Dissertacao de Josely Teixeira Carlos

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA

    DISSERTAO

    MUITO ALM DE APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO VINDO DO INTERIOR:

    investimentos interdiscursivos das canes de Belchior

    MESTRANDA: JOSELY TEIXEIRA CARLOS

    Fortaleza 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA Josely Teixeira Carlos

    Muito alm de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das

    canes de Belchior

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica da Universidade Federal do Cear, sob orientao do Prof. Dr. Nelson Barros da Costa, como requisito para a obteno do grau de Mestre em Lingstica.

    Fortaleza 2007

  • A poca e o meio social sempre possuem enunciados que servem de norma, do o tom; so obras cientficas, literrias, ideolgicas, nas quais as pessoas se apiam e s quais se referem, que so citadas, imitadas, servem de inspirao.

    (Esttica da Criao Verbal, de Bakhtin)

    Sin discursos previos, cualquer discurso es incomprensible. (Polifonia textual, de Graciela Reyes)

    No confiem em mim. Eu no existo! Sou apenas o personagem que diz isto.

    (Cano Rock-romance de um rob Golliardo, de Belchior)

  • Esta dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de Mestre em Lingstica, outorgado pela Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade.

    A citao de qualquer trecho da dissertao permitida, desde que seja feita de acordo com as normas cientficas.

    _____________________________________

    Josely Teixeira Carlos

    MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Nelson Barros da Costa (Orientador) - Universidade Federal do Cear

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Elba Braga Ramalho (1 examinadora) - Universidade Estadual do Cear

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Lvia Mrcia Tiba Rdis Baptista (2 examinadora) - Universidade Federal do Cear

    _______________________________________________________________________

    Profa. Dra. Mnica Magalhes Cavalcante (Suplente) - Universidade Federal do Cear

    Dissertao defendida e aprovada em 17 / 04 / 2007

  • DEDICO

    A minha querida me, Irma Teixeira, por nunca ter deixado de estar ao meu lado.

    Ao meu irmo Rubens Teixeira, pela leveza que no h em mim.

    A minha tia Hermnia, que se pudesse traduzi-la em um verbo seria o verbo CUIDAR.

    A minha av Luza, por em seus quase 90 anos de vida ainda saber que vale pena viver.

    Ao Nelson Augusto, pelo homem que ele foi um dia.

    Ao Bel, por me mostrar que no sou prova de som nem de amor.

  • AGRADECIMENTOS

    A minha me, Irma Teixeira, por ter deixado de lado a prpria vida em nome da educao dos filhos; por me ensinar que cada instante pode ser o ltimo e que por isso devemos pregar o Carpe diem.

    Ao meu irmo Rubens Teixeira, por no se enfadar com os percalos da nossa existncia.

    A minha tia Hermnia, pelo carinho e dedicao incomensurveis.

    A minha av Luza, por todos os risos que me causa e pelo sentimento de paz que sinto perto dela.

    A minha prima Solange, por conseguir ser alegre o tempo todo.

    Ao Nelson Augusto (ex-companheiro de vida e de leito). Homem que me fez rir e chorar, que compartilhou comigo de dia e, principalmente, na madrugada, o interesse pelas palavras e pelos sons e pra quem a vida uma eterna brincadeira. Ele me mostrou todos os dias que o verdadeiro sbio aquele que rene inteligncia e simplicidade.

    Alba, Alice, Alba Cristina, Vitor e Ana Alice, famlia do Nelson e que considero como minha, por terem me recebido de forma to calorosa e pelo carinho e respeito constantes.

    Aos meus queridos amigos de sempre: Bebete, Darlene, rico, Fabiana, Mrcio, Marina, Mrio e Robrio. Uns longe, mas todos perto do corao.

    Ao Rgis Soares, pelo querer bem e pela ajuda com relao teoria musical.

    Ao orientador e amigo Nelson Barros da Costa, pela disponibilidade, serenidade, pacincia e sabedoria.

    coordenadora da Ps-Graduao em Lingstica, professora Dra. Mrcia Teixeira Nogueira, pela competncia na docncia, na pesquisa e na administrao e, principalmente, por seu carter de justia.

    Aos professores que fizeram parte de minha qualificao, pr-defesa e defesa, Elba Braga Ramalho, Lvia Mrcia, Mnica Magalhes e Wellington Jnior, por terem aceitado ler cada etapa do trabalho de forma to carinhosa.

    professora Dra. Maria Elias Soares, por me ajudar a melhorar meu projeto de dissertao e por reforar meu gosto pela metodologia cientfica.

    Ao querido professor Roterdan Damasceno, por ter feito o Rsum desse trabalho e, sobretudo, por seu carisma inabalvel.

    Aos meus colegas de Mestrado e de vida Karine David, Maria das Dores e Yvantelmack Valrio, por todas as risadas que demos nas aulas, nos intervalos e nas mesas de bar.

  • Ao amigo e futuro antroplogo Paulo Camlo, que me ajudou a fazer o CD interativo que acompanha essa dissertao.

    Aos professores da graduao, em especial, Adriano Espnola, lber Uchoa, Amrico Bezerra Saraiva, Carlos Alberto, Edi, Hebe Macedo, Mnica Magalhes, Odlio Alves e Orlando pelas aulas de Filosofia, Lnguas, Lingstica, Literatura e Vida.

    Aos professores Nonato Lima e Wellington Jnior (Comunicao Social), pela amabilidade e por tudo que aprendi em Anlise do Discurso e Semitica.

    Aos colegas de graduao da UFC Amanda Oliveira, Ana Paula, Julianne Larens, Rosngela Barros, Rosiane Mariano e Rose Maria, os quais me fazem sentir saudade dessa poca.

    Aos funcionrios da UFC Antnio Jos, Antnia, Chico Miranda, Laura, Mauro, Nazareno, Pacceli, Rejane e Ylka, que sempre atendem a todos com um sorriso nos lbios.

    CAPES, pelo apoio financeiro, o que tornou possvel a concluso de nossa pesquisa em dois anos.

  • RESUMO

    Neste trabalho, investigamos de que modo textos das prticas discursivas literria e literomusical entrecruzam-se nas canes de Belchior, isto , de que forma esses discursos outros so mostrados (ou escondidos) e ressignificados pelo compositor cearense. Para analisar como Belchior dialoga com essa tradio (autores clssicos da literatura, a cultura popular dos anos 50 e 60, os Beatles, Bob Dylan, o Tropicalismo etc.), seguimos a proposta de Costa (2001): a de descrever e analisar a Msica Popular Brasileira enquanto prtica discursiva, tomando como base a Anlise do Discurso de linha francesa, especificamente a orientada por Maingueneau. Fundamentamo-nos nas contribuies dadas por esses autores no que concerne aos investimentos posicionais (genrico, cenogrfico, tico e lingstico). Os conceitos da AD utilizados foram os relativos a heterogeneidades discursivas, dialogismo, polifonia, investimento, posicionamento, gnero, cena enunciativa, ethos e cdigo de linguagem. Para tanto, baseamo-nos em Authier-Revuz (1982, 1990 e 1995), Bakhtin (2000 e 2004) e Maingueneau (1997, 2001, 2002 e 2005). Os investimentos interdiscursivos das canes de Belchior, os quais se manifestam por meio das relaes intertextuais, interdiscursivas e metadiscursivas, foram analisados segundo Genette (1989), Pigay-Gros (1996) e Costa (2001), que organizaram uma tipologia de anlise de relaes entre textos e entre discursos. A partir dessas classificaes, propusemos uma outra, que abrange a maior parte dos fenmenos identificados em nosso corpus. Encontramos nas canes de Belchior as seguintes relaes intertextuais com textos da literatura e da msica: citao, referncia, plgio, aluso, pardia e adaptao; as seguintes relaes interdiscursivas: referncia e aluso tanto captativas quanto subversivas a gneros, cenografias validadas, estilos, eth, cdigos de linguagem e gestos enunciativos empregados em textos literrios e musicais. No que diz respeito s relaes metadiscursivas, Belchior reaproveita trechos de outras canes de sua autoria, assim como faz referncia a seu estilo de compor e a seu modo de cantar.

    Palavras-chave: Discurso literomusical brasileiro; Posicionamento; Investimentos interdiscursivos; Intertextualidade; Interdiscursividade; Metadiscursividade; Belchior.

    (299 palavras)

  • RSUM

    Dans ce travail de recherche nous enquetons la faon par laquelle des textes des pratiques discursives littraire et littro-musical se croisent dans les chansons de Belchior, c'est--dire, de quelle manire ces discours d'autres sont montrs (ou cachs) et resignifis par le compositeur cearense. Pour analyser comment Belchior dialogue avec cette tradition (des crivains classiques de la littrature, la culture populaire des annes 50 et 60, les Beatles, Bob Dylan, le Tropicalisme etc.) nous avons suivi la proposition de Costa (2001) celle de dcrire et d'analyser la Musique Populaire Brsilienne en tant que pratique discursive, ayant comme support thorique l'Analyse du Discours franaise, spcifiquement celle oriente par Maingueneau. Nous nous basons sur les contributions donnes par ces thoriciens en ce qui concerne les investissements positionnels (gnrique, scnographique, thique et linguistique). Les concepts de l'AD utiliss ont t ceux concernant les htrogneits discursives, le dialoguisme, la polyphonie, l'investissement, le positionnement, le genre, la scne nonciative, l'thos et le code de langage. Pour cela nous nous basons sur Authier-Revuz (1982,1990 e 1995), Baktin (2000 e 2004) e Maingueneau (1997, 2001, 2002 e 2005). Les investissements interdiscursifs des chansons de Belchior, lesquels se manifestent travers les relations intertextuelles, interdiscursives et mtadiscursives ont t analyss selon Genette (1989), Pigay-Gros (1996) et Costa (2001) qui ont organis une typologe d'analyse de relations entre textes et entre discours. partir de ces classifications, nous en avons propos une autre qui comprend la plus grande part des phnommes identifis dans notre corpus. Dans les chansons de Belchior nous avons trouv comme relations intertextuelles avec des textes de la littrature et de la musique la citation, la rfrence, le plagiat, l'allusion, la parodie et ladaptation et comme relations interdiscursives la rfrence et l'allusion tantt captatives tantt subversives des genres, des scnographies valides, des styles, l'th, des codes de langage et des gestes nonciatifs employs dans des textes littraires et musicaux. En ce qui concerne les relations mtadiscursives, Belchior rutilise des morceaux d'autres chansons qu'il a composes et il fait aussi rfrence son style de crer et sa manire de chanter.

    Mots-cls: Discours Littro-musical Brsilien; Positionnement; Investissements Interdiscursifs; Intertextualit; Interdiscursivit; Mtadiscursivit; Belchior.

