Dissertação - Funções Da Linguagem

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    A SELEO LEXICAL LUZ DA FUNO POTICA EM TEXTOS DE CAETANO VELOSO

    Por

    Jos Amrico Bezerra Saraiva

    Dissertao apresentada Coordenao do Mestrado em Lingstica da Universidade Federal do Cear, como requi-sito parcial para obteno do Grau de Mestre.

    Fortaleza, 06 de agosto de 1998.

  • Esta dissertao constitui parte dos requisitos necessrios obteno do Grau de Mestre em Lingstica, outorgado pela Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos interessados na Biblioteca Central da referida Universidade.

    A citao de qualquer trecho desta dissertao permitida, desde que seja feita em conformidade com as normas da tica cientfica.

    Jos Amrico Bezerra Saraiva

    Dissertao aprovada em julho de 1998.

    Prof. Dr. Paulo Mosnio Teixeira Duarte

    Orientador

    Prof. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros

    Prof. Dr. Snzio de Azevedo

  • DEDICATRIA

    Ao amigo Paulo Mosnio Teixeira Duarte, o no-doutor e o sempre professor, cujo papo rico e agradvel.

    A Seu Joo e Dona Ivone, meus pais, com quem muito aprendi.

    A R Guimares, por ter despertado em mim o gosto pela leitura.

    A Mira, minha mulher, razo para tudo que fao.

    A Vincius, meu filho, razo para tudo que farei, nascido trs meses antes da defesa desta dissertao.

    A Aline, minha sobrinha.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Paulo Mosnio Teixeira Duarte, pelo gnio e pela generosidade com que nos orientou, sempre acessvel e disposto a dialogar.

    A Mira, pela pacincia e dedicao.

    A Cristina Carvalho, pelo zelo com que procedeu leitura crtica deste trabalho.

    Aos professores doutores Rafael Snzio de Azevedo, da Universidade Federal do Cear, e Diana Luz Pessoa de Barros, da Universidade de So Paulo, que, como membros da banca examinadora desta dissertao, fizeram crticas pertinentes, que incorporo a este trabalho.

  • RESUMO

    Baseado na funo potica, tal como assentada por Jakobson, analisamos as seguintes composies de Caetano Veloso: o quereres, meu bem meu mal, pipoca moderna, odara, luz do sol e chuva suor e cerveja. Tentamos investigar no apenas aspectos estruturais derivados da definio da funo potica, mas tambm os fundamentos semnticos. Estes implicam dois conjuntos de noes bsicas: denotao x conotao; dicionrio x enciclopdia. O texto o ponto de partida que orienta a anlise dos itens lexicais. Assim, tivemos de abandonar as concepes semnticas que apiam o dicionrio, fundamentado em palavras isoladas. Conforme o ponto de vista textual, o sentido de uma palavra emerge do contexto, o que no implica que alguns aspectos estabelecidos e consolidados do sentido no devam ser levados em considerao. Antes de considerar as perspectivas formais e semnticas referentes aos lexemas, enfocamos cada texto como um todo, a fim de tornar a anlise enxuta e clara.

  • ABSTRACT

    Based on the poetic function as stated by Jakobson, I analyse the following compositions by Caetano Veloso: o quereres, meu bem meu mal, pipoca moderna odara, luz do sol and chuva suor e cerveja. I try to investigate not only structural aspects derived from the definition of the poetic function itself but also semantic grounds. These ones imply two groups of basic notions: denotation x connotation; dictionary x encyclopaedia. Text is the starting point that guides the analysis of the lexical itens. So I had to leave the semantic conceptions that support dictionary founded on isolated words. According to the textual point of view, the meaning of a word emerges from the context, which does not imply some established aspects of meaning should not be taken into account. Before formal and/or semantic considerations concerning the lexemes, I focus each text as a whole in order to make my analysis terse and clear.

  • NDICE

    INTRODUO

    09

    1. FUNES DA LINGUAGEM 13 1.1. Funo: um termo polissmico 13 1.2. Funes da linguagem: enfoques filosfico e antropolgico 19 1.3. Funes da linguagem: enfoque lingstico 27

    1.3.1. As perspectivas de Carvalho e Halliday 27 1.3.2. As perspectivas de Bhler e Jakobson 35

    1.4. Funes da linguagem: aspectos crticos 41 1.4.1. Funes da linguagem: funes do discurso ou funes da frase? 41 1.4.2. H uma hierarquia das funes da linguagem? 43 1.4.3. Haver funes bsicas? 50

    2. A FUNO POTICA 53 2.1. A ttulo de recapitulao 53 2.2. Da funo potica em especial 54

    2.2.1. Funo potica e funo metalingstica 54 2.2.2. A singularidade da funo potica 59

    2.3. Funo potica e motivao semntica 64 2.3.1. Consideraes preliminares 64 2.3.2. A noo de desautomatizao 69 2.3.3. A noo de acoplamento 71 2.3.4. A noo de interpretante contextual 74 2.3.5. As noes de dicionrio e enciclopdia 75

    2.3.5.1. Esclarecimentos 75 2.3.5.2. Dicionrio 78 2.3.5.3. Denotao e conotao 82 2.3.5.4. Dicionrio e enciclopdia 85

    2.3.6. Sntese 90

    3. QUESTES PENDENTES 96 3.1. Funo potica e texto potico 96 3.2. Funo potica e estilo 103 3.3. Texto e recepo 105

  • 4. ANLISE DO CORPUS 114 4.1. Do corpus 114 4.2. Textos para anlise 116

    4.2.1. O quereres 116 4.2.2. Meu bem meu mal 139 4.2.3. Pipoca moderna 146 4.2.4. Odara 152 4.2.5. Luz do sol 156 4.2.6. Chuva suor e cerveja 165

    CONCLUSO 171

    BIBLIOGRAFIA 174

  • INTRODUO Este trabalho tem como desiderato analisar alguns textos da autoria do

    compositor baiano Caetano Veloso, sob o enfoque da doutrina funcionalista de Jakobson (s/d). Nossa anlise justifica-se no apenas por colocarmos em tela textos de um dos mais clebres nomes da Msica Popular Brasileira, mas tambm por darmos a eles uma dimenso lingstica, ancorada na funo potica, em suas mltiplas manifestaes e configuraes.

    Trabalhos de extrao diversa tm sido escritos acerca das composies de Caetano Veloso. Uns, de natureza histrica, salientam o papel do compositor na MPB dos anos 70, como o de Bahiana (1980); outros, de cunho antropolgico, destacam aspectos relativos ao mito, a exemplo do de Melo (1993); outros, por fim, se atm aos aspectos intertextuais, caso da dissertao de Schimti (1989). Embora se trate de trabalhos de mrito, sinalizam uma lacuna: a necessidade de estudar a obra do compositor baiano luz dos subsdios tericos da lingstica moderna.

    Ocorreu-nos ento a idia de apelar para a doutrina funcionalista de Jakobson, salientando a funo potica, ao que nos consta ainda no aplicada obra do compositor baiano. Adicionalmente, h que se considerar os seguintes reparos tericos necessrios consecuo do objetivo-mor:

    a) reviso das funes da linguagem, nos planos filosfico e lingstico, sob um ponto de vista crtico; dificilmente encontrado nos compndios de divulgao sobre o assunto;

    b) reenfoque da funo potica como funo lingstica por excelncia, dado que o foco a mensagem;

    c) redimensionamento dos aspectos semnticos que a supracitada funo acarreta.

    Como tributrios dos objetivos supra, tambm julgamos por bem, em captulo parte:

  • a) verificar a relao entre as funes expressiva, conativa e potica, principalmente esta ltima, com a noo de estilo;

    b) estabelecer vnculos entre funes da linguagem e a trade: autor/texto/leitor;

    c) questionar a relao entre funo potica e Potica.

    Partimos da hiptese de que o jogo potico em Caetano Veloso mormente de natureza sgnica, j que no se perspectiva um simples jogo de significantes. Chamou-nos em particular a ateno o seguinte texto, que transcrevemos abaixo, no qual se salientam os jogos com os fonemas /p/ e /n/:

    e era nada de nem noite de negro no e era n de nunca mais e era noite de n nunca de nada mais e era nem de negro no porm parece que a golpes de p de p de po de parecer poder (e era no de nada nem) pipoca ali aqui pipoca alm desanoitece a manh tudo mudou

    Hipotetizamos tambm que h diferentes graus de transparncia semntica, desde os mais simples at os que exigem releituras contnuas, em virtude da singular opacidade da funo potica e do estranhamento por ela causado.

    Com o retroexposto, esperamos contribuir, selecionando os pontos de vista que julgamos adequados, e procedendo devida sntese, para a apreciao do texto, conforme uma abordagem j tradicional entre ns, calcada nas funes da linguagem, redimensionada, todavia, em nosso trabalho. nosso desejo assim fornecer subsdios para uma abordagem textual em bases mais firmes.

    Tendo em vista os objetivos e hiptese acima formulados, traamos o nosso plano de trabalho. Pomos em revista, no captulo 1, questes relativas polissemia do termo funo. Ainda neste captulo, apresentamos algumas contribuies de cunho filosfico e/ou antropolgico referentemente s funes da linguagem. Mais adiante,

  • discutimos o enfoque lingstico dado questo por Carvalho (1983) e Halliday (1976, 1978 e 1985), comparando as propostas destes dois autores.

    Em seguida, encetamos a discusso acerca da proposta tridica das funes da linguagem, do psiclogo austraco Bhler, sobre cujo alicerce ergueu Jakobson o seu modelo hexdico, baseado particularmente nas contribuies da Teoria da Comunicao. Analisamos ento o modelo jakobsoniano e questionamos alguns de seus postulados, um dos quais diz respeito ao domnio das funes da linguagem: a frase ou o discurso? Outro questionamento diz respeito impossibilidade de se estabelecer uma hierarquia, extradiscursiva ou intradiscursiva, para as funes da linguagem. Um terceiro ponto, e motivo de controvrsia entre diferentes autores, visa a discutir se h funes da linguagem bsicas ou se elas atuam em feixe, qualquer que seja a mensagem.

    No captulo 2, abordamos a funo potica em sua especificidade face s demais funes da linguagem e procuramos estabelecer os aspectos identificadores da referida funo, no que concerne aos seus parmetros lingsticos. Num primeiro momento, procuramos examinar se a funo potica se aproxima da funo metalingstica, conforme sugesto de Lopes (s/d). Feito isto, apresentamos a funo potica no que ela tem de singular: a relao entre os eixos paradigmtico e sintagmtico, a projeo das equivalncias de um eixo no outro e os paralelismos de toda ordem decorrentes desta projeo.

    Um ponto ficou, no entanto, pouco claro para ns. Trata-se da questo dos paralelismos semnticos. Que parmetros ou linhas gerais colocar para a existncia de tais paralelismos, muito pouco esclarecidos por Jakobson? Passamos em revista vrias propostas como a de desautomatizao, de Kloepfer (1984), a de acoplamento, de Levin (1975) e a de interpretante contextual, de Lopes (1978). Examinamos igualmente as propostas de Eco (1974, 1984, 1986, 1991c e 1991d), porque redimensiona os itens lexicais no contexto, tendo feito prvias objees teoria dicionarial de Katz-Fodor (1977) e a teorias referenciais do significado. Ora, se a funo potica instaura o estranhamento pelo emprego inusitado de itens lexicais, julgamos procedente nossa suspeita de que, em algum ponto, a teoria de Eco nos ser de valia.

