaelaborao do objeto de um longo sonho comeado na suaprpria infncia? Ela encontra um corpo, fonte de umrisco relacional (...) encontro que vai exigir umareorganizao da sua prpria economia psquica, quedever beneficiar esse corpo do investimento do qualgozava at ento o nico representante psquico que otinha precedido, (idem, p. 33),

    representante psquico que ela chama de Eu (je) antecipado. Para que

    se d a passagem do corpo somtico, do corpo sensorial, para o corpo

    relacional, preciso uma historicizao da vida somtica, o que, para

    Aulagnier, (1999), exige um bigrafo que possa ligar o evento somtico aum destino psquico. Assim, (...) uma primeira verso construda e

    aguardada na psique maternal acolhe esse corpo para unir-se a ele. Faz

    sempre parte deste Eu antecipado ao qual se dirige o discurso maternal,

    a imagem do corpo da criana que era esperada.(p. 21)

    O Eu antecipado insere a criana num sistema de parentesco, e

    sua imagem corporal porta em si a marca do desejo materno. Piera

    Aulagnier afirma como condio para a preservao da vida psquica e

    certamente para sua prpria construo a existncia de um meio

    ambiente psquico que respeite exigncias to incontornveis quanto

    aquelas necessrias para a preservao da vida somtica. Isso exige da

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    me que organize e modifique seu prprio espao psquico para fazer face

    a essas novas exigncias.

    A antecipao, considerada fundamental por Piera Aulagnier como

    uma das funes maternas, traz em si a dimenso do tempo. Podemospensar no tempo da gestao como representando um intervalo psquico

    para a mulher durante o qual ela fica suspensa no tempo do outro que est

    se criando, o beb. E nesse tempo-entre as trs dimenses se

    apresentariam assim: o passado, que ressurge como fantasma, o presente

    como um tempo em suspenso, e o futuro, tempo marcado pelas projees,

    desejos e temores. Desse modo, o tempo da gestao fica caracterizado

    como um tempo intermedirio entre os fantasmas e desejos do passado e

    as projees do futuro.

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    CAPTULO III

    RESILINCIA E FUNO MATERNA

    Na introduo deste trabalho, ao indicar o interesse pelo estudo dos

    determinantes da constituio do psiquismo, desdobrava essa questo

    naquela outra que interroga sobre a variedade infinita dos modos de

    constituio, especialmente no que diz respeito s diferenas por vezes to

    intrigantes de capacidade de resistncia de alguns bebs, comparados

    com outros, em situaes de vida aparentemente semelhantes. O que faz

    algumas crianas resistirem melhor do que outras?

    Assim, trataremos aqui da noo de resilincia, entendida como o

    conjunto das disposies de alguns indivduos, e especialmente de

    algumas crianas, que lhes permitem atravessar sem danos sensveis

    situaes de graves riscos psquicos. A noo de resilincia no faz parte

    do corpo conceitual da psicanlise, mas tem sido considerada pelos

    clnicos, especialmente os clnicos de crianas. um conceito-limite que

    ainda solicita muitas precises, mas que pode ser situado no campo da

    psicopatologia e, mais especificamente, na psicopatologia da criana e do

    beb. Desenvolvido principalmente pela psiquiatria infantil preventiva

    inglesa, nos anos 1990, resilincia originalmente um conceito da fsica

    que define a resistncia mecnica de um material submetido a umimpacto. Os estudos da etologia humana tambm tm se voltado para o

    entendimento dos fatores favorecedores da resilincia. Seguindo a posio

    da psicopatologia fundamental de dialogar com diferentes saberes, nesse

    captulo faremos uso de aportes das teorias do apego e da etologia.