    (346 palavras)

  • SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................................... 10

    1 OPES TERICAS ............................................................................................ 15 1.1 A Anlise do Discurso ......................................................................................... 15

    1.1.1 Heterogeneidade, Dialogismo e Polifonia .................................................... 20 1.1.2 Primado do interdiscurso e contribuies de Dominique Maingueneau ........ 22 1.2 A intertextualidade .............................................................................................. 24

    1.2.1 A proposta de Grard Genette (1989) ............................................................ 26 1.2.2 A proposta de Pigay-Gros (1996) ................................................................ 27 1.2.3 A proposta de Costa (2001): relaes intertextuais, interdiscursivas e

    metadiscursivas ........................................................................................... 31 1.3 Posicionamento e investimentos genrico, cenogrfico, tico e lingstico .......... 39 1.3.1 Gnero .......................................................................................................... 41 1.3.2 Cena enunciativa .......................................................................................... 42 1.3.3 Ethos ............................................................................................................ 44 1.3.4 Cdigo de linguagem .................................................................................... 47 1.4 Investimentos interdiscursivos: uma sistematizao ............................................. 48

    2 HIPTESES E OPES METODOLGICAS ..................................................... 62 2.1 Hipteses ............................................................................................................ 63 2.2 Opes metodolgicas ......................................................................................... 65

    2.2.1 Delimitao do universo e amostra ............................................................... 65 2.2.2 Procedimentos gerais .................................................................................... 70

    3 APENAS UM CANTOR? MSICA BRASILEIRA, MSICA CEARENSE E BELCHIOR .......................................................................................................... 73

    4 UM RAPAZ LATINO-AMERICANO VINDO DO INTERIOR? PESSOAL DO CEAR E MPB: BELCHIOR E DOIS POSICIONAMENTOS ....................... 76

    5 A MINHA VOZ CANTA O QUE VIDA CONVM: INVESTIMENTOS INTERDISCURSIVOS ......................................................................................... 98

    5.1 Relaes intertextuais .......................................................................................... 98 5.2 Relaes interdiscursivas ................................................................................... 181 5.3 Relaes metadiscursivas .................................................................................. 222

    GUISA DE CONCLUSO ................................................................................. 258

    REFERNCIAS ..................................................................................................... 260 Bibliogrficas ............................................................................................. 260 Discogrficas .............................................................................................. 265 Reportagens ................................................................................................ 267 Programas de TV e radiofnicos ................................................................. 269 Pginas na Internet ..................................................................................... 269

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 271 Sobre Discurso e Anlise do Discurso ........................................................ 271 Sobre Msica e Cano .............................................................................. 273 Pginas na Internet ..................................................................................... 275

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    APRESENTAO

    Escolhemos as canes de Belchior para constituir o corpus de nossa investigao devido aos temas, forma e ao contedo de seu trabalho. Suas produes despertam

    polmica, fazem reflexes, trazem tona discusses e anlises de questes ligadas a toda a nao brasileira. Suas msicas so ora lricas, ora de protesto-denncia, falam de horror e de

    amor, de caos e de esperana, de poetas e de prostitutas, de Deus e do diabo, de trovadores e de viciados, de sonhadores e de anarquistas, de apaixonados e de suicidas.

    Os sentimentos e as contradies humanas permeiam suas mais de 300 composies, gravadas por ele e por outros intrpretes, tais como Elis Regina, Fagner, Roberto Carlos, Jair Rodrigues, Erasmo Carlos, Ney Matogrosso, Vanusa, Cazuza e Engenheiros do Hawa.

    No que concerne dimenso verbal, as canes de Belchior representam um

    verdadeiro caso de amor com a palavra. Seus textos reportam-se a obras de poetas e prosadores consagrados nacional e mundialmente, fenmeno conhecido como

    intertextualidade, o qual foi investigado em nossa pesquisa. Os textos de suas canes fazem referncias a Drummond, Joo Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Edgar Alan Poe, Olavo Bilac, Machado de Assis, Gonalves Dias etc. O gosto pela esttica literria tambm pode ser comprovado pelo uso de procedimentos concretistas na construo das

    canes e, especialmente, na disposio das letras nos encartes dos lbuns. Alm de textos literrios, Belchior apropria-se tambm de textos de msicas brasileiras e estrangeiras. Outra

    caracterstica da obra desse compositor a meno a outros cantores ou grupos musicais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rolling Stones e os Beatles.

    J com relao dimenso meldica das canes, alm de um jeito peculiar de interpretar, suas melodias tm referncias nordestinas e influncias estrangeiras tanto da

    norte-americana quanto da europia entre as quais de autores, como Bob Dylan, e de grupos musicais, como a banda inglesa The Beatles, e tambm de gneros como o blues, o jazz, o rock e o country.

    Para ns, a presena de textos alheios nas canes de Belchior, ou seja, a referncia constante a outras fontes enunciativas manifesta uma forte necessidade do sujeito discursivo de dialogar com uma tradio imediatamente anterior e ainda presente (a cultura popular dos anos 50 e 60, os Beatles, Bob Dylan, o Tropicalismo).

    E para investigar como Belchior dialoga com essa tradio, seguimos a proposta de Costa (2001): a de descrever e analisar a Msica Popular Brasileira enquanto prtica discursiva, tomando como base a perspectiva da Anlise do Discurso de linha francesa,

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    especificamente a orientada pelo lingista Dominique Maingueneau. Fundamentamo-nos nas contribuies dadas por esses autores no que concerne aos investimentos posicionais (genrico, cenogrfico, tico e lingstico).

    Os conceitos da Anlise do Discurso que utilizamos so os relativos a heterogeneidades discursivas, dialogismo, polifonia, investimento, posicionamento,

    gnero, cena enunciativa, ethos e cdigo de linguagem. Para tanto, baseamo-nos nos tericos Authier-Revuz (1982, 1990 e 1995), Bakhtin (2000 e 2004) e Maingueneau (1997, 2001, 2002 e 2005). Nossa escolha est descrita no captulo 1, destinado s Opes tericas.

    Ns consideramos o discurso enquanto prtica discursiva. Assim sendo, o discurso literomusical brasileiro uma prtica discursiva, na medida em que resulta da prtica de uma comunidade especfica. Nosso objetivo principal, aqui, foi descrever e analisar a obra de um dos componentes dessa comunidade discursiva. Trabalhamos, dessa forma, com as canes do cantor e compositor cearense Belchior.

    Nossa hiptese principal, apresentada no captulo 2 (seo 2.1), a de que h um dilogo interdiscursivo entre as canes de Belchior e textos e/ou fragmentos de diversos autores/compositores dos universos literrio e musical nacional e estrangeiro. Na anlise do

    que estamos chamando investimentos interdiscursivos, observamos criteriosamente todas as composies de Belchior pertencentes ao corpus, como descrevemos tambm no captulo 2 (seo 2.2, referente s Opes metodolgicas). Dessa totalidade de canes assinadas por Belchior, selecionamos para serem mostradas aqui somente aquelas que deixavam claro o

    processo de releitura de fragmentos de textos j conhecidos. Essa seleo foi feita pensando no dilogo interdiscursivo mencionado acima.

    Enfatizamos que, neste trabalho, exploramos as duas dimenses da cano, a qual constituda, na sua essncia, pela imbricao entre letra e melodia. Mas destacamos que, devido ao nosso reduzido conhecimento em teoria musical, damos prioridade dimenso verbal desse gnero. A importncia de nosso estudo justifica-se no sentido de aprofundar as pesquisas que tm como objeto o gnero cano, especificamente a composio brasileira produzida por um cearense, o cantor e compositor Belchior.

    Como mostramos no captulo 3 (Apenas um cantor? Msica brasileira, Msica cearense e Belchior), embora haja diversos estudos acadmicos que tomam como objeto de pesquisa a Msica Popular Brasileira, apenas trs dedicam-se exclusivamente obra do cantor e compositor cearense Belchior: Ventura, 2003 e Carlos, 2003a e 2006, esses dois ltimos de nossa autoria. J outros estudos comentam suas canes em conjunto com as de outros artistas cearenses: Carlos, 2003b; Costa, 2001; Pimentel, 1994; Saraiva, 2005 e Mendes, 2007.

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    Todavia, nenhum deles se deteve na observao minuciosa dos textos produzidos por Belchior a partir de uma anlise exaustiva de um corpus, empreendimento que iniciamos com a realizao de trs trabalhos (CARLOS, 2003a, 2003b e 2006) e ao qual demos continuidade com a presente pesquisa. Alm do que, nenhuma dessas pesquisas (com exceo de CARLOS, 2006) volta-se exclusivamente para a produo do compositor cearense, interpretando-a com base na anlise do discurso.

    Desse modo, nossa pesquisa tem por finalidade preencher essa lacuna. Nosso objetivo contribuir para ocupar esse espao por considerarmos a obra de Belchior de importncia capital para a Msica Popular Brasileira.

    Acreditamos que nosso estudo tem importncia tambm enquanto aplicao emprica de um conjunto de conceitos tericos da Anlise do Discurso a um corpus da Msica Popular Brasileira, contribuindo, ento, para validar ainda mais o discurso literomusical brasileiro enquanto campo de pesquisa a ser abordado discursivamente. O trabalho com esse tipo de discurso tem mrito ainda por pretender examinar um discurso to importante e to

    entranhado na nossa cultura. Conforme Costa (2001), a Msica Popular Brasileira, por sua diversidade de estilos,

    ritmos e propostas esttico-ideolgicas, pode ser agrupada de acordo com cinco maneiras de marcaes identitrias, segundo as quais se constituem vrios posicionamentos. Nessa classificao, apresentada na seo 1.3.1 (quando falamos na heterogeneidade do discurso literomusical brasileiro), Belchior estaria relacionado a dois posicionamentos, um de carter regional (o Pessoal do Cear) e o outro que agrega valores relativos tradio (a MPB). So esses dois posicionamentos que abordamos no captulo 4 (Um rapaz latino-americano vindo do interior? Pessoal do Cear e MPB: Belchior e dois posicionamentos). Abrindo esse captulo, explicitamos dados a respeito da vida do compositor com o objetivo de justificar a razo de Belchior possuir to rico repertrio de textos memorizado, o que podemos perceber

    no contedo que emerge de cada uma de suas composies. Em nossa anlise, utilizamos informaes da trajetria bio/grfica do letrista cearense para validar nossas hipteses. Procuramos, ainda nesse captulo, situar de forma discursiva a produo musical de Belchior no contexto da msica popular brasileira, baseando-se em discursos que analisam sua obra,

    entre eles, os veiculados em entrevistas, matrias, reportagens de jornais e revistas e livros especializados na rea musical.