    O captulo 3 trata de algumas questes pendentes, que no pretendemos resolver, mas apenas apresentar de forma crtica. So questes referentes relao entre funo potica e texto potico, funo potica e estilo, texto e recepo.

  • O quarto captulo dedica-se anlise de seis textos de Caetano Veloso (o quereres, meu bem meu mal, pipoca moderna, odara, luz do sol e chuva suor e cerveja) luz da funo potica jakobsoniana. Neles, procuramos detectar as equivalncias de toda ordem que concorrem para a seleo lexical operada. O levantamento destas equivalncias, obviamente, no foi exaustivo: primeiro, em virtude do prprio escopo a que nos propusemos inicialmente, ou seja, demonstrar como a funo potica atua na seleo lexical realizada por Caetano Veloso; segundo, em virtude das restries relacionadas s dimenses do trabalho; e, terceiro, em virtude da exigidade do tempo. Mais pormenores sobre o corpus sero fornecidos no captulo dedicado anlise.

  • 1. FUNES DA LINGUAGEM

    1.1. Funo: um termo polissmico

    No dizer de Fontaine (1978: 55), a noo de sistema e a de funo constituem os dois plos em torno dos quais se organizam as idias do Crculo Lingstico de Praga (CLP). A noo de sistema vem contrapor-se, no mbito da cincia da linguagem, ao atomismo historicista praticado pelos comparativistas e encontra em Saussure sua formulao lingstica. O referido conceito se concatena naturalmente com o de funo, se se quer contemplar os aspectos interacionais da linguagem e evitar a forma como fim em si mesma. Falemos, pois, detidamente de funo, j que mantm relao com a forma nas teorias funcionalistas, ainda que diversamente matizada1.

    A concepo de lngua como sistema funcional, explicitada no bojo da primeira das nove teses do CLP, redigidas como contribuio aos debates do I Congresso de Fillogos Eslavos, realizado em Praga em outubro de 1929, reconhece na lngua seu carter de finalidade, na medida em que os meios por ela utilizados o so em vista de um fim, como sucede aos demais produtos da atividade humana (TOLEDO, 1978: 82). Tal concepo identifica, teleologicamente, a lngua como instrumento de comunicao, uma estrutura-meio para fins determinados, consubstanciados na comunicao, sua funo basilar e, secundariamente, na expresso, o que no nos parece claro. Afinal expresso tambm no comunicao? Ou por comunicao entende-se a mera funo referencial2? Como bem assinala Neves (1997: 9) comunicar no se pe como funo da linguagem porque a capacidade que a linguagem tem de funcionar comunicativamente exatamente o que condiciona todo o complexo que constitui o evento da fala.

    1 Na verdade, h vrios funcionalismos, que podem ser grosso modo postos sob trs vertentes: a

    conservadora, que apenas aponta a inadequao do formalismo ou do estruturalismo, sem propor uma anlise da estrutura; a moderada, que no apenas aponta a inadequao, mas vai alm, propondo uma anlise funcionalista da estrutura; e a extremada, que nega a realidade da estrutura como estrutura, e considera que as regras se baseiam internamente na funo, no havendo, pois, restries sintticas (NEVES, 1997: 55-6). 2 O mal reside no termo comunicao, que tem adquirido uma acepo bastante vaga. Ducrot (1977) faz

    aluso a este respeito. Depois de Saussure, comum encontrar-se a declarao de que a funo fundamental da lngua a comunicao. No h muita objeo a fazer a isto, j que a prpria noo de comunicao bastante vaga, e susceptvel de receber um grande nmero de orientaes (p. 9).

  • O certo que, sendo a lngua entendida como sistema de comunicao, seus elementos componentes mantm relaes em rede, de tal modo que um elemento s concebido no seio do sistema, isto , em funo do sistema ao qual pertence. Da decorre um primeiro sentido para o termo funo, a que vem ligar-se estreitamente os termos funcional e funcionalismo (FRANOIS, 1976: 146).

    Nas duas teses seguintes do manifesto do CLP, o termo funo empregado quer em acepo anloga supramencionada, quer numa acepo algo generalizante. A segunda tese, intitulada Tarefas do estudo de um sistema lingstico, do sistema eslavo em particular, salienta a importncia da distino entre o som como fato fsico objetivo, como representao e como elemento do sistema funcional. Destarte, no que diz respeito ao estudo dos fenmenos acstico-motores, tarefa do lingista tanto caraterizar o sistema fonolgico identificando as unidades que desempenham uma funo significativa diferenciadora numa dada lngua quanto descrever as possibilidades de combinao de tais unidades em estruturas maiores (TOLEDO, 1978: 85). Ainda na mesma segunda tese, apresentam-se algumas orientaes, fundadas neste conceito de funo, acerca das pesquisas sobre a palavra e o agrupamento das palavras e de uma teoria dos procedimentos sintagmticos.

    A terceira tese, intitulada Problemas da pesquisa acerca das lnguas de diversas funes, busca determinar as diferentes funes da lngua, que, em sua manifestao, se caracterizam por certo grau de intelectualidade ou de afetividade, variando essas duas qualidades em propores difceis de mensurar-se. Funo, neste momento, tomada como variedade de emprego ou modo de realizao. Segundo esta acepo, a linguagem pode ser intelectual ou emocional. A primeira destina-se s relaes com outrem; a segunda pode servir para exteriorizar emoes ou para agir sobre outrem. Diferenciao ambgua, reconheamos, porque exteriorizar emoes e agir sobre o outro pressupem igualmente interao3.

    3 Aqui j nos antecipamos a algumas concluses neste trabalho, no tocante separao entre emissor e

    receptor, com que concordamos. Valemo-nos do seguinte excerto, de Neves, aludente a Halliday: (...) a linguagem serve funo interpessoal, isto , o falante usa a linguagem como um meio de participar do evento da fala: ele expressa seu julgamento pessoal e suas atitudes, assim como as relaes que estabelece entre si prprio e o ouvinte, em particular, o papel comunicativo que assume. (...) O elemento interpessoal de linguagem, alm disso, vai alm das funes retricas, servindo num contexto mais amplo, ao estabelecimento e a manuteno dos papis sociais que, afinal, so inerentes linguagem. A funo interpessoal , pois, interacional e pessoal, constituindo um componente da linguagem que serve para organizar e expressar tanto o mundo interno como o mundo externo do indivduo (1997: 13).

  • Do ponto de vista da relao com a realidade extralingstica, ao lado da funo de comunicao, reconhece-se a funo potica, diferindo elas entre si pelo fato de esta ter o enunciado voltado para o significante e aquela, para o significado. Diferenciao ainda mal formulada (tal como as j referidas acerca da comunicao, expresso e conao), pois o exerccio da funo potica pressupe esta noo por demais ampla, chamada comunicao.

    Fontaine identifica ainda uma terceira acepo para o termo funo, que, diz-nos, est muitas vezes insuficientemente explicitada nos escritos dos lingistas de Praga. Alm dos dois sentidos a que j aludimos, estreitamente relacionados, funo como complemento da noo de sistema, e funo como atribuio finalstica de um elemento no seio de um sistema, convm destacar que funo pode ser compreendida como uma contribuio de alguma forma exterior ao sistema, em todo caso visando o sistema em sua integralidade, o qual se v assim atribuir uma vontade autnoma que evoca a reconhecida ao locutor que profere o enunciado (FONTAINE, 1978: 46-7).

    A polissemia do termo funo reafirmada em Franois (1976: 143-9), no verbete funes da linguagem, no qual se desenvolve uma discusso bastante didtica das acepes que o termo tem apresentado em lingstica, estas relacionadas com as supracitadas ou adicionais. Esta lingista raciocina acerca do termo funes da linguagem e reconhece nele o sentido corrente de papel, atividade til. Estabelece, no entanto, outras distines, nomeadas abreviadamente por funes1, funes2 e funes3.

    As funes1, afirma Franois, no so apreendidas na linguagem mas atribudas a esta, de algum modo, a partir do exterior: por exemplo, o lgico tradicional torna-as no instrumento do raciocnio; o estilista faz delas um material de criao esttica; o cientista, um meio de nomenclatura (op. cit.: 143). Tal significado, ensina-nos Franois, caracteriza-se pela sua parcialidade porquanto no tem sido reconhecida a coexistncia de vrias funes da linguagem. O fator norteador passa a ser o uso a que se presta a linguagem pelos homens nos diversos domnios do saber e da arte. Por ser genrica a caracterizao das funes nestes moldes, no h sugesto de aplicabilidade, h s taxonomia. Neste caso, as funes constituem um a priori intimamente

    relacionado ao que se pretende que a linguagem manifeste.

  • A noo de funes2 da linguagem surge a partir do estudo dos materiais lingsticos e est estreitamente ligada ao desenvolvimento de mtodos de observao e anlise de lnguas diversas. tambm utilizada para referncia aos diversos papis desempenhados por uma lngua e est fundamentada na concepo de lngua como instrumento. Assim, as diferentes funes so estabelecidas a posteriori, a partir de observaes dos empregos e do estudo interno da lngua, em seu funcionamento real.

    Em consonncia com esta concepo, admite Franois a coexistncia hierarquizada de vrias funes2 da linguagem, com predominncia da funo de comunicao, entendida por ela como central por servir de suporte ao pensamento. Conforme vimos, a esta acepo do termo que vem ligar-se o adjetivo funcional e o substantivo funcionalismo.

    Partindo da noo de lngua como instrumento de comunicao, estabelecem-se, no nvel fnico, as funes distintiva, demarcativa e culminativa. A anlise funcional utilizada para descrever o nvel fnico passa a constituir um modelo para os outros nveis. A noo de funo2 ganha aqui uma maior coerncia, visto que oferece um critrio vlido, em todos os planos da lngua, para destacar e classificar as unidades e para estabelecer, sobre a base indispensvel desta crivao funcional, as estruturas lingsticas, diz-nos Franois, ao que acrescenta: neste elo entre funo e estrutura que reside a originalidade da noo de estrutura em lingstica (op. cit.: 144). O mtodo funcionalista, portanto, confirma a preponderncia da funo de comunicao, uma vez que nela que ele se fundamenta.

    Ao lado desta funo de base, ampla e geral, Franois reconhece funes2 secundrias que so caracterizadas como desvios, na medida em que constituem recusas de comunicao ou comunicao mais qualquer coisa.

    Como funes2 secundrias, a lingista francesa arrola a funo de expresso e a esttica. Define, paradoxalmente, a primeira como no comunicao (ainda que utilize a lngua de comunicao), j que emissor e receptor correspondem a uma nica pessoa, e, por isso, no h, por parte do emissor, preocupao com relao s reaes do receptor, o que nos parece uma indefensvel posio sobre monologismo. A funo esttica, por sua vez, surge mais como utilizao da lngua com vistas a uma melhor comunicao do que como uma funo autnoma isolvel; faz uso do instrumento de

  • comunicao e no parece susceptvel de ser concebida sem inteno comunicativa (1976: 147).