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    Podendo fazer contraponto a essa noo de resilincia, a

    insuficincia imunolgica psquica, proposta por Berlinck (2000d),

    definida como sendo a incapacidade do organismo de defender-se de

    ataques virulentos externos, assim como sua vulnerabilidade diante deataques endgenos. Importante notar que a insuficincia imunolgica

    psquica do beb associada por Berlinck (2000d) diretamente ao dio

    materno, inevitvel na ambivalncia de sua relao com a criana. Pensar

    sobre a insuficincia imunolgica psquica do beb leva, necessariamente,

    a pensar sobre o outro do beb, sobre a funo materna. Voltaremos a esta

    questo no fim deste captulo.

    Se perguntamos o que faz com que alguns indivduos sejam mais

    vulnerveis do que outros aos ataques internos e externos - o conceito

    de resilincia tenta dar conta dessa questo, mas invertendo a proposio,

    perguntando o que faz com que alguns indivduos sejam menos

    vulnerveis do que outros. Para apresentar essa formulao, referimo-nos

    s reflexes de Bertrand Cramer (1999), psicanalista atuando na clnica

    com bebs e crianas pequenas.

    Reconhecendo a dificuldade de fazer predies no campo do

    psiquismo, que seriam quase da ordem da adivinhao, Cramer indica que

    a resilincia s pode ser constatada a posteriori, quando suas

    conseqncias puderem ser percebidas. Portanto, compreend-la requer

    um esforo de reconstruo, a criao de umafantasia do passado.

    Para melhor definir o estudo desses fatores, seria necessrio fazera distino entre os casos que envolvem situaes de traumatismos

    extremos e aqueles decorrentes dos chamados traumas cumulativos. Para

    Cramer (1999) a resilincia diante de um trauma

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    (...) de natureza muito diferente daquela que seria precisodesenvolver face grande maioria das perturbaespsquicas precoces.... Nessas, trata-se de conflitosrelacionais, de alternncias de privao e hiper-excitao,de contgios de angstia, de conflitos que no podemosreduzir uma origem traumtica determinada. Assim, amaior parte das infelicidades da vida no so efeito detraumatismos, mas dos percalos do agenciamento pelosujeito de seus ferimentos, de seus conflitos e de suasangstias. (p. 215)

    Trata-se ento de buscar os fatores que protegem a criana contra

    esses efeitos, sendo um deles a relao entre a resilincia e a criatividade.Cramer supe que a compreenso da trajetria que vai do luto na infncia

    criatividade na idade adulta traria elementos interessantes para uma

    teoria da resilincia. No entanto, nem sempre, felizmente, as crianas

    vivem perdas causadas pela morte de pais na infncia. Por outro lado,

    fazem a experincia de inmeras perdas nesses primeiros anos, e so

    chamadas a elaborar progressivamente seus lutos em relao aos primeiros

    vnculos, especialmente em relao ao desejo de controle da presena da

    me. O trabalho psquico central da infncia pode ser entendido como a

    aceitao, pela criana, de no ser o nico objeto de desejo de sua me,

    constatando a atrao que para ela exercem o pai, seus irmos, outras

    pessoas, aprendendo ento a renunciar posse exclusiva da me. Assim,

    supe Cramer (1999 que a criatividade comea no bero, e Winnicott j

    falou muito sobre isso. O beb lida com a angstia da perda fabricandofantasias que substituem seus objetos de amor, produzindo assim

    representaes mentais que tomam o lugar da me ausente, estruturando o

    pensamento que se desenvolve como um antdoto contra o veneno da

    ausncia.

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    A resilincia caracterizada como o conjunto dos processos que

    podem temperar ou relativizar a vulnerabilidade, e a psicanlise prope

    algumas pistas tericas para a compreenso desses processos. Uma delas

    a capacidade de rverie materna conceito de Bion (1979a) para ilustrara capacidade de conteno e de transformao do psiquismo da me que