    Objetivamos em nossa pesquisa verificar os investimentos interdiscursivos das canes de Belchior, quais sejam transtextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade, arquitextualidade, relaes intertextuais (intertextualidade), relaes

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    interdiscursivas (interdiscursividade) e relaes metadiscursivas (metadiscursividade), entre outros. Para tanto, como expomos no captulo 1 (seo 1.2), utilizamos os estudos de Genette (1989) e Pigay-Gros (1996), assim como a reformulao, empreendida por Costa (2001), dos mecanismos intertextuais esquematizados por essa autora.

    Ressaltamos que, a partir dessas trs classificaes, propusemos uma outra, que

    abrange a maior parte dos fenmenos encontrados em nosso corpus, pois observamos que a classificao existente realizada por esses trs autores no era suficiente para analisar os investimentos interdiscursivos utilizados por Belchior em suas canes. Essa nova classificao est exposta j no captulo de fundamentao terica, na seo denominada Investimentos interdiscursivos: uma sistematizao (1.4). Esperamos, portanto, que essa seja a principal contribuio da nossa pesquisa queles que trabalham com a anlise de discursos.

    Esses investimentos, os quais se referem s relaes intertextuais, interdiscursivas e metadiscursivas so analisados no captulo 5 (A minha voz canta o que vida convm: investimentos interdiscursivos). Esse captulo encontra-se dividido em trs partes, cada uma delas correspondendo s relaes entre textos (Relaes intertextuais - seo 5.1), entre discursos (Relaes interdiscursivas - seo 5.2) e entre o sujeito e seu discurso (Relaes metadiscursivas - seo 5.3). Na anlise das relaes interdiscursivas, foi necessrio fazer, inicialmente, uma caracterizao parcial dos investimentos genrico, cenogrfico, tico e lingstico utilizados pelo cearense, para s depois analisarmos a relao desses com os discursos literrio e musical. Gostaramos de dizer que essa busca de relaes intertextuais e

    interdiscursivas na obra de Belchior nos foi bastante custosa, pois aps a identificao do fragmento ou texto (da literatura ou da msica) incorporado por Belchior, tivemos que pesquisar atentamente a obra e a vida do autor ou compositor utilizado, para ento analisar o modo pelo qual Belchior dialogava com esse material. Portanto, queremos enfatizar que o trabalho com a intertextualidade e a interdiscursividade exige do pesquisador o retorno constante s fontes, aos textos bases. Apesar de nossa pesquisa ter sido incessante e

    meticulosa, no pretendemos esgotar em nosso trabalho todas as incorporaes textual-discursivas e meldicas realizadas por Belchior.

    Logo aps a seo Referncias (bibliogrficas, discogrficas, reportagens, programas de TV e radiofnicos e pginas na Internet), inclumos uma Bibliografia com sugestes de obras sobre discurso, anlise do discurso, msica e cano para os interessados em aprofundar o assunto. Junto bibliografia, listamos algumas pginas da WEB que trazem temas ligados msica.

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    Essa dissertao acompanha um CD interativo, no qual est inserido o material a que fazemos meno no decorrer desse trabalho: os lbuns da Discografia Oficial de Belchior, com suas respectivas capas, letras e udio em formato MP3. Deste modo, o leitor tem a

    possibilidade de conhecer (ler/ouvir) em sua totalidade a composio mencionada, mesmo que nossa anlise a respeito da cano limite-se a apenas um de seus versos, ou ainda que

    somente a seu ttulo ou a seu estilo/gnero musical. Recomenda-se, portanto, a leitura da dissertao conjuntamente com a utilizao do CD. Para uma melhor compreenso, sugerimos que a leitura das canes seja acompanhada, sempre que possvel, de sua audio fonogrfica.

    Por fim, indispensvel ressaltar que no pretendemos fazer em nossa dissertao

    uma anlise biogrfica de Belchior. Tencionamos, sim, focalizar o autor como uma figura enunciativa, cujo posicionamento se configura pela insero no interdiscurso. Nosso objetivo maior analisar de que modo o sujeito discursivo das canes de Belchior relaciona-se com a pluralidade (diversidade) de discursos que ele traz tona e aos quais atribui uma exterioridade, ou seja, de que modo o EU do discurso instaurado nas canes se aproxima ou se distancia dessa exterioridade.

    Em linhas gerais, a nossa inteno em fazer essa pesquisa legitima-se, portanto, no

    sentido de contribuir para a explorao da Msica Popular Brasileira enquanto discurso e especificamente para a valorizao da obra desse artista que ainda pouco discutida. Objetivamos tambm, contribuir com os estudos que relacionam a cano a essa prtica de leitura de textos proposta pela Anlise do Discurso.

    Sobretudo, esperamos, em nosso trabalho, chamar a ateno para uma obra ainda to pouca explorada pelos analistas do discurso e amantes da palavra cantada: a desse marginal

    bem-sucedido, desse nordestino na cidade grande, antes de tudo um forte, que consideramos ser muito mais do que apenas um rapaz latino-americano vindo do interior.

  • 15

    1 OPES TERICAS

    1.1 A Anlise do Discurso

    A preocupao em compreender o funcionamento da linguagem j bastante antiga. Todavia, apenas no sculo XIX a Lingstica veio a se constituir como cincia autnoma, com

    objeto, objetivos e metodologia prprios. Mas foram os formalistas russos que abriram espao para a entrada no campo dos estudos lingsticos daquilo que mais tarde se chamaria discurso, medida que romperam com a anlise de contedo do texto buscando uma lgica de encadeamentos transfrsticos. Portanto, a prtica de leitura de textos no inaugurada pela Anlise do discurso, a qual resultado da convergncia de correntes recentes e da renovao da prtica de estudos muito antigos de textos como os gramaticais, os filolgicos,

    os hermenuticos etc. Entre as correntes que contriburam para a constituio da AD esto a etnografia da comunicao, a anlise conversacional de inspirao etnometodolgica, a

    Escola Francesa, as correntes pragmticas, as teorias da enunciao e a lingstica textual. Tambm contriburam com o modelo atual da AD as reflexes feitas por Michel Foucault, que desenvolveu estudos sobre os dispositivos enunciativos, e pelo filsofo russo Mikhail Bakhtin, que fez reflexes sobre os gneros de discurso e a natureza dialgica da linguagem.

    A dcada de 50 foi decisiva para a constituio de uma anlise do discurso enquanto disciplina. De um lado, surge em 19521 o trabalho de Zelig Harris (Discourse Analysis2) que mostra a possibilidade de ultrapassar as anlises restritas frase. De outro, os trabalhos de Roman Jakobson e mile Benveniste sobre enunciao.

    A AD recebe definies diversas, que chegam a confundi-la com outras disciplinas que estudam o discurso. Neste trabalho, estamos considerando a Anlise do Discurso como a disciplina que, em vez de proceder a uma anlise lingstica do texto em si ou a uma anlise sociolgica ou psicolgica de seu contexto visa a articular sua enunciao sobre um certo lugar social (MAINGUENEAU, 1998, p. 13, grifos do autor).

    No que se refere ao corpus, a AD se aplica a qualquer tipo de texto3: uma consulta mdica, uma conversa entre namorados, um cartaz, uma cano, uma capa de disco etc. Todas

    essas formas textuais so gneros do discurso. Voltamos a essa questo na seo 1.3.1. Com o

    1 Nesse ano foi utilizado pela primeira vez o termo anlise do discurso.

    2 Essa obra, apesar de ser considerada o marco inicial da AD, restrita no sentido de que apenas aplica

    procedimentos de anlise de unidades da lngua aos enunciados. Nesse mtodo, no h reflexo sobre a significao e as condies scio-histricas de produo.

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    surgimento da Anlise do Discurso, pela primeira vez na histria, a totalidade dos enunciados de uma sociedade, apreendida na multiplicidade de seus gneros, convocada a se tornar objeto de estudo (MAINGUENEAU & CHARAUDEAU, 2004, p. 46, grifo dos autores).

    Com relao ao ttulo A Escola Francesa de Anlise do Discurso, ele diz respeito a um conjunto de pesquisas sobre o discurso, surgido na Frana na metade da dcada de 60, as quais foram consagradas no ano de 1969 pela publicao do nmero 13 da revista Langages, intitulado A anlise do discurso e de Analyse Automatique du Discours, de Michel Pcheux.

    O cerne dessas pesquisas foi um estudo do discurso poltico, realizado por lingistas e

    historiadores, com uma metodologia que associava a lingstica estrutural e uma teoria da ideologia, baseada na releitura da obra de Karl Marx por Louis Althusser (2001) e na psicanlise de Jacques Lacan. Esse estudo relacionava o ideolgico lingstica, tentando tanto no reduzir o discurso anlise da lngua como no dissolver o discursivo no ideolgico (MAINGUENEAU, 1998, p. 70).

    A linha francesa, portanto, por meio da articulao desses campos de saber j nasce tendo como base a interdisciplinaridade.

    De acordo com o filsofo francs Michel Pcheux, no famoso artigo publicado na coletnea Towards an automatic discourse analysis4, organizada por Franoise Gadet e Tony Hak em homenagem a Michel Pcheux, desaparecido em 1983, a AD Francesa teria passado por trs pocas. Na primeira, considerada a da Anlise Automtica do Discurso (AAD 69) cujo nome remete ao artigo de Pcheux5 mencionado acima introduzida a noo de maquinaria discursivo-estrutural, na qual

    um processo de produo discursiva concebido como uma mquina autodeterminada e fechada sobre si mesmo, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitos acreditam que utilizam seus discursos quando na verdade so seus servos assujeitados, seus suportes (PCHEUX, 1983 apud GADET e HAK, 1997, p. 311, grifos do autor).

    Nessa anlise, h o estabelecimento de um corpus fechado de seqncias discursivas

    selecionadas num espao discursivo tambm fechado, o qual seria dominado por condies de produo estveis e homogneas. Esse tipo de anlise seleciona classes de enunciados

    3 Neste estudo estamos considerando o texto como a seqncia significante (considerada coerente) de signos

    entre duas interrupes marcadas da comunicao (WEINRICH, 1973, p. 13 e 198). 4 Essa coletnea foi traduzida e publicada em portugus como Por uma anlise automtica do discurso. Mais

    informaes sobre a AD desenvolvida por Pcheux na obra Gadet e Hak, 1997. 5 Pcheux considerado o autor mais representativo dessa corrente.

  • 17

    elementares em relao de parfrase, sem levar em conta a enunciao. A parfrase diz respeito equivalncia entre dois enunciados, um deles podendo ser ou no a reformulao do outro.

    Os trabalhos dessa fase davam primazia ao Mesmo buscando a apreenso do que havia de idntico em uma produo discursiva, procurando, dessa maneira, apagar suas asperezas,

    eliminar as reentrncias em que os sentidos podem se esconder fazendo do discurso um corpo cheio e uma superfcie plana (COURTINE e MARANDIN, 1981 apud BRANDO, 2002, p. 71).