    Alm das funes 1 e 2 da linguagem, Franois atribui ao termo uma terceira acepo, que decorre do aperfeioamento da anlise do ato semiolgico global. Esta acepo encontra-se diretamente ligada aos fatores intervenientes no processo comunicativo, a saber: destinador, destinatrio, mensagem, contexto, contato e cdigo. A cada um destes seis fatores esto ligadas seis funes da linguagem, as quais necessariamente participam de toda e qualquer mensagem, com predominncias variveis. Neste sentido do termo (funes3), numa dada mensagem a funo central pode no ser a de comunicao, ao contrrio do que ocorre com a acepo de funes2, conforme deixa claro Franois, em que as outras funes so sempre subsidirias da funo de comunicao.

    No verbete seguinte, funes gramaticais, Mahmoudian (1976: 151-6) trata de outras quatro acepes do termo, sob as designaes de funo1, funo2, funo3 e funo4. Funo2 toma o sentido de funo de comunicao, tal como ocorre no verbete precedente, j mencionado. A esta acepo encontra-se estreitamente ligada a funo3, tambm j aludida por ns, a funo de informao, de cuja postulao depende o conceito de lngua como instrumento de comunicao, como sistema lingstico cujas unidades so identificadas por sua pertinncia informativa, isto , pela informao que veiculam. Como novidades, apresentam-se apenas a funo1 que se caracteriza pelo sentido que apresenta na tradio gramatical, ou seja, como papel que um segmento desempenha em relao ao todo do qual parte (funes de sujeito, objeto direto, predicativo do sujeito etc), e a funo4, funo no sentido helmsleviano, entendida como dependncias ou relaes que grandezas mantm entre si, na medida em que umas pressupem outras4.

    4 Para Hjelmslev (1975: 39-45), o termo funo tem uma acepo equidistante entre o sentido lgico-

    matemtico e o sentido etimolgico. A dependncia que se estabelece entre uma classe e seus componentes, entre os componentes de uma classe so exemplos de funes.

    So denominadas functivos as grandezas envolvidas numa relao funcional. Um functivo constante aquele cuja presena imprescindvel para a presena do functivo com o qual tem funo. Um functivo varivel aquele cuja presena j no necessria para a presena do functivo com o qual mantm funo. Baseado nas relaes entre functivos constantes e variveis, Helmslev preconiza trs tipos de funes: a interdependncia, que envolve duas constantes; a determinao, que se estabelece entre uma constante e uma varivel; e a constelao, que envolve duas variveis.

  • Como se v, o termo funo multissignificativo e assume matizes distintos, decorrentes dos muitos empregos que tem conhecido em lingstica, no somente no funcionalismo. O retomar alguns textos que trataram do assunto vem, portanto, atender a nosso propsito de ressaltar essa plurissignificao, detectvel no apenas nas diversas correntes mas tambm dentro de uma mesma orientao lingstica, e, qui, em textos de um mesmo autor5.

    Neves assim se pronuncia quanto aos termos funo e funcional, nos moldes das correntes e obras do Crculo Lingstico de Praga:

    Em primeiro lugar, h, nessas obras, muito poucas tentativas de definio dos termos usados; em segundo lugar, o conceito aplicado a variados domnios e fenmenos da linguagem, e, por isso, sofre muitas modificaes, aparecendo com variaes nocionais; em terceiro lugar, h diferenas e vacilaes entre os diferentes autores; em quarto lugar, o termo funcional usado, em alguns casos, num sentido muito vago, como uma espcie de simples rtulo; e, em quinto lugar, os termos funo e funcional no so os nicos relevantes para a interpretao da abordagem finalista: de um lado, outros termos provindos da interpretao finalista (teleolgica, teleonmica), como meios, fins, instrumento, eficincia, necessidades de expresso, servir para evidenciam a abordagem finalista; de outro lado, essa abordagem pode estar presente e ser determinvel na discusso cientfica dos fatos da lngua sem o uso explcito dos termos teleonmicos (por exemplo, expresses com adjetivos como traos distintivos/expressivos/... devem ser interpretados como traos que tm uma funo distintiva/expressiva/...) (1997: 7).

    Dentre as variadas acepes que o termo em tela tem conhecido, fundamentamos nosso trabalho na que descreve o ato comunicativo como preeminentemente teleolgico. Conforme tal acepo, a lngua vista como um instrumento de comunicao, um sistema funcional, cujas funes so estabelecidas a posteriori, mediante observaes dos empregos e do estudo interno da lngua, tal como ela realmente funciona.

    Hjelmslev refere-se ainda s funes e...e, ou conjuno, e ou...ou, ou disjuno. Sugere, em seguida, a denominao de correlao para o primeiro tipo e reserva o termo relao para designar o segundo tipo, tendo em vista que a distino entre processo e sistema pode, de certa forma, ser expressa atravs destes termos, outra funo a que ainda alude a funo semitica, situada entre as grandezas da expresso e do contedo (p. 53). Esta diversidade de funes no escapa ao conceito lgico-matemtico, pois est em consonncia com o princpio da imanncia na descrio lingstica, defendido por Hjelmslev, j que o autor no faz qualquer referncia a elementos extralingsticos. As grandezas descritas so internas ao sistema, e as diversas funes que Hjelmslev descreve estabelecem-se entre tais grandezas. 5 Para detalhes mais pormenorizados sobre o termo, consulte-se Neves (1997: 5-8).

  • bvio que algumas das acepes supramencionadas guardam estreita relao entre si; pressupem-se, na verdade, mutuamente. Apenas a noo de funo1, de que nos fala Franois no verbete funes da linguagem, j mencionado por ns, que destoa das outras a olhos vistos, uma vez que ela recobre funes que no so apreendidas na linguagem mas atribudas a esta, de algum modo, a partir do exterior (cf. pg. 3).

    Cumpre deixar claro desde j que no nos furtaremos a empregar o termo em qualquer de suas acepes. O conceito que estivermos adotando para o termo, ao longo deste trabalho, ser sempre explicitado quando necessrio, isto , quando o contexto lingstico no fornecer, de forma inequvoca, evidncias que permitam inferir seu significado.

    1.2. Funes da linguagem: enfoques filosfico e antropolgico

    A questo das funes da linguagem tem constitudo objeto de reflexo para investigadores dos mais diversos domnios do saber. No s lingistas, mas filsofos, psiclogos, socilogos, etnlogos, entre outros, tm refletido acerca do problema, na medida em que, a certa altura de seus estudos, vem-se obrigados a pensar na faculdade humana da linguagem. No raramente, a discusso sobre a linguagem e suas funes a que primeiro se impe. Nestes casos, a perspectiva da qual a linguagem estudada depende fundamentalmente das diretrizes doutrinrias que balizam os estudos.

    Na Antigidade Clssica, por exemplo, Aristteles reconhece e examina duas funes bsicas da linguagem, ligadas s noes de lgos e lxis. A funo do lgos, fundamentalmente terica, linguagem em seu uso racional, lgico, portanto representativo, distingue-se da funo prtica da linguagem, a lxis, funo proeminente na arte da retrica e da potica, por meio da qual no apenas se dizem as coisas ou se dizem as relaes entre as coisas e, portanto, a verdade das coisas (NEVES, 1987: 72), mas ressalta-se o aspecto significante da linguagem. O que est mais visivelmente em primeiro plano, na funo lxis, o como dizer e no o dizer enquanto tal.

    Eco (1991b: 72-6) assevera que este como dizer que constitui, na Antigidade Clssica, o objeto da Retrica. Segundo ele, reconheciam-se, neste perodo, trs tipos de discursos: o apodtico, o dialtico e o retrico. O discurso apodtico conduz a concluses silogsticas que se apiam em premissas indiscutveis, fundadas nos

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  • princpios primeiros. O discurso dialtico fundamenta-se em premissas provveis e conduz a duas concluses, esforando-se o raciocnio por definir qual das duas concluses seria a mais aceitvel (op. cit.: 73). O discurso retrico, que nos interessa de perto, tambm parte de premissas provveis e tenciona delas extrair concluses no apodticas, que visam a obter, alm do assentimento racional, um consenso emocional. O como dizer passa, portanto, a desempenhar um papel de fundamental importncia na Retrica, vista como a arte da persuaso, uma vez que o consenso emocional dele depende. Em outros termos, a Retrica constitui uma tcnica cujo escopo conduzir o ouvinte, convencendo-o do que dito, a partir do como diz-lo.

    Eco observa ainda que Aristteles reconhece trs tipos de discurso: o deliberativo, sobre o til na vida associada; o judicirio, sobre a justeza das coisas; o epidtico, discurso de elogios ou vituprios acerca das coisas. O poder persuasrio de cada um destes trs tipos de discurso depende diretamente do lugar que os argumentos tomam no discurso, de sua disposio (dispositio) e das translaes e das figuras retricas (elocutio ou lxis, acima referida), que estimulam a ateno do leitor-ouvinte, obrigando-o a voltar-se para premissas e argumentos, j que o discurso apresenta-se ornado, eivado do inusitado e do novo, contendo uma imprevista cota de informao. V-se logo que, embora atribua proeminncia ao aspecto racional da linguagem, Aristteles no deixa de reconhecer a funo conativa, que visa a agir sobre o outro para obter-lhe mais que o simples assentimento racional, ou seja, para obter-lhe o consenso emocional.

    Transmitida pela Antigidade Idade Mdia, renovada pela poca Clssica, a Retrica constitua, como bem assinala Guiraud (1975), uma estilstica da expresso e uma tcnica de linguagem considerada como arte. Isto corria, de algum modo, paralelo com os estudos lgicos representacionais da linguagem, ilustrados na Gramtica Especulativa dos medievais, que via a lngua como reflexo do pensamento6, e na obra de um Scaliger, na Renascena (cf. KRISTEVA, s/d: 172-7). Em suma, no se abandonou, a despeito das injunes histricas que submeteram os estudos lingsticos a reformulaes, a dupla dimenso da linguagem: enquanto sistema representativo de

    6 Cf. Robins (1979: 52-73) para os pormenores sobre a fundamentao aristotlico-tomista dos gramticos

    especulativos, que raciocinavam sobre as diversas classes de palavras em termos de modi significandi passivi (modos de significao passivos), em virtude dos quais as qualidades das coisas so significadas por palavras.

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  • sinais referenciais e enquanto sistema de meios expressivos, do ponto de vista do contedo afetivo para nos socorrermos aqui de estilstica de Bally (1951, i-16).