    deve poder sonhar, isto , metabolizar e transformar as primeiras

    produes ou protoproduces psquicas de seu beb a fim de torn-las

    utilizveis por ele. Trata-se de um estado de mente receptivo da me,

    capaz de acolher os estados psquicos do beb, transmitidos a ela por meio

    dos mecanismos de identificao projetiva. Essa capacidade materna

    necessita uma identificao primria com seu beb, a quem ela empresta

    seu aparelho para pensar pensamentos, isto , seu aparelho para tornar

    pensveis pela criana seus primeiros pensamentos impensveis por ela

    sozinha. Esse processo pode ser descrito em quatro tempos. O primeiro,

    aquele no qual a me recebe as tenses da criana, seguido de um segundo

    durante o qual ela guardar por um perodo suficiente aquilo que lhe foi

    endereado, experincia que permite ao beb vivenciar que o que ele sente

    pode ser recebido por um outro, que ele pode tocar sem destruir. O

    terceiro tempo o da transformao, dentro do aparelho psquico da me,

    dessa tenso do beb que ela recebeu e guardou. Essa a funo de

    metabolizao, que Bion chamou de funo alpha. O quarto tempo

    aquele da restituio ao beb do que foi transformado pela me,

    transmitido por meio de gestos, palavras e outras formas de comunicao.O beb passar progressivamente a fazer ele mesmo esse papel de

    metabolizar os elementos no pensveis de seu psiquismo, ao internalizar

    essa capacidade materna de receber, guardar e transformar, processo que

    constituinte, segundo Bion, do aparelho de pensar da criana.

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    A propsito dos traumatismos hiper precoces, Ren Diatkine (1994)

    utilizou esse conceito de rverie materna para propor uma hiptese que

    permitiria manter os dois tempos da teoria clssica do traumatismo, mas

    invertendo-os. Nessa sua hiptese, o primeiro tempo desses traumatismosprecoces no seria ligado a um excesso de excitao no possvel de ser

    metabolizado, mas sim causado por uma insuficincia da capacidade de

    rverie materna. Insuficincia que deixaria o beb desprotegido face aos

    acontecimentos ulteriores suscetveis de operar para ele como o segundo

    tempo da dinmica traumtica. Seria ento uma falha na interiorizao

    dessa capacidade materna que figuraria como o tempo traumtico

    primeiro, mas silencioso, em negativo, que s se manifesta quando da

    reapresentao dos fatores que reativaro a primeira vivncia traumtica.

    J para os tericos do apego, a constituio de um apego seguro

    vista como um fator preponderante de resilincia. Peter Fonagy (1995)

    introduz uma novidade a esse esquema ao dizer que menos do que a

    qualidade dos esquemas precoces de apego que determinar o futuro

    psicopatolgico da criana, ser o mecanismo de interpretao

    interpessoal, base da capacidade reflexiva que ter aqui um papel

    central.

    Fonagy (1995) transfere a nfase na internalizao do objeto de

    conteno para a internalizao do eu pensante a partir do interior do

    objeto de conteno. Para ele, a criana, alm de perceber o

    comportamento do provedor de cuidado, tambm percebe uma imagem desi prpria no outro como mentalizando, desejando, acreditando. Aqui, o

    importante que a criana v o provedor de cuidado representando-a

    como um ser intencional, e esta representao que ser internalizada

    para a formao do eu. Fonagy (1995) prope o seguinte modelo: ele

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    pensa em mim como um ser pensante; logo, eu existo como um ser

    pensante (p. 251). E mais, no que diz respeito a resilincia, a partir da

    anlise de vrios estudos sobre seus fatores favorecedores, esse autor

    sugere que um nico relacionamento de preferncia o materno com essascaractersticas, pode ser suficiente para o desenvolvimento da capacidade

    reflexiva da criana, e assim proteg-la diante de condies de risco

    graves no decorrer da vida.

    Por essa breve resenha de alguns autores que abordaram o tema da

    resilincia, podemos perceber que o fator preponderante de resilincia

    envolve sempre a relao com o outro, a relao da criana com seu

    cuidador primordial. Essa discusso conduz de volta questo sobre a

    posio do beb em sua relao com a alteridade, suposta aqui ser

    representada pela me, ou por quem faa essa funo. Essa posio de

    passividade, de receptividade, ou de competncia? Questo que pode

    introduzir uma outra temtica, a da funo da dor na estruturao do

    psiquismo, sobre a qual um caso clnico de uma criana tendo vivido

    situaes de extrema vulnerabilidade nos fez refletir, e que trataremos no

    captulo seguinte.