    Na AD-2 dada primazia s relaes entre as mquinas discursivas estruturais, que passam a ser o objeto da AD. Aliado ao primado da relao, o conceito de formao discursiva comea a pulverizar a noo de mquina estrutural fechada na medida em que o

    mecanismo da formao discursiva est relacionado paradoxalmente com seu exterior. A noo de formao discursiva utilizada fundamentalmente na Escola francesa introduzida por Michel Foucault, designa conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas (MAINGUENEAU, 1998, p. 67-68).

    Na segunda poca, uma FD no mais um espao fechado, estvel e homogneo, pois

    , na sua prpria constituio, ocupada por elementos pertencentes a outras FDs. Assim sendo, o corpus estabelecido de modo a se analisar a relao entre duas formaes discursivas. Nessa fase, aparece a noo de interdiscurso como o exterior especfico de uma FD. No que se refere ao papel do sujeito do discurso, continua sendo assujeitado maquinaria da formao discursiva com a qual se identifica.

    Na terceira poca da AD (anos 80), solidifica-se o processo de desconstruo das maquinarias discursivas. O primado do Outro sobre o Mesmo se acentua, empurrando at o limite a crise da noo de mquina discursiva estrutural (PCHEUX, 1983 apud GADET e HAK, 1997, p. 315, grifos do autor). Nessa fase, comeam a surgir diversas crticas prtica e mtodo das ADs anteriores. Elas condenavam o mtodo harrissiano e traziam luz a

    problemtica da heterogeneidade, cujo entendimento indispensvel ao nosso trabalho. Com relao metodologia aplicada na AD-3, o procedimento por etapas, com ordem fixa, explode

    de modo definitivo. Dominique Maingueneau, cujo referencial terico fundamenta nossa anlise, um dos nomes que mais contriburam para essa fase de renovao da Anlise do Discurso.

    Com essa caracterizao, Michel Pcheux realizou uma espcie de levantamento histrico e autocrtico de trs fases pelas quais teria passado a Anlise do Discurso Francesa.

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    Baseado no texto de Pcheux, o pesquisador Nelson Barros da Costa, no artigo O primado da prtica: uma quarta poca para a anlise do discurso (2005, p. 17 a 48), faz o que ele chama de resenha6 particular das trs pocas caracterizadas pelo francs. Sua resenha

    narra novamente a histria contada por Pcheux, juntando outros critrios queles aplicados por esse autor na caracterizao das pocas (posio terica e conseqncias dos procedimentos). Desse modo, Costa identifica tambm para cada uma das fases a descrio das propostas metodolgicas predominantes, a teoria do sujeito que apia cada poca, o fundamento filosfico que a embasam, os trabalhos mais importantes e as interdisciplinas privilegiadas. Em nosso ver, a resenha de Costa tem grande mrito pela postulao de que vivemos atualmente uma quarta poca da Anlise do Discurso, o que nas palavras desse autor, e com as quais concordamos, o faz ultrapassar os limites do texto de Pcheux.

    Trazemos em seguida, tomando como ponto de partida o artigo de Costa, uma caracterizao breve do que seria a quarta fase da Anlise do Discurso. Nessa fase, ocorre a primazia da prtica.

    Em sua Arqueologia do Saber, Foucault define aquilo que chama de prtica discursiva:

    No podemos confundi-la com a operao expressiva pela qual um indivduo formula uma idia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferncia; nem com a competncia de um sujeito falante, quando constri frases gramaticais; um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma dada poca e para uma determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de exerccio da funo enunciativa (1972, p. 136).

    A noo de prtica discursiva pode ser associada ao conceito prxis, trabalhado pelo marxismo como o conjunto das atividades humanas tendentes a criar as condies indispensveis existncia da sociedade e, especialmente, atividade material, produo.

    Costa lembra que Dominique Maingueneau em sua obra Genses du discours (1984)7, no captulo Do discurso prtica discursiva, chama a ateno para que o discurso no deve ser encarado como um mero conjunto de textos, mas sim enquanto prtica discursiva.

    Com esta noo o autor pensa em articular uma formao discursiva com o funcionamento de grupos que a gerem. Desse modo, para o autor, h um intrincamento entre um discurso e uma instituio relacionada ao funcionamento de comunidades (COSTA, 2005, p. 40).

    6 Outras resenhas em Mussalin (2001) e Possenti (1990).

    7 Traduzida em portugus por Srio Possenti como Gnese dos discursos e publicada em 2005.

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    Maingueneau tomou a expresso prtica discursiva emprestada de Michel Foucault, que introduziu o conceito de prtica ao estudo da discursividade e usa esse termo para referir-se ao sistema de relaes que, para um discurso dado, regula a localizao

    institucional das diversas posies que pode ocupar o sujeito da enunciao (MAINGUENEAU, 2005, p. 143).

    Arrolamos abaixo, consoante Costa (p. 45), as principais caractersticas da quarta poca da AD: a) assujeitamento relativizado, jamais absoluto, pois se leva em conta diversos graus de assujeitamento que vo depender das mais variadas instncias da sociedade; b) interdisciplina privilegiada mltipla, tendendo para a sociologia, etnologia, antropologia, midiologia etc.;

    c) inscries: materialismo histrico e dialtico, dialogismo bakhtiniano; d) rejeio s perspectivas que calam o objeto emprico mediante grades analticas, estatstica, dispositivos formais etc., que implicam a substituio da opacidade lingstica por

    outra;

    e) preferncia por uma anlise qualitativa e interpretativa dos fatos discursivos; a AD um procedimento de leitura metdico e rigoroso; f) procedimentos metodolgicos:

    a unidade de anlise (objeto emprico) o texto (embora no seja o ponto de partida absoluto, j que o pesquisador nunca vai ao emprico neutro ou vazio teoricamente); porm, o(s) texto(s) no pode(m) ser visto(s) como um objeto estanque; um recorte produzido pelo dispositivo terico construdo pelo analista; assim, o texto deve ser considerado como um elo da cadeia do fluxo ininterrupto que a linguagem (BAKHTIN). Esse recorte o corpus;

    o objeto terico o discurso, a discursividade, a interdiscursividade; g) princpios bsicos:

    o discurso um processo em curso; ele no um conjunto de textos mas uma prtica, uma forma de interveno no mundo;

    a prtica discursiva a prtica de sujeitos que s se constituem enquanto tal porque vivem em sociedade; portanto, o primado da prtica tambm o primado do interdiscurso;

    os sujeitos no apenas so singulares e sociais, mas tambm so capazes de intervir no mundo, construindo, destruindo ou lutando para manter instituies;

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    o estudo da discursividade deve perseguir a articulao radical entre uma prtica enunciativa e o lugar social dos sujeitos dessa prtica.

    Como dissemos acima, inicialmente, os primeiros trabalhos da AD operam sobre os

    discursos poltico, socialista e comunista. Mais tarde, outros campos discursivos como o discurso jornalstico e o religioso foram considerados. Com a abertura de um dilogo entre as diversas disciplinas que trabalham com o discurso e entre as diversas correntes de anlise do discurso, os corpora tornaram-se progressivamente diversificados. Hoje, como assinala Costa (2005, p. 45), a 4a. poca passa inclusive pelo abandono da determinao topogrfica que durante tanto tempo marcou o ttulo da disciplina. De tal modo a AD se disseminou no mundo

    que no faz mais sentido falar em Anlise do Discurso Francesa. A Anlise do Discurso internacional.

    1.1.1 Heterogeneidade, Dialogismo e Polifonia

    Vistas, em linhas gerais, as trs fases da AD descritas por Michel Pcheux e a 4 fase

    prenunciada por Nelson Costa, passamos agora a algumas consideraes sobre os conceitos heterogeneidade, dialogismo e polifonia, os quais so fundamentais para a nossa pesquisa.

    Segundo a noo de heterogeneidade, todo discurso tecido a partir do discurso do outro, que o exterior constitutivo, o j dito sobre o qual qualquer discurso se constri. Dessa maneira, toda prtica discursiva constitutivamente heterognea. Atente-se que a noo de heterogeneidade uma forma de precisar teoricamente o conceito bakhtiniano de dialogismo, no qual a linguagem um fenmeno fundamentalmente dialgico:

    Toda enunciao (...) uma resposta a alguma coisa e construda como tal. Toda inscrio prolonga aquelas que a precederam, trava uma polmica com elas, conta com as relaes ativas da compreenso, antecipa-as. Cada inscrio constitui uma parte inalienvel da cincia ou da literatura ou da vida poltica (BAKHTIN, 2004, p. 98).

    Com relao ao fenmeno da polifonia8, cuja noo tambm foi introduzida por Mikhail Bakhtin para estudar a literatura romanesca9, ele consiste na orquestrao de vozes que atravessam o enunciado. O conceito serve para analisar enunciados nos quais vrias vozes

    8 A palavra vem do grego polyphona e significa vrias vozes. Entre os gregos antigos, reunio de vozes ou de

    instrumentos.

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    so percebidas simultaneamente. O caso prototpico o do romance, gnero polifnico por excelncia. Bakhtin usa o conceito de polifonia para definir a forma de um tipo de romance que se contrape ao romance monolgico. O romance polifnico aquele em que cada

    personagem funciona como um ser autnomo com voz, viso de mundo e posio especficas. Podemos afirmar que o conceito de polifonia, para Bakhtin, diz respeito

    especificamente a um domnio verbal ou vocalizado. No entanto, esse termo tambm est relacionado ao campo musical.

    A polifonia musical a utilizao simultnea, em uma composio, de duas ou mais vozes com linhas meldicas distintas. Essas melodias simultneas, embora perfeitamente

    ligadas dentro da mesma tonalidade, conservam uma independncia relativa. Apesar de, num aspecto mais rigoroso, a polifonia englobar o que se chama de homofonia, as duas so

    diferentes. Levando em considerao os estilos musicais, a homofonia conhecida como melodia acompanhada, com a predominncia de uma voz sobre as outras. Assim sendo, o conceito de polifonia deve ser utilizado somente nos momentos em que todas as vozes

    tiverem um mesmo valor dentro de uma estrutura musical10. Os conceitos heterogeneidade, dialogismo e polifonia so essenciais ao nosso trabalho,

    na medida em que analisar os investimentos interdiscursivos das canes de Belchior, relacionando-as s prticas discursivas da literatura e da msica, implica em considerar que essas canes s existem porque dialogam com outros discursos.

    Entre os autores que se destacaram nessa posio de assumir o carter heterogneo do

    discurso, alm de Dominique Maingueneau, podemos salientar as reflexes de Jacqueline Authier-Revuz (1982, 1984, 1990 e 1995), Jean-Jacques Courtine (1981) e desse juntamente a Jean-Mane Marandin (1981). Authier-Revuz parte do dialogismo bakhtiniano para discutir as diversas formas por meio das quais a insero do outro se d na seqncia discursiva.