    Berkeley (1992) outro filsofo, j da filosofia moderna, que reconhece na linguagem funes diversas da de simples suporte ou comunicao de idias. Admite que a linguagem atende a propsitos ligados aos participantes de um ato comunicativo, servindo como meio de exteriorizao psquica ou como meio de ao sobre outrem. E, ao colocar em xeque a doutrina escolstica das idias abstratas, cuja fonte privilegiada parece ser a linguagem, observa:

    ... a comunicao de idias por palavras no o fim principal ou nico da linguagem. H outros fins, como exaltar uma paixo, excitar ou combater uma ao, dar ao esprito uma disposio particular. O primeiro em muitos casos apenas secundrio e s vezes inteiramente omitido quando os outros o dispensam, como suponho freqente na linguagem familiar. (1992: 10)

    Wittgenstein (1987), filsofo bem mais contemporneo, reconhece, por sua vez, na segunda fase de sua filosofia7, que a linguagem se presta a uma multiplicidade de usos, a que ele se refere como jogos de linguagem. Para ele, h inmeras espcies diferentes de emprego daquilo a que chamamos de smbolos, palavras, proposies. Esta pluralidade de empregos no se caracteriza pela fixidez, muito pelo contrrio, dinmica, pois novos jogos de linguagem surgem enquanto outros envelhecem e caem no esquecimento. Para tornar claro o que entende por jogos de linguagem, nesta perspectiva pragmtica, Wittgenstein compara a linguagem a uma caixa de ferramentas, em virtude da funo instrumental de ambas, e elenca os seguintes exemplos de jogos de linguagem: dar ordens e agir de acordo com elas; descrever um objeto a partir do seu aspecto ou das suas medidas; construir um objeto a partir de uma descrio (desenho); relatar um acontecimento; fazer conjecturas sobre o acontecimento; formar e examinar uma hiptese; representao (sic) dos resultados de uma experincia atravs de tabelas e diagramas; inventar histria, l-la; representao (sic) teatral; contar numa roda; resolver adivinhas; fazer uma piada, cont-la; resolver um problema de aritmtica

    7 A segunda fase do pensamento de Wittgenstein est consubstanciada nas Investigaes Filosficas, que

    forte influncia exerceu nas idias desenvolvidas pelo Grupo de Oxford.

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  • aplicada; traduzir de uma lngua para outra; pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar (1987: 190).

    Cumpre salientar, tambm no terreno filosfico, a forte influncia que o pensamento de Wittgenstein exerceu na concepo da teoria dos atos de fala, cuja formulao inicial foi apresentada por Austin (1990), e, posteriormente, desenvolvida por Searle (1984). Fazendo tabula rasa das diferenas entre uma e outra abordagem, nos pormenores, constatamos que tal teoria ostenta como unidade bsica de suas preocupaes no a palavra ou a orao, mas o ato realizado pelo falante por meio de palavras ou oraes. Segundo tal teoria, em cada ato de fala realizado, existe um aspecto: a) locucionrio, que consiste na sua forma fontica, na construo gramatical em que se expressa e no sentido a elas associado; b) ilocucionrio, que consiste no valor do ato praticado pelo falante de acordo com a situao extralingstica em que as palavras so proferidas (ato de prometer, garantir, jurar etc.); c) perlocucionrio, que consiste no efeito produzido pelo ato nos sentimentos, pensamentos ou aes do ouvinte, do falante ou de outras pessoas (efeito de ameaar, convencer, irritar etc.).

    Ainda de acordo com esta teoria, as oraes tm um valor ilocucionrio e um potencial ilocucionrio. O valor advm do ato de fala efetivamente praticado pelo falante ao proferir uma orao. O potencial o conjunto dos atos de fala atribuveis a uma orao. Temos, ento, que uma mesma orao pode corresponder a atos de fala distintos, no havendo, pois, paridade entre dada estrutura oracional e dado ato de fala praticado.

    Admitindo tal ausncia de correlao entre estrutura oracional e ato de fala praticado, Searle rejeita a concepo chomskyana de linguagem como sistema formal abstrato e advoga que o conhecimento que um falante tem do sentido das oraes de sua lngua consiste, em grande parte, na sua capacidade de usar oraes em situaes concretas para dar ordens, fazer perguntas, pedidos, promessas etc. Portanto, de concluir-se que o conhecimento lingstico do falante, sua competncia, tambm consiste na capacidade que ele tem de praticar e entender atos de fala, de forma que a

  • competncia no uma competncia lingstica stricto sensu mas, como sugere Hymes

    (apud SILVA, 1978), uma competncia comunicativa8. Nos atos de fala que a teoria supracitada identifica e classifica, podemos

    divisar, grosso modo, diversos dos jogos de linguagem wittgensteinianos. Face pluralidade de jogos em Wittgenstein, Copi (1978: 47-71) cr ser

    possvel postular usos gerais da linguagem que imponham alguma ordem a esta multiplicidade de empregos, dividindo-os em trs tipos: informativo, expressivo e diretivo. Esta diviso tridica pode parecer, conforme palavras do autor, uma simplificao excessiva, mas de muita utilidade para pesquisadores de lgica e linguagem.

    Atravs do uso informativo da linguagem, o falante procura descrever o mundo e raciocinar sobre ele. O uso da linguagem, em sua funo expressiva, serve expanso e manifestao de sentimentos e emoes experimentados pelo falante. E, em sua funo diretiva, a linguagem usada pelo falante com o propsito de causar ou impedir uma ao manifesta. Estas funes esto sempre presentes nos diferentes tipos de discurso, razo por que Copi afirma que a maioria dos usos ordinrios da linguagem mista, no havendo, pois, formas puras. Ou seja, o discurso de um cientista pode deixar vazar seu entusiasmo para com os resultados obtidos a partir de suas pesquisas. Um discurso de natureza potica pode, ao mesmo tempo, ser expressivo, diretivo e informativo. O que caracteriza efetivamente o discurso em uma de suas trs modalidades, no ver de Copi, a predominncia de uma destas funes, visto que as mensagens exemplificam, de uma maneira geral e em maior ou menor grau, os trs usos da linguagem j aludidos.

    Convm, no entanto, salientar que Copi analisa estes trs tipos de usos da linguagem de um ponto de vista lgico. Est efetivamente interessado no valor altico das sentenas. Portanto, deixa margem de seu estudo as funes expressiva e diretiva, em virtude da impossibilidade de considerar-se os discursos desta natureza verdadeiros ou falsos. Admite, todavia, a inexistncia de um mtodo mecnico para distinguir, com

    8 A propsito disto, Hymes fala numa funo contextual da linguagem, em que se leva em conta a

    descrio do ambiente fsico que cerca emissor e receptor. Tal funo completaria o quadro de funes proposto por Jakobson (ver mais adiante), reconhecendo, ao lado dos seis fatores intervenientes no processo comunicativo, um stimo, o contexto, muitas vezes determinante para a decodificao de uma mensagem. Na compreenso de uma mensagem, deve-se, ento, com efeito, considerar conjuntamente a forma em que expressa e a situao em que transmitida.

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  • preciso absoluta, os discursos que servem funo informativa e argumentativa da linguagem dos que servem a outras funes. No obstante, observa que importante evitar-se, num discurso que se pretende emotivamente neutro (o discurso cientfico, por exemplo), palavras ou expresses de carter emotivo.

    Ogden e Richards (1972: 230), numa postura menos logicista, julgando esgotar o assunto dos usos da linguagem, reconhecem como fatores que modificam a forma ou estrutura dos smbolos cinco funes:

    (I) A simbolizao da referncia; (II) A expresso de atitude para com o ouvinte; (III) A expresso de atitude para com o referente; (IV) A promoo dos efeitos pretendidos; (V) Apoio da referncia.

    A primeira, dizem, parece abranger todas as principais funes da linguagem como meio de comunicao. A segunda deriva da atitude assumida pelo elocutor em relao aos seus ouvintes. A terceira advm da atitude do elocutor em relao ao referente. A quarta relaciona-se com a inteno do elocutor em promover certos efeitos atravs do uso da linguagem. E, por fim, a quinta relaciona-se com o que os autores chamam de Facilidade ou Dificuldade das referncias, isto , os sentimentos delas acompanhantes. Ogden e Richards ensaiam deixar clara a distino entre esta funo cinco e a funo trs afirmando que duas referncias ao mesmo referente podem divergir em termos de facilidade, embora ambas sejam verdadeiras. o caso dos smbolos Parece-me recordar a ascenso ao Monte Everest e Subi ao Everest que

    ...podem, ocasionalmente, no representar diferena alguma na referncia e, assim, dever exclusivamente a sua dessemelhana a graus de dificuldade na recordao dessa incomum experincia. (...) Essa facilidade ou dificuldade no deve ser confundida com certeza ou dvida, ou com um grau de crena ou descrena, que cabe muito mais naturalmente na epgrafe (II), relativa atitude para com o referente. (op. cit.: 229)

    Pelo que se v, o processo de simbolizao considerado pelos autores como aquele em que se funda a linguagem. Portanto, para eles, a funo de simbolizao torna-se facilmente a mais importante. A propsito, Ogden e Richards criticam aqueles

  • autores que seguem uma orientao psicologizante e que destacam a expresso como funo bsica, no tanto por negligenciarem o papel do ouvinte, mas, principalmente, pelos efeitos danosos decorrentes do emprego de palavras como expresso, que, dada sua opacidade significativa, tm um efeito narcotizante, inviabilizando, assim, qualquer progresso cientfico.

    Neste ponto da discusso, importante ressaltar que, j no incio do sculo, os autores assumem que o domnio no qual as funes da linguagem se inscrevem e, portanto, no qual devem ser estudadas, no se limita ao da frase isolada, mas estende-se ao discurso, embora no deixem explcitas as condies de enunciao e indiquem apenas a necessidade de contextos de enunciado cada vez mais amplos (frase, perodo, pargrafo, captulo, volume) para a avaliao supostamente inequvoca do sentido, na iluso de que a relao entre enunciados em sua totalidade suficiente na maior parte das vezes. Vejamos o que dizem os autores a esse respeito no trecho abaixo transcrito, no qual se destaca ainda o que pensam os autores sobre a falta de isomorfismo entre forma e funo.

    ... a plasticidade do material da fala, em condies simblicas, menor do que a plasticidade das atitudes, finalidades e esforos humanos, isto , do sistema afetivo; e, portanto, as mesmas modificaes na linguagem so requeridas por razes muito diferentes e podem ser devidas a causas muito diversas. Da a importncia de se considerar a frase no perodo, o perodo no pargrafo, o pargrafo no captulo e o captulo no volume, se quisermos que as nossas interpretaes no sejam equvocas nem a nossa anlise arbitrria (op. cit.: 230)

    Quanto presena de tais funes nos discursos, Ogden e Richards so claros ao afirmar que h pequena probabilidade de existirem smbolos que sirvam simultaneamente a todas as funes. O mais freqente algumas de tais funes serem sacrificadas. Um dos casos mais extraordinrios de abandono de uma ou mais funes, extremamente discutido, o do uso potico da linguagem, em oposio ao uso prosaico.

    Cumpre, no entanto, sublinhar, uma vez mais, a hegemonia atribuda pelos autores funo de simbolizao. Esta funo constitui a base mesma de linguagens primitivas. A propsito disto, afirmam os autores que pessoas rsticas, com pequenos e concretos vocabulrios, adquiriram, naturalmente, a maioria de suas palavras em conexo direta com a experincia. Neste momento, os autores aproximam-se do que o

  • antroplogo Malinowski (1972: 295-330) preconiza ao estudar o significado em linguagens primitivas.