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    CAPTULO IV

    DOR, PELE PSQUICA E FUNO MATERNA

    E quando as coisas no se passam bem desde o incio, quando as

    condies so tais que a criana se encontra numa situao de extrema

    vulnerabilidade? Neste captulo trataremos de um caso clnico envolvendo

    uma criana cujo contexto inicial, at os dezoito meses, foi de extrema

    precariedade, marcado pela rejeio explcita da me biolgica, at sua

    adoo por outra famlia.

    Este caso clnico nos conduzir a refletir sobre a funo da dor na

    constituio do psiquismo e sobre a funo materna nessa abertura das

    vias de erogenizaco do corpo do beb.

    Felipe tem cinco anos e seus pais me procuram porque, dentro de

    um conjunto de comportamentos inquietantes, denotando dificuldades de

    contato, falta de concentrao na escola, agitao mesclada com uma

    indiferena aparente ao que est ao seu redor, a criana apresenta um

    sintoma que incomoda profundamente aos pais, e que prefiro chamar de

    incontinncia urinria ao invs de enurese. Por que incontinncia urinria?

    Porque parece haver uma total indiferena de Felipe sua mico, uma

    impossibilidade completa de exercer o controle esfincteriano, apesar de

    todas as medidas educativas adotadas, sem que nenhuma causa fisiolgica

    justifique esse estado. No relato dos pais, inmeras vezes durante o dia eleparece no perceber que urinou ou mesmo que est molhado. Continua sua

    atividade como se nada tivesse acontecido, e muitas vezes irrita-se quando

    um adulto interrompe seu jogo para lav-lo e troc-lo.

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    Felipe foi adotado com a idade de um ano e oito meses. At ento,

    viveu com sua famlia de origem, onde era o caula de cinco irmos. Seu

    nascimento provocou a separao do casal parental, o pai tendo rejeitado

    ao mesmo tempo esse beb e sua mulher, provavelmente por suspeita detraio, segundo os pais adotivos. A me, em conseqncia, recusou

    totalmente essa criana que sobreviveu graas aos cuidados dos irmos

    mais velhos. Na sua famlia adotiva, Felipe o segundo filho. Como se

    deu sua adoo? Ele foi encontrado pela me de sua me adotiva, ou seja,

    sua av adotiva que morava nas vizinhanas da famlia de origem. A av

    adotiva cuidou dele durante um ms, at a chegada da filha para busc-lo.

    O relato dos pais de que encontraram uma criana ainda muito

    selvagem, assustada, que apresentava reaes inesperadas e

    incompreensveis, mas que tinha estabelecido um lao com essa famlia

    dos avs adotivos, principalmente com a av. Transparece nessa fala dos

    pais a impresso de que lidavam com um animalzinho, que custaram a

    domesticar, em relao a quem precisaram de muito tempo at

    consider-lo parte do grupo familiar. Ele rapidamente comeou a andar,

    mas corria mais do que andava, e no incio no parecia ter direo, nem a

    menor noo de perigo. Falou por volta dos trs anos, e vivendo num meio

    bilnge at o incio da psicoterapia, ele apresentava uma impossibilidade

    de falar a lngua portuguesa, que a de sua famlia biolgica, tendo

    somente construdo sua comunicao na lngua dos pais adotivos.

    Durante as entrevistas iniciais com os pais transparece umadificuldade importante da me para lidar com esse filho, algo que faz

    pensar num certo horror em relao ao corpo desse menino.

    Nas primeiras sesses comigo Felipe mostrou-se tal como seus pais

    o descreveram: explorava a sala e os objetos, aparentemente indiferente

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    minha presena, com uma atitude em que a desconfiana parecia esconder

    uma certa curiosidade, mesclada com temor. Ele aceitou desde a primeira

    vez estar s comigo,