    Uma das mais significativas contribuies de Authier-Revuz foi a distino entre heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso. A primeira refere-se ao processo de constituio de um discurso e a segunda, ao processo de representao, em um discurso, de sua constituio. A heterogeneidade constitutiva

    intrnseca ao processo da discursividade. Desse modo, no pode ser localizvel na superfcie do discurso. Esse tipo de heterogeneidade refere-se forma de inscrio do outro na

    9 Os textos que serviram de base s suas reflexes acerca desta temtica so os de Fyodor Dostoievski.

    10 O contraponto, uma tcnica usada na composio, essencialmente polifnico, pois cada voz tem a mesma

    importncia na conduo das melodias na pea. Nele, duas ou mais vozes meldicas so compostas levando-se em conta, simultaneamente o perfil meldico de cada uma delas e a qualidade intervalar e harmnica gerada pela sobreposio das duas ou mais melodias.

  • 22

    constituio do discurso, baseando-se na concepo de um sujeito no mais ilusoriamente uno e dono de seu dizer e sim de um sujeito dividido, descentrado, cujo dizer no lhe pertence de todo, pois construdo pelo j-dito de outros enunciadores pertencentes a variados mundos discursivos. Todos esses dizeres fundem-se, sendo quase impossvel determinar onde termina um e comea o outro. Por outro lado, a heterogeneidade mostrada a forma apreensvel da

    representao do outro num discurso aparentemente uno. Authier-Revuz fala de duas formas de heterogeneidade mostrada: a marcada e a no-marcada. A primeira delas tem esse nome porque indicada, de forma explcita, com a utilizao de marcas, sejam tipogrficas ou discursivas. Como exemplos, temos o uso das aspas, do itlico e do discurso direto. J o

    segundo tipo de heterogeneidade mostrada chamado no-marcado porque se manifesta de modo implcito, isto , s identificado pela mobilizao da cultura do leitor. Como

    exemplos, temos o plgio, a aluso, a pardia, a ironia, o pastiche. Jacqueline Authier-Revuz afirma ainda que as diferentes formas de heterogeneidade

    podem ser mostradas no discurso, marcadamente ou no, por meio da autonmia simples e da modalizao autonmica. Esses dois processos so abordados na seo referente s relaes metadiscursivas (seo 1.2.3).

    Todos esses tipos de heterogeneidade mostrada revelam as diversas formas de relacionamento do sujeito discursivo com a palavra alheia e so eles o objeto de nossa investigao.

    1.1.2 Primado do interdiscurso e contribuies de Dominique Maingueneau

    Voltemos agora para as contribuies do terico principal que fundamenta nosso trabalho. Maingueneau, no que se refere relao interdiscursiva, proclama o primado do interdiscurso sobre o discurso: a unidade de anlise pertinente no o discurso, mas um espao de trocas entre vrios discursos convenientemente escolhidos (2005, p. 21).

    Essa afirmao pode ser interpretada de duas formas. A primeira indica que o estudo da especificidade de um discurso se faz colocando-o em relao com outros discursos. Na

    segunda, o interdiscurso passa a ser o espao de regularidade pertinente, do qual os diversos discursos no seriam seno componentes. Conseqentemente, a concepo de FD implica sua relao com o interdiscurso, a partir do qual ela se define:

    O interdiscurso consiste em um processo de reconfigurao incessante no qual uma formao discursiva conduzida (...) a incorporar elementos preconstrudos produzidos no exterior dela prpria; a produzir sua

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    redefinio e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrana de seus prprios elementos, a organizar sua repetio, mas tambm a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegao (COURTINE e MARANDIN, 1981 apud BRANDO, 2002, p. 74).

    Portanto, cabe ao analista do discurso o papel de apreender no s uma formao

    discursiva, mas tambm a interao entre FDs, uma vez que a identidade discursiva se constri na relao com o outro, presente lingisticamente ou no no intradiscurso11.

    Para compreendermos o que vem a ser interdiscurso, preciso recorrer a trs noes complementares: universo discursivo, campo discursivo e espaos discursivos (MAINGUENEAU, 2005, p. 35-36).

    O universo discursivo constitudo pelo conjunto de formaes discursivas de todos os tipos que interagem numa dada conjuntura. Ele representa um conjunto acabado que, por sua amplitude, no pode ser apreendido em sua globalidade; por isso, apresenta pouco

    interesse ao analista, servindo apenas para definir o horizonte a partir do qual sero construdos domnios suscetveis de serem estudados, os campos discursivos.

    O campo discursivo constitudo por um conjunto de formaes discursivas que se encontram em concorrncia, delimitam-se reciprocamente em uma regio determinada do universo discursivo. Concorrncia entendida, aqui, de maneira mais ampla, como o enfrentamento aberto, a aliana, a indiferena entre discursos que possuem a mesma funo

    social e se diferenciam pela maneira de exerc-la. Seriam campos discursivos o religioso, o poltico, o filosfico, o dramatrgico etc. Como, em geral, no possvel estudar um campo

    discursivo em sua integralidade, o analista extrai dele subconjuntos ou subcampos, os espaos discursivos, constitudo de posicionamentos discursivos que mantm relaes particulares fortes.

    Os espaos discursivos so recortes discursivos que o analista isola no interior de um dado campo discursivo tendo em vista propsitos especficos de anlise. Para realizar esses recortes, fundamental um conhecimento e um saber histrico que permitiro levantar hipteses, as quais sero confirmadas ou no ao longo da pesquisa. Como exemplos de espao

    discursivo, temos o caso dos discursos humanista devoto e jansenista, espaos discursivos pertencentes ao campo discursivo religioso.

    Feitas as consideraes sobre o primado do interdiscurso, explanaremos, ento, como Maingueneau relaciona as condies de produo12 de um discurso a sua formao

    11 Ope-se intuitivamente o intradiscurso, relaes entre os constituintes do mesmo discurso, a interdiscurso,

    relaes desse discurso com os outros discursos. Porm, esses dois universos no so independentes. O princpio

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    discursiva. O autor prope a imbricao entre esses dois conceitos, ou seja, qualquer produo discursiva supe suas condies de realizao. O terico prefere falar, ento, em prtica discursiva, noo que integra a formao discursiva uma espcie de dimenso linguageira da discursividade comunidade discursiva, composta por todos os agentes que participam de uma dada prtica discursiva.

    Uma caracterstica essencial de toda prtica discursiva o estabelecimento de um posicionamento, que se refere relao que o sujeito mantm com o contexto discursivo. Veremos adiante (seo 1.3) mais informaes sobre esse conceito.

    1.2 A intertextualidade

    Pode-se vislumbrar que foi Mikhail Bakhtin, em A Potica de Dostoivsky (1970), quem estabeleceu o esboo da primeira teoria do funcionamento intertextual da narrativa, mais especificamente do romance. Destarte, todos os sentidos possveis que o conceito intertextualidade adquiriu, a partir da dcada de 60, encontram-se j preestabelecidos na obra bakhtiniana, entre os quais multidiscursividade, pluridiscursividade, dialogismo e polifonia. Salientamos, contudo que existem diferenas significativas para cada um desses conceitos.

    Kristeva (1970), ao prefaciar a traduo francesa de A Potica de Dostoivsky diz que a intertextualidade constitutiva do romance, de acordo com Bakhtin, definida como o cruzamento de superfcies textuais, dilogos de vrias escrituras [...] todo texto absoro e transformao de outro texto.

    No Brasil e no mbito da lingstica de texto, Koch (1986) postulou uma ampliao do conceito intertextualidade, tal como tinha sido proposto por Beaugrande-Dressler (1981). A autora prope a distino entre uma intertextualidade em sentido amplo e outra em sentido estrito.

    A primeira ocorre sempre de modo implcito e est presente em todo e qualquer tipo

    de texto. Vista por esta forma, a intertextualidade em sentido amplo aproxima-se da noo de heterogeneidade constitutiva, como a entende Authier-Revuz (1984). Para esse tipo de intertextualidade, Ingedore Koch reserva o nome de interdiscursividade.

    do dialogismo e a questo da heterogeneidade constitutiva mostram que o intradiscurso atravessado pelo interdiscurso (MAINGUENEAU e CHARAUDEAU, 2004, p. 290). 12

    Essa expresso tambm usada como uma variante de contexto, mas cada vez menos empregada, pois minimiza a dimenso interacional do discurso.

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    A intertextualidade em sentido estrito, segundo Ingedore Koch, pode ser vista de forma implcita ou explcita. A intertextualidade implcita aproxima-se da noo de polifonia, que a partir de Mikhail Bakhtin foi tratada por Ducrot (1980) e por outros autores. J a explcita, nem sempre presente nos textos, identificada pelas citaes, referncias, retomadas do texto do locutor, discurso relatado etc.

    Pigay-Gros no livro Introduction lintertextualit (1996) elaborou uma sntese das teorias da intertextualidade e props uma sistematizao. A autora trabalha com a teoria da intertextualidade de autores franceses, principalmente na perspectiva do texto literrio

    francs. Ela chama a ateno para algumas idias que marcaram a histria da intertextualidade:

    ... Lhsitation est constante entre une approche de l'intertextualit qui met l'accent sur la dynamique et le processus qui la caractrisent, au risque de dissoudre totalement l'objet intertexte, dissmin par la productivit, ou sur la saisie de l'intertexte dans son objectivit; la tension se place entre un intertexte explicite, clairement dmarqu et donc isolable, et la prsomption d'un intertexte implicite, difficile reprer et dont l'objectivit pose galement la question des limites de l'intertextualit (PIGAY-GROS, 1996, p. 15)13.

    Pigay-Gros (idem) afirma que foi Julia Kristeva em Smiotik (1969) a primeira a abordar a intertextualidade, considerando-a essencialmente como uma permutao de textos. Desse modo, o texto seria

    une combinatoire, le lieu dun change constant entre des fragments que lcriture redistribue en construisant un texte nouveau partir de textes antrieurs, dtruits, nis, repris. (...) Lintertextualit, pour Kristeva, ne signifie jamais le mouvement par lequel un texte reproduit un texte antrieur (...), mais un processus indfini, une dynamique textuelle. (...) lintertextualit est non pas une imitation ou une reproduction, mais une transposition dun ou plusieurs systmes de signes en un autre (PIGAY-GROS, 1996, p. 10-11)14.