    Malinowski desenvolve estudos acerca do significado em comunidades primitivas e observa que a linguagem assume, nestas comunidades, um carter essencialmente pragmtico. A fala, como reflexo do pensamento, constitui, segundo o autor, um uso derivativo e muito artificial, um estgio posterior, numa comunidade j civilizada, em que a linguagem usada tanto na estruturao quanto na expresso do pensamento. Ou seja:

    A linguagem, originalmente, entre os povos primitivos, no-civilizados, jamais foi usada como um mero espelho do pensamento reflexivo. (...) Em seus usos primitivos, a linguagem funciona como elo na atividade humana concertada, harmnica como uma pea de comportamento humano. um modo de ao e no um instrumento de reflexo. (op. cit.: 309)

    As observaes de Malinowski acerca da linguagem como meio de ao, diz-nos Palmer (1979:62), tm uma importncia considervel, pois deixam claro que a linguagem no funciona apenas como um meio para transmisso de informaes. Palmer diverge, no entanto, dos argumentos aduzidos pelo antroplogo, pois no v a linguagem como meio de ao apenas em relao com as necessidades mais bsicas do homem primitivo ou da criana. Primeiro, porque recusa o rtulo de primitiva para qualquer lngua. Admite, sim, que o termo aplicvel a agrupamentos humanos no-civilizados, mas no o a lnguas, como quer Malinowski. Segundo, porque as opinies de Malinowski no bastam para a construo de uma teoria do significado, na medida em que este antroplogo no busca sequer uma sistematizao dos contextos, na base da qual tal teoria pudesse ser erigida. Palmer observa ainda que, nestas comunidades primitivas, nem toda atividade lingstica est relacionada com o contexto. Toma, como exemplo, situaes descritas pelo prprio Malinowki em que a linguagem empregada na narrativa. Neste uso especfico, o contexto sempre o mesmo, ou seja, uma pessoa conta uma histria a outra. E nem por isso atribui-se o mesmo significado a todas as histrias narradas. A noo de contexto secundrio, em Malinowski, que uma espcie de contexto intranarrativo, concebida para resolver tal dificuldade, no tem qualquer

  • consistncia, pois esse contexto no susceptvel de observao imediata nem de ser objetivamente definido, mais do que os conceitos e os pensamentos, os quais ele tanto se empenhou a afastar da discusso (PALMER, 1979: 63). Palmer mostra mais benevolncia com a teoria de Firth, mais explcita, que considera a ao verbal e a no-verbal dos intervenientes, os objetos relevantes e os efeitos da ao verbal, em torno da qual desenvolve pertinentes comentrios, que no exporemos aqui, para o que remetemos leitura de Palmer (op. cit.: 63-6).

    Feitas as consideraes supra, aludentes s funes da linguagem, nos aspectos filosfico e antropolgico, que deixam transparecer alguns pontos de convergncia entre os autores mencionados, particularmente no que tange variedade de funes a que a linguagem serve, segue-se a anlise dos diferentes tratamentos que o assunto tem recebido no mbito especfico da cincia da linguagem.

    1.3. Funes da linguagem: enfoque lingstico

    1.3.1. As perspectivas de Carvalho e Halliday

    Conforme o que ficou dito no incio da seco anterior, os rumos que a discusso em torno das funes da linguagem pode tomar depende dos pressupostos tericos do investigador. Podemos dizer que o mesmo ocorre entre os lingistas. H autores que destacam o papel da relao social como fundamento para o quadro de funes da linguagem que postula. Outros enfatizam o conhecimento e a apreenso da linguagem enquanto reflexo, construo nominal e categorial da realidade interior e exterior ao indivduo, como papel fundamental da linguagem. Outros ainda vem na linguagem, basicamente, um instrumento construdo pelo homem para a exteriorizao de seus sentimentos, pensamentos e volies. Destas perspectivas decorrem distintas classificaes funcionais, em que as funes so hierarquizadas de acordo com os pressupostos priorizados pelos investigadores.

    Identificamos, porm, um ponto em comum nas diversas abordagens que o assunto tem conhecido. Os estudiosos, em geral, atribuem linguagem uma funo de comunicao (mesmo porque o termo tem amplitude demasiada para encampar outros aspectos funcionais), quer a considerem predominante quer no. Mesmo aqueles que

  • assumem como hegemnica a funo cognitiva tm de curvar-se evidncia da finalidade comunicativa da linguagem. Esta funo representa, portanto, um ponto de consenso entre aqueles que se dedicam ao estudo das funes da linguagem.

    Carvalho (1983: 36), por exemplo, comentando, em nota de p-de-pgina, a concepo de linguagem de Erdmann, segundo a qual a linguagem um instrumento, e precisamente o instrumento ou rganon do pensar que nos peculiar enquanto seres humanos, diz ser equivocada esta ou qualquer outra concepo de linguagem que negligencie uma de suas duas funes bsicas: a de conhecimento ou a de comunicao (particularmente, a exteriorizao).

    Nesta linha de raciocnio, Carvalho preconiza uma distino bsica entre a funo interna e a externa da linguagem. A primeira corresponde funo do conhecer, que precede todas as outras, uma vez que constitui um pressuposto para as funes ditas externas, de manifestao ou de exteriorizao. Segundo Carvalho, o ato cognoscitivo, por um lado, pode realizar-se independentemente da atividade verbal, numa espcie de intuio espiritual, o que caracteriza as forma internas do conhecimento imediato. Por outro lado, o ato de conhecer tambm se d na e pela linguagem. Nesta perspectiva, pode-se dizer que atravs do exerccio da linguagem que o conhecimento humano encontra sua forma mais perfeitamente elaborada. Para Carvalho:

    O conhecimento que se designa pelo nome de conhecimento discursivo __ o discurso da razo __, mas antes desse j o prprio juzo, constituem fundamentalmente modos de conhecer verbalmente realizados, que utilizam as palavras (mesmo quando no sonoramente produzidas) como formas e instrumentos de apreenso da realidade (op. cit.: 27).

    Na verdade, esta distino preliminar proposta por Carvalho encontra-se na base de sua definio de linguagem9, que transcrevemos:

    Definiremos assim linguagem como actividade simultaneamente cognoscitiva e manifestativa (destaque nosso), manifestada pela utilizao de um sistema de duplos sinais, que se apresentam fisicamente como objetos sonoros produzidos pelo aparelho fonador do homem (op. cit.: 28).

    9 Tal definio est fundada na crtica que Carvalho faz a outras concepes que no consideram o

    aspecto cognoscitivo da linguagem e priorizam apenas seus aspectos scio-interativos.

  • No obstante Carvalho fale de simultaneidade entre o aspecto cognoscitivo e manifestativo da linguagem, como fica claro pelo trecho acima transcrito, noutra passagem (p. 27), afirma que, em certo sentido, a funo cognoscitiva (ou interna) da linguagem precede as demais, de modo que essas no poderiam sequer subsistir sem aquela. Essa precedncia, no entanto, no de ordem cronolgica, mas ontolgica. Isto , essa prioridade no significa haver primeiro um conhecimento que, depois, manifestado, pois o ato de conhecer tambm se d na linguagem. Significa, sim, dizer que o conhecimento e no a ao o que constitui a causa teleolgica da linguagem, ou seja, em termos de inteno que o conhecimento precede a manifestao. O ato lingstico pressupe uma inteno significativo-comunicativa. Vejamos o que diz a respeito o prprio autor:

    Visto que o homem se define relativamente aos animais como ser espiritual e portanto racionalmente cognoscente; visto que o conhecimento racional aquilo que o caracteriza especificamente e continuaria a especific-lo mesmo quando no fosse exteriorizado ou transmitido a outro, evidente que aquilo para que a linguagem se encontra orientada antes o conhecimento e no a exteriorizao (op. cit.: 36)

    Quanto funo externa da linguagem (de manifestao ou exteriorizao), em que os contedos cognoscitivos j esto dados e, portanto, prontos para serem transmitidos ou simplesmente exteriorizados, Carvalho admite, na base da relao entre emissor e receptor, uma pura manifestao ao lado de uma manifestao para outrem. Na pura manifestao, ou monlogo, a presena de um receptor no necessariamente exigida. Todavia, Carvalho reconhece que o monlogo, mesmo que no esteja orientado especificamente para um receptor, sempre o pressupe. Assim, que

    Todo o monlogo pressupe portanto a existncia de outros sujeitos distintos do sujeito que o realiza. Mas h mais ainda: que o prprio monlogo pode, em certo sentido, considerar-se como um dilogo, embora um dilogo, no verdadeiramente mutilado, mais imperfeito, em que o sujeito se desdobra simultaneamente num sujeito falante e num sujeito ouvinte, em que fala e se escuta a si mesmo. Para isso, pode suceder que o ato verbal chegue a explicitar-se em palavras sonoras, materialmente produzidas e por isso audveis, mas no necessrio que assim acontea: o monlogo, enquanto dilogo interior, implcito, pode realizar-se, e realiza-se quase sempre no mais perfeito silncio, no ntimo da conscincia, sob a forma de pensamento silencioso (op. cit.: 42)10.

    10 A propsito da pura exteriorizao, ou monlogo, e das funes dialgicas no monlogo interior,

    Lopes (s/d: 58-9) fala das funes outrativa e autoconativa da linguagem.

  • Na manifestao para outrem, ou comunicao, instala-se o dilogo, ou seja, o emissor se dirige para um receptor, cuja presena imprescindvel. No se trata de presena fsica, obviamente, pois, no caso de um discurso escrito, o receptor no se encontra fisicamente presente, mas concebido pelo escritor que para ele dirige a mensagem. Prova disto que o discurso tambm organizado em funo do receptor. Um discurso endereado a uma pessoa ntima tem caractersticas distintas das de um discurso destinado, por exemplo, a uma autoridade pblica. No processo comunicacional, da manifestao para outrem, emissor e receptor so, pois, peas indispensveis para a instalao e manuteno do dilogo.

    A funo externa de comunicao pode ser informativa (representativa), expressiva ou apelativa conforme a natureza do contedo manifestado na mensagem. Se o contedo manifestado for de natureza predominantemente intelectual (intuitiva e/ou discursiva), temos a funo informativa. Se o contedo for de natureza eminentemente emotiva, temos a funo expressiva. E se o contedo manifestado for de natureza volitiva, tendo como fim prtico a ao, temos a funo apelativa. Quanto a tal classificao das funes de comunicao (ou dialgicas), de notar-se que Carvalho no apresenta divergncias com relao ao pensamento tradicional e cita o psiclogo austraco Bhler em nota de p-de-pgina.

    Carvalho entende que todo ato de linguagem concomitantemente informativo, expressivo e apelativo, ao que ele se refere como compresena das funes no ato verbal. Esta compresena no implica, obviamente, que as trs funes gozem de um mesmo estatuto nas diferentes mensagens. Com efeito, variam e organizam-se hierarquicamente de acordo com os contedos manifestados.