    13 A hesitao constante entre uma abordagem da intertextualidade que coloca acento sobre a dinmica e o

    processo que a caracterizam, ao risco de dissolver totalmente o objeto intertexto, disseminado pela produtividade, ou sobre a captura do intertexto na sua objetividade; a tenso coloca-se entre um intertexto explcito, claramente demarcado e, portanto, isolvel, e a presuno de um intertexto implcito, difcil de ser recuperado e do qual a objetividade pe igualmente a questo dos limites da intertextualidade (traduo nossa). 14

    O texto uma combinatria, o lugar de uma troca constante entre fragmentos que a escritura redistribui na construo de um novo texto a partir de textos anteriores, os quais so decompostos, negados, retomados. (...) A intertextualidade, para Kristeva, no se reduz ao movimento pelo qual um texto reproduz um texto anterior (...); mais do que isso envolve um processo indefinido, uma dinmica textual. (...) A intertextualidade no uma simples imitao ou uma reproduo de textos, mas a transposio de um ou de mais sistemas de signos em outro (traduo nossa).

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    Aqui, reforamos a constatao de Costa (2001, p. 24) de que Kristeva, ao assumir essa posio, coloca-se na perspectiva daquilo que Authier-Revuz intitula heterogeneidade constitutiva. Assim, o intertexto, enquanto objeto, estaria to espalhado no espao discursivo que sua identificao e classificao seriam inteis.

    1.2.1 A proposta de Grard Genette (1989)

    J para Genette, em seu Palimpsestos, a intertextualidade apenas um dos elementos que compem a prtica discursiva literria.

    El objeto de la potica () no es el texto considerado en su singularidad () hoy yo dira que este objeto es la transtextualid o transcendencia textual del texto () todo lo que pone al texto en relacon, manifesta o secreta, con otros textos (p. 9-10).

    Esse autor afirma que o objeto de uma teoria do texto literrio no o texto considerado em sua singularidade, mas tudo o que pe o texto em relao manifesta ou secreta com outros textos. o que ele chama de transtextualidade (relaes transtextuais) ou transcendncia textual do texto, a qual abrange cinco outras relaes (p. 9-17):

    a) intertextualidade: relao de co-presena entre dois ou mais textos, ou seja, a presena efetiva de um texto em outro, sendo sua forma mais explcita a citao e a mais

    implcita o plgio; a aluso estaria no meio dessas duas como uma forma menos explcita e menos literal;

    b) paratextualidade: relao que um texto propriamente dito mantm com o seu paratexto (ttulo, subttulo, interttulo, prefcio, eplogo, advertncia, prlogo, epgrafes, ilustraes etc.); raramente um texto, especialmente o escrito, aparece isolado; quase sempre acompanhado por outros textos que o contextualizam;

    c) metatextualidade: relao geralmente chamada comentrio que une um texto a outro, estabelecida quando um texto fala/comenta (de) outro, sem necessariamente cit-lo ou nome-lo; a metatextualidade por excelncia a relao crtica, analtica, interpretativa;

    d) hipertextualidade: toda relao que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto), ou seja, uma relao de derivao entre um determinado texto (hipotexto) e um outro (hipertexto), que construdo a partir dele; como exemplos, o que acontece no caso da pardia e do pastiche;

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    e) arquitextualidade: relao que um texto mantm com o gnero de discurso no qual ele pretende se enquadrar; desse modo, fazer uma novela ou um poema desde j contrair uma relao com outros textos do mesmo gnero; a percepo genrica importante na medida em que orienta e determina o horizonte de expectativas do leitor e, portanto, a recepo da obra.

    Como visto, a noo de intertextualidade para Genette bastante restritiva, excluindo casos clssicos de fenmenos intertextuais como a referncia, o pastiche e a pardia.

    1.2.2 A proposta de Pigay-Gros (1996)

    Levando em conta a concepo para intertextualidade de Genette (1989) restrita demais e a de Kristeva (1969) que excessivamente ampla, Nathalie Pigay-Gros faz a seguinte observao:

    Pour tre (...) pertinente l'analyse (...) la notion (d'intertextualit) ne doit tre ni l'objet d'une extension excessive toute trace d'htrognit serait une marque intertextuelle , ni d'une restriction abusive seules importeraient les formes explicites; qu'il faudrait examiner indpendamment de toute rfrence l'auteur et l'Histoire (p. 41)15.

    Pigay-Gros, ento, prope a abordagem desses fenmenos intertextuais como estratgias de escrita deliberada, que podem ser identificveis em meio heterogeneidade

    constitutiva de todo discurso. Esses procedimentos intertextuais tanto exigem que o autor/sujeito discursivo tenha conscincia de sua escrita quanto dos efeitos de sentido resultantes dessas estratgias, entre os quais o cmico e o satrico.

    Les effets de sens qu'elles produisent, assurment distincts de l'intention de l'auteur, ne peuvent tre ngligs: citer, faire une allusion, parodier..., c'est aussi rechercher la satire, le comique, dtourner la signification, malmener l'autorit, renverser l'idologie. (...) certains procds intertextuels, le pastiche par exemple, exigent que l'auteur ait une conscience aigu de sa propre criture et contrle avec une trs grande prcision la part d'htrognit qu'elle inclut (PIGAY-GROS, 1996, p. 40)16.

    15 Para ser pertinente anlise (...) a noo (de intertextualidade) no deve ser nem objeto de uma extenso

    excessiva todo trao de heterogeneidade seria uma marca intertextual nem de uma restrio abusiva somente importariam as formas explcitas; que seria necessrio examinar independentemente de qualquer referncia ao autor e Histria (traduo nossa). 16

    Os efeitos de sentido que elas produzem, seguradamente distintos da inteno do autor, no podem ser negligenciados: citar, fazer uma aluso, parodiar..., tambm procurar a stira, o cmico, desviar a significao, maltratar a autoridade, inverter a ideologia. (...) certos procedimentos intertextuais, o pastiche (sic) por exemplo, exigem que o autor tenha uma conscincia apurada de sua prpria escritura e um controle com uma enorme preciso da parte de heterogeneidade que ele inclui (traduo nossa).

  • 28

    Como j adiantamos linhas atrs, Pigay-Gros em Introduction lintertextualit (1996) organizou uma tipologia da intertextualidade17, a qual pode ser conferida na tabela abaixo.

    Relaes intertextuais

    Relaes de co-presena

    Citao Referncia

    Plgio Aluso

    Relaes de derivao

    Pardia

    Travestismo burlesco

    Pastiche

    Pigay-Gros distingue, de acordo com Genette, dois tipos de relaes intertextuais: aquelas baseadas numa relao de co-presena entre dois ou mais textos e aquelas

    fundamentadas numa relao de derivao de um ou diversos textos a partir de um texto matriz. A autora faz tambm uma oposio entre relaes implcitas (estabelecida com a ausncia de qualquer sinal de heterogeneidade; compete ao leitor perceb-las e colocar em evidncia o intertexto) e relaes explcitas (assinalada por um cdigo tipogrfico, ou, no plano semntico, pela meno ao ttulo da obra ou do seu autor).

    So consideradas relaes de co-presena explcitas a citao e a referncia; j o plgio e a aluso so formas implcitas de intertextualidade.

    Vejamos cada uma delas. A citao acontece quando um texto inserido literalmente em outro. Ela d

    visibilidade insero de um texto no outro por meio de cdigos tipogrficos, entre eles o deslocamento da citao, o emprego de caracteres em itlico ou aspas, os quais materializam

    essa heterogeneidade. A citao a forma mais emblemtica da intertextualidade porque ela caracteriza de um modo nitidamente perceptvel um estatuto do texto dominado pela heterogeneidade e pela fragmentao.

    Uma das principais funes da citao a da autoridade, pois citar um texto permite reforar o efeito da verdade de um discurso presente no texto citante, autenticando-o. No

    17 Captulos 1 (As relaes de co-presena) e 2 (As relaes de derivao) da segunda parte do livro.

  • 29

    entanto, a citao ultrapassa as funes tradicionais que lhe so atribudas, a da autoridade e a da ornamentao.

    A referncia, bem como a citao, remete o leitor a um outro texto sem, necessariamente, expor de modo literal as palavras do texto remetido. Podem ser evocados ttulos, personagens, lugares, pocas etc. de outros textos.

    O plgio uma espcie de citao no marcada, ou seja, h a citao sem que haja a indicao de que isto foi feito; plagiar um texto , portanto, cit-lo sem informar que no somos o seu autor. Na contemporaneidade, quanto mais literal e longa for a utilizao de outro texto, tanto mais ser condenvel o ato. A prtica do plgio, cujas metforas habituais so o furto e o roubo, est sujeita condenao ao mesmo tempo moral e jurdica, pois considerada um tipo de atentado propriedade literria, uma fraude que pe em cheque tanto

    a honestidade do plagiador, como as regras do funcionamento que regem a circulao dos textos. A citao est estreitamente ligada ao plgio, pois o que os diferencia o simples fato de marcar/indicar o emprstimo.

    Na aluso, o texto referente no retomado literalmente; surge como mais discreta e sutil por no ser nem literal nem explcita. O que h um jogo de sugesto, no qual o leitor deve mobilizar sua memria e inteligncia para que possa recuperar o texto aludido. Essa recuperao realizada por meio de alguns ndices, entre os quais palavras, um formato textual, um tom, um estilo. Sem quebrar a continuidade do texto, a aluso, segundo Nodier,

    est une manire ingnieuse de rapporter son discours une pense trs connue, de sorte quelle diffre da la citation en ce quelle na pas besoin de stayer du nom de lauteur, qui est familier tout le monde, et surtout parce que le trait quelle emprunte est moins une autorit, comme la citation proprement dite, quon un appel adroit la mmoire du lecteur, quil transporte dans un autre ordre de choses, analogue celui dont il est question18 (NODIER, 1828 apud PIGAY-GROS, 1996, p. 52).

    J para Fontanier19, a aluso consiste (...) em faire sentir le rapport dune chose quon dit avec une autre quon n edit pas20 (apud PIGAY-GROS, 1996, p. 52).

    18 uma maneira engenhosa de relacionar ao seu discurso um pensamento muito conhecido, de tal sorte que ela

    se diferencia da citao, por no precisar se apoiar no nome do autor, que familiar a todo mundo, e, sobretudo, porque o trao que ela empresta menos uma autoridade, como na citao propriamente dita, do que um apelo hbil dirigido memria do leitor, que ele transporta a uma outra ordem de coisas, anloga quela da qual trata (Questions de littrature lgale, Crapelet, 1828, traduo nossa). 19

    Les figures du discours, Flamarion, 1977. 20

    A aluso consiste em fazer perceber a relao de uma coisa que se diz com uma outra que no se diz (traduo nossa).

  • 30

    importante observar que a aluso ultrapassa o campo da intertextualidade, pois a coisa aludida nem sempre pertence ao campo literrio. Segundo Fontanier, podemos nos remeter por meio da aluso a elementos ligados histria, mitologia, opinio ou aos costumes. Alm desses trs tipos, ele fala ainda da aluso verbal, que diz respeito a um jogo de palavras, como sugere a etimologia da palavra aluso: em latim, alllusio vem da forma verbal ludere (brincar, jogar).

    No mbito do nosso trabalho, s analisamos as aluses feitas a elementos (ttulos, trechos de textos literrios ou musicais) exclusivamente verbais pertencentes a outros textos.

    Na medida em que a aluso, enquanto remisso indireta literatura, especfica,

    mobilizada de modo particular a memria do leitor. Ou seja, ela se fundamenta como um elemento ldico, pois o leitor deve apreender nas entrelinhas aquilo o que o autor no lhe diz

    diretamente. Sendo assim, a aluso ser mais eficaz se colocar em jogo um texto conhecido, cuja associao com o texto que promove a aluso pode ser feita apenas com uma ou duas palavras.

    Passemos agora para as relaes de derivao, que unem um texto a outro. Os dois grandes tipos de relao de derivao so a pardia e o pastiche, sendo que o primeiro se

    baseia numa transformao, e o segundo, numa imitao do texto base ou hipotexto. Pigay-Gros fala tambm, a partir de Genette (1989), da relao entre a pardia e o travestismo burlesco. No entanto, afirma que essas duas formas devem ser distinguidas. Desse modo, alm da pardia e do pastiche, Pigay-Gros considera o travestismo burlesco como um outro tipo de relao de derivao.

    A pardia acontece quando imitada a estrutura de um texto, modificando-se o assunto tratado; ou quando estrutura e assunto so retomados em outros contextos com o

    objetivo de produzir a carnavalizao e o ldico. Ela transforma o contedo de um texto, podendo conservar seu estilo. Quanto mais se aproximar do texto que ela deforma, mais eficaz ser a pardia. A forma pardica considerada como a mais elegante porque a mais econmica (GENETTE, 1989 apud PIGAY-GROS, 1996, p. 57), a retomada literal de uma passagem inserida num outro contexto, como por exemplo, o uso de um verso trgico em um contexto cmico. Mesmo que o estilo e a forma do texto referido se mantenham, a

    mudana no contexto traduz uma mudana de assunto, que provoca um desvio ldico do sentido (PIGAY-GROS, 1996, p. 58). Nesse caso, a deformao vem da organizao de um outro texto.

  • 31

    La parodie peut donc consister en une simple citation; rciproquement, selon Michel Butor, toute citation est dj une forme de parodie, le dcoupage dun fragment, son dplacement dans un contexte indit tendant toujours en fausser le sens21 (ver LAntologie, p.174) (idem, ibidem).

    O travestismo burlesco baseado na reescritura de um estilo a partir de uma obra

    cujo contedo conservado. Diferentemente da pardia, retoma o tema, mas se afasta muito da estrutura do texto do qual se desvia. Enquanto a pardia se fundamenta numa modificao

    do hipotexto, em geral a mais econmica possvel, o travestismo burlesco prolixo. Sua eficcia depende do reconhecimento do texto parodiado. O travestismo burlesco se baseia em uma relao entre gneros e seus correspondentes nveis de estilo. Por exemplo, um tema nobre como o da epopia deve ser tratado num estilo elevado; um gnero intermedirio num

    estilo sbrio; e um tema simples num estilo despojado. Desse modo, a disparidade entre o tipo de tema e o registro estilstico no qual trabalhado provoca efeitos do tipo cmico e satrico.

    O texto se traveste como se fosse um rei disfarado de mendigo (idem, ibidem, p. 61). Entre as funes do travestismo burlesco, alm da dessacralizao, est a atualizao

    de textos antigos em um registro comum, o que faz com que esses textos sejam acessveis a outro tipo de pblico.

    O pastiche acontece quando h a imitao de um estilo com a utilizao da mesma forma do texto imitado. J o contedo pode ser diferente, pois o pastiche no implica nenhum

    respeito ao tema do texto imitado. O pastiche no opera sobre um texto particular ou uma obra especfica, mas sobre uma maneira (particularidade) textual que perpassa diferentes textos de um mesmo autor. No pastiche, no h a retomada literal de um texto, como ocorre na pardia. Assim, o imitador se preocupa muito mais com o tom do autor do que com as falas propriamente ditas; o que torna o pastiche essencialmente formal. Essa prtica exige do leitor um conhecimento do estilo imitado, a condio necessria ao seu reconhecimento.

    1.2.3 A proposta de Costa (2001): relaes intertextuais, interdiscursivas e metadiscursivas

    Nelson Costa, em sua tese de doutoramento, afirma que as teorias acerca da heterogeneidade, dialogismo e polifonia, bem como os estudos feitos sobre a

    intertextualidade, tm o objetivo de investigar relaes especficas entre textos (relaes

    21 A pardia pode, ento, consistir em uma simples citao; reciprocamente, segundo Michel Butor, toda citao

    j uma forma de pardia, a decomposio de um fragmento, seu deslocamento num contexto indito, tendendo sempre a falsear o sentido (traduo nossa).

  • 32

    intertextuais), entre discursos (relaes interdiscursivas) e entre o sujeito e seu discurso (relaes metadiscursivas). So esses trs tipos de relao que resumimos abaixo.

    Relaes intertextuais

    Costa (2001) chama a ateno para o fato de que as relaes de co-presena, descritas por Pigay-Gros, caracterizam-se por utilizar partes de outros textos, o que ocorre de diversas maneiras. Isso quer dizer que se um texto cita, refere- se, alude ou plagia (a) outro, mesmo assim, ele autnomo em relao ao texto retomado. Por outro lado, essa independncia no acontece nas relaes de derivao; seus trs tipos (pardia, travestismo e pastiche), alm de operarem sobre produes textuais consagradas, envolvem textos cuja existncia s possvel devido ao texto derivante.

    Costa (2001, p. 28) utiliza a classificao de Pigay-Gros, ao analisar as relaes intertextuais. Entretanto, faz algumas ressalvas no que se refere tipologia apresentada por essa autora, e s quais descrevemos abaixo.

    a) A intertextualidade um exerccio corrente em qualquer prtica discursiva (literria, cientfica, religiosa etc.) e no se restringe ao campo literrio, como sugere o trabalho de Pigay-Gros.

    b) O texto reportado pode ser de tamanho diverso e se apresentar de modo fragmentado. Podem ser retomadas palavras, expresses, frases ou textos completos.

    c) A categoria travestismo burlesco por parecer muito especfica ao discurso literrio praticamente ignorada no trabalho de Costa.

    d) O conceito de pardia, como observa Maingueneau (1997, p. 102), tem a desvantagem de ter historicamente adquirido um sentido depreciativo.

    Costa (idem, ibidem) prope ainda uma modificao da segunda categoria da classificao de Pigay-Gros, qual seja a de relaes de derivao. Usa o que sugere Maingueneau (idem, ibidem), que prefere cham-las de relao de imitao. A imitao se liga a dois valores opostos: a captao e a subverso. A primeira acontece quando um locutor incorpora, de forma explcita, a estrutura de um enunciado, com o objetivo de beneficiar-se da autoridade desse. Ela se difere do plgio, porque aquele que usa a imitao captativa, como pretende marcar uma filiao a um estilo, escola ou doutrina esttica, mostra claramente sua atitude intertextual. J na subverso, o enunciador imita um texto com o objetivo de desqualific-lo. A imitao, seja captativa ou subversiva, s ter efeito com a cooperao do

  • 33

    leitor ou ouvinte. Costa considera a pardia uma imitao subversiva e o pastiche, uma imitao captativa. Ento, o pesquisador (p. 29), a partir do esquema elaborado por Pigay-Gros (1996) para as relaes intertextuais, prope o seguinte quadro22:

    Relaes intertextuais

    Relaes de co-presena

    Citao Referncia

    Plgio Aluso

    Relaes de imitao

    Captativa Pastiche, estilizao

    Subversiva Pardia

    No entanto, na anlise do corpus de sua tese, Costa s trabalha com a citao, a referncia, a aluso e a pardia.

    Relaes interdiscursivas

    As relaes interdiscursivas consistem nas relaes da enunciao com o

    interdiscurso, isto , com o suposto exterior discursivo. Aqui o sentido de interdiscurso estrito, pois se refere ao interdiscurso enquanto sistemas discursivos annimos (modos de dizer, gneros, regras, frmulas, formaes discursivas etc.) que circulam na sociedade e compem uma memria.

    Assim, quando uma determinada formao discursiva faz uso de expresses populares, quando utiliza termos habitados por outras esferas, registros discursivos e at mesmo lingsticos, ou ainda quando se reporta a ethos, gestos e esquemas discursivos de outras prticas discursivas, temos relaes interdiscursivas ou interdiscursividade (COSTA, 2001, p. 29, grifos nossos).

    Portanto, o objeto da interdiscursividade no o texto em si, e sim cenografias, ethos, palavras, cdigos de linguagem, gneros etc. pertencentes a outros textos.

    22 Atualmente, Costa j realizou modificaes nesse esquema, as quais no vo ser comentadas aqui.

  • 34

    Ento, a partir da reformulao dos mecanismos intertextuais esquematizados por Pigay-Gros, Costa (2001, p. 30) prope o seguinte esquema, adaptado para as relaes interdiscursivas23:

    Relaes interdiscursivas

    Relaes de co-presena

    Referncia cenografia validada;

    ethos; palavras

    cdigos de linguagem;

    gneros etc.

    Aluso

    Relaes de imitao

    Captativa

    Subversiva

    A referncia interdiscursiva acontece quando um texto pertencente a uma formao discursiva comenta, representa, descreve, em suma, refere-se de alguma maneira a outra formao discursiva ou ao interdiscurso.

    A aluso interdiscursiva uma maneira engenhosa de se referir palavra ou

    linguagem do exterior discursivo, utilizando-se de recursos como o jogo de palavras, a implicitao e o disfarce, dentre outros.

    A captao interdiscursiva ocorre, por exemplo, quando um texto representa cenografias validadas ou um ethos pertencentes a outras prticas discursivas para legitimar seu discurso. o caso de um professor que, ao dar a sua aula, imita a postura do cientista.

    A subverso interdiscursiva se d quando textos incorporam parodicamente cenrios validados, ethos, cdigos de linguagem etc. de outras formaes discursivas para subvert-los, legitimando-se por oposio.

    Costa ressalta que a interdiscursividade tambm pode est ligada a uma nica palavra. Na interdiscursividade lexical, a palavra que promove a remisso a uma outra realidade de enunciao. o que acontece no caso da metfora, da polissemia e da argumentao, as quais precisam ser vistas sob uma concepo discursiva e dialgica, pois esses mecanismos envolvem a tenso entre vozes diferentes, pertencentes a universos discursivos tambm

    23 Costa j prope modificaes a esse esquema, as quais no vo ser comentadas aqui.

  • 35

    diversos. Dessa maneira, a palavra funcionaria como um link, por ligar duas formaes discursivas diferentes.