    A exemplo de Bhler, ao qual nos referiremos ainda neste captulo, Carvalho atribui funo comunicativa de informao uma importncia maior que s outras duas. A propsito da compresena das funes no ato verbal e do destaque dado funo informativa, Carvalho assim se expressa:

  • No h finalmente informao pura, porque aos contedos intelectuais sempre se misturam em maior ou menor grau a emoo e a vontade do sujeito falante. Por outro lado porm, no existe verdadeira informao que se no realize na linguagem, quer imediatamente na sua forma verbal, quer mediatamente nalgumas formas secundrias que adiante estudaremos; pelo que se v se pode ainda afirmar que, se nas funes externas a comunicao a funo essencial da linguagem, dentro da comunicao informao que cabe o primeiro lugar (op. cit.: 53).

    Um ponto chamou-nos a ateno na teoria das funes da linguagem em Carvalho. Perguntamo-nos quais os parmetros que bem poderiam caracterizar o que o autor denomina funo interna, ou do conhecer, em oposio funo externa monolgica. Nesta, o autor admite a presena tanto das funes expressiva e apelativa quanto da funo informativa. A dvida que temos , sobretudo, saber o que diferencia a atividade monolgica informativa da atividade cognoscitiva que se realiza na e pela linguagem, em sua funo interna. Parece-nos que o autor no explicita suficientemente

    bem esta distino, que, no entanto, assume como verdadeira. Carvalho no , todavia, o nico lingista que se refere funo interna

    (cognoscitiva) da linguagem. Tambm Halliday (1986: 67), ao comparar seu modelo de funes da linguagem ao modelo tridico de Bhler (cf. adiante), introduz, ao contrrio deste, uma distino entre experincia e lgica. Tal distino, parece-nos, aproxima-se bastante daquela a que Carvalho procede quando raciocina acerca da funo interna da linguagem. Ao lado da funo de apreenso da realidade que se efetua atravs da linguagem, temos o conhecimento discursivo, o discurso da razo, aludido por Carvalho, que corresponde funo lgica da linguagem, em Halliday.

    A aproximao, entre Carvalho e Halliday, porm, , em parte, aparente, em virtude dos fundamentos scio-interativos proeminentes em Halliday, que tornam a funo interna mais tangvel. Carvalho funda seus alicerces no tomismo-aristotelismo e na filosofia crist (de um So Joo da Cruz).

    Dada sua base sociolgica, o pensamento de Halliday aproxima-se tambm do de Malinowski, mormente no que diz respeito teoria da aquisio da linguagem. Halliday parte de uma concepo de lngua que poderamos chamar de interativo-funcional, inspirada em pesquisas acerca do desenvolvimento da linguagem na

  • criana11. Segundo esse modo de ver as coisas, a criana percorre trs fases, no muito bem delineadas por Halliday, at atingir a maturidade lingstica, ou seja, at adotar a lngua adulta como sua. Numa primeira etapa:

    a criana aprende: a funo instrumental, que a funo eu quero da linguagem, a linguagem utilizada para satisfazer uma necessidade material; a funo reguladora, que a funo de faa o que eu digo, a linguagem para dar ordens s pessoas ao seu redor; a funo interativa, voc e eu, que a linguagem usada para a ao recproca com outras pessoas; a funo pessoal, aqui estou, que a linguagem utilizada como expresso da prpria individualidade da criana; a funo heurstica se apresenta pouco depois, e a linguagem como forma de explorar o meio, a funo diga por que da linguagem; e, finalmente, a funo imaginativa, finjamos, que verdadeiramente a linguagem para a criao de um entorno prprio12.

    Na fase sucednea, d-se a renncia do sistema pessoal erigido pela criana, que adota o sistema lingstico do adulto, e verifica-se uma generalizao do quadro funcional precedente. As seis funes da fase anterior organizam-se em torno de duas funes mais gerais: funo pragmtica e funo mattica. A primeira, diz-nos o pesquisador ingls, evoluiu a partir das funes instrumental e reguladora; a segunda, a partir das funes pessoal e heurstica. Numa fase posterior, estas funes so

    11 Esclarecendo melhor este ponto, ao qual ainda retornaremos nesta seco, convm observar que

    Halliday preconiza que a funo constitui o princpio organizador do sistema lingstico, mas, ao contrrio de Franois, no reconhece qualquer organizao hierrquica entre as funes da linguagem que postula. Para Halliday, o sistema lingstico funcional tanto em origem como em orientao (1986: 66), ou seja, a partir da necessidade de interao social que a criana comea a elaborar uma lngua particular, diferente da do adulto, para atender a certas funes iniciais (instrumental, reguladora, interativa, pessoal, heurstica, imaginativa e informativa). Aps este estgio, a criana abandona seu projeto de construo de uma lngua particular para assumir como sua a lngua do adulto, uma estrutura j elaborada, em que aquelas funes iniciais encontram-se formalizadas em trs metafunes bsicas: a ideacional, a interpessoal e a textual, no havendo, conforme frisamos, qualquer relao de predominncia entre estas. Desta forma, podemos ver que funo apresenta-se, em Halliday, como o princpio organizador de um sistema de comunicao, que nos primeiros meses de vida da criana constitui um sistema rudimentar e na lngua adulta, um sistema mais complexo, edificado consoante as metafunes supracitadas. Noutras palavras, a lngua constitui um instrumento de interao social, uma resultante das intenes do indivduo que a utiliza e a elabora no ato de sua utilizao. A linguagem, por sua vez, um potencial de significado, ou seja, ela representada por aquilo que o falante pode dizer, isto , o sistema lxico-gramatical em geral que opera como realizao do sistema semntico, sistema este fundado na noo de funo, tal como a entende Halliday. 12

    ... el nio aprende: la funcin instrumental, que es la funcin yo quiero del lenguaje, el lenguaje utilizado para satisfacer una necesidad material; la funcin reguladora, que es la funcin de haz lo que te digo, el lenguaje utilizado para dar rdenes a las personas a su alrededor; la funcin interactiva, t y yo, que es el lenguaje utilizado para la accin recproca con otras personas; la funcin personal, aqu estoy, que es el lenguaje utilizado como expresin de la propria unicidad del nio; la funcin heurstica se presenta poco despus, y es el lenguaje como medio de explorar el medio, la funcin de dime por qu del lenguaje; y, finalmente, la funcin imaginativa, finjamos, que es verdaderamente el lenguaje para la creacin de un entorno propio (Halliday: 1986: 76).

  • incorporadas ao prprio sistema lingstico, sob a forma sumamente abstrata das metafunes ideacional, interpessoal e textual, assim definidas:

    a) na funo ideacional, a linguagem expressa a experincia do falante acerca do mundo interior e exterior, ou seja, expressa um contedo, cuja estrutura correspondente a da transitividade, caracterizada pelos papeis temticos de agente, processo, meta etc.

    b) na funo interpessoal, a linguagem expressa a relao entre os participantes de uma dada situao, ou seja, o papel que o falante adota e o papel ou as opes de papis que ele decide imputar ao ouvinte; tal relao particulariza-se na estrutura modal;

    c) na funo textual, a linguagem se estrutura em termos de tema e rema, de modo a estabelecer a mensagem enquanto processo de comunicao global.

    De acordo com Halliday, a funo pragmtica incorporada pela funo interpessoal do sistema lingstico e a funo mattica, pela funo ideacional, como deixa transparecer o esquema abaixo:

    f. instrumental f. reguladora f. pragmtica f. interpessoal f. interativa

    f. pessoal f. heurstica f. mattica f. ideacional f. imaginativa

    O modelo funcional da linguagem, preconizado por Halliday com base nas fases do desenvolvimento lingstico experienciado pela criana, tem como princpio organizador as intenes da criana quanto ao relacionamento que ela estabelece com o meio que a circunda. A linguagem atende a uma srie de necessidades da criana e pode ser descrita em termos dos usos a que se presta. Vejamos o que diz a respeito o prprio Halliday:

  • O que chamamos modelos so as imagens que temos da linguagem surgindo destas funes. A linguagem se define para a criana atravs de seus usos; ela algo que serve a esta gama de necessidades13.

    Comparando os pontos de vista dos dois autores retrocitados, Carvalho e Halliday, identificamos, sem esforo, alguns aspectos dissonantes entre eles. Alm de no fazer referncia a uma funo textual nem postular uma teoria acerca de como a criana adquire (ou desenvolve) sua linguagem, Carvalho advoga uma precedncia ontolgica da funo interna da linguagem em relao funo externa. Assim, a funo interna do conhecer , como vimos, um pressuposto para a sua exteriorizao, isto , s se pode manifestar o que j conhecido. Halliday, por sua vez, no preconiza qualquer hierarquia funcional. Admite, porm, que, no processo de aprendizagem de uma lngua, algumas funes precedem cronologicamente outras. Para ele, a funo heurstica da linguagem, prxima, apenas em parte, da funo interna de Carvalho, aparece numa fase posterior do surgimento das funes instrumental, reguladora, interativa e pessoal.

    Ressalte-se que uma e outra concepo apresentam lacunas: a ausncia de uma teoria da aquisio da linguagem em Carvalho e a falta de preciso de Halliday no descrever como se d a passagem de um sistema funcional com seis funes, desenvolvido pela criana numa primeira fase do processo de aquisio da linguagem, para o sistema adulto, com trs metafunes. Por outro lado, assim nos parece, Halliday mais conseqente quanto aos desdobramentos do seu funcionalismo, no qual as funes esto presentes na forma lingstica e nela se refletem. Prova disto o seu An Introduction to a Functional Grammar (1985), no qual a orao, eixo e ncleo de sua gramtica, tratada como mensagem, intercmbio e representao. O mais est abaixo dela (sintagmas), acima (o complexo oracional ou perodo), ao lado (entonao e ritmo), ao redor (coeso e discurso) e alm (modos metafricos de expresso). H, no entanto, pontos de contato entre as duas concepes, particularmente no que tange s funes da linguagem adulta, em que fica patente a influncia exercida pelas idias do psiclogo austraco Bhler (1950: 35-45), de cujas concepes passaremos a falar.

    13 What we have called models are the images that we have of language arising out of these functions.

    Language is defined for the child by its uses; it is something that serves this set of needs (Halliday, 1981: 17).

  • 1.3.2. As perspectivas de Bhler e Jakobson

    Para a representao do fenmeno verbal atravs de um modelo concreto e acabado, considerando as circunstncias nas quais o aludido fenmeno ocorre, Bhler parte da concepo de linguagem como um rganon, tal como encontrada no Crtilo, obra em que Plato discute fundamentalmente a questo da relao entre nomes e coisas.

    Plato reconhece, no referido dilogo, que a linguagem serve para algum comunicar alguma coisa a outro. A partir da, Bhler traa um esquema triangular e localiza no centro da figura um quarto ponto que simboliza o fenmeno percebido pelos sentidos e que mantm algumas relaes com os outros trs. Vejamos o que diz o prprio Bhler a esse respeito:

    O quarto ponto no centro simboliza o fenmeno perceptvel pelos sentidos, habitualmente acstico, que evidentemente tem que estar em alguma relao, seja direta ou mediata, com os trs fundamentos dos ngulos. Traamos linhas pontilhadas do centro at os ngulos de nosso esquema e meditamos sobre o que significam estas linhas pontilhadas14.

    Tal esquema representado como segue:

    objeto e fenmenos

    organon

    um (dos dois interlocutores)

    outro

    14 El cuarto punto en el centro simboliza el fenmeno perceptible por los sentidos, habitualmente

    acstico, que evidentemente tiene que estar en alguna relacin, sea directa o mediata, con los tres fundamentos de los ngulos. Trazamos lneas de puntos desde el centro hasta los gulos de nuestro esquema y meditamos en lo que simbolizan esas lneas de puntos (Bhler: 1950: 36).

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  • Em seguida, Bhler alude aos nexos causais estabelecidos pelos behavioristas no seio do rganon, em termos de causa-efeito entre os pontos constituintes do esquema. Bhler julga insuficientes estas consideraes causais acerca do fenmeno lingstico, quer por no levarem em conta a complexidade dos sistemas psicolgicos dos interlocutores que operam como seletores e atuam segundo o princpio da relevncia abstrativa, quer por no apresentarem um conceito explcito de sinal lingstico.

    Por conta disto, o estudioso austraco sugere uma reformulao do rganon para obter a representao abaixo:

    Objeto e fenmenos extra-lingsticos que fazem o objeto da

    mensagem

    smbolo

    expresso

    apelo

    emissor (da mensagem)

    receptor (da mensagem)

    E explica:

    O crculo do centro simboliza o fenmeno acstico concreto. Trs momentos variveis nele so chamados para al-lo, por trs vezes distintas, categoria de signo. Os lados do tringulo inserto simbolizam esses trs momentos. O tringulo compreende num aspecto menos que o crculo (princpio da relevncia abstrativa). Noutro sentido, por sua vez, abarca mais que o crculo, para indicar que o dado sensvel experimenta sempre um complemento no-perceptivo. Os grupos de linhas simbolizam as funes semnticas do signo lingstico (complexo). smbolo em

  • virtude de sua ordenao a objetos e relaes: sintoma (indcio) em virtude de sua dependncia do emissor, cuja interioridade expressa, e sinal em virtude de seu apelo ao ouvinte, cuja conduta externa ou interna dirige como outros sinais de trfego15.

    Em tal modelo de rganon, Bhler reconhece trs funes semnticas da linguagem: a representao, a expresso e o apelo. Cada uma destas funes surge a partir da relao entre o sinal e as trs instncias intervenientes no fenmeno verbal: os objetos e relaes, o emissor e o receptor.

    Bhler destaca a predominncia da funo representativa face s outras duas, mas adverte tambm que o emissor, como sujeito da ao verbal, e o receptor, enquanto direo da referida ao, ocupam posies prprias na estrutura da situao verbal. No devem ser entendidos simplesmente como parte daquilo acerca do qual se produz a comunicao. So partes atuantes deste intercmbio, e, portanto, mantm com o signo relaes peculiares.

    Bhler exerceu notvel influncia nos estudos sobre as funes da linguagem, especialmente no pensamento de Jakobson (s/d), que, considerando o modelo tridico proposto por aquele, colocou-o sob nova perspectiva.

    As funes da linguagem so a resultante do enfoque plural adotado por Jakobson, avesso a qualquer insulamento disciplinar, absolutamente prejudicial, no seu modo de ver as coisas, vida cientfica. Por essa razo, cuida de aproveitar as contribuies de disciplinas direta ou indiretamente relacionadas com os estudos lingsticos.

    Jakobson era um lingista de convices ideolgicas hauridas em muitas fontes. Uma delas o filsofo Husserl, que o influenciou no tocante questo da referncia ao sujeito. O observador parte da observao. Os mesmos objetos podem ser apreendidos e percebidos de diferentes formas. Na apreenso so os traos

    15 El crculo del centro simboliza el fenmeno acstico concreto. Tres momentos variables en l estn a

    elevarlo por tres veces distintas a la categora de signo. Los lados del tringulo inserto simbolizan esos tres momentos. El tringulo comprende en un aspecto menos que el crculo (principio de la relevancia abstractiva). En otro sentido, a su vez, abarca ms que el crculo, para indicar que lo dado de un modo sensible experimenta siempre un complemento aperceptivo. Los grupos de lneas simbolizan las funciones semnticas del signo lingstico (complejo). Es smbolo en virtud de su ordenacin a objetos y relaciones; sntoma (indicio), en virtud de su apelacin al oyente, cuya interioridad expresa, y seal en virtud de su apelacin al oyente, cuya conducta externa o interna dirige como otros signos de trfico (Bhler, 1950: 41).

  • invariantes de um objeto ou de uma significao que so investigados, ou seja, as abstraes eidticas. Isto se evidencia, por exemplo, na orientao subjetiva em poesia, esta colocada como centro da percepo graas a um conjugado de traos lingsticos que se voltam para a mensagem e a realam, e na orientao subjetiva em fonologia, pois mais que a articulao de sons, interessa a percepo auditiva, na qual s so pertinentes os sons opositivos. Configura-se o ponto de vista mico, segundo o qual no h percepo nem formao de teoria inteiramente amorfa, isto tica (cf. HOLENSTEIN, 1978: 55-95).

    Jakobson, porm, no se filiou doutrinariamente apenas Fenomenologia husserliana. Interessou-se tambm por outras reas do conhecimento, na procura de interdisciplinaridade.

    Admite, por exemplo, com Levi-Straus, que a Lingstica est estreitamente ligada Antropologia Cultural (JAKOBSON, s/d: 17), uma vez que a linguagem deve ser compreendida como parte da vida social e, portanto, estudada em toda sua complexidade.

    Remete-nos tambm, com freqncia, Semitica de Peirce, que, a seu ver, deve ser considerado o autntico e intrpido precursor da Lngstica Estrutural, quando estabelece, j em fins do sculo passado, a necessidade de uma cincia dos signos em geral, e esboa-lhe as grandes linhas. A propsito disto, citemos o prprio Jakobson:

    Quando se estudarem cuidadosamente as idias de Peirce a respeito das teorias dos signos, dos signos lingsticos em particular, ver-se- o precioso auxlio que trazem s pesquisas sobre as relaes entre a linguagem e os outros sistemas de signos. (op. cit.: 17)

    Em seguida, Jakobson admite que a teoria matemtica da comunicao, tal como foi desenvolvida por Shannon e Weaver, parece-lhe uma boa escola para a Lingstica estrutural, assim como a Lingstica estrutural uma escola til para os

    engenheiros de comunicao (op. cit.: 22). Convicto da necessidade de uma abordagem interdisciplinar do fenmeno

    lingstico, Jakobson bebe, como vimos, em fontes diversas. E neste clima que desenvolve sua teoria das funes da linguagem, em que patente, sobretudo, a influncia dos tericos da comunicao. Alis, a propsito disto declara Jakobson:

  • De fato, os lingistas tm muito a aprender da teoria da comunicao. Um processo de comunicao normal opera com um codificador e um decodificador. O decodificador recebe a mensagem. Conhece o cdigo. A mensagem nova para ele e, por via do cdigo, ele a interpreta. (op. cit.: 23)

    Nestas bases, Jakobson amplia o modelo tridico das funes da linguagem de Bhler e preceitua um outro, com seis funes, tomando como fundamento os fatores intervenientes no processo de comunicao, isto , contexto, remetente, destinatrio, mensagem, cdigo e contato.

    Cada um desses seis fatores determina uma funo da linguagem diferente. Assim, se a mensagem est orientada para o contexto, a funo referencial; se, para o remetente, funo emotiva; se, para o destinatrio, funo conativa; se nfase dada ao contato, funo ftica; se, para o cdigo, funo metalingstica; se, para a mensagem, funo potica.

    As funes da linguagem, assim entendidas, podem coocorrer numa mesma mensagem e isto o que sucede amide. Na realidade, diz-nos Jakobson, a diversidade das mensagens no reside no monoplio de alguma dessas diversas funes, mas numa diferente ordem hierrquica de funes. A estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da funo predominante (op. cit.: 123).

    De acordo com o pensamento de Jakobson, cada uma destas funes possui marcas lingsticas caractersticas. Por exemplo, numa mensagem cuja funo preponderante a referencial, verificamos a nfase no contexto, e, por conseguinte, um predomnio da terceira pessoa do verbo, matiz comum em mensagens de carter cientfico, cuja finalidade fundamentalmente transmitir informao terica. Mensagens deste tipo possuem uma dimenso cognitiva preponderante.

    A funo emotiva, em termos lingsticos, marcada pela primeira pessoa do verbo, pela interjeio, pelos adjetivos que veiculam, no mais das vezes, o ponto de vista do emissor, por alguns advrbios e por sinais de pontuao.

    A funo conativa se destaca pelo verbo na segunda pessoa e pelo uso do imperativo e do vocativo, que constituem as principais marcas lingsticas deste tipo de funo.

  • Caracterstica da funo ftica so expresses consagradas pelo uso e pouco relevantes do ponto de vista informativo, tais como: bom dia!, como vai?, al! A tautologia trao caracterstico da faticidade.

    Baseada no cdigo, a funo metalingstica, por sua vez, pressupe a existncia de uma lngua-objeto da qual se fala por intermdio de uma metalngua, que, por ser melhor conhecida, funciona como um modelo decodificador daquela.

    Por fim, dirigida para os elementos da mensagem efetivamente utilizados, temos a funo potica. Segundo Jakobson, tal funo aprofunda a dicotomia fundamental entre signos e objetos (op. cit.: 128), ao promover o carter palpvel dos signos.

    A propsito disto, o lingista russo-americano menciona o recurso potico da paronomsia, utilizada para destacar este carter palpvel do signo lingstico numa mensagem.

    Uma moa costuma falar do horrendo Henrique. Por que horrendo? Por que eu o detesto. Mas por que no terrvel, medonho, assustador, repelente? No sei por que, mas horrendo lhe vai melhor. Sem se dar conta, ela se aferrava ao recurso potico da paronomsia. (op. cit.: 128)

    Ainda a esse respeito, analisa o slogan poltico I like Ike, referente campanha poltica de Eisenhower.

    O slogan poltico I like Ike (ai laic aic, eu gosto de Ike), sucintamente estruturado, consiste em trs monosslabos e apresenta trs ditongos /ai/, cada um dos quais seguido, simtricamente, de um fonema consonantal /.. l .. k .. k/. O arranjo das trs palavras mostra uma variao: no h nenhum fonema consonantal na primeira palavra, h dois volta do ditongo, na segunda, e uma consoante final na terceira. Um ncleo dominante similar /ai/ foi observado por Hymes em alguns dos sonetos de Keats. Ambas as terminaes da frmula trissilbica I like / Ike rimam entre si, e a segunda das duas palavras que rimam est includa inteira na primeira (rima em eco), /laic/ - /aic/, imagem paronomtica de um sentimento que envolve totalmente o seu objeto. Ambas as terminaes formam uma aliterao, e a primeira das duas palavras aliterantes est includa na segunda: /ai/ - /ai/, uma imagem paronomstica do sujeito amante envolvido pelo objeto amado. A funo potica, secundria deste chamariz eleitoral refora-lhe a impressividade e a eficcia. (op. cit.: 128-29)

    Isto posto, Jakobson busca definir a funo potica em termos lingsticos. Para tanto, recorda os dois modos de arranjo utilizados no comportamento verbal,

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  • seleo e combinao. Num ato de comunicao, o falante escolhe, por exemplo, unidades lxicas para atualiz-las no discurso, combinando-as. A seleo, diz-nos Jakobson, feita com base em equivalncia, semelhana e dessemelhana, sinonmia e antonmia, e a combinao se baseia na contigidade. Por essa razo que define a funo potica como a funo que projeta o princpio de equivalncia do eixo de seleo sobre o eixo de combinao (op. cit.: 130). E acrescenta: a equivalncia promovida condio de recurso constitutivo da seqncia (op. cit.: 131).