    Para explicar o mecanismo da metfora, Costa usa o exemplo da palavra sedimentado.

    Quando um economista afirma que no processo histrico de formao econmica do Nordeste, as particularidades demogrficas, econmicas e ecolgicas de cada regio (sic) se articularam dentro de um sedimentado sistema de relaes sociais..., a metfora efetuada pelo uso da palavra sedimentado evoca uma outra prtica discursiva em que palavra sedimentao usada como significando o processo pelo qual substncias minerais ou rochosas, ou substncias de origem orgnica, se depositam em ambiente aquoso ou areo: a prtica discursiva das cincias geolgicas. A metfora ento acaba funcionando como encruzilhada de vozes, fazendo ouvir no apenas a voz da prtica discursiva qual pertence o discurso, mas a voz de uma prtica pertencente a outra regio discursiva (p. 31).

    J a polissemia diz respeito capacidade de uma mesma palavra poder evocar diferentes sentidos.

    Nesse momento, Costa retoma o artigo de Eni Orlandi, a Tipologia de discurso e regras conversacionais24, no qual a autora afirma que o fato de haver dominncias e tendncias entre os sentidos das palavras est relacionado s condies de produo dos

    discursos. Segundo a autora, no existe um sentido central para as palavras, j dado previamente. O que h um sentido literal, oficializado e institucionalizado. Portanto, existem

    diversos sentidos possveis para um mesmo item lexical. Como em determinadas condies de produo, h o domnio de um sentido sobre os outros, Orlandi prope uma tipologia de discurso que tem como critrio a tolerncia para com a polissemia, de acordo com as

    condies de produo (COSTA, p. 32). Sendo assim, existiriam trs tipos de discurso: o ldico, o polmico e o autoritrio. O primeiro privilegia a pluralidade de sentidos e tende a apagar a dominncia de um dos sentidos em relao aos outros (idem); no segundo, ocorre uma disputa entre os sentidos, em que o privilgio conferido a um deles negociado e fundamentado (idem); j o ltimo absolutiza um dos sentidos em jogo (idem), fazendo com que ele seja o nico. No que se refere atuao da polissemia, no discurso ldico ela aberta (como acontece na poesia), no discurso polmico controlada (como em um debate) e no discurso autoritrio contida.

    24 Publicado em Orlandi, 1987, p. 149.

  • 36

    Com relao argumentao, Costa afirma que esse fenmeno articula no apenas dois ou trs contedos, mas duas ou mais vozes ou discursos, ou ainda posies enunciativas (idem). Para ilustrar esse caso, usa o exemplo25 da semntica argumentativa de Guimares (1995, p. 79). Esse autor analisa a frase Os incidentes de Leme envergonham o pas, mas o pas no parece estar envergonhado. A nao no est tomada por um sentimento doloroso de estupor ou indignao da seguinte maneira:

    r= Os incidentes de Leme envergonham o pas, mas p = o pas no parece estar envergonhado.

    q = A nao no est tomada por um sentimento doloroso de estupor ou indignao. (no-r)

    Uma anlise semntico-argumentativa diria que o vocbulo mas serve para unir dois argumentos (p e q) com o objetivo de refutar, retificar ou justificar a recusa de r. Por outro lado, uma anlise discursiva consideraria os dois argumentos como duas posies discursivas presentes na sociedade:

    ...este movimento argumentativo pode ser adequadamente apreendido e explicado a partir da considerao do interdiscurso na enunciao e, portanto, na argumentao. Esta seqncia de texto cruza dois discursos que caracterizo sem maiores precises como: o da comodidade do brasileiro, de um lado, e, de outro, o dos direitos e deveres da cidadania. Pode-se dizer que o texto apresenta o discurso da comodidade do brasileiro como predominante e isto dirige o funcionamento das relaes argumentativas. Por outro lado, pode-se dizer que o lugar do sujeito-autor assume o discurso dos direitos e deveres da cidadania. Ou seja, o autor-jornalista apresenta-se como determinado pelo discurso da comodidade do brasileiro, ao mesmo tempo em que a fora do discurso da cidadania contra a violncia do Estado (um dever da cidadania) determina este outro lugar, que se apresenta como pessoal (GUIMARES, 1995, p. 80 apud COSTA, 2001, p. 33).

    Nesse caso, argumentar vai alm do gesto de relacionar dois ou mais discursos. Esse processo consiste (principalmente) em induzir a que um deles seja interpretado como concluso e o(s) outro(s) como argumento, atitude essa que indica uma posio do enunciador no interdiscurso.

    25 Publicado na Revista Senhor, 279, 22 jul de 1986, p. 22.

  • 37

    Relaes metadiscursivas

    Veremos agora as relaes metadiscursivas ou metadiscursividade. Authier-Revuz (1995) prope chamar as relaes metadiscursivas de relao de conotao ou modalizao autonmica. A autonmia, que pode ser simples e complexa, manifesta a propriedade que a linguagem tem de falar de si mesma. No emprego autonmico, o enunciador refere-se aos signos propriamente ditos (Gato um substantivo masculino). Esse emprego ope-se ao uso corrente, em que as palavras referem-se a qualidades externas linguagem (O gato preto).

    A autonmia simples diz respeito ao processo pelo qual um fragmento do discurso por ele mencionado em meio aos outros elementos lingsticos por ele usados. Esse processo, que se caracteriza pela quebra sinttica, inclui o discurso direto (Z disse: X) e outras formas de meno por meio de um gesto metalingstico (A palavra X; A expresso Z).

    Na autonmia complexa, o fragmento designado como um outro integrado cadeia discursiva sem ruptura sinttica.

    O que Authier-Revuz (1990) chama de modalizao autonmica diz respeito propriedade que tem o enunciador de interromper o fio da narrao e comentar sua prpria fala enquanto ela est sendo produzida; ela supe um movimento reflexivo em que o locutor opacifica seu prprio dizer, isto , suspende a obviedade ou transparncia de determinada palavra ou expresso de seu discurso, ao tom-la como objeto. Em poucas palavras, o enunciador usa e menciona o signo ao mesmo tempo. Na frase um marginal, como se diz hoje em dia, a palavra marginal utilizada ao mesmo tempo como um falar sobre o mundo (marginal = indivduo margem da sociedade) e sobre o signo marginal (COSTA, 2001, p. 44).

    Nesses casos, Costa (2001, p. 35) observa que a heterogeneidade consiste em: 1. cumular duas estruturas semiticas hierarquizadas: inicialmente relaciona-se um signo a um

    referente (semitica denotativa) e, depois, toma-se este signo como referente (semitica metalingstica); 2. efetuar-se como falando das coisas com palavras; representar-se fazendo isto; e representar,

    por meio da autonmia, a forma desse fazer (MAINGUENEAU, 2001, p. 33); 3. alm desse desdobramento do sujeito enunciativo, existe tambm o remeter-se a uma outra fonte enunciativa26 em relao qual o discurso pretende afirmar sua identidade e unidade.

    26 Ponto a partir do qual se originam os discursos. Essas fontes podem associar-se ao locutor, ao enunciador ou

    ao autor de um discurso.

  • 38

    Neste ltimo caso, a alteridade pode ser representada por: a) uma outra lngua (al dente, como dizem os italianos); b) um outro registro discursivo (familiar, vulgar etc.: para usar uma palavra dos jovens de hoje em dia); c) um outro discurso (tcnico, poltico, marxista etc.: ... significante, no sentido que a lingstica estrutural confere ao termo...); d) uma outra modalidade de significao da palavra, recorrendo-se explicitamente a um exterior lingstico ou a um outro universo discursivo (no primeiro caso, o da lngua como lugar de polissemia, homonmia, metfora etc. X, sem trocadilho ou X, para usar de um eufemismo... e no segundo caso, o da palavra j habitada historicamente por um ou mais discursos: uma contradio, no sentido materialista do termo); e) uma outra palavra, potencial ou explcita denotativa de reserva (X, se se puder chamar isso de X...), hesitao ou retificao (X, ou melhor, Y), confirmao (X, essa a palavra exata...) etc. f) um outro falante (como diria Marx...) ou o interlocutor suscetvel de no compreender ou de no aceitar expresses tidas como bvias (... X, com o perdo da palavra..., se voc quiser, X, X, se voc me entende)

    Diferentemente de Authier-Revuz, que v as relaes metadiscursivas numa perspectiva restrita, Costa adota, em sua pesquisa, o metadiscurso em um sentido amplo, considerando-o como o processo segundo o qual o discurso de um locutor tem como objeto seu prprio discurso, constituindo a si mesmo como alteridade, ou seu prprio discurso como outro (COSTA, p. 36).

    Ao terminar de expor as relaes intertextuais, interdiscursivas e metadiscursivas, Costa atenta para o fato de que, ao analisar essas relaes, o que interessa no a estrutura das relaes textuais em si mesmas. O que o analista deve buscar que implicaes essas relaes trazem para o posicionamento exercido pelo sujeito dentro de sua prtica discursiva. Ou seja, que tipo de relao ele mantm com seu campo discursivo (o interdiscurso). sobre a noo de posicionamento que falamos a seguir.

  • 39

    1.3 Posicionamento e investimentos genrico, cenogrfico, tico e lingstico

    Como dito acima, toda prtica discursiva caracteriza-se por estabelecer posicionamentos. Posicionar-se diz respeito ao processo de instaurao e conservao de uma identidade enunciativa em um determinado campo discursivo, o qual composto por diversas formaes discursivas concorrentes.

    A palavra posio significa nesse caso tanto uma tomada de posio quanto a ancoragem num espao conflitual (falando-se de uma posio militar) (MAINGUENEAU, 2001, p. 69). O posicionamento est relacionado insero de um sujeito em um percurso anterior ou fundao de um percurso novo. So consideradas posies as doutrinas, escolas, movimentos, partidos etc. Maingueneau (2000) afirma, no entanto, que esse conceito muito pobre, pois implica apenas que os enunciados so relacionados a diferentes identidades produtoras de discursos. Por isso, apresenta a categoria comunidade discursiva:

    o posicionamento supe a existncia de grupos mais ou menos institucionalizados, de comunidades discursivas, que no existem seno pela e na enunciao dos textos que elas produzem e fazem circular. O posicionamento no , portanto, apenas uma doutrina, a articulao de idias; a intricao de certa configurao textual e um modo de existncia de um conjunto de homens (MAINGUENEAU, 2000, p. 174, grifo do autor).

    A incluso de um sujeito em um determinado posicionamento supe a aceitao de normas e modos de ser partilhados em uma comunidade discursiva. Portanto, o

    posicionamento est ligado a todo um contexto, que torna possvel a enunciao, e no apenas a uma escolha ideolgica que o sujeito exibe por meio de se