    Tais equivalncias projetadas sobre o eixo da combinao so de natureza bem distinta. Temo-las a nvel fonolgico, morfolgico, sinttico, lxico, semntico. Sob a denominao de paralelismos, Coquet (1972: 37) apresenta os tipos infra-relacionados:

    os paralelismos gramaticais (ou sua ruptura); os paralelismos dependentes do eixo das convenes (ou sua ruptura); os paralelismos fnicos e prosdicos (ou sua ruptura); os paralelismos semnticos (ou sua ruptura).

    1.4. Funes da linguagem: aspectos crticos

    1.4.1. Funes da linguagem: funes do discurso ou funes da frase?

    Ao comentar o quadro hexdico das funes da linguagem proposto por Jakobson, Lopes (1978) afirma que o mestre russo-americano chama a ateno para o fato de que o sentido de uma mensagem :

    uma varivel dependente das mltiplas correlaes que os actantes do discurso possam estabelecer entre a mensagem tomada como um fator invariante, e cada um dos seis fatores (o destinador, o destinatrio, o contexto, o canal, o cdigo, e a prpria mensagem), tomados como variveis. (op. cit.: 87)

    De acordo com este raciocnio, o valor semntico da mensagem estabelece-se, pois, em funo das variaes do fator focalizado e privilegiado pela prpria mensagem. Erige-se, aqui, o que Lopes chama de princpio das covariaes significativas do discurso e que assim enunciado por ele: o sentido de uma mensagem varia na razo

  • direta das variaes do fator que ela focaliza, privilegiando-o como um functivo para a organizao de uma funo, uma relao (op. cit.: 87).

    Lopes, todavia, prope uma primeira e oportuna reformulao no modelo jakobsoniano. Observa que o mestre russo-americano sugere uma distino entre funo conativa e funo encantatria, fundamentada na oposio actorial /humano/ x /no-humano/, e indaga por que Jakobson no adota procedimento semelhante no que concerne aos destinadores, postulando igualmente funes diversas de acordo com a mesma oposio actorial. Ainda acerca da oposio humano x no-humano, vlida em termos de dicionrio (grosso modo, equivalente lngua), Lopes demonstra que ela no apresenta necessariamente valor discursivo, razo por que no deve prestar-se para orientar decises no que concerne ao estabelecimento das funes. E acrescenta:

    Ora, a propriedade da animalizao e da personificao de atores extradiscursivamente definidos como /no-animais/ ou /no-humanos/ um dado inerente aos discursos que incluem uma narratividade subjacente, pois que a narrativa goza o privilgio de desqualificar ou de requalificar, contextualmente, as qualificaes produzidas pela lngua. (op. cit. 91)

    Lopes indaga ainda se lcito considerarem-se as funes conativa e encantatria, supracitadas, como tipos diferentes ou apenas subtipos de uma mesma funo, entre as quais se estabeleceria uma relao de gnero/espcie. No desenvolve, todavia, o tema.

    Assevera, no entanto, que tais questes servem para demonstrar a precariedade de teorias funcionais tratadas no mbito da frase. O discurso o seu verdadeiro domnio. no discurso, entendido como um conjunto de frases coerentizadas para a obteno de um nico efeito-de-sentido, que uma frase semantiza-se, depois do que se torna possvel determinar sua funo. A propsito das teorias que do um tratamento frasal s funes da linguagem, Lopes assim se expressa:

    O defeito que as vicia na base o de supor que a funo se inscreva no domnio da frase (enunciado isolado) quando certo que, por ser uma relao de covariao significativa, ela se inscreve no domnio do discurso. (op. cit.: 89)

  • A frase deve, ento, ser compreendida como parte constituinte de uma unidade maior (o discurso), deixando assim de ser unidade constituda e autnoma, sinttica e semanticamente falando.

    Neste sentido, ilustrativo o exemplo empregado por Lopes (1978: 89-90). Comentando a frase Faam silncio!, o autor faz notar que a funo da qual a mensagem est dotada depende do sentido integral do texto como resultado da interpretao discursiva. Assim, a interpretao funcional da referida frase vai depender do contexto em que ela ocorre. Por exemplo: um professor dizer a seus alunos Faam silncio! e um narrador dizer que o professor disse a seus alunos Faam silncio! no so a mesma coisa, pois a mesma frase est dotada de uma funo conativa, no primeiro caso, e de uma funo referencial, no segundo.

    Alm disto, o sentido textual, observa Lopes, tambm uma decorrncia das classificaes dos discursos que uma dada cultura distingue (prosa/poesia; discurso cientfico/discurso ficcional etc.) Por exemplo, expresses do tipo Era uma vez..., identificadora de uma dada categoria de discursos, porque comparveis mutuamente em termos de estrutura matricial, prestam-se para classificar os discursos que assim principiam como discursos ficcionais.

    No que diz respeito s observaes supra, endossamos a posio de Lopes que assevera, em tom conclusivo, que as funes da linguagem, entendidas como covariaes significativas, devem ser estudadas no mbito do discurso e no mais no da frase isolada, uma vez que, a seu ver, elas podem ser consideradas como o resultado da articulao diferencial de uma dupla relao:

    a) a relao entre um dado discurso e todos os demais discursos produzidos pela mesma cultura, de um lado;

    b) a relao entre o dado discurso, como um todo constitudo, e uma frase (ou fragmento qualquer), que o integre como parte constituinte.

    1.4.2. H uma hierarquia das funes da linguagem?

    Conforme vimos, Jakobson (s/d) postula a existncia de uma hierarquizao funcional, operada na mensagem, de acordo com o fator primordialmente focalizado por ela. Entende que esta hierarquizao determinada pelos elementos lingsticos

  • atualizados em cada mensagem, de modo a fazer uma das funes do feixe sobrelevar-se, destacando-se das demais, adquirindo, assim, o status de funo principal em relao s outras, secundrias.

    Aguiar e Silva (1994) objeta contra esta assuno de Jakobson e argumenta, apoiado nas prprias observaes deste lingista acerca do slogan I like Ike, que nada h nesta mensagem, em termos de expresso, que autorize indicar a funo conativa como a preponderante. E se Jakobson assim procede, explica Aguiar e Silva, porque recorre a elementos contextuais e pragmticos. Neste ponto, assiste razo ao crtico

    portugus. Se se desconhece o contexto de produo do slogan supracitado, torna-se inexeqvel a deteco da prioridade da funo conativa, haja vista a inexistncia de marcas lingsticas que denunciem tal prioridade.

    A esta altura uma pergunta se impe: h, de fato, parmetros seguros que nos possam orientar na indicao da hierarquia funcional constante de uma dada mensagem? s vezes, torna-se difcil, por exemplo, separar emissor e receptor a fim de delimitar, de modo preciso, a funo expressiva da funo conativa.

    A distino entre emissor e receptor na linguagem parece, com efeito, artificial. O emissor se exprime para um receptor, gerando um processo interacional, do qual emerge o sentido da mensagem. Talvez se deva pensar em termos de uma funo interpessoal da linguagem, que serve para estabelecer e manter relaes sociais16, ou ainda, em termos de uma funo pessoal (uma das funes pragmticas de Kloepfer, cujo modelo veremos mais adiante), sendo que ambas conglobam as funes expressiva e conativa de Jakobson.

    Alm desta impossibilidade de separao entre emissor e receptor, torna-se difcil determinar a funo preponderante de uma determinada frase, dada a ausncia de caractersticas lingsticas particulares para a expresso e a conao (e mesmo para a referncia). Uma mesma orao pode ser expressiva ou conativa, referencial ou metalingstica. A fase faz frio aqui, por exemplo, pode ter uma funo preponderantemente referencial, pode constituir fundamentalmente expresso de uma sensao, e ainda pode ser um pedido indireto para que se fechem portas e janelas. O

    16 Conferir: HALLIDAY, M. A. K. in: LYONS, John (1976: 134-60) e HALLIDAY, M. A. K. (1978 e

    1985).

  • que vai determinar, muitas vezes, a funo proeminente na prpria mensagem o contexto lingstico e/ou extralingstico no qual esta se desenvolve.

    Na teoria dos atos de fala (AUSTIN, J. L., 1990 e SEARLE, John R., 1984), p. ex., a questo das circunstncias nas quais um ato de fala proferido ganha relevo. Segundo esta teoria, ao falarmos praticamos pelo menos trs atos distintos. O primeiro consiste propriamente no ato de dizer alguma coisa. O segundo o ato que praticamos ao dizer alguma coisa. E o terceiro o efeito provocado pela enunciao de uma frase. Assim, ao pronunciarmos uma frase como Prometo quitar minha dvida com voc ainda hoje, estamos praticando o ato locucionrio de proferir certas palavras com determinado sentido, o ato ilocucionrio de fazer uma promessa e o ato perlocucionrio de tranqilizar algum.

    Nesta teoria, a noo de contexto de fundamental importncia. A ttulo de ilustrao, citemos o exemplo empregado por Searle, em que se mostra a correspondncia entre uma mesma orao e seus diversos atos ilocucionrios em funo do contexto. Suponhamos que uma senhora, a certa altura de uma festa, diz J bem tarde. Este enunciado pode ser, simultaneamente: a) uma declarao de fato; b) uma objeo se o interlocutor da dama tiver acabado de afirmar que cedo; c) uma sugesto para o marido, manifestando o desejo de ir-se embora; ou mesmo d) uma advertncia. Diante disto, parece que a funo predominante, em termos jakobsonianos, no pode, no mais das vezes, ser reconhecida na estrutura lingstica da mensagem. Ela est diretamente relacionada ao ato de fala efetivamente praticado.

    Qualquer postulao de hierarquizao das funes da linguagem teria que se apoiar em evidncias lingsticas. Apenas seria possvel admitir como proeminente a funo que fosse marcada lingsticamente, de forma inequvoca. Ora, como se pde ver, tais marcas s vezes inexistem e, quando existem, no bastam.

    Duarte (1998: 199), p. ex., indaga se existe expresso gratuita, conao sem o auxlio de mecanismos expressivos ou mesmo referenciais, mesmo considerados os artifcios tericos e conclui:

    possvel encontrarmos funes bem diferenciadas em textos bem comportados, nos quais certos traos lingsticos saturem ou convirjam de modo a